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Da Almedina
         Feliz Lusitân
        personagens
             patrimôn




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aà     Da Almedina à
 nia:         Feliz Lusitânia:
s do         personagens do
                  patrimônio
ônio
        CYBELLE SALVADOR MIRANDA
                Universidade Federal do Pará, Brasil




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Miranda, C. S.




                         DA ALMEDINA À FELIZ LUSITÂNIA: PERSONAGENS DO
                         PATRIMÔNIO
                         Resumo
                         A pesquisa analisa comparativamente as formas de apropriação de espaços
                         históricos restaurados em cidades cuja cultura e morfologia possuem se-
                         melhanças, devido à sua relação histórica colonial. A realização de pesquisa
                         iconográfica e de entrevistas em Coimbra objetivou traçar um paralelo entre
                         o tratamento de áreas preservadas no bairro inaugural da cidade de Belém
                         do Pará e no Centro Histórico de uma cidade portuguesa. Desta forma, sele-
                         cionou-se a área intramuros da Almedina (Coimbra) e a região de entorno do
                         Complexo Feliz Lusitânia (Belém) com o objetivo de detectar as percepções
                         da população moradora e dos personagens envolvidos nessas ações. Destaca-
                         se na análise a repercussão das intervenções no cotidiano dessas áreas.
                         Palavras-chave: Patrimônio, restauração, centro histórico, percepções das
                         pessoas.




                         FROM ALMEDINA TO FELIZ LUSITÂNIA: CHARACTERS OF
                         PATRIMONY
                         Abstract
                         This article compares the forms of appropriation of restored historic places
                         in cities whose cultures and morphologies share similarities, because of their
                         colonial history. Combining iconographic research and interviews, a compar-
                         ison between the historical downtown in both Coimbra and Belém enabled
                         me to trace a parallel between both cities. I have selected the walled area of
                         Almedida (Coimbra) and the vicinities of Feliz Lusitânia (Belém) in order to
                         investigate the perceptions of the people who lived there and were involved
                         in the restoration processes. I have highlighted the impacts of the remodeling
                         in their daily lives.
                         Keywords: Patrimony, restoration, historical center, people’s perceptions.


                         DE ALMEDINA A LA FELIZ LUSITÂNIA: LOS PERSONAJES DEL
                         PATRIMÓNIO
                         Resumen
                         La investigación analiza comparativamente las formas de apropiación de es-
                         pacios históricos restaurados de ciudades cuya cultura y morfología tienen
                         similitudes, por su relación colonial histórico. La realización de la investig-
                         ación iconográfica y entrevistas en Coimbra objetivó trazar un paralelo en-
                         tre el tratamiento de áreas preservadas en la ciudad inaugural del distrito de


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Da Almedina à Feliz Lusitânia




Belém do Pará y el Centro Histórico de una ciudad portuguesa. Por lo tanto,
hemos seleccionado la zona de intramuros Almedina (Coimbra) y la región
que rodea el complejo Feliz Lusitania (Belém) con el fin de detectar las per-
cepciones de la población residente y los personajes involucrados en estas
acciones. Se destaca en el análisis el impacto de las intervenciones en estas
áreas cotidianamente.
Palabras-clave: Patrimonio, restauración, centro histórico, percepciones de la
población.




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Miranda, C. S.




               “Reclinada molemente na sua
               verdejante colina, como odalisca
               em seus aposentos, está a sábia
               Coimbra, a Lusa Atenas. Beija-lhe
               os pés, segredando-lhe de amor,
               o saudoso Mondego. (...) vê-de-la
               branquejando, coroado do edifício
               imponente da Universidade, asilo
               da sabedoria.” “O Primo Basílio”,
               Eça de Queiroz (2000: 328-329)
                                                        Figura 1. Feliz Lusitânia. Foto de Ronaldo
                                                        Marques de Carvalho, 2002.
      SOBRE O MÉTODO
                                                        “aura” estetizada do bairro da Cidade Velha
      A cultura é um contexto dentro do qual os         (Benjamin 1985). Na Almedina, as pessoas
      acontecimentos sociais podem ser descritos        são personagens de um cenário que não é
      de forma inteligível, isto é, descritos com       monumental, mas formado pela aparência
      densidade. A descrição etnográfica é inter-       medieval das edificações e do traçado ur-
      pretativa, fruto de um discurso social, que       bano, onde aqui e ali surgem marcas da mu-
      tenta salvar o “dito” num tal discurso da sua     ralha, com limites claramente definidos pelo
      possibilidade de extinguir-se e descreve um       Arco de Almedina (Figura 2). No caminho
      universo de forma microscópica. A partir          entre a baixa e a Universidade, Almedina é
      de um locus definido, pode o antropólogo          moradia de estudantes e de idosos, é percur-
      estudar seu objeto preferencial: as relações      so turístico, é referência histórica, é candidata
      sociais. Assim, neste trabalho, os espaços        a Patrimônio Mundial.
      delineados pelo Complexo Feliz Lusitânia e
      pelo Quarteirão Almedina são o palco para a       O lugar antropológico é o meio onde se
      manifestação de idéias e conceitos dos atores     exprime a identidade do grupo, e se define
      que circulam neles. Os atores tornam-se per-      de acordo com a flutuação de fronteiras
      sonagens a medida que o patrimônio é en-          ocorrida na história do grupo. Diz Augè:
      tendido e recriado como cenário. Assim, se                “reservamos o termo ‘lugar antropológico’
      na Feliz Lusitânia tudo é belo e iluminado, os            àquela construção concreta e sim-
      atores sobem ao palco histórico como per-                 bólica do espaço que não poderia
      sonagens, bem no sentido dos tipos ideais                 dar conta, somente por ela, das
      weberianos (Figura 1). Os comerciantes in-                vicissitudes e contradições da vida
      terpretam e saúdam as mudanças esquecen-                  social, mas à qual se referem todos
                                                                aqueles a quem ela se designa um
      do do restante do bairro abandonado, pois
                                                                lugar, por mais humilde e modesto
      no espaço ‘restaurado” podem circular com
                                                                que seja” (Augè 2001:51).
      tranqüilidade, freqüentando o “Boteco das
      11”, substituto do antigo restaurante, local      O lugar antropológico é identitário, relacio-
      de sociabilidade das antigas elites. Do mes-      nal e histórico, no sentido da vida, situado
      mo modo os novos moradores vêem-se                portanto no extremo oposto dos “lugares
      contemplados nessa dinâmica, atraídos pela        de memória”, pois nesses os antigos mora-
                                                        dores são “turistas do íntimo”. Buscamos

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Da Almedina à Feliz Lusitânia




                                                   manece fechada, privando o ambiente de luz
                                                   natural. Dentro dela, sentimos devaneios de
                                                   tempos de outrora, enquanto admiramos os
                                                   púlpitos entalhados em contraste flagrante
                                                   com as poltronas estofadas.
                                                   No intuito de captar as diversas visões que
                                                   possuem sobre a temática da preservação
                                                   do patrimônio em Belém, realizou-se docu-
                                                   mentação fotográfica e entrevistas com os
                                                   usuários do Complexo Feliz Lusitânia2 se-
                                                   guindo o método etnográfico, bem como
                                                   foi realizada coleta de depoimentos dos
                                                   moradores da Cidade Velha e com técnicos
                                                   dos órgãos de preservação. A pesquisa de
                                                   campo foi realizada entre os anos de 2003 e
                                                   2005, tendo como objetivo a elaboração de
                                                   Tese de Doutorado.
Figura 2. Arco de Almedina. Foto de Ronaldo
Marques de Carvalho, 2009.                         Em Coimbra, a pesquisa tomou o método
                                                   qualitativo, com observações registradas em
então entender se a Cidade Velha e a Alme-         forma de Diário de Campo, acompanhado
dina estão sendo transformados em lugares          de percurso fotográfico e de entrevistas
de memória, em cenários sem alma.                  estruturadas e livres, conforme a oportuni-
       “Os centros urbanos no seu esplendor        dade. Desenvolveu-se durante o mês de
       pós-moderno são algo assim como as          julho de 2009, sendo uma aproximação
       imponentes cenografias operísticas em       breve com o objeto de estudo. A área eleita
       que só a contraluz (à revelia da orienta-   foi o Quarteirão Almedina, compreendido
       ção dos focos de iluminação) deixa ver a    pelos limites: Arco de Almedina, Pátio do
       urdidura caótica da trama” (Baptista &      Castilho, Rua Fernandes Tomás, Beco das
       Pujadas apud Frias & Peixoto 2002:20).      Cruzes, Rua das Esteirinhas, Rua Joaquim
Os monumentos são expressões tangíveis             Antonio de Aguiar, Beco da Carqueja, Rua
da permanência, garantindo a visibilidade          do Quebra-Costas, Beco da Imprensa e
da história, contudo, vestidos em roupagens        Rua de Sobre-Ripas. A área de Almedina foi
modernas, os edifícios perdem a sua carac-         tratada pelo Programa de Recuperação de
terística de ‘autenticidade’ (termo tão caro       Áreas Urbanas Degradadas em 1990, 1997
aos estudiosos do patrimônio), passando a          e em 2002, com obras de recuperação de
figurar apenas enquanto ruínas de um lugar         edificações habitacionais e edifícios públicos,
habitado há tempos e que só possui valor           inclusão de pavimentos acessíveis nas vias e
evocativo do passado. Após a ‘revitalização’,1     recuperação de infra-estrutura urbana e com
a Igreja de Santo Alexandre perdeu sua fun-        a implantação do Gabinete para o Centro
ção de culto religioso, passando a ambiente        Histórico no Arco de Almedina.
do culto artístico onde a porta principal per-     A realização de pesquisa iconográfica e de

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Miranda, C. S.




      entrevistas em Coimbra objetivou traçar           do Gabinete para o Centro Histórico de
      um paralelo entre o tratamento de áreas           Coimbra. Descortina-se um panorama de
      preservadas no bairro inaugural da cidade         prédios simpáticos de quatro pavimentos e
      de Belém do Pará e no Centro Histórico            três pavimentos mais sótão, um deles com
      de uma cidade portuguesa. Desta forma,            café instalado no térreo e esplanada. Um
      selecionou-se a área intramuros da Almedina       aviso anuncia apoio técnico à Reabilitação de
      (Coimbra) e a região de entorno do Complexo       imóveis e convida proprietários a candidatar-
      Feliz Lusitânia (Belém) com o objetivo de de-     se às reformas. Inicia-se a Rua de Fernandes
      tectar as percepções da população moradora        Thomás, e o primeiro imóvel contém um
      e dos personagens envolvidos nessas ações de      banner azul com o título “A Alta em alta”,
      reabilitação do patrimônio edificado.             o que indica que o proprietário do imóvel
                                                        aderiu ao Programa PRAUD-OBRAS.
                                                        Dobro o Beco das Cruzes, seguindo à
      OLHARES SOBRE A ALMEDINA                          direta até avistar uma bifurcação, ten-
                                                        do ao centro o prédio onde funciona a
                                                        Real República Prakystão.
      ALMEDINA COMO CASA
                                                        O prédio à direita encontra-se reformado, e
      Hoje Freguesia de Coimbra, a denomi-              sigo pela Rua das esteirinhas, à procura do
      nação Almedina remonta à tomada pe-               Beco da Carqueja. Inquiro uma senhora que
      los mouros, e significa “a cidade”, ou            acaba de sair de casa, no Beco da Amoreira,
      seja, a parte intra-muros. Configura-se           e ela indica onde se situa o Beco. Durante
      como parte da Alta, a meio caminho                a descida, pergunto informalmente sobre as
      entre a Baixa comercial e Alta Univer-            obras, e ela conta que a sua casa está sendo
      sitária. Caracteriza-se culturalmente             reformada, mas ela decidiu não mudar-se,
      pelas festas dos estudantes, dentre elas,         permanecendo na mesma durante as obras
      a Serenata Monumental, ato que ante-              por medo de perder o valor baixo da renda
      cede a Queima das Fitas. Há também                que pagam, ela e marido, ambos reformados.
      a Feira Medieval, organizada no Largo             Dona Maria Olinda Serra e Silva, de 83 anos,
      da Sé Velha pela Delegação de Coim-               gosta de morar no local, e no momento de
      bra do Inatel, Associação para o De-              nosso encontro, está se dirigindo ao Centro
      senvolvimento e Defesa da Alta de Co-             de Convivência Ateneu, para onde vai
      imbra (ADDAC) e Câmara de Coimbra,                todas as tardes. Ao ser questionada so-
      tentativa de recriar as tradições da cidade.      bre a possibilidade de me receber em
      Na Rua Visconde da Luz, principal artéria         sua casa para uma entrevista, não acei-
      comercial da Baixa, situa-se a entrada da Al-     ta pois teme que o marido não goste.
      medina, com a Porta de Barbacã. Olhando           Sente-se um pouco incomodada com
      para cima, avista-se a Torre de Almedina,         as reformas, diante da insegurança de o
      e sinto-me numa cabine do tempo. Mas              proprietário querer aumentar as rendas.
      logo volto ao presente ao olhar as lojas de       Despede-se de mim no Largo da Sé Velha,
      souvenires que emolduram a porta. À di-           onde encontro o Sr. Antonio, morador da
      reita, no interior do Arco, abre-se a porta       Rua de Quebra-costas, cuja casa está

354                    Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
Da Almedina à Feliz Lusitânia




em obras. O Sr. Antonio Silva, de 83 anos,          rassem o fotógrafo que contratara para
mora há 53 em uma residência arrendada,             registrar a casa, e mostrou-me com
atualmente com a esposa: “meus filhos são           carinho as quatro imagens que restaram.
todos casados, e vivi com a minha sogra.            Ao ser questionado se mudaria da casa, afir-
Minha sogra já é falecida.” Nascido em Co-          mou que “se fosse pra melhor, pois ia. E se
imbra, na Freguesia de Santa Cruz, ao casar         fosse uma renda acessível, porque a minha
viveu na Rua Direita em duas pensões. “De-          reforma são 360 euros, são sessenta e pou-
pois saía da Rua Direita e fui para Montes          cos contos. (...) Eu vim pra cá a pagar 250 es-
Claros, eram três divisões. E depois vim para       cudos, e já era muito dinheiro. A única irmã
aqui há 53 anos, tem quatro divisões: tem           ainda viva mora no cimo da Rua das Covas,
estes dois quartos, esta sala e a cozinha, e a      hoje Rua Borges Carneiro.
casa de banho. Mas a casa de banho já foi
feita por mim.”3                                    Durante o dia, “quando me aparece qual-
                                                    quer serviços eu faço um fato novo, enquan-
As obras de reforma da casa, da qual ocupa          to não tiver ordem pra me mudar pra li, faço
uma das duas frações, começou em novem-             uns consertos, porque antes tive muito
bro passado. Comenta que                            trabalho. Fatos que eu tenho foram todos
       “Quando esta casa ali estiver pronta, é      feitos por mim.” Quando não há serviço, sai
       do mesmo Senhorio a casa ao lado, eu         para um passeio pelos arredores, toma um
       passo pra lá e depois de arranjado eu        café no Bar Sé Velha e lê o jornal.
       volto a passar pra qui. Isto estava muito
       velho. Este teto fui eu que mandei ar-       A Almedina é casa também de estudantes...
       ranjar, está agora pra deitar abaixo. Aqui   Na República Prakystão converso com
       a cozinha, o ladrilho também fui eu          Nuno, Catarina, Ana e Tota,4 estudantes da
       que mandei arranjar. (Anda pela casa         UC que, apesar de algumas divergências, em
       e mostra infiltração no quarto). Vê?         geral tem uma visão crítica em relação
       Quando chove isto molha tudo. Eu tive        às obras, como afirma Catarina:
       que tirar a cama, queixei-me, A Câmara
       contactou o senhorio e eles decidiram                É curioso, porque nós vivemos
       arranjar-me a casa. Este é o meu quarto:             numa casa que está a precisar de
       minha mulher dorme aqui e eu durmo                   ser reabilitada, e temos noção de
       ali onde dormia a minha sogra, a cama                que, apesar de estar a fazer algumas
       de casal está desarmada, para mudar-                 coisas, não sei com os melhores
       mos para lá.”                                        objetivos, não sei até que ponto é
                                                            a questão de querer candidatar-se a
Sr. Antonio tem a profissão de al-                          Patrimônio Mundial da UNESCO,
faiate, e trabalhava no próprio quarto.                     a ser uma fonte de turismo, porque
Queixa-se da miséria e do desemprego                        esta zona se vai tornando cara, isto
em Portugal, e da migração que traz                         é uma zona essencialmente de jo-
insegurança. Conta com emoção o                             vens e de pessoas mais idosas, só
momento em que os operários iriam                           que as pessoas mais idosas também
                                                            devagarinho vão morrendo e isto
demolir a casa onde nasceu, na Rua
                                                            também vai se renovando e não sei
João Cabreiro, em razão das obras para                      até que ponto não vai se tornar uma
a passagem do Metro. Pediu que espe-                        zona mais cara, e depois parece-me


