1. Belo Horizonte, bacia do Rio das Velhas, 15 de março de 2018
CARTA ABERTA À PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, À CÂMARA DE
VEREADORES, AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Nos últimos anos, vivemos uma grande crise, amplamente reverberada na mídia, de falta de
água. A escassez hídrica que foi muito intensa de 2013 a 2017 e impactou a economia e o
modo de vida de milhões de pessoas em todo o Brasil. Nos últimos dias, as águas também
assumiram protagonismo na mídia, agora por sua quantidade excessiva. Saltamos da falta
para o excesso, com os impactos dos diferentes focos de inundação e de alagamentos em
fevereiro e março de 2018.
O tratamento equivocado dos recursos hídricos, evidente nesse balanço negativo entre
excesso e falta de água, pode ser facilmente percebido no contexto urbano. Um exemplo
paradigmático é a cidade de Belo Horizonte, que teve a boa oferta hídrica da bacia do
ribeirão Arrudas como justificativa para que aqui fosse construída a nova capital do estado
de Minas Gerais. No entanto, desde a fundação, a cidade vem lidando de maneira errática
com os córregos e ribeirões, tanto na ocupação de suas áreas de inundação e retificação de
seus cursos d’água quanto atuando diretamente em sua poluição.
Os rios são dinâmicos, se adaptam, com o tempo, às mudanças, mas as alterações
humanas são rápidas e intensas. Com chuvas intensas, recebendo um maior volume de
água, cabe ao rio transbordar, ocupar suas margens e gerar inundações - esse é o ciclo
natural da água. As áreas próximas às margens dos rios são chamadas de planície de
inundação exatamente por isso. Foi justamente nas planícies (áreas protegidas pelo código
florestal e de grande importância para os ecossistemas fluviais) que as grandes cidades
brasileiras construíram avenidas sanitárias, com o intuito de levar o esgoto para longe dos
centros urbanos, canalizando córregos, reutilizando seus leitos, servindo para o transporte
de carros e também para o escoamento rápido da drenagem urbana.
A inundação urbana é uma ocorrência tão antiga quanto a existência das cidades. No
entanto, nas cidades brasileiras, as margens dos cursos d’água nunca foram tão
densamente ocupadas, os rios nunca estiveram tão poluídos, o solo tão impermeável e a
ocupação humana tão densa. As águas dos rios, córregos e galerias pluviais transbordam
do leito de escoamento em épocas de grande precipitação. A impermeabilização do solo e a
canalização dos rios propiciam o aumento da vazão de cheia, promovendo grandes
prejuízos devido à inundação, ao aumento da carga de resíduos sólidos e à má qualidade
da água contaminada por diversas fontes de poluição.
Infelizmente a tendência ainda vigente dos projetos de macrodrenagem no Brasil é de
canalização dos trechos críticos – atacando apenas o sintoma e desconsiderando as
causas e as consequências no restante da bacia. Alargar pontos críticos só desloca a
inundação no interior da mesma bacia. Nestes termos, são necessários mais investimentos
para ampliar as canalizações; ou, quando não há mais espaço para ampliar os canais, as
soluções convergem para o aprofundamento do canal, a altos custos. O problema vai sendo
postergado e demanda, a cada vez, volumes mais vultosos de investimentos.
2. No entanto, é preciso dizer com todas as letras: as canalizações e retificações dos cursos
d’água aumentam o risco e a frequência das inundações! Como a água corre mais
rapidamente no canal retificado e pavimentado, ela chega com maior velocidade aos fundos
de vale – tornando as inundações mais críticas. Ciente disso, a prefeitura de Belo Horizonte,
na década de 2000, iniciou uma importante iniciativa de coexistência dos cursos d’água com
a cidade, o programa DRENURBS. Um programa que propunha a não canalização dos
cursos d’água e o tratamento do leito natural, por ações em conjunto com a população.
O DRENURBS foi um programa de reconhecimento nacional e internacional, mas
infelizmente foi enfraquecido e distorcido. Há alguns anos, a prefeitura de Belo Horizonte
retomou o modelo equivocado de canalizações, impermeabilizações e construção de
grandes bacias de detenção que não resolvem o problema: apenas amenizam o efeito, sem
enfrentar de fato o problema. Trata-se de enxugar gelo.
De maneira similar à água, funciona a mobilidade urbana. É consenso entre estudiosos do
tema que ampliar a oferta de espaço para automóveis, através de alargamento de ruas e
avenidas, construção de viadutos, trincheiras e elevados, que custam milhões de reais,
apenas empurra engarrafamentos para mais adiante. Estudos empíricos realizados por
décadas em cidades americanas e europeias demonstram que o aumento da oferta para
automóveis tende a ser saturado em poucos anos.