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               às vezes que são obras de fachada,              Dentro da loja (e em expositores
               eu já tive em algumas casas reabilita-          colocados na rua), para lá de exem-
               das mas dá a impressão que a maior              plares antigos de livros, alguns deles
               parte da reabilitação é exterior, mas           ligados à vida acadêmica coimbrã, en-
               não tenho a certeza disso.                      contram-se à venda, sob a forma de
                                                               postais e de azulejos, as marcas mais
      Nas falas dos entrevistados, personagens                 estereotipadas do país e da cidade
      desse teatro urbano, percebe-se o apego a                (...). Subindo para a Sé Velha, na Rua
      moradia e a incerteza em relação ao resulta-             de Quebra Costas, encontramos um
      do das mudanças que a dimensão “patrimo-                 número crescente de lojas de artesan-
      nial” vem agregando ao espaço. As Repúbli-               ato. A sua instalação é relativamente
      cas fazem parte da identidade de Coimbra                 recente, tendo ocorrido, na maio-
      como setor da vida acadêmica cujo valor                  ria dos casos, nos últimos 10 anos,
      memorial é reconhecido (Frias & Peixoto                  e os produtos que comercializam
                                                               restringem-se quase exclusivamente
      2002). No interior da Prakistão observam-se
                                                               às cerâmicas “tradicionais” de Coim-
      desenhos, pinturas, grafites, testemunhos da             bra” (Frias & Peixoto 2002:22-23).
      passagem de estudantes ao longo das déca-
      das, que marcam a história da curta duração,      Durante a caminhada do dia seis de julho, re-
      pois a despeito de o imóvel ter uma história      tornando ao Largo da Sé Velha, adentro no
      de séculos, a micro história contada pelos        Cabido Bar e avisto a Srª Rosa Maria,5 que
      grafismos também merece atenção durante           concede uma entrevista a duas pesquisado-
      as reformas.                                      ras da Geografia. Segundo a comerciante, é
                                                        preciso dar condições de vida melhor às pes-
                                                        soas que habitam a Alta. Habitante da Rua
      ALMEDINA COMO PONTO TURÍSTICO                     do Cabido há 14 anos, tem o Bar do Cabido
                                                        desde outubro do ano passado, o qual ad-
      Segundo Frias & Peixoto (2002), em Coim-
                                                        ministra com o filho. Nascida em Coimbra,
      bra a dimensão plástica da patrimonialização
                                                        passou muitos anos fora, mas retornou à ci-
      não tem sido destacada, apenas aspectos da
                                                        dade “porque Coimbra é uma cidade muito
      sua economia simbólica. Destaca-se na Al-
                                                        especial e quem passa por aqui adora estar
      medina o eixo pedonal que se inicia no Arco
                                                        aqui. Não se esquece facilmente Coimbra.
      de Almedina e, percorrendo a Rua de Que-
                                                        Sobretudo quem esteve na Universidade e
      bra-costas, termina no Largo da Sé Velha.
                                                        viveu vida acadêmica. Tenho um amor mui-
      Vejamos o que narram a respeito:
                                                        to especial à cidade de Coimbra. É difícil não
               “Quem percorre este eixo (ponto de       gostar de Coimbra.”
               passagem obrigatório para qualquer
               turista) depara-se, debaixo do Arco      Segundo ela, há poucas mudanças na área:
               de Almedina, com uma loja de alfar-             “Dessas poucas coisas, umas pra
               rabista, como que a simbolizar a                melhor outras pra pior. Para melhor
               vetustez da cidade. O patrimônio so-            tem-se aqui um carro pequenino que
               noro de Coimbra faz-se ouvir através            passa por essas ruas estreitas, que aju-
               de uma música de fundo, audível a               da as pessoas mais velhas a dar-lhe
               quem passa na rua, que reproduz                 as perninhas que elas já não tem.
               incessantemente fados de Coimbra.               Para poder deslocar-se. Essa é uma

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Da Almedina à Feliz Lusitânia




      das coisas boas. Coisas más por          ALMEDINA COMO CAMINHO PARA A
      exemplo é que quando as pessoas          UNIVERSIDADE
      fazem projetos e planos deveriam
      vir mais ao terreno estudar, veri-       Segundo o histórico da cidade de Coimbra,
      ficar e depois aplicar as medidas.       a sede da Universidade é a base das relações
      O pantufinhas é muito bom, mas           que se estabelecem no Centro antigo, em es-
      tem o horário que deveria ser mais       pecial na Almedina, que se configura como
      completo, do meio dia e meia às          zona de transição entre a Alta Universitária
      três horas não existe”.                  e a Baixa comercial. Esta visão é veiculada
Segundo Rosa, há dificuldade de os             também nas revistas de turismo, que desta-
proprietários recuperarem os imóveis           cam o Arco de Almedina “que funcionava
devido às rendas baratas, muito anti-          como a entrada principal do burgo. Ainda
gas, e por outro lado os arrendatários         hoje o arco é utilizado por muitos estu-
não se preocupam em manter o imóvel            dantes como um atalho para a universi-
em boas condições, o que, segundo ela,         dade.” (Melo 2009:73)
deveria ser sua responsabilidade.              Segundo a comerciante Celeste Antunes,
Como sugestão para o CH,                       que trabalha na Rua do Quebra-costas há 20
                                               anos, primeiro com uma tabacaria, depois
      “(...) seria às pessoas mais velhas      com loja de roupas pronto a vestir e hoje
      dar-lhes opção de se manterem
                                               vende atoalhados e alguns souvenires, os
      aqui ou de irem para um sítio mais
      tranqüilo. E depois trazer pra qui a     negócios estão piores por causa da crise, que
      maior quantidade de gente jovem          é mundial. “As grandes superfícies tendem a
      possível, e dar-lhe movimento.           atrofiar os mais pequenos. Tenho uma clien-
      Bons bares, boas esplanadas, bons        tela minha que já fiz, portanto, pra atoalha-
      espetáculos de rua, é claro que isso     dos, pra coisas, facilito os pagamentos, tenho
      atrai pessoas, atrai jovens, traz nova   essa clientela que é minha. E depois tenho
      vida, afasta porque estas ruas escu-     os que passam, os turistas, que compram as
      ras, afasta os roubos, afasta a droga,   coisas como você.”6
      que hoje é um dos problemas que
      nós temos”.                              Mora na Rua das Flores nº 20, e aluga quar-
                                               tos para meninas universitárias. Acha que
Neste ponto de vista, a renovação dos          hoje os prédios estão mais bonitos, e que
moradores seria a forma de dinamizar           mais prédios precisam de melhorias. Quanto
a área, criando atrações culturais que         aos turistas, o segmento em que atua, embo-
atraísse turistas. Contudo, o que se vê,       ra venda lembranças, não é exclusivamente
apesar da tentativa da Câmara e das            dedicado a este público, e possui clientes
associações em divulgar e dinamizar            permanentes que “Trabalham nas Univer-
as atrações, como apresentações dos            sidades, são de mais perto, mais longe, nós
Fados de Coimbra nas escadarias de             já temos clientes já é uma amizade, é quase
Quebra-costas, é o movimento tímido            como uma família. Já são muitos anos a
dos moradores idosos e dos jovens,             viver com as mesmas pessoas. Qualquer dia
que aos finais de semana deixam a ci-          vou-me embora e vai me custar muito, já es-
dade para visitar a família.                   tou muito habituada com eles.”

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      A Sra. Alzenda Lopes, de 70 anos, dona                   neste momento uma candidatura a
      do Mercado no nº 120 da Rua Joaquim de                   património mundial da UNESCO.
      Aguiar acredita que a saída de alguns cursos             A envolvente desta zona a candida-
      da UC para outros locais de Coimbra                      tar a património foi chamada de Zona
                                                               Tampão da qual faz parte a Alta e a zona
      é responsável pelo declínio no movimento
                                                               a candidatar a fundos PRAUD. Dessa
      da área. “Tínhamos a Faculdade de Letras,                forma é necessário oferecer garan-
      há pouco tempo saiu a Faculdade de                       tias a que este espaço seja tratado
      Medicina, de Farmácia. Conta que há cerca                da melhor forma estando prevista
      de 20 anos quando retornou do Brasil, ven-               a criação de alguns planos de por-
      dia 500 pães de tarde e agora a procura caiu             menor e salvaguarda” (Gabinete
      para 50. “Quando eu cheguei aqui era muito               para o Centro Histórico 2006:8).
      freqüentado, nem tem comparação, os
                                                        À noite do dia 3 de julho, houve na Via La-
      estudantes das ilhas, as pessoas antigas
                                                        tina espetáculo da cantora Dulce Pontes, em
      que viviam já morreram, e as que fi-
                                                        comemoração à premiação internacional
      caram se queixam que aqui é muito ba-
                                                        recebida pela intervenção no local. Na fala
      rulhento. Chega a noite e as pessoas querem
                                                        do reitor da Universidade, destaca-se a in-
      descansar e não descansam. Eu como cá
                                                        dignação do mesmo diante das críticas aos
      não moro não sei.”
                                                        altos custos da restauração, sob o pejorativo
      Com relação ao futuro da Almedina, é pes-         apelido de “pedras velhas”, acentuando a
      simista, pois acredita que as casas ficarão       importância histórica da Universidade e sua
      devolutas, sem ter quem as queira habitar.        candidatura a Patrimônio da Humanidade
      Percebe-se, portanto, que o dinamismo pro-        pela UNESCO.
      movido pela presença dos universitários é
                                                        Em entrevista, a Arquiteta Claudia Ascenso
      essencial para que a Almedina permaneça
                                                        do Gabinete para o Centro Histórico relata o
      viva e renovada, como bem observam as
                                                        processo de recuperação utilizado no Quar-
      comerciantes. O contato permanente com
                                                        teirão Almedina, como parte do Programa
      os clientes torna-se hábito e até amizade, ao
                                                        de Recuperação de Áreas Urbanas Degrada-
      contrário da relação com o turista, marcada
                                                        das (PRAUD 2002), o qual coordena desde
      pela impessoalidade.
                                                        2006. Inicia o relato:
                                                               “A situação que nos deparamos há al-
      ALMEDINA: ÁREA CRÍTICA OU                                guns anos é assim: as casas estão devolu-
      PATRIMÔNIO MUNDIAL?                                      tas, algumas estão mesmo a necessitar de
                                                               obras, condições de habitabilidade, por
      No site da Câmara, a política de Reabilitação            vezes sem casa de banho e sem alguma
      é definida: “Mais do que recuperar, importa              espécie de cozinha. Essa é a situação que
      reabilitar.” Percebe-se a ênfase no sentido de           nós encontramos hoje em dia. Para nós
      devolver as qualidades perdidas nas edifica-             fazermos face a todas essas condições,
      ções, em busca da autenticidade (ver Peixoto             a Câmara conseguiu estabelecer um
      2006). Segundo o Dossiê de Candidatura ao                programa municipal, que é o PRAUD,
                                                               Programa de Reabilitação de Áreas Ur-
      PRAUD 2006:
                                                               banas Degradadas, em que ela con-
               “A Universidade de Coimbra organiza             tribui com 25% do valor das obras

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Da Almedina à Feliz Lusitânia




       previstas. Outros 25 % é do estado,            turo” arca com as obras, e dá ao proprietário
       ficando os restantes 50% a cargo do            uma percentagem de custo do terreno com
       proprietário. Ou seja, como é que isso se      o imóvel como estava. “O proprietário fica
       processa: nós analisamos um quarteirão,        sempre com uma fração. O objetivo da Câ-
       que é o chamado Quarteirão Almedina,
                                                      mara é por esses imóveis a venda por preços
       depois posso falar temos outros tipos
       de quarteirão mas o mais emblemático
                                                      muito mais reduzidos, porque aqui a especu-
       e o Quarteirão da Almedina, que se vê          lação imobiliária é muito grande, porque isso
       mais obras, que foi inicial, nós fizemos uma   vai ser classificado como Patrimônio Mun-
       candidatura e essa candidatura foi aceita”.7   dial da UNESCO, toda compra, toda venda
                                                      é tudo especulação.”
Aponta como principal questão o congela-
mento das rendas, que data de 25 de abril de          Percebe-se na fala da Arquiteta semelhança
1974, o que torna o investimento nas casas            com a da dona do Bar do Cabido, quando
de aluguel sem retorno. A Câmara divide               aponta a pertinência de “renovar” não só os
com o proprietário das casas algumas tarefas          imóveis, mas também seus habitantes.
de obra consideradas fundamentais como
instalação de casas de banho e cozinhas, e
reforma de cobertura, contudo os propri-              PENSARES SOBRE A CIDADE VELHA
etários são “induzidos” a realizar os demais
serviços que se fizerem necessários. Os pro-
                                                      A CIDADE VELHA COMO CASA
jetos de reforma baseiam-se na melhoria das
condições de habitabilidade das pessoas que           Quanto à população moradora do bairro da
vivem no imóvel, segundo a Arquiteta, que             Cidade Velha, existem interpretações múlti-
envolve as áreas de infra-estrutura, acústica,        plas que dependem do sentido que o Feliz
comportamento térmico, além de pesquisas              Lusitânia adquire em sua visão de mundo.8
arqueológicas obrigatórias por tratar-se de           A Cidade Velha é um bairro residencial
área de proteção.                                     muito antigo e permanece como local de
                                                      moradia para famílias que se apegaram a
Com relação aos moradores, em princípio
                                                      ele. As origens desses moradores é em
parecem temerosos ao ter que se realojar, o
                                                      geral portuguesa e sírio-libanesa, além
que é feito ou pelo proprietário, ou pela Câ-
                                                      de contar com emigrantes do interior
mara. Algumas obras são feitas por etapas,
                                                      do estado (Tocantins, 1976).
para manter os inquilinos no imóvel, o que
acontece em quase a totalidade dos casos.             Falar sobre a Cidade Velha é lembrar outra
Assim afirma Cláudia: “Mas a maior parte              fase na vida de Maria de Belém e Oneide.
desses moradores são pessoas que pagam                Ambas são professoras, formadas pela Es-
rendas baixíssimas, mas tem uma casa na al-           cola Normal. A professora Belém é filha do
deia. Há pessoas que só se mantém à espera            poeta Bruno de Menezes, intelectual
de indenização por parte do proprietário.”            paraense, e participa ativamente da vida
                                                      cultural da cidade, além de ser a guardiã da
Em situações nas quais o proprietário não
                                                      igreja de São João. D. Oneide é viúva de
pode arcar com a contrapartida nas obras,
                                                      Joaquim Bastos, comerciante pertencente a
o Programa “Bem presente para o bem fu-
                                                      uma das famílias abastadas do bairro, fun-

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      cionária aposentada da Companhia de Cor-                     tinha de desaparecer e (...) essa parte
      reios e Telégrafos.                                          da gente ficar se deliciando com nossas
                                                                   comidas e ao mesmo tempo olhando
      Sobre o projeto, assim opinou Maria de                       a Baía. Aí essa parte ficou um pouco
      Belém:                                                       prejudicada. Mas ficou um bonito tra-
               “olha, o projeto Feliz Lusitânia os                 balho ficou bom acabado. A gente tem
               entendidos dizem que foi uma boa                    de novo aí o pessoal mesmo, a comu-
               coisa para mostrar ao pessoal da                    nidade local, né, aceitou, aprovou e vai
               cidade e aos turistas a paisagem da                 muita gente é ...muita procura de pra ir
               cidade, a paisagem da orla marítima                 se distrair lá, passeio, né, que lá dentro
               ficou realmente mais devassada né,                  nunca fui ainda naquele restaurante das
               mais apreciada para o (...) Agora ar-               11 janelas eu ainda não fui.”12
               quitetonicamente não sei lhe falar,         D. Oneide conta das várias propriedades
               mas, nós tínhamos uma amiga, uma
                                                           da família Bastos na Cidade Velha, e relata
               família muito amiga que morava lá,
               a família Barroso e morava naquele
                                                           histórias sobre o Palacete Pinho, descreven-
               pedaço onde hoje tem aqueles es-            do com detalhes a distribuição dos cômo-
               guichos de chafariz. Era ali.”              dos da casa, e as memórias da convivência
                                                           com suas moradoras. Lembra que, à época
      Nesta parte a entrevistada relata as lembran-        do Leilão dos objetos do Palacete, não se
      ças da família Barroso, muito religiosa e que        valorizava antiguidades, que eram chama-
      tinha no térreo um Colégio freqüentado pela          das “velharias”. Acredita que é tarde demais
      população do bairro, acrescentando que:              para preservar a Cidade Velha, pois o bairro
               “ali já tinha sido desapropriado a casa     já está em ruínas, e o tombamento não im-
               para fazer nela aquele estabelecimento      pede que os moradores sem recursos
               de subsistência,9 que realmente era um      mantenham seus imóveis em bom estado.
               estafermo aquilo ali. Então, o agora        Como membro de uma classe tradicional,
               desse projeto Feliz Lusitânia o que eu      seja pelas origens, seja pelo poder econômi-
               lamento é o desaparecimento do restau-
                                                           co, Oneide sente orgulho em ser testemun-
               rante do Círculo Militar.10 Isso eu acho
                                                           ho vivo de uma época de requinte no bairro,
               uma pena vou te dizer porque: porque
               nós nos habituamos a ir lá, então a gente   ao qual ela assistiu o declínio. Hoje, a revi-
               gostava de ver porque a gente comia         talização do entorno do Forte do Castelo
               olhando a paisagem, o que a gente não       significa para ela um eco distante, já que obs-
               vê na Estação das Docas11 que a gente       ervou ao longo das décadas a substituição de
               fica mais retraído, a não ser quem vá pro   seus vizinhos por novos moradores de ori-
               lado de lá. Mas aqui lá não, no restau-     gem ribeirinha, aos quais atribui a desfigura-
               rante do Círculo Militar a gente ficava,    ção da aparência das casas, “modernizadas”
               fazia refeição olhando o barco passar a     pelos comerciantes que passaram a dominar
               canoinha passar ... aquilo ajudava até o
                                                           setores do bairro.13
               psíquico da pessoa, a gente ficava mais
               descontraído.”                              A casa do Sr. Aprígio e de D Zoraide fica
                                                           ao lado do prédio da FUMBEL,14 em frente
      Porém completa argumentando que
                                                           à Praça Frei Caetano Brandão.15 Nascido
               “para fazer o trabalho realmente ele        em Marabá em 1935, Sr. Aprígio vive em

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Da Almedina à Feliz Lusitânia




Belém desde a infância e D. Zoraide             plexo Feliz Lusitânia. A iniciativa privada vai
nasceu em Igarapé-miri em 1935 e veio           seguindo o interesse público, de forma que
para Belém com 7 anos, e desde então reside     a rua onde mora passou por um processo
nesta casa. Ela me conseguiu fotos antigas      de intensificação comercial na década de 90.
que mostram a casa com a fachada antiga,        Contudo, em alguns pontos, essa reocupa-
antes da reforma modernizadora feita pelo       ção está se fazendo de maneira diferenciada,
seu pai por volta de 1946. Aprígio já conhe-    ou seja, os empreendimentos comerciais es-
ceu o Museu de Arte Sacra, mas não o im-        tão tirando partido do Patrimônio Histórico
pressionou muito:                               como atrativo, como ocorre no caso de
       “(...)já passei por aí, já vi coisas e   bares e restaurantes, bem como novos mo-
       catalogaram, reuniram e eu acho          radores estão se deslocando para o bairro
       válido mas, não me chama assim           em função de sua valorização.
       atenção. Eu conheço aquilo como          A recuperação da área do Complexo Fe-
       a palma da minha mão, sabe como
                                                liz Lusitânia e a construção do Mangal das
       é, e igreja de Santo Alexandre por
       exemplo, depois dessa reforma, in-       Garças são fontes de estímulo para que o
       clusive ar condicionado, poltronas       bairro atraia novos moradores e atividades
       estofadas, entendeu, mas eu era          comerciais, tirando partido das formas
       mais aquela antiga, daqueles ga-         antigas dos imóveis para criar ambientes
       vetões que dizem, eu não cheguei         diferenciados em bares e boates. Contudo,
       a constatar isso, mas dizem que os       nota-se que o efeito difusor esperado pelas
       puxadores dos gavetões dos altares       intervenções públicas não se concretizou,
       eram de ouro ou banhados a ouro e        de modo que comércios voltados ao fluxo
       que depois desapareceram”.               turístico não tem tido vida longa, como no
O bairro, apesar de manter uma população        caso do casario contíguo à Igreja de Santo
estável, também vem atraindo novos mora-        Alexandre, onde a loja de souvenirs, a lancho-
dores, interessados no diferencial histórico    nete e a sorveteria foram substituídas por
do local, como o arquiteto José Fernandez,16    repartições culturais do governo do Estado.
que ocupa com a mãe, a artista plástica Dina
Oliveira, um mini-condomínio formado
por uma casa antiga e uma edificação adap-      SOBREVIVÊNCIA NA CIDADE VELHA
tada em terreno que possui duas frentes,        As dificuldades em manter uma casa an-
contando com piscina, escritório e atelier      tiga, com proporções adaptadas às famílias
onde trabalham. A família de arquitetos         grandes e com muitos empregados para cui-
optou por restaurar uma casa antiga pelo        dar dos serviços domésticos são fatores que
prazer de morar em casa, num bairro central     propiciam a saída desses habitantes para casa
e que vem se beneficiando, na última década,    menores, em geral apartamentos, nos quais
por intervenções públicas.                      podem adaptar-se melhor às condições da
Para José, o bairro sofreu uma transfor-        “vida moderna”. A comerciante Ana Lúcia
mação rápida em função das intervenções         nasceu na Cidade Velha e é filha do Sr. João,
operadas pelo poder público em alguns           dono da Casa de Ferragens São João e da
pontos do bairro, como no caso do Com-          Fábrica de Velas São João.17 A casa em que


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      mora, junto com o marido, as duas filhas e o        liberdade de utilizar a rua como área de lazer
      pai pertenceu ao arquiteto José Sidrim. “Eu         e sociabilidade, realizando as festas juninas
      moro na Cidade Velha numa casa de Cidade            nas ruas.19
      Velha!”, afirmou Ana Lúcia. Morar numa
                                                          Segue a entrevistada narrando as festas de
      casa desse tipo “é lindo, mas é um elefante
                                                          carnaval, de fim de ano realizadas em famí-
      branco!(...) já é uma construção que não
                                                          lia, essa família incluindo naturalmente os
      comporta mais a vida moderna...”.
                                                          vizinhos, considerados como tal. A razão
      Reclama da infra-estrutura precária no              da mudança, segundo ela, é a falta de segu-
      bairro, decorrente do não investimento do           rança. Essa condição a faz sentir “tolhida”
      poder público em pavimentação das vias,             de realizar sua rotina de trabalho, de frequen-
      em segurança ou em limpeza, “a não ser nas          tar a igreja da Sé aos domingos, de fazer a
      vésperas do Círio, quando a Prefeitura              caminhada na Praça Felipe Patroni. Recla-
      trabalha para melhorar o visual da passa-           ma a falta de um posto policial no bairro, rei-
      gem da romaria.”18 O que Ana observa de             vindicação já feita “pra uma outra moça que
      melhoria no bairro é                                passou fazendo uma pesquisa, parece que
               “essa parte aqui do Feliz Lusitânia, que   para esse departamento de ... Patrimônio
               realmente foi uma obra muito boa,          Histórico que tem.” As histórias que se se-
               muito bonita, acho que pro bairro foi      guiram insistiram no moto continuo da falta
               excelente, mudou, deu uma outra            de segurança.
               ‘repaginada’ nessa área que tava muito
                                                          Porém, aponta como vantagens da Cidade
               feia, muito abandonada. Agora você vê,
               as pessoas vêm, são lugares bonitos, eu    Velha o comércio e os transportes variados,
               acho que tem que ser por aí.”              além da proximidade ao mais antigo
                                                          Shopping da cidade. Não se referiu ao
      Como comerciante, Ana comentou o                    Complexo Feliz Lusitânia, sendo para ela
      problema que causou aos comerciantes                inexistente no seu roteiro de passeios. Per-
      da área a interrupção no trânsito de ônibus         cebe-se que para os moradores antigos as
      com a queda do bloco central do Palacete            igrejas tornam-se importante local de vida
      Pinho: concorda que o bairro não suporta            social, sendo vistas não como patrimônio
      um fluxo intenso de veículos pesados, mas           histórico ou artístico, mas como locais tradi-
      pensa no fluxo de passageiros dos portos            cionais de visitação e reunião, desde a infân-
      Arapari e Jarumã, que é intenso. Re-                cia. Esta identidade se alia à referência do
      conhece que os cidadãos têm pouca                   comércio, a ligação com o Mercado e feira
      participação coletiva e não se preocu-              do Ver-o-peso para fazer as compras, que
      pam com o patrimônio público.                       se este estende a todo o bairro da Campina,
      A visão de D. Marilza da Conceição Lima             principal centro comercial de Belém.
      Bastos em relação à Cidade Velha revela o
      pensamento dos pequenos comerciantes do
      bairro, que vivem também de renda de alu-           MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO PATRIMÔNIO
      guel de imóveis no bairro. Nascida no bairro,       NA CIDADE VELHA
      aos 62 anos de idade, ela percebe que a vida        Para os técnicos do projeto “Feliz Lu-
      na Cidade Velha mudou devido a falta de             sitânia”, como o historiador Allan Watrin

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Da Almedina à Feliz Lusitânia




Coelho, “... o mote do projeto Feliz Lusitâ-     Uns visitam para “lembrar o passado”; uns
nia é devolver à Cidade Velha, e con-            reclamam por mais sombra, mais bancos
sequentemente aos monumentos e aos               para sentar, telefones públicos, sinalização,
prédios da Cidade Velha, as suas carac-          coberturas para se abrigar da chuva. Uma
terísticas originais.”20 Para tal, foram         visitante chegou a dizer que é preciso ajeitar
realizadas pesquisas em Arqueologia e            o muro do forte, pois assim está muito feio,
História, com a finalidade “de resgatar ao       referindo-se à retirada do reboco que reco-
máximo as características arquitetônicas e       bria as paredes do Forte.
funcionais do Forte.” Como foi impossível
                                                 Para a moradora da Cidade Velha “é legal, é
trazer o Forte como este foi erigido em
                                                 melhor do que estava antes, antes o lugar era
1616, a data mais aproximada encontrada
                                                 largado, abandonado, era perigoso, não tinha
nos vestígios foi a de 1808. Porém, a arquite-
                                                 nem iluminação. Hoje o ponto é um bene-
ta Dorotéa Lima, que participou do proces-
                                                 fício para o bairro, pois vem muito turista,
so enquanto técnica do IPHAN, pensa que
                                                 valoriza o comércio imobiliário, entre coisas,
“aquilo é um Forte do século XX.” Critica
                                                 é muito bom. Poderia ficar melhor se a di-
a ausência de referências explicativas quanto
                                                 reção daí (Complexo) fizesse programações,
às escolhas adotadas na reforma do Forte
                                                 eventos, para chamar mais pessoas.” Em-
do Castelo, tornando obscura a leitura
                                                 basado na reconquista da “auto-estima dos
histórica do monumento quanto aos
                                                 paraenses”, o projeto Feliz Lusitânia vem
seus vários momentos.21
                                                 atraindo um fluxo contínuo de visitantes ao
Como pólo de atração ao lazer, o Com-            local. No outro extremo do bairro, próximo
plexo Feliz Lusitânia vem cumprindo seu          ao Arsenal de Marinha, foi recentemente
papel. As impressões são bastante positivas,     inaugurado o Mangal das Garças, Parque
destacando-se a paz, a vista da baía e a segu-   Ecológico situado às margens do rio
rança como qualidades mais apreciadas pe-        Guamá, e que faz parte dos atrativos
los visitantes.22 A maioria dos entrevistados    turísticos da cidade.
não freqüentava o local antes da restauração,
                                                 Mas a Cidade Velha não pode ser enten-
e só após a reforma passou a valorizá-lo
                                                 dida apenas como patrimônio material, há
como vista para o rio e referencial histórico
                                                 manifestações significativas que caracterizam
da cidade de Belém. Os belemenses sentem
                                                 o bairro, como as procissões religiosas da
orgulho de ter um lugar bonito para mostrar
                                                 Semana Santa, de Santa Maria de Belém
aos visitantes de fora.
                                                 e a mais importante, o Círio de Nazaré.
Maior volume de visitantes se encontra nas       Compõem também o mosaico cultural da
partes externas, sendo que muitos jovens         Cidade Velha os boêmios e os carnavalescos,
que visitaram os museus foram levados            como o Rubão, proprietário de um pequeno
pelas escolas. Os que nunca adentraram os        bar para onde se dirigem intelectuais, artistas
Museus alegam como motivos o preço alto          e jornalistas atraídos pela mística do bairro.
dos ingressos para visitar todos os es-          Ele se orgulha em dizer que artistas plásticos
paços de exposição com a família, ou             preferem seu bar ao da Casa das 11 janelas,
o desconhecimento sobre o que há de              o “Boteco das 11”.23 No Carnaval, Rubão
interessante para ser visto.                     organiza o Baile da Sereia; o início da festa se