Em pleno ano de 2018, em que esses conceitos já são consolidados nos seus segmentos
de estudo, surge a proposta da atual gestão da Prefeitura de Belo Horizonte, de contrair
empréstimos de cerca de R$800 milhões para a realização de obras na cidade. Não houve
discussões públicas e coletivas sobre o conteúdo das obras, mas notícias na imprensa
indicam foco em “contenção de enchentes” e construção de viadutos. Sem acesso aos
projetos, embora a cidade possua espaços para essa discussão (Conselho de Política
Urbana, de Mobilidade Urbana e de Meio Ambiente, por exemplo), a sociedade fica refém
da decisão de alguns gestores públicos.
É hora de dar um basta em projetos falaciosos, em obras sem fundamento, em gastos
milionários sem metas objetivas, que drenam os recursos públicos. Não podemos aceitar
que a Prefeitura de Belo Horizonte contraia mais um empréstimo para realizar obras sem o
debate necessário, o planejamento conjunto com a sociedade e o alinhamento com as boas
práticas ambientais contemporâneas, conforme previsto na Política Nacional de Mobilidade
Urbana e no próprio Plano de Mobilidade da cidade. Afinal, se obras de engenharia
rodoviaristas ou sanitaristas resolvessem problemas de mobilidade e os ligados às chuvas,
as tragédias por aqui estariam diminuindo e o trânsito melhorando - e não se agravando ano
a ano, como todos podemos perceber.
Os rios precisam ser encarados como elementos hídricos valiosos, em um sentido amplo e
não apenas como valor monetário, pois pulsam em sua biodiversidade, demarcam
territórios, indicam qualidade de vida, formam culturas, valores, hábitos e costumes, e
podem possibilitar saúde e cidadania. A mobilidade urbana precisa receber uma urgente
inversão de prioridade, que invista de fato nos modos mais efetivos de deslocamento
(transporte coletivo, bicicletas, a pé), que causam menos trânsito, menos emissão de gases
de efeito estufa, de poluentes atmosféricos, menos acidentes, sendo mais acessíveis,
inclusivos e justos.
3. Diversas cidades do mundo têm atuado nessa perspectiva, que concilia mobilidade urbana
efetiva com a preservação e a valorização dos cursos d’água e do meio ambiente urbano.
Elas têm trabalhado pela ampliação da permeabilidade do solo, pela absorção das águas
próximas ao local das chuvas, pela manutenção de áreas verdes, de nascentes, pela boa
qualidade ambiental dos cursos d’água e promoção, em especial, da mobilidade ativa. Essa
abordagem se aproxima do conceito da Trama Verde e Azul proposta pelo Plano Diretor de
Desenvolvimento Sustentável da Região Metropolitana de Belo Horizonte. O arcabouço de
ações englobadas nessa perspectiva, tecnicamente fundamentadas, vem sendo executadas
mundo afora.
Em Londres, a pioneira revitalização do rio Tâmisa tem os peixes e o ecossistema aquático
como indicadores de resultado de ações de revitalização. Na França, a recuperação dos
rios Sena e Reno se dá a partir da incorporação dos Comitês de Bacia como instrumentos
de articulação entre governos, usuários e sociedade civil. Nos Estados Unidos, a
revitalização do rio Anacostia enfatiza a necessidade de eliminação da poluição difusa,
exigindo intervenções também em toda a bacia, como por exemplo: educação ambiental,
novas leis para o licenciamento de construções, novas abordagens para o tratamento e
disposição final do lixo produzido na cidade, e a ênfase na abordagem ecossistêmica.
Experiências norte-americanas mostram, também, remoção de antigas barragens em
processos de revitalização de rios.
Em tantas cidades do mundo, obras rodoviaristas vem sendo demolidas para devolver às
cidades espaços públicos de qualidade. Em São Francisco e em Portland, como em tantas
outras cidades americanas, elevados dão lugar a praças, moradias, esplanadas, parques
ciliares. Em Paris, Avenidas construídas à beira do Sena estão sendo substituídas por um
parque urbano. Em Seul, na Coreia do Sul, um elevado, pelo qual passavam 1,5 milhão de
veículos por dia, foi demolido para dar lugar a um parque linear de 9,4 km ao longo do rio.
Nesses e em outros casos, os resultados foram a melhoria do trânsito e da qualidade do ar,
redução de temperatura e novos espaços de lazer para a população.
Estas experiências são reais, factíveis e estão a nosso alcance - como demonstram muito
bem os projetos bem-sucedidos do programa DRENURBS.
As entidades e pessoas abaixo assinadas solicitam à Prefeitura de Belo Horizonte, à
Câmara de Vereadores e ao Ministério Público que as obras a serem realizadas na cidade
sejam fruto de um debate efetivo com a sociedade, com soluções de longo prazo,
ambientalmente corretas e adequadas ao bom uso da cidade. Que as alternativas técnicas
sejam explicitadas; que a população possa decidir sobre o destino dos recursos públicos;
que possamos solucionar problemas e construir políticas para a cidade que a tornem
ambientalmente justa, eficiente em seus deslocamentos, saudável como ecossistema e com
a presença de águas em um sistema de harmonia com a vida urbana.