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      deve à Sereia como referência das                 tigação, por tratar-se do berço da cidade, e
               “[...] famílias portuguesas anti-        pela presença acentuada de uma população
               gas que moravam aqui na Cidade           moradora formada por pessoas mais idosas,
               Velha e era um bar e mercearia. An-      que nele residem há muitas décadas, e do
               tigamente a Cidade Velha ela existia     qual não desejam desapegar-se.
               muito, em cada esquina dessa aqui
                                                        A configuração espacial da Almedina é de-
               era mercearia, era um bar... O baile
               da Sereia hoje está se tomando assim     marcada pelos muros, objeto que se repete
               uma... é pode-se dizer, uma agenda       no Complexo Feliz Lusitânia em Belém.
               cultural daqui do bairro, aonde as       Em Almedina, as portas de Barbacã e de Al-
               famílias todas descem (...). ”24         medina assinalam a entrada em um lugar de-
                                                        marcado física e socialmente, cujo extremo é
      Rubão é dono do bar que movimenta o               o cimo da Rua das Covas, que coincide com
      pedaço25 da Gurupá entre a Cametá e a Ro-         o Criptopórtico romano. Este realiza a tran-
      drigues dos Santos. Organizador do Baile          sição temporal das etapas de formação da
      da Sereia, carnaval de rua que homenageia a       cidade de Coimbra, bem como é o caminho
      imagem da Sereia que permanece na facha-          que leva até a Alta Universitária, com a qual
      da do antigo Armazém Sereia, que hoje não         a Almedina mantém fortes relações de
      funciona mais, ele veste a figura com fanta-      dependência.
      sias de acordo com a época do ano.
                                                        Em Belém, a relação com o Rio Guamá
      O movimento carnavalesco no bairro vem            e a Baia de Guajará, velada em tempos de
      de muito longe. Por volta da década de 40,        sua formação colonial nos mil e seiscentos,
      existiam no bairro núcleos de concentra-          é também essencial a sua vitalidade, pois
      ção de blocos carnavalescos, como na casa         através dos barcos chegam e saem merca-
      da Dona Branca, na Gurupá entre Cametá            dorias e pessoas dos interiores ribeirinhos
      e Rodrigues dos Santos e na casa dos              do Pará. Há setores da Cidade Velha que se
      ‘Mangabeira’, na Cametá. Ainda hoje               mantém através da dinâmica com os portos,
      existem os blocos “Jambú do Kaveira”              bem como sua situação contígua ao Centro
      e “Charanga do Fofó”, este organizado             Comercial mais antigo da Cidade favorece
      pelo cantor Eloy Iglesias, que arrastam           a interação entre eles. Fenômeno similar ao
      pessoas pelas ruas do bairro.                     de Almedina, que limita com a Baixa comer-
                                                        cial, para onde acorrem seus moradores nas
                                                        compras diárias e nos passeios.
      PERCEPÇÕES COMPARADAS
                                                        Assim, a configuração geográfica determina
      Também o presente é criado por persona-
                                                        a escolha do sítio da povoação em ambos
      gens, cada uma representando um conjunto
                                                        os casos, sob a ótica da defesa do território,
      de falas e pensamentos que convergem para
                                                        e trás em conseqüência o traçado labiríntico
      faces diferentes da memória desses lugares,
                                                        da Alta de Coimbra, bem como a configu-
      dentre as quais algumas tratam de criá-los
                                                        ração radial de ruas estreitas em Belém, cujo
      como “lugares da memória”, na visão de
                                                        foco é o Forte do Presépio.
      Pierre Nora. A pesquisadora elegeu em
      Coimbra a Almedina como lócus de inves-           Alvo de múltiplos discursos, a Cidade Velha

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Da Almedina à Feliz Lusitânia




é um bairro residencial em fase de declínio,     Françoise Choay (2000) aponta alguns
em função do avanço da metrópole em di-          problemas ou efeitos perversos da massi-
reção a áreas de cota mais alta e que permiti-   ficação no processo de preservação de es-
ram um novo traçado urbano, mais retilíneo       paços históricos, dentre os quais a transfor-
e com espaços mais amplos. Os moradores          mação dos monumentos em “shopping centers
mais abastados, oriundos de famílias “de         da cultura” e as intervenções a pretexto de
tradição”, aplaudem as reformas, pois as         preservação do aspecto histórico de certos
associa com a valorização material e sim-        centros antigos, mas que aplicam estereóti-
bólica de seu próprio imóvel como                pos do lazer urbano, como cafés ao ar livre,
patrimônio, porém os remanescentes               tendas de artesanato, galerias de arte, redes
de famílias da elite intelectual vêem            de lanchonetes internacionais, restaurantes,
de maneira crítica as mudanças nos               desfigurando os aspectos peculiares destes
espaços de seu usufruto permanente,              lugares, banalizando-os.
assinalando conflitos entre as visões
                                                 Em Belém, contudo, é inegável que os turis-
“estética” e “vivencial” dos centros
                                                 tas, bem como os próprios moradores vão
históricos. Para outros segmentos, de
                                                 aos poucos se integrando ao “Feliz Lusitâ-
famílias decadentes economicamente e
                                                 nia”, que se redescobre como vista para o
de comerciantes, para os quais o bair-
                                                 rio, local de passeio, pois que para a popu-
ro é local de sobrevivência, ganham
                                                 lação local os espaços externos são muito
destaque fatores de ordem primária,
                                                 mais atrativos que os museus. Contemplar
como a insegurança, mais relevantes
                                                 as várias imagens que os belemenses for-
que a “consciência histórica”. Fazem-
                                                 mam sobre o núcleo inicial da colonização
nos lembrar que, acima da preservação
                                                 do Pará: de postal, de praça, de janela para o
dos Valores, há a necessidade de se
                                                 rio, de museu ao ar livre, de referência para a
garantir os direitos essenciais aos ci-
                                                 memória social, é cada vez mais o papel do
dadãos. Caso contrário corre-se o risco
                                                 Forte do Castelo.
de que esse bairro perca sua vitalidade
natural e que os espaços de preservação          Como parte do processo de revitalização,
sejam totalmente excluídos do mapa               ocorre a absorção de uma população exó-
mental cotidiano de seus habitantes.             gena interessada em ‘Cultura e Patrimônio’,
                                                 que passa a habitar e/ou utilizar imóveis an-
Na Almedina o foco das intervenções
                                                 tigos do bairro com atividades comerciais.
públicas são as habitações, e não os grandes
                                                 Este “enobrecimento”, na visão de Zukin
monumentos, as quais, valorizadas em cores
                                                 (1996), acontece quando um grupo não
contrastantes, tentam encobrir o que se
                                                 nativo se apropria da paisagem e do lugar,
passa com sua população, que carece
                                                 impondo sua visão transformadora do ver-
de atenção a saúde, a segurança, a acessibi-
                                                 nacular em paisagem, conduzindo a um
lidade. O cenário que os governos ten-
                                                 processo de apropriação espacial. Assim, a
tam exaltar, reforçando imagens me-
                                                 valorização do cenário antigo leva estes no-
moriais, não inclui seus habitantes, que
                                                 vos grupos a buscar a integração ao lugar,
são vistos como estorvos aos planos
                                                 que se dá pela inserção de novos hábitos e
modernizadores e progressistas.
                                                 modos de vida que mudam o caráter des-


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      tas áreas. Esse processo pode ser positivo        maior concentração nas faixas entre 16 e 24
      à medida que revigora e valoriza o bairro,        anos, ou entre maiores de 65 anos, sendo
      participando de sua tradição, mas incluindo       que a maioria das habitações é arrendada.
      novos usos. A chegada de novos moradores
                                                        Outra conclusão dos estudos é de que as
      à Cidade Velha, bem como a utilização de
                                                        obras realizadas nos últimos 10 anos nos
      espaços como a Praça do Carmo em ativi-
                                                        edifícios da zona restringem-se a pequenas
      dades de lazer e cultura trazem novos ares
                                                        melhorias, que não contribuíram para a
      ao bairro, servindo de incentivadores de mu-
                                                        preservação dessa zona ou para a qualidade
      danças benéficas.
                                                        de vida de seus moradores. O desejo de per-
      Na Almedina, os moradores mais antigos            manência na área é justificado pela relação
      temem serem expulsos pela valorização do          afetiva com a casa, bem como pela vizinhan-
      espaço, da mesma forma que os estudantes          ça. Para os jovens, a área é ideal pela centrali-
      das Repúblicas. Para os comerciantes, em es-      dade e pela proximidade do local de estudo.
      pecial os que se voltam ao turismo é que as
                                                        Porém, a visão reabilitadora continua a pen-
      reformas tornam-se oportunidade de negó-
                                                        sar o espaço como cenário, esvaziado dos
      cios. A sede da Universidade é a base das re-
                                                        problemas humanos, e se esquece que as
      lações que se estabelecem no Centro antigo,
                                                        pessoas é que criam a cidade. Carlos For-
      em especial na Almedina, que se configura
                                                        tuna fala sobre a autoimagem de Coimbra,
      como zona de transição entre a Alta Univer-
                                                        que há tempos assimilava a autocomplacên-
      sitária e a Baixa comercial.
                                                        cia e a idéia da perda, bem como o caráter
      Em relação a candidatura “Universidade de         provinciano, idéias também encontradas em
      Coimbra: Património Mundial”, o Centro            Belém. Permanece o desafio de “como in-
      de Estudos Sociais realizou um levantamen-        jectar modernidade no Centro histórico da
      to de cunho sociológico da zona tampão            cidade” (Fortuna 2006). Para tal, é preciso
      de candidatura, que inclui cinco freguesias       que as práticas culturais sejam vivas, que as
      da cidade: Santa Cruz, São Bartolomeu, Sé         personagens contribuam para um
      Nova, Almedina e Olivais (Fortuna 2006).          patrimônio que se reinventa, através da
      Dentre os resultados, pode-se perceber a          “ancoragem das tradições nas práticas quo-
      predominância residencial da zona, sendo          tidianas.” (Peixoto 2006: 1)
      que quase a metade dos alojamentos coleti-
      vos situa-se na Alta, ou seja, as proximidades
      da Universidade, o que é coerente com o           AGRADECIMENTOS
      fato de a maioria deles ser destinada ao pú-      Pesquisa realizada com o apoio da Bolsa para Jo-
      blico estudantil.                                 vens Investigadores 2009 do Centro de Estudos
                                                        Sociais da Universidade de Coimbra, durante o
      A pesquisa atesta que a maioria absoluta
                                                        mês de julho de 2009.
      dos habitantes nasceu em Portugal, sendo
      que dos estrangeiros a composição maior
      é de angolanos, brasileiros e franceses, de-
                                                        NOTAS
      notando uma composição homogênea em
      termos de origem e pelo matiz lusófono.
                                                        1
                                                          O termo revitalização é utilizado pela equipe
      A composição etária da população atinge           técnica que concebeu o Projeto Feliz Lusitâ-

366                    Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
Da Almedina à Feliz Lusitânia




nia, como parte de um processo de valorização        Forte do Castelo, cujo restaurante era aberto à
da cultura e do patrimônio como geradores            comunidade.
econômicos, em que os altos investimentos            11
                                                       Estação das Docas é o complexo de bares e
em obras são justificados pelo suposto retorno
                                                     restaurantes que funcionam em antigos galpões
turístico, o que determina um componente
                                                     do Porto de Belém que foram reformulados na
político forte nas escolhas e critérios de inter-
                                                     década de 90.
venção, que por vezes não correspondem às
diretrizes previstas nas Cartas Patrimoniais. Ver    12
                                                        Entrevista concedida a autora pela professora Ma-
Miranda (2009).                                      ria de Belém Menezes em 18 de fevereiro de 2004.
2
 O Projeto Feliz Lusitânia foi iniciado em 1997       Entrevista concedida a autora pela Srª Oneide
                                                     13

e concluído em 2002, sendo coordenado pela           Bastos em 20 de fevereiro de 2004.
Secretaria Executiva de Cultura do Estado do         14
                                                          Fundação Cultural do Município de Belém.
Pará. Abrangeu o núcleo inicial da colonização
de Belém, incluindo o Forte do Presépio,             15
                                                       Entrevista concedida à autora por Aprí-
Antigo Hospital Militar, Igreja e Colégio            gio Melo Dutra, em 6 de outubro de 2004.
de Santo Alexandre, casario da Rua Padre             Da sacada de sua casa, vê-se todo o Com-
Champagnat e seu entorno.                            plexo Feliz Lusitânia.
3
 Entrevista concedida à autora pelo Sr. António      16
                                                       Entrevista concedida a autora pelo arquiteto
Silva em 6 de julho de 2009.                         José Fernandez em 22 de setembro de 2004.
4
 Entrevista concedida a autora pelos estudantes       Entrevista concedida à autora por Ana Lúcia
                                                     17

Nuno Lopes, Catarina Fernandes, Ana Costa e          Chaves Brahuna, em 23 de setembro de 2004.
Catarina Alves (Tota) no dia 15 de julho de 2009.    18
                                                       O Círio de N. Srª. de Nazaré é o evento religio-
5
 Entrevista concedida à autora pela Srª Rosa         so mais importante dos paraenses. Realizado não
Maria Silveirinha em 6 de julho de 2009.             só na capital, como no interior, o Círio ocorre
                                                     num período de quinze dias do mês de outubro,
6
 Entrevista concedida à autora pela Srª Celeste
                                                     que começa com a procissão da Trasladação da
Antunes em 6 de julho de 2009.
                                                     imagem da Virgem da Capela do Colégio Gentil
7
 Entrevista concedida à autora pela arquiteta        Bittencourt até a Catedral da Sé, percorrendo os
Cláudia Ascenso em 8 de julho de 2009.               bairros de Nazaré, Comércio e Cidade Velha. Na
                                                     manhã seguinte à Trasladação, a imagem sai da
8
  A Tese “Cidade Velha e Feliz Lusitânia: cenários
                                                     Catedral percorrendo o mesmo trajeto, em di-
do patrimônio cultural em Belém” teve por obje-
                                                     reção à Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Ao
tivo detectar as percepções da população mora-
                                                     lado da Igreja forma-se um arraial com brinque-
dora da área de entorno de bens tombados que
                                                     dos e barracas de comidas típicas.
fazem parte do Complexo Feliz Lusitânia em
relação às mudanças promovidas pelas interven-        Entrevista concedida à autora pela Sra. Marilza da
                                                     19

ções do referido projeto.                            Conceição Lima Bastos, em 11 de março de 2004.
9
  Estabelecimento de subsistência era um galpão      20
                                                       Entrevista concedida a autora pelo historiador
do Exército onde funcionava a Companhia de           Allan Watrin Coelho, diretor do Museu do Forte
Abastecimento deste, mas que uma vez por se-         do Presépio, em 1º de abril de 2004.
mana era aberto à população para que pudessem        21
                                                       Entrevista com Dorotéa Lima, Superintendente
lá comprar gêneros alimentícios.
                                                     do IPHAN no Pará, em 13 de agosto de 2009.
10
  Círculo Militar é o Clube dos Militares do         22
                                                          Aplicação de questionários feita com usuários
Exército, que tinha a sede social funcionando no

                                                           Amazônica 3 (2): 348-368, 2011                   367
Miranda, C. S.




      do Complexo nos dias 14 a 21 de março de 2004,           Coimbra. Câmara Municipal. 2006. Can-
      em diversos horários, como atividade do Grupo de         didatura ao Programa de Recuperação de Áreas
      Pesquisa Cidade, Aldeia e Patrimônio do Laboratório de   Urbanas Degradadas. Coimbra: Gabinete
      Antropologia da UFPA. O perfil dos 127 entrevista-       para o Centro Histórico.
      dos abrangeu desde crianças até pessoas com mais
                                                               Fortuna, C. 1997. Destradicionalização e ima-
      de 60 anos, sendo que a maioria dos entrevistados
                                                               gem da cidade, in Cidade, cultura e globalização – En-
      possui entre 21 e 35 anos, é morador dos bairros da
                                                               saios de sociologia. Organizado por C. Fortuna, pp.
      1ª légua patrimonial de Belém.
                                                               231-257. Lisboa: Celta Editora.
      23
        A Casa das 11 janelas foi Hospital Militar e Quartel
                                                               Fortuna, C.; C. Ferreira; P. Abreu; P. Peixoto e C.
      do Exército até a restauração da área denominada
                                                               Gomes. 2006. A Alta da Cidade de Coimbra: pro-
      “Feliz Lusitânia” pelo Governo do Estado do Pará.
                                                               cessos de revalorização patrimonial e dinâmicas
      24
        Entrevista concedida a autora por Rubem Es-            de recomposição sócio-cultural. Coimbra: CES.
      tevam Lobato, em 11 de fevereiro de 2004.                Relatório Final de Pesquisa.
      25
          Magnani esclarece o sentido de “pedaço”              Frias, A. & P. Peixoto. 2000. Representação
      como uma “intricada rede de relações for-                imaginária da cidade. Processos de racionaliza-
      mada por laços de parentesco, vizinhança e               ção e de estetização do patrimônio urbano de
      coleguismo.”(Magnani 1998:113) São dois os               Coimbra. Oficinas do CES Nº 183.
      elementos constituintes do “pedaço”: um com-
                                                               Magnani, J. G. C. 1998. Festa no pedaço: cultura popu-
      ponente espacial a que corresponde uma deter-
                                                               lar e lazer na cidade. São Paulo: Hucitec; UNESP.
      minada rede de relações sociais. Alguns pontos
      de referência delimitam seu núcleo: o telefone           Melo, M. 2009. Coimbra. Viagem e Turismo 10: 73-74.
      público, a padaria, alguns bares e comércios, o
                                                               Miranda, C. S. 2009. Cultura e Patrimônio em Belém-
      terreiro e o templo, o campo de futebol e algum
                                                               PA: uma história de profissionalização. 80 p.
      salão de baile. Não basta, contudo, morar perto
                                                               Monografia (1º Edital de Seleção de Pesquisas
      do pedaço para pertencer a ele – é preciso estar
                                                               A Preservação do Patrimônio Cultural no Bra-
      situado numa rede de relações que combina par-
                                                               sil) Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
      entesco, vizinhança e procedência.
                                                               Nacional. Brasil, Belém.
                                                               Nora, P 1997. Les Lieux de Mémoire. Paris: Gallimard.
                                                                      .
      REFERÊNCIAS                                              Peixoto, P. 2006. O Passado ainda não começou: funções
      Augè, M. 2001. Não-lugares: introdução a uma antro-      e estatutos dos centros históricos no contexto urbano portu-
      pologia da supermodernidade. (Coleção Travessia do       guês. Tese de Doutorado. Faculdade de Econo-
      Século)Campinas: Papirus.                                mia, Universidade de Coimbra, Coimbra..

      Benjamin, W. 1985. A obra de arte na era                 Tocantins, L. 1976. Santa Maria de Belém do Grão
      de sua Reprodutibilidade técnica, in Obras               Pará: instantes e evocações da cidade. Rio: Civilização
      Escolhidas v. 1. Tradução de José Carlos                 Brasileira; Brasília: INL.
      Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense.                 Zukin, S. 1996. Paisagens urbanas pós-modernas:
      Choay, F. 2000. A alegoria do patrimônio. Lisboa:        mapeando cultura e poder. Revista do Patrimônio
      Edições 70.                                              Histórico e Artístico Nacional 24: 205-219.

      Coimbra. Câmara Municipal. 2005.
      Relatório Interdisciplinar da Baixa. Disponível          Recebido em 10/04/2011.
      em: http://www.coimbravivasru.pt/pdf/
      relatorio_marco_2005.pdf. Acesso em 18 out 2008.         Aprovado em 02/09/2011.

368                    Amazônica 3 (2): 348-368, 2011

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Da Almedina à Feliz Lusitânia: personagens do patrimônio histórico

  • 1. Da Almedina Feliz Lusitân personagens patrimôn 348
  • 2. Da Almedina à nia: Feliz Lusitânia: s do personagens do patrimônio ônio CYBELLE SALVADOR MIRANDA Universidade Federal do Pará, Brasil 349
  • 3. Miranda, C. S. DA ALMEDINA À FELIZ LUSITÂNIA: PERSONAGENS DO PATRIMÔNIO Resumo A pesquisa analisa comparativamente as formas de apropriação de espaços históricos restaurados em cidades cuja cultura e morfologia possuem se- melhanças, devido à sua relação histórica colonial. A realização de pesquisa iconográfica e de entrevistas em Coimbra objetivou traçar um paralelo entre o tratamento de áreas preservadas no bairro inaugural da cidade de Belém do Pará e no Centro Histórico de uma cidade portuguesa. Desta forma, sele- cionou-se a área intramuros da Almedina (Coimbra) e a região de entorno do Complexo Feliz Lusitânia (Belém) com o objetivo de detectar as percepções da população moradora e dos personagens envolvidos nessas ações. Destaca- se na análise a repercussão das intervenções no cotidiano dessas áreas. Palavras-chave: Patrimônio, restauração, centro histórico, percepções das pessoas. FROM ALMEDINA TO FELIZ LUSITÂNIA: CHARACTERS OF PATRIMONY Abstract This article compares the forms of appropriation of restored historic places in cities whose cultures and morphologies share similarities, because of their colonial history. Combining iconographic research and interviews, a compar- ison between the historical downtown in both Coimbra and Belém enabled me to trace a parallel between both cities. I have selected the walled area of Almedida (Coimbra) and the vicinities of Feliz Lusitânia (Belém) in order to investigate the perceptions of the people who lived there and were involved in the restoration processes. I have highlighted the impacts of the remodeling in their daily lives. Keywords: Patrimony, restoration, historical center, people’s perceptions. DE ALMEDINA A LA FELIZ LUSITÂNIA: LOS PERSONAJES DEL PATRIMÓNIO Resumen La investigación analiza comparativamente las formas de apropiación de es- pacios históricos restaurados de ciudades cuya cultura y morfología tienen similitudes, por su relación colonial histórico. La realización de la investig- ación iconográfica y entrevistas en Coimbra objetivó trazar un paralelo en- tre el tratamiento de áreas preservadas en la ciudad inaugural del distrito de 350 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
  • 4. Da Almedina à Feliz Lusitânia Belém do Pará y el Centro Histórico de una ciudad portuguesa. Por lo tanto, hemos seleccionado la zona de intramuros Almedina (Coimbra) y la región que rodea el complejo Feliz Lusitania (Belém) con el fin de detectar las per- cepciones de la población residente y los personajes involucrados en estas acciones. Se destaca en el análisis el impacto de las intervenciones en estas áreas cotidianamente. Palabras-clave: Patrimonio, restauración, centro histórico, percepciones de la población. Amazônica 3 (2): 348-368, 2011 351
  • 5. Miranda, C. S. “Reclinada molemente na sua verdejante colina, como odalisca em seus aposentos, está a sábia Coimbra, a Lusa Atenas. Beija-lhe os pés, segredando-lhe de amor, o saudoso Mondego. (...) vê-de-la branquejando, coroado do edifício imponente da Universidade, asilo da sabedoria.” “O Primo Basílio”, Eça de Queiroz (2000: 328-329) Figura 1. Feliz Lusitânia. Foto de Ronaldo Marques de Carvalho, 2002. SOBRE O MÉTODO “aura” estetizada do bairro da Cidade Velha A cultura é um contexto dentro do qual os (Benjamin 1985). Na Almedina, as pessoas acontecimentos sociais podem ser descritos são personagens de um cenário que não é de forma inteligível, isto é, descritos com monumental, mas formado pela aparência densidade. A descrição etnográfica é inter- medieval das edificações e do traçado ur- pretativa, fruto de um discurso social, que bano, onde aqui e ali surgem marcas da mu- tenta salvar o “dito” num tal discurso da sua ralha, com limites claramente definidos pelo possibilidade de extinguir-se e descreve um Arco de Almedina (Figura 2). No caminho universo de forma microscópica. A partir entre a baixa e a Universidade, Almedina é de um locus definido, pode o antropólogo moradia de estudantes e de idosos, é percur- estudar seu objeto preferencial: as relações so turístico, é referência histórica, é candidata sociais. Assim, neste trabalho, os espaços a Patrimônio Mundial. delineados pelo Complexo Feliz Lusitânia e pelo Quarteirão Almedina são o palco para a O lugar antropológico é o meio onde se manifestação de idéias e conceitos dos atores exprime a identidade do grupo, e se define que circulam neles. Os atores tornam-se per- de acordo com a flutuação de fronteiras sonagens a medida que o patrimônio é en- ocorrida na história do grupo. Diz Augè: tendido e recriado como cenário. Assim, se “reservamos o termo ‘lugar antropológico’ na Feliz Lusitânia tudo é belo e iluminado, os àquela construção concreta e sim- atores sobem ao palco histórico como per- bólica do espaço que não poderia sonagens, bem no sentido dos tipos ideais dar conta, somente por ela, das weberianos (Figura 1). Os comerciantes in- vicissitudes e contradições da vida terpretam e saúdam as mudanças esquecen- social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela se designa um do do restante do bairro abandonado, pois lugar, por mais humilde e modesto no espaço ‘restaurado” podem circular com que seja” (Augè 2001:51). tranqüilidade, freqüentando o “Boteco das 11”, substituto do antigo restaurante, local O lugar antropológico é identitário, relacio- de sociabilidade das antigas elites. Do mes- nal e histórico, no sentido da vida, situado mo modo os novos moradores vêem-se portanto no extremo oposto dos “lugares contemplados nessa dinâmica, atraídos pela de memória”, pois nesses os antigos mora- dores são “turistas do íntimo”. Buscamos 352 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
  • 6. Da Almedina à Feliz Lusitânia manece fechada, privando o ambiente de luz natural. Dentro dela, sentimos devaneios de tempos de outrora, enquanto admiramos os púlpitos entalhados em contraste flagrante com as poltronas estofadas. No intuito de captar as diversas visões que possuem sobre a temática da preservação do patrimônio em Belém, realizou-se docu- mentação fotográfica e entrevistas com os usuários do Complexo Feliz Lusitânia2 se- guindo o método etnográfico, bem como foi realizada coleta de depoimentos dos moradores da Cidade Velha e com técnicos dos órgãos de preservação. A pesquisa de campo foi realizada entre os anos de 2003 e 2005, tendo como objetivo a elaboração de Tese de Doutorado. Figura 2. Arco de Almedina. Foto de Ronaldo Marques de Carvalho, 2009. Em Coimbra, a pesquisa tomou o método qualitativo, com observações registradas em então entender se a Cidade Velha e a Alme- forma de Diário de Campo, acompanhado dina estão sendo transformados em lugares de percurso fotográfico e de entrevistas de memória, em cenários sem alma. estruturadas e livres, conforme a oportuni- “Os centros urbanos no seu esplendor dade. Desenvolveu-se durante o mês de pós-moderno são algo assim como as julho de 2009, sendo uma aproximação imponentes cenografias operísticas em breve com o objeto de estudo. A área eleita que só a contraluz (à revelia da orienta- foi o Quarteirão Almedina, compreendido ção dos focos de iluminação) deixa ver a pelos limites: Arco de Almedina, Pátio do urdidura caótica da trama” (Baptista & Castilho, Rua Fernandes Tomás, Beco das Pujadas apud Frias & Peixoto 2002:20). Cruzes, Rua das Esteirinhas, Rua Joaquim Os monumentos são expressões tangíveis Antonio de Aguiar, Beco da Carqueja, Rua da permanência, garantindo a visibilidade do Quebra-Costas, Beco da Imprensa e da história, contudo, vestidos em roupagens Rua de Sobre-Ripas. A área de Almedina foi modernas, os edifícios perdem a sua carac- tratada pelo Programa de Recuperação de terística de ‘autenticidade’ (termo tão caro Áreas Urbanas Degradadas em 1990, 1997 aos estudiosos do patrimônio), passando a e em 2002, com obras de recuperação de figurar apenas enquanto ruínas de um lugar edificações habitacionais e edifícios públicos, habitado há tempos e que só possui valor inclusão de pavimentos acessíveis nas vias e evocativo do passado. Após a ‘revitalização’,1 recuperação de infra-estrutura urbana e com a Igreja de Santo Alexandre perdeu sua fun- a implantação do Gabinete para o Centro ção de culto religioso, passando a ambiente Histórico no Arco de Almedina. do culto artístico onde a porta principal per- A realização de pesquisa iconográfica e de Amazônica 3 (2): 348-368, 2011 353
  • 7. Miranda, C. S. entrevistas em Coimbra objetivou traçar do Gabinete para o Centro Histórico de um paralelo entre o tratamento de áreas Coimbra. Descortina-se um panorama de preservadas no bairro inaugural da cidade prédios simpáticos de quatro pavimentos e de Belém do Pará e no Centro Histórico três pavimentos mais sótão, um deles com de uma cidade portuguesa. Desta forma, café instalado no térreo e esplanada. Um selecionou-se a área intramuros da Almedina aviso anuncia apoio técnico à Reabilitação de (Coimbra) e a região de entorno do Complexo imóveis e convida proprietários a candidatar- Feliz Lusitânia (Belém) com o objetivo de de- se às reformas. Inicia-se a Rua de Fernandes tectar as percepções da população moradora Thomás, e o primeiro imóvel contém um e dos personagens envolvidos nessas ações de banner azul com o título “A Alta em alta”, reabilitação do patrimônio edificado. o que indica que o proprietário do imóvel aderiu ao Programa PRAUD-OBRAS. Dobro o Beco das Cruzes, seguindo à OLHARES SOBRE A ALMEDINA direta até avistar uma bifurcação, ten- do ao centro o prédio onde funciona a Real República Prakystão. ALMEDINA COMO CASA O prédio à direita encontra-se reformado, e Hoje Freguesia de Coimbra, a denomi- sigo pela Rua das esteirinhas, à procura do nação Almedina remonta à tomada pe- Beco da Carqueja. Inquiro uma senhora que los mouros, e significa “a cidade”, ou acaba de sair de casa, no Beco da Amoreira, seja, a parte intra-muros. Configura-se e ela indica onde se situa o Beco. Durante como parte da Alta, a meio caminho a descida, pergunto informalmente sobre as entre a Baixa comercial e Alta Univer- obras, e ela conta que a sua casa está sendo sitária. Caracteriza-se culturalmente reformada, mas ela decidiu não mudar-se, pelas festas dos estudantes, dentre elas, permanecendo na mesma durante as obras a Serenata Monumental, ato que ante- por medo de perder o valor baixo da renda cede a Queima das Fitas. Há também que pagam, ela e marido, ambos reformados. a Feira Medieval, organizada no Largo Dona Maria Olinda Serra e Silva, de 83 anos, da Sé Velha pela Delegação de Coim- gosta de morar no local, e no momento de bra do Inatel, Associação para o De- nosso encontro, está se dirigindo ao Centro senvolvimento e Defesa da Alta de Co- de Convivência Ateneu, para onde vai imbra (ADDAC) e Câmara de Coimbra, todas as tardes. Ao ser questionada so- tentativa de recriar as tradições da cidade. bre a possibilidade de me receber em Na Rua Visconde da Luz, principal artéria sua casa para uma entrevista, não acei- comercial da Baixa, situa-se a entrada da Al- ta pois teme que o marido não goste. medina, com a Porta de Barbacã. Olhando Sente-se um pouco incomodada com para cima, avista-se a Torre de Almedina, as reformas, diante da insegurança de o e sinto-me numa cabine do tempo. Mas proprietário querer aumentar as rendas. logo volto ao presente ao olhar as lojas de Despede-se de mim no Largo da Sé Velha, souvenires que emolduram a porta. À di- onde encontro o Sr. Antonio, morador da reita, no interior do Arco, abre-se a porta Rua de Quebra-costas, cuja casa está 354 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
  • 8. Da Almedina à Feliz Lusitânia em obras. O Sr. Antonio Silva, de 83 anos, rassem o fotógrafo que contratara para mora há 53 em uma residência arrendada, registrar a casa, e mostrou-me com atualmente com a esposa: “meus filhos são carinho as quatro imagens que restaram. todos casados, e vivi com a minha sogra. Ao ser questionado se mudaria da casa, afir- Minha sogra já é falecida.” Nascido em Co- mou que “se fosse pra melhor, pois ia. E se imbra, na Freguesia de Santa Cruz, ao casar fosse uma renda acessível, porque a minha viveu na Rua Direita em duas pensões. “De- reforma são 360 euros, são sessenta e pou- pois saía da Rua Direita e fui para Montes cos contos. (...) Eu vim pra cá a pagar 250 es- Claros, eram três divisões. E depois vim para cudos, e já era muito dinheiro. A única irmã aqui há 53 anos, tem quatro divisões: tem ainda viva mora no cimo da Rua das Covas, estes dois quartos, esta sala e a cozinha, e a hoje Rua Borges Carneiro. casa de banho. Mas a casa de banho já foi feita por mim.”3 Durante o dia, “quando me aparece qual- quer serviços eu faço um fato novo, enquan- As obras de reforma da casa, da qual ocupa to não tiver ordem pra me mudar pra li, faço uma das duas frações, começou em novem- uns consertos, porque antes tive muito bro passado. Comenta que trabalho. Fatos que eu tenho foram todos “Quando esta casa ali estiver pronta, é feitos por mim.” Quando não há serviço, sai do mesmo Senhorio a casa ao lado, eu para um passeio pelos arredores, toma um passo pra lá e depois de arranjado eu café no Bar Sé Velha e lê o jornal. volto a passar pra qui. Isto estava muito velho. Este teto fui eu que mandei ar- A Almedina é casa também de estudantes... ranjar, está agora pra deitar abaixo. Aqui Na República Prakystão converso com a cozinha, o ladrilho também fui eu Nuno, Catarina, Ana e Tota,4 estudantes da que mandei arranjar. (Anda pela casa UC que, apesar de algumas divergências, em e mostra infiltração no quarto). Vê? geral tem uma visão crítica em relação Quando chove isto molha tudo. Eu tive às obras, como afirma Catarina: que tirar a cama, queixei-me, A Câmara contactou o senhorio e eles decidiram É curioso, porque nós vivemos arranjar-me a casa. Este é o meu quarto: numa casa que está a precisar de minha mulher dorme aqui e eu durmo ser reabilitada, e temos noção de ali onde dormia a minha sogra, a cama que, apesar de estar a fazer algumas de casal está desarmada, para mudar- coisas, não sei com os melhores mos para lá.” objetivos, não sei até que ponto é a questão de querer candidatar-se a Sr. Antonio tem a profissão de al- Patrimônio Mundial da UNESCO, faiate, e trabalhava no próprio quarto. a ser uma fonte de turismo, porque Queixa-se da miséria e do desemprego esta zona se vai tornando cara, isto em Portugal, e da migração que traz é uma zona essencialmente de jo- insegurança. Conta com emoção o vens e de pessoas mais idosas, só momento em que os operários iriam que as pessoas mais idosas também devagarinho vão morrendo e isto demolir a casa onde nasceu, na Rua também vai se renovando e não sei João Cabreiro, em razão das obras para até que ponto não vai se tornar uma a passagem do Metro. Pediu que espe- zona mais cara, e depois parece-me Amazônica 3 (2): 348-368, 2011 355
  • 9. Miranda, C. S. às vezes que são obras de fachada, Dentro da loja (e em expositores eu já tive em algumas casas reabilita- colocados na rua), para lá de exem- das mas dá a impressão que a maior plares antigos de livros, alguns deles parte da reabilitação é exterior, mas ligados à vida acadêmica coimbrã, en- não tenho a certeza disso. contram-se à venda, sob a forma de postais e de azulejos, as marcas mais Nas falas dos entrevistados, personagens estereotipadas do país e da cidade desse teatro urbano, percebe-se o apego a (...). Subindo para a Sé Velha, na Rua moradia e a incerteza em relação ao resulta- de Quebra Costas, encontramos um do das mudanças que a dimensão “patrimo- número crescente de lojas de artesan- nial” vem agregando ao espaço. As Repúbli- ato. A sua instalação é relativamente cas fazem parte da identidade de Coimbra recente, tendo ocorrido, na maio- como setor da vida acadêmica cujo valor ria dos casos, nos últimos 10 anos, memorial é reconhecido (Frias & Peixoto e os produtos que comercializam restringem-se quase exclusivamente 2002). No interior da Prakistão observam-se às cerâmicas “tradicionais” de Coim- desenhos, pinturas, grafites, testemunhos da bra” (Frias & Peixoto 2002:22-23). passagem de estudantes ao longo das déca- das, que marcam a história da curta duração, Durante a caminhada do dia seis de julho, re- pois a despeito de o imóvel ter uma história tornando ao Largo da Sé Velha, adentro no de séculos, a micro história contada pelos Cabido Bar e avisto a Srª Rosa Maria,5 que grafismos também merece atenção durante concede uma entrevista a duas pesquisado- as reformas. ras da Geografia. Segundo a comerciante, é preciso dar condições de vida melhor às pes- soas que habitam a Alta. Habitante da Rua ALMEDINA COMO PONTO TURÍSTICO do Cabido há 14 anos, tem o Bar do Cabido desde outubro do ano passado, o qual ad- Segundo Frias & Peixoto (2002), em Coim- ministra com o filho. Nascida em Coimbra, bra a dimensão plástica da patrimonialização passou muitos anos fora, mas retornou à ci- não tem sido destacada, apenas aspectos da dade “porque Coimbra é uma cidade muito sua economia simbólica. Destaca-se na Al- especial e quem passa por aqui adora estar medina o eixo pedonal que se inicia no Arco aqui. Não se esquece facilmente Coimbra. de Almedina e, percorrendo a Rua de Que- Sobretudo quem esteve na Universidade e bra-costas, termina no Largo da Sé Velha. viveu vida acadêmica. Tenho um amor mui- Vejamos o que narram a respeito: to especial à cidade de Coimbra. É difícil não “Quem percorre este eixo (ponto de gostar de Coimbra.” passagem obrigatório para qualquer turista) depara-se, debaixo do Arco Segundo ela, há poucas mudanças na área: de Almedina, com uma loja de alfar- “Dessas poucas coisas, umas pra rabista, como que a simbolizar a melhor outras pra pior. Para melhor vetustez da cidade. O patrimônio so- tem-se aqui um carro pequenino que noro de Coimbra faz-se ouvir através passa por essas ruas estreitas, que aju- de uma música de fundo, audível a da as pessoas mais velhas a dar-lhe quem passa na rua, que reproduz as perninhas que elas já não tem. incessantemente fados de Coimbra. Para poder deslocar-se. Essa é uma 356 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
  • 10. Da Almedina à Feliz Lusitânia das coisas boas. Coisas más por ALMEDINA COMO CAMINHO PARA A exemplo é que quando as pessoas UNIVERSIDADE fazem projetos e planos deveriam vir mais ao terreno estudar, veri- Segundo o histórico da cidade de Coimbra, ficar e depois aplicar as medidas. a sede da Universidade é a base das relações O pantufinhas é muito bom, mas que se estabelecem no Centro antigo, em es- tem o horário que deveria ser mais pecial na Almedina, que se configura como completo, do meio dia e meia às zona de transição entre a Alta Universitária três horas não existe”. e a Baixa comercial. Esta visão é veiculada Segundo Rosa, há dificuldade de os também nas revistas de turismo, que desta- proprietários recuperarem os imóveis cam o Arco de Almedina “que funcionava devido às rendas baratas, muito anti- como a entrada principal do burgo. Ainda gas, e por outro lado os arrendatários hoje o arco é utilizado por muitos estu- não se preocupam em manter o imóvel dantes como um atalho para a universi- em boas condições, o que, segundo ela, dade.” (Melo 2009:73) deveria ser sua responsabilidade. Segundo a comerciante Celeste Antunes, Como sugestão para o CH, que trabalha na Rua do Quebra-costas há 20 anos, primeiro com uma tabacaria, depois “(...) seria às pessoas mais velhas com loja de roupas pronto a vestir e hoje dar-lhes opção de se manterem vende atoalhados e alguns souvenires, os aqui ou de irem para um sítio mais tranqüilo. E depois trazer pra qui a negócios estão piores por causa da crise, que maior quantidade de gente jovem é mundial. “As grandes superfícies tendem a possível, e dar-lhe movimento. atrofiar os mais pequenos. Tenho uma clien- Bons bares, boas esplanadas, bons tela minha que já fiz, portanto, pra atoalha- espetáculos de rua, é claro que isso dos, pra coisas, facilito os pagamentos, tenho atrai pessoas, atrai jovens, traz nova essa clientela que é minha. E depois tenho vida, afasta porque estas ruas escu- os que passam, os turistas, que compram as ras, afasta os roubos, afasta a droga, coisas como você.”6 que hoje é um dos problemas que nós temos”. Mora na Rua das Flores nº 20, e aluga quar- tos para meninas universitárias. Acha que Neste ponto de vista, a renovação dos hoje os prédios estão mais bonitos, e que moradores seria a forma de dinamizar mais prédios precisam de melhorias. Quanto a área, criando atrações culturais que aos turistas, o segmento em que atua, embo- atraísse turistas. Contudo, o que se vê, ra venda lembranças, não é exclusivamente apesar da tentativa da Câmara e das dedicado a este público, e possui clientes associações em divulgar e dinamizar permanentes que “Trabalham nas Univer- as atrações, como apresentações dos sidades, são de mais perto, mais longe, nós Fados de Coimbra nas escadarias de já temos clientes já é uma amizade, é quase Quebra-costas, é o movimento tímido como uma família. Já são muitos anos a dos moradores idosos e dos jovens, viver com as mesmas pessoas. Qualquer dia que aos finais de semana deixam a ci- vou-me embora e vai me custar muito, já es- dade para visitar a família. tou muito habituada com eles.” Amazônica 3 (2): 348-368, 2011 357
  • 11. Miranda, C. S. A Sra. Alzenda Lopes, de 70 anos, dona neste momento uma candidatura a do Mercado no nº 120 da Rua Joaquim de património mundial da UNESCO. Aguiar acredita que a saída de alguns cursos A envolvente desta zona a candida- da UC para outros locais de Coimbra tar a património foi chamada de Zona Tampão da qual faz parte a Alta e a zona é responsável pelo declínio no movimento a candidatar a fundos PRAUD. Dessa da área. “Tínhamos a Faculdade de Letras, forma é necessário oferecer garan- há pouco tempo saiu a Faculdade de tias a que este espaço seja tratado Medicina, de Farmácia. Conta que há cerca da melhor forma estando prevista de 20 anos quando retornou do Brasil, ven- a criação de alguns planos de por- dia 500 pães de tarde e agora a procura caiu menor e salvaguarda” (Gabinete para 50. “Quando eu cheguei aqui era muito para o Centro Histórico 2006:8). freqüentado, nem tem comparação, os À noite do dia 3 de julho, houve na Via La- estudantes das ilhas, as pessoas antigas tina espetáculo da cantora Dulce Pontes, em que viviam já morreram, e as que fi- comemoração à premiação internacional caram se queixam que aqui é muito ba- recebida pela intervenção no local. Na fala rulhento. Chega a noite e as pessoas querem do reitor da Universidade, destaca-se a in- descansar e não descansam. Eu como cá dignação do mesmo diante das críticas aos não moro não sei.” altos custos da restauração, sob o pejorativo Com relação ao futuro da Almedina, é pes- apelido de “pedras velhas”, acentuando a simista, pois acredita que as casas ficarão importância histórica da Universidade e sua devolutas, sem ter quem as queira habitar. candidatura a Patrimônio da Humanidade Percebe-se, portanto, que o dinamismo pro- pela UNESCO. movido pela presença dos universitários é Em entrevista, a Arquiteta Claudia Ascenso essencial para que a Almedina permaneça do Gabinete para o Centro Histórico relata o viva e renovada, como bem observam as processo de recuperação utilizado no Quar- comerciantes. O contato permanente com teirão Almedina, como parte do Programa os clientes torna-se hábito e até amizade, ao de Recuperação de Áreas Urbanas Degrada- contrário da relação com o turista, marcada das (PRAUD 2002), o qual coordena desde pela impessoalidade. 2006. Inicia o relato: “A situação que nos deparamos há al- ALMEDINA: ÁREA CRÍTICA OU guns anos é assim: as casas estão devolu- PATRIMÔNIO MUNDIAL? tas, algumas estão mesmo a necessitar de obras, condições de habitabilidade, por No site da Câmara, a política de Reabilitação vezes sem casa de banho e sem alguma é definida: “Mais do que recuperar, importa espécie de cozinha. Essa é a situação que reabilitar.” Percebe-se a ênfase no sentido de nós encontramos hoje em dia. Para nós devolver as qualidades perdidas nas edifica- fazermos face a todas essas condições, ções, em busca da autenticidade (ver Peixoto a Câmara conseguiu estabelecer um 2006). Segundo o Dossiê de Candidatura ao programa municipal, que é o PRAUD, Programa de Reabilitação de Áreas Ur- PRAUD 2006: banas Degradadas, em que ela con- “A Universidade de Coimbra organiza tribui com 25% do valor das obras 358 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
  • 12. Da Almedina à Feliz Lusitânia previstas. Outros 25 % é do estado, turo” arca com as obras, e dá ao proprietário ficando os restantes 50% a cargo do uma percentagem de custo do terreno com proprietário. Ou seja, como é que isso se o imóvel como estava. “O proprietário fica processa: nós analisamos um quarteirão, sempre com uma fração. O objetivo da Câ- que é o chamado Quarteirão Almedina, mara é por esses imóveis a venda por preços depois posso falar temos outros tipos de quarteirão mas o mais emblemático muito mais reduzidos, porque aqui a especu- e o Quarteirão da Almedina, que se vê lação imobiliária é muito grande, porque isso mais obras, que foi inicial, nós fizemos uma vai ser classificado como Patrimônio Mun- candidatura e essa candidatura foi aceita”.7 dial da UNESCO, toda compra, toda venda é tudo especulação.” Aponta como principal questão o congela- mento das rendas, que data de 25 de abril de Percebe-se na fala da Arquiteta semelhança 1974, o que torna o investimento nas casas com a da dona do Bar do Cabido, quando de aluguel sem retorno. A Câmara divide aponta a pertinência de “renovar” não só os com o proprietário das casas algumas tarefas imóveis, mas também seus habitantes. de obra consideradas fundamentais como instalação de casas de banho e cozinhas, e reforma de cobertura, contudo os propri- PENSARES SOBRE A CIDADE VELHA etários são “induzidos” a realizar os demais serviços que se fizerem necessários. Os pro- A CIDADE VELHA COMO CASA jetos de reforma baseiam-se na melhoria das condições de habitabilidade das pessoas que Quanto à população moradora do bairro da vivem no imóvel, segundo a Arquiteta, que Cidade Velha, existem interpretações múlti- envolve as áreas de infra-estrutura, acústica, plas que dependem do sentido que o Feliz comportamento térmico, além de pesquisas Lusitânia adquire em sua visão de mundo.8 arqueológicas obrigatórias por tratar-se de A Cidade Velha é um bairro residencial área de proteção. muito antigo e permanece como local de moradia para famílias que se apegaram a Com relação aos moradores, em princípio ele. As origens desses moradores é em parecem temerosos ao ter que se realojar, o geral portuguesa e sírio-libanesa, além que é feito ou pelo proprietário, ou pela Câ- de contar com emigrantes do interior mara. Algumas obras são feitas por etapas, do estado (Tocantins, 1976). para manter os inquilinos no imóvel, o que acontece em quase a totalidade dos casos. Falar sobre a Cidade Velha é lembrar outra Assim afirma Cláudia: “Mas a maior parte fase na vida de Maria de Belém e Oneide. desses moradores são pessoas que pagam Ambas são professoras, formadas pela Es- rendas baixíssimas, mas tem uma casa na al- cola Normal. A professora Belém é filha do deia. Há pessoas que só se mantém à espera poeta Bruno de Menezes, intelectual de indenização por parte do proprietário.” paraense, e participa ativamente da vida cultural da cidade, além de ser a guardiã da Em situações nas quais o proprietário não igreja de São João. D. Oneide é viúva de pode arcar com a contrapartida nas obras, Joaquim Bastos, comerciante pertencente a o Programa “Bem presente para o bem fu- uma das famílias abastadas do bairro, fun- Amazônica 3 (2): 348-368, 2011 359
  • 13. Miranda, C. S. cionária aposentada da Companhia de Cor- tinha de desaparecer e (...) essa parte reios e Telégrafos. da gente ficar se deliciando com nossas comidas e ao mesmo tempo olhando Sobre o projeto, assim opinou Maria de a Baía. Aí essa parte ficou um pouco Belém: prejudicada. Mas ficou um bonito tra- “olha, o projeto Feliz Lusitânia os balho ficou bom acabado. A gente tem entendidos dizem que foi uma boa de novo aí o pessoal mesmo, a comu- coisa para mostrar ao pessoal da nidade local, né, aceitou, aprovou e vai cidade e aos turistas a paisagem da muita gente é ...muita procura de pra ir cidade, a paisagem da orla marítima se distrair lá, passeio, né, que lá dentro ficou realmente mais devassada né, nunca fui ainda naquele restaurante das mais apreciada para o (...) Agora ar- 11 janelas eu ainda não fui.”12 quitetonicamente não sei lhe falar, D. Oneide conta das várias propriedades mas, nós tínhamos uma amiga, uma da família Bastos na Cidade Velha, e relata família muito amiga que morava lá, a família Barroso e morava naquele histórias sobre o Palacete Pinho, descreven- pedaço onde hoje tem aqueles es- do com detalhes a distribuição dos cômo- guichos de chafariz. Era ali.” dos da casa, e as memórias da convivência com suas moradoras. Lembra que, à época Nesta parte a entrevistada relata as lembran- do Leilão dos objetos do Palacete, não se ças da família Barroso, muito religiosa e que valorizava antiguidades, que eram chama- tinha no térreo um Colégio freqüentado pela das “velharias”. Acredita que é tarde demais população do bairro, acrescentando que: para preservar a Cidade Velha, pois o bairro “ali já tinha sido desapropriado a casa já está em ruínas, e o tombamento não im- para fazer nela aquele estabelecimento pede que os moradores sem recursos de subsistência,9 que realmente era um mantenham seus imóveis em bom estado. estafermo aquilo ali. Então, o agora Como membro de uma classe tradicional, desse projeto Feliz Lusitânia o que eu seja pelas origens, seja pelo poder econômi- lamento é o desaparecimento do restau- co, Oneide sente orgulho em ser testemun- rante do Círculo Militar.10 Isso eu acho ho vivo de uma época de requinte no bairro, uma pena vou te dizer porque: porque nós nos habituamos a ir lá, então a gente ao qual ela assistiu o declínio. Hoje, a revi- gostava de ver porque a gente comia talização do entorno do Forte do Castelo olhando a paisagem, o que a gente não significa para ela um eco distante, já que obs- vê na Estação das Docas11 que a gente ervou ao longo das décadas a substituição de fica mais retraído, a não ser quem vá pro seus vizinhos por novos moradores de ori- lado de lá. Mas aqui lá não, no restau- gem ribeirinha, aos quais atribui a desfigura- rante do Círculo Militar a gente ficava, ção da aparência das casas, “modernizadas” fazia refeição olhando o barco passar a pelos comerciantes que passaram a dominar canoinha passar ... aquilo ajudava até o setores do bairro.13 psíquico da pessoa, a gente ficava mais descontraído.” A casa do Sr. Aprígio e de D Zoraide fica ao lado do prédio da FUMBEL,14 em frente Porém completa argumentando que à Praça Frei Caetano Brandão.15 Nascido “para fazer o trabalho realmente ele em Marabá em 1935, Sr. Aprígio vive em 360 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
  • 14. Da Almedina à Feliz Lusitânia Belém desde a infância e D. Zoraide plexo Feliz Lusitânia. A iniciativa privada vai nasceu em Igarapé-miri em 1935 e veio seguindo o interesse público, de forma que para Belém com 7 anos, e desde então reside a rua onde mora passou por um processo nesta casa. Ela me conseguiu fotos antigas de intensificação comercial na década de 90. que mostram a casa com a fachada antiga, Contudo, em alguns pontos, essa reocupa- antes da reforma modernizadora feita pelo ção está se fazendo de maneira diferenciada, seu pai por volta de 1946. Aprígio já conhe- ou seja, os empreendimentos comerciais es- ceu o Museu de Arte Sacra, mas não o im- tão tirando partido do Patrimônio Histórico pressionou muito: como atrativo, como ocorre no caso de “(...)já passei por aí, já vi coisas e bares e restaurantes, bem como novos mo- catalogaram, reuniram e eu acho radores estão se deslocando para o bairro válido mas, não me chama assim em função de sua valorização. atenção. Eu conheço aquilo como A recuperação da área do Complexo Fe- a palma da minha mão, sabe como liz Lusitânia e a construção do Mangal das é, e igreja de Santo Alexandre por exemplo, depois dessa reforma, in- Garças são fontes de estímulo para que o clusive ar condicionado, poltronas bairro atraia novos moradores e atividades estofadas, entendeu, mas eu era comerciais, tirando partido das formas mais aquela antiga, daqueles ga- antigas dos imóveis para criar ambientes vetões que dizem, eu não cheguei diferenciados em bares e boates. Contudo, a constatar isso, mas dizem que os nota-se que o efeito difusor esperado pelas puxadores dos gavetões dos altares intervenções públicas não se concretizou, eram de ouro ou banhados a ouro e de modo que comércios voltados ao fluxo que depois desapareceram”. turístico não tem tido vida longa, como no O bairro, apesar de manter uma população caso do casario contíguo à Igreja de Santo estável, também vem atraindo novos mora- Alexandre, onde a loja de souvenirs, a lancho- dores, interessados no diferencial histórico nete e a sorveteria foram substituídas por do local, como o arquiteto José Fernandez,16 repartições culturais do governo do Estado. que ocupa com a mãe, a artista plástica Dina Oliveira, um mini-condomínio formado por uma casa antiga e uma edificação adap- SOBREVIVÊNCIA NA CIDADE VELHA tada em terreno que possui duas frentes, As dificuldades em manter uma casa an- contando com piscina, escritório e atelier tiga, com proporções adaptadas às famílias onde trabalham. A família de arquitetos grandes e com muitos empregados para cui- optou por restaurar uma casa antiga pelo dar dos serviços domésticos são fatores que prazer de morar em casa, num bairro central propiciam a saída desses habitantes para casa e que vem se beneficiando, na última década, menores, em geral apartamentos, nos quais por intervenções públicas. podem adaptar-se melhor às condições da Para José, o bairro sofreu uma transfor- “vida moderna”. A comerciante Ana Lúcia mação rápida em função das intervenções nasceu na Cidade Velha e é filha do Sr. João, operadas pelo poder público em alguns dono da Casa de Ferragens São João e da pontos do bairro, como no caso do Com- Fábrica de Velas São João.17 A casa em que Amazônica 3 (2): 348-368, 2011 361
  • 15. Miranda, C. S. mora, junto com o marido, as duas filhas e o liberdade de utilizar a rua como área de lazer pai pertenceu ao arquiteto José Sidrim. “Eu e sociabilidade, realizando as festas juninas moro na Cidade Velha numa casa de Cidade nas ruas.19 Velha!”, afirmou Ana Lúcia. Morar numa Segue a entrevistada narrando as festas de casa desse tipo “é lindo, mas é um elefante carnaval, de fim de ano realizadas em famí- branco!(...) já é uma construção que não lia, essa família incluindo naturalmente os comporta mais a vida moderna...”. vizinhos, considerados como tal. A razão Reclama da infra-estrutura precária no da mudança, segundo ela, é a falta de segu- bairro, decorrente do não investimento do rança. Essa condição a faz sentir “tolhida” poder público em pavimentação das vias, de realizar sua rotina de trabalho, de frequen- em segurança ou em limpeza, “a não ser nas tar a igreja da Sé aos domingos, de fazer a vésperas do Círio, quando a Prefeitura caminhada na Praça Felipe Patroni. Recla- trabalha para melhorar o visual da passa- ma a falta de um posto policial no bairro, rei- gem da romaria.”18 O que Ana observa de vindicação já feita “pra uma outra moça que melhoria no bairro é passou fazendo uma pesquisa, parece que “essa parte aqui do Feliz Lusitânia, que para esse departamento de ... Patrimônio realmente foi uma obra muito boa, Histórico que tem.” As histórias que se se- muito bonita, acho que pro bairro foi guiram insistiram no moto continuo da falta excelente, mudou, deu uma outra de segurança. ‘repaginada’ nessa área que tava muito Porém, aponta como vantagens da Cidade feia, muito abandonada. Agora você vê, as pessoas vêm, são lugares bonitos, eu Velha o comércio e os transportes variados, acho que tem que ser por aí.” além da proximidade ao mais antigo Shopping da cidade. Não se referiu ao Como comerciante, Ana comentou o Complexo Feliz Lusitânia, sendo para ela problema que causou aos comerciantes inexistente no seu roteiro de passeios. Per- da área a interrupção no trânsito de ônibus cebe-se que para os moradores antigos as com a queda do bloco central do Palacete igrejas tornam-se importante local de vida Pinho: concorda que o bairro não suporta social, sendo vistas não como patrimônio um fluxo intenso de veículos pesados, mas histórico ou artístico, mas como locais tradi- pensa no fluxo de passageiros dos portos cionais de visitação e reunião, desde a infân- Arapari e Jarumã, que é intenso. Re- cia. Esta identidade se alia à referência do conhece que os cidadãos têm pouca comércio, a ligação com o Mercado e feira participação coletiva e não se preocu- do Ver-o-peso para fazer as compras, que pam com o patrimônio público. se este estende a todo o bairro da Campina, A visão de D. Marilza da Conceição Lima principal centro comercial de Belém. Bastos em relação à Cidade Velha revela o pensamento dos pequenos comerciantes do bairro, que vivem também de renda de alu- MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO PATRIMÔNIO guel de imóveis no bairro. Nascida no bairro, NA CIDADE VELHA aos 62 anos de idade, ela percebe que a vida Para os técnicos do projeto “Feliz Lu- na Cidade Velha mudou devido a falta de sitânia”, como o historiador Allan Watrin 362 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
  • 16. Da Almedina à Feliz Lusitânia Coelho, “... o mote do projeto Feliz Lusitâ- Uns visitam para “lembrar o passado”; uns nia é devolver à Cidade Velha, e con- reclamam por mais sombra, mais bancos sequentemente aos monumentos e aos para sentar, telefones públicos, sinalização, prédios da Cidade Velha, as suas carac- coberturas para se abrigar da chuva. Uma terísticas originais.”20 Para tal, foram visitante chegou a dizer que é preciso ajeitar realizadas pesquisas em Arqueologia e o muro do forte, pois assim está muito feio, História, com a finalidade “de resgatar ao referindo-se à retirada do reboco que reco- máximo as características arquitetônicas e bria as paredes do Forte. funcionais do Forte.” Como foi impossível Para a moradora da Cidade Velha “é legal, é trazer o Forte como este foi erigido em melhor do que estava antes, antes o lugar era 1616, a data mais aproximada encontrada largado, abandonado, era perigoso, não tinha nos vestígios foi a de 1808. Porém, a arquite- nem iluminação. Hoje o ponto é um bene- ta Dorotéa Lima, que participou do proces- fício para o bairro, pois vem muito turista, so enquanto técnica do IPHAN, pensa que valoriza o comércio imobiliário, entre coisas, “aquilo é um Forte do século XX.” Critica é muito bom. Poderia ficar melhor se a di- a ausência de referências explicativas quanto reção daí (Complexo) fizesse programações, às escolhas adotadas na reforma do Forte eventos, para chamar mais pessoas.” Em- do Castelo, tornando obscura a leitura basado na reconquista da “auto-estima dos histórica do monumento quanto aos paraenses”, o projeto Feliz Lusitânia vem seus vários momentos.21 atraindo um fluxo contínuo de visitantes ao Como pólo de atração ao lazer, o Com- local. No outro extremo do bairro, próximo plexo Feliz Lusitânia vem cumprindo seu ao Arsenal de Marinha, foi recentemente papel. As impressões são bastante positivas, inaugurado o Mangal das Garças, Parque destacando-se a paz, a vista da baía e a segu- Ecológico situado às margens do rio rança como qualidades mais apreciadas pe- Guamá, e que faz parte dos atrativos los visitantes.22 A maioria dos entrevistados turísticos da cidade. não freqüentava o local antes da restauração, Mas a Cidade Velha não pode ser enten- e só após a reforma passou a valorizá-lo dida apenas como patrimônio material, há como vista para o rio e referencial histórico manifestações significativas que caracterizam da cidade de Belém. Os belemenses sentem o bairro, como as procissões religiosas da orgulho de ter um lugar bonito para mostrar Semana Santa, de Santa Maria de Belém aos visitantes de fora. e a mais importante, o Círio de Nazaré. Maior volume de visitantes se encontra nas Compõem também o mosaico cultural da partes externas, sendo que muitos jovens Cidade Velha os boêmios e os carnavalescos, que visitaram os museus foram levados como o Rubão, proprietário de um pequeno pelas escolas. Os que nunca adentraram os bar para onde se dirigem intelectuais, artistas Museus alegam como motivos o preço alto e jornalistas atraídos pela mística do bairro. dos ingressos para visitar todos os es- Ele se orgulha em dizer que artistas plásticos paços de exposição com a família, ou preferem seu bar ao da Casa das 11 janelas, o desconhecimento sobre o que há de o “Boteco das 11”.23 No Carnaval, Rubão interessante para ser visto. organiza o Baile da Sereia; o início da festa se Amazônica 3 (2): 348-368, 2011 363
  • 17. Miranda, C. S. deve à Sereia como referência das tigação, por tratar-se do berço da cidade, e “[...] famílias portuguesas anti- pela presença acentuada de uma população gas que moravam aqui na Cidade moradora formada por pessoas mais idosas, Velha e era um bar e mercearia. An- que nele residem há muitas décadas, e do tigamente a Cidade Velha ela existia qual não desejam desapegar-se. muito, em cada esquina dessa aqui A configuração espacial da Almedina é de- era mercearia, era um bar... O baile da Sereia hoje está se tomando assim marcada pelos muros, objeto que se repete uma... é pode-se dizer, uma agenda no Complexo Feliz Lusitânia em Belém. cultural daqui do bairro, aonde as Em Almedina, as portas de Barbacã e de Al- famílias todas descem (...). ”24 medina assinalam a entrada em um lugar de- marcado física e socialmente, cujo extremo é Rubão é dono do bar que movimenta o o cimo da Rua das Covas, que coincide com pedaço25 da Gurupá entre a Cametá e a Ro- o Criptopórtico romano. Este realiza a tran- drigues dos Santos. Organizador do Baile sição temporal das etapas de formação da da Sereia, carnaval de rua que homenageia a cidade de Coimbra, bem como é o caminho imagem da Sereia que permanece na facha- que leva até a Alta Universitária, com a qual da do antigo Armazém Sereia, que hoje não a Almedina mantém fortes relações de funciona mais, ele veste a figura com fanta- dependência. sias de acordo com a época do ano. Em Belém, a relação com o Rio Guamá O movimento carnavalesco no bairro vem e a Baia de Guajará, velada em tempos de de muito longe. Por volta da década de 40, sua formação colonial nos mil e seiscentos, existiam no bairro núcleos de concentra- é também essencial a sua vitalidade, pois ção de blocos carnavalescos, como na casa através dos barcos chegam e saem merca- da Dona Branca, na Gurupá entre Cametá dorias e pessoas dos interiores ribeirinhos e Rodrigues dos Santos e na casa dos do Pará. Há setores da Cidade Velha que se ‘Mangabeira’, na Cametá. Ainda hoje mantém através da dinâmica com os portos, existem os blocos “Jambú do Kaveira” bem como sua situação contígua ao Centro e “Charanga do Fofó”, este organizado Comercial mais antigo da Cidade favorece pelo cantor Eloy Iglesias, que arrastam a interação entre eles. Fenômeno similar ao pessoas pelas ruas do bairro. de Almedina, que limita com a Baixa comer- cial, para onde acorrem seus moradores nas compras diárias e nos passeios. PERCEPÇÕES COMPARADAS Assim, a configuração geográfica determina Também o presente é criado por persona- a escolha do sítio da povoação em ambos gens, cada uma representando um conjunto os casos, sob a ótica da defesa do território, de falas e pensamentos que convergem para e trás em conseqüência o traçado labiríntico faces diferentes da memória desses lugares, da Alta de Coimbra, bem como a configu- dentre as quais algumas tratam de criá-los ração radial de ruas estreitas em Belém, cujo como “lugares da memória”, na visão de foco é o Forte do Presépio. Pierre Nora. A pesquisadora elegeu em Coimbra a Almedina como lócus de inves- Alvo de múltiplos discursos, a Cidade Velha 364 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
  • 18. Da Almedina à Feliz Lusitânia é um bairro residencial em fase de declínio, Françoise Choay (2000) aponta alguns em função do avanço da metrópole em di- problemas ou efeitos perversos da massi- reção a áreas de cota mais alta e que permiti- ficação no processo de preservação de es- ram um novo traçado urbano, mais retilíneo paços históricos, dentre os quais a transfor- e com espaços mais amplos. Os moradores mação dos monumentos em “shopping centers mais abastados, oriundos de famílias “de da cultura” e as intervenções a pretexto de tradição”, aplaudem as reformas, pois as preservação do aspecto histórico de certos associa com a valorização material e sim- centros antigos, mas que aplicam estereóti- bólica de seu próprio imóvel como pos do lazer urbano, como cafés ao ar livre, patrimônio, porém os remanescentes tendas de artesanato, galerias de arte, redes de famílias da elite intelectual vêem de lanchonetes internacionais, restaurantes, de maneira crítica as mudanças nos desfigurando os aspectos peculiares destes espaços de seu usufruto permanente, lugares, banalizando-os. assinalando conflitos entre as visões Em Belém, contudo, é inegável que os turis- “estética” e “vivencial” dos centros tas, bem como os próprios moradores vão históricos. Para outros segmentos, de aos poucos se integrando ao “Feliz Lusitâ- famílias decadentes economicamente e nia”, que se redescobre como vista para o de comerciantes, para os quais o bair- rio, local de passeio, pois que para a popu- ro é local de sobrevivência, ganham lação local os espaços externos são muito destaque fatores de ordem primária, mais atrativos que os museus. Contemplar como a insegurança, mais relevantes as várias imagens que os belemenses for- que a “consciência histórica”. Fazem- mam sobre o núcleo inicial da colonização nos lembrar que, acima da preservação do Pará: de postal, de praça, de janela para o dos Valores, há a necessidade de se rio, de museu ao ar livre, de referência para a garantir os direitos essenciais aos ci- memória social, é cada vez mais o papel do dadãos. Caso contrário corre-se o risco Forte do Castelo. de que esse bairro perca sua vitalidade natural e que os espaços de preservação Como parte do processo de revitalização, sejam totalmente excluídos do mapa ocorre a absorção de uma população exó- mental cotidiano de seus habitantes. gena interessada em ‘Cultura e Patrimônio’, que passa a habitar e/ou utilizar imóveis an- Na Almedina o foco das intervenções tigos do bairro com atividades comerciais. públicas são as habitações, e não os grandes Este “enobrecimento”, na visão de Zukin monumentos, as quais, valorizadas em cores (1996), acontece quando um grupo não contrastantes, tentam encobrir o que se nativo se apropria da paisagem e do lugar, passa com sua população, que carece impondo sua visão transformadora do ver- de atenção a saúde, a segurança, a acessibi- nacular em paisagem, conduzindo a um lidade. O cenário que os governos ten- processo de apropriação espacial. Assim, a tam exaltar, reforçando imagens me- valorização do cenário antigo leva estes no- moriais, não inclui seus habitantes, que vos grupos a buscar a integração ao lugar, são vistos como estorvos aos planos que se dá pela inserção de novos hábitos e modernizadores e progressistas. modos de vida que mudam o caráter des- Amazônica 3 (2): 348-368, 2011 365
  • 19. Miranda, C. S. tas áreas. Esse processo pode ser positivo maior concentração nas faixas entre 16 e 24 à medida que revigora e valoriza o bairro, anos, ou entre maiores de 65 anos, sendo participando de sua tradição, mas incluindo que a maioria das habitações é arrendada. novos usos. A chegada de novos moradores Outra conclusão dos estudos é de que as à Cidade Velha, bem como a utilização de obras realizadas nos últimos 10 anos nos espaços como a Praça do Carmo em ativi- edifícios da zona restringem-se a pequenas dades de lazer e cultura trazem novos ares melhorias, que não contribuíram para a ao bairro, servindo de incentivadores de mu- preservação dessa zona ou para a qualidade danças benéficas. de vida de seus moradores. O desejo de per- Na Almedina, os moradores mais antigos manência na área é justificado pela relação temem serem expulsos pela valorização do afetiva com a casa, bem como pela vizinhan- espaço, da mesma forma que os estudantes ça. Para os jovens, a área é ideal pela centrali- das Repúblicas. Para os comerciantes, em es- dade e pela proximidade do local de estudo. pecial os que se voltam ao turismo é que as Porém, a visão reabilitadora continua a pen- reformas tornam-se oportunidade de negó- sar o espaço como cenário, esvaziado dos cios. A sede da Universidade é a base das re- problemas humanos, e se esquece que as lações que se estabelecem no Centro antigo, pessoas é que criam a cidade. Carlos For- em especial na Almedina, que se configura tuna fala sobre a autoimagem de Coimbra, como zona de transição entre a Alta Univer- que há tempos assimilava a autocomplacên- sitária e a Baixa comercial. cia e a idéia da perda, bem como o caráter Em relação a candidatura “Universidade de provinciano, idéias também encontradas em Coimbra: Património Mundial”, o Centro Belém. Permanece o desafio de “como in- de Estudos Sociais realizou um levantamen- jectar modernidade no Centro histórico da to de cunho sociológico da zona tampão cidade” (Fortuna 2006). Para tal, é preciso de candidatura, que inclui cinco freguesias que as práticas culturais sejam vivas, que as da cidade: Santa Cruz, São Bartolomeu, Sé personagens contribuam para um Nova, Almedina e Olivais (Fortuna 2006). patrimônio que se reinventa, através da Dentre os resultados, pode-se perceber a “ancoragem das tradições nas práticas quo- predominância residencial da zona, sendo tidianas.” (Peixoto 2006: 1) que quase a metade dos alojamentos coleti- vos situa-se na Alta, ou seja, as proximidades da Universidade, o que é coerente com o AGRADECIMENTOS fato de a maioria deles ser destinada ao pú- Pesquisa realizada com o apoio da Bolsa para Jo- blico estudantil. vens Investigadores 2009 do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, durante o A pesquisa atesta que a maioria absoluta mês de julho de 2009. dos habitantes nasceu em Portugal, sendo que dos estrangeiros a composição maior é de angolanos, brasileiros e franceses, de- NOTAS notando uma composição homogênea em termos de origem e pelo matiz lusófono. 1 O termo revitalização é utilizado pela equipe A composição etária da população atinge técnica que concebeu o Projeto Feliz Lusitâ- 366 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011
  • 20. Da Almedina à Feliz Lusitânia nia, como parte de um processo de valorização Forte do Castelo, cujo restaurante era aberto à da cultura e do patrimônio como geradores comunidade. econômicos, em que os altos investimentos 11 Estação das Docas é o complexo de bares e em obras são justificados pelo suposto retorno restaurantes que funcionam em antigos galpões turístico, o que determina um componente do Porto de Belém que foram reformulados na político forte nas escolhas e critérios de inter- década de 90. venção, que por vezes não correspondem às diretrizes previstas nas Cartas Patrimoniais. Ver 12 Entrevista concedida a autora pela professora Ma- Miranda (2009). ria de Belém Menezes em 18 de fevereiro de 2004. 2 O Projeto Feliz Lusitânia foi iniciado em 1997 Entrevista concedida a autora pela Srª Oneide 13 e concluído em 2002, sendo coordenado pela Bastos em 20 de fevereiro de 2004. Secretaria Executiva de Cultura do Estado do 14 Fundação Cultural do Município de Belém. Pará. Abrangeu o núcleo inicial da colonização de Belém, incluindo o Forte do Presépio, 15 Entrevista concedida à autora por Aprí- Antigo Hospital Militar, Igreja e Colégio gio Melo Dutra, em 6 de outubro de 2004. de Santo Alexandre, casario da Rua Padre Da sacada de sua casa, vê-se todo o Com- Champagnat e seu entorno. plexo Feliz Lusitânia. 3 Entrevista concedida à autora pelo Sr. António 16 Entrevista concedida a autora pelo arquiteto Silva em 6 de julho de 2009. José Fernandez em 22 de setembro de 2004. 4 Entrevista concedida a autora pelos estudantes Entrevista concedida à autora por Ana Lúcia 17 Nuno Lopes, Catarina Fernandes, Ana Costa e Chaves Brahuna, em 23 de setembro de 2004. Catarina Alves (Tota) no dia 15 de julho de 2009. 18 O Círio de N. Srª. de Nazaré é o evento religio- 5 Entrevista concedida à autora pela Srª Rosa so mais importante dos paraenses. Realizado não Maria Silveirinha em 6 de julho de 2009. só na capital, como no interior, o Círio ocorre num período de quinze dias do mês de outubro, 6 Entrevista concedida à autora pela Srª Celeste que começa com a procissão da Trasladação da Antunes em 6 de julho de 2009. imagem da Virgem da Capela do Colégio Gentil 7 Entrevista concedida à autora pela arquiteta Bittencourt até a Catedral da Sé, percorrendo os Cláudia Ascenso em 8 de julho de 2009. bairros de Nazaré, Comércio e Cidade Velha. Na manhã seguinte à Trasladação, a imagem sai da 8 A Tese “Cidade Velha e Feliz Lusitânia: cenários Catedral percorrendo o mesmo trajeto, em di- do patrimônio cultural em Belém” teve por obje- reção à Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Ao tivo detectar as percepções da população mora- lado da Igreja forma-se um arraial com brinque- dora da área de entorno de bens tombados que dos e barracas de comidas típicas. fazem parte do Complexo Feliz Lusitânia em relação às mudanças promovidas pelas interven- Entrevista concedida à autora pela Sra. Marilza da 19 ções do referido projeto. Conceição Lima Bastos, em 11 de março de 2004. 9 Estabelecimento de subsistência era um galpão 20 Entrevista concedida a autora pelo historiador do Exército onde funcionava a Companhia de Allan Watrin Coelho, diretor do Museu do Forte Abastecimento deste, mas que uma vez por se- do Presépio, em 1º de abril de 2004. mana era aberto à população para que pudessem 21 Entrevista com Dorotéa Lima, Superintendente lá comprar gêneros alimentícios. do IPHAN no Pará, em 13 de agosto de 2009. 10 Círculo Militar é o Clube dos Militares do 22 Aplicação de questionários feita com usuários Exército, que tinha a sede social funcionando no Amazônica 3 (2): 348-368, 2011 367
  • 21. Miranda, C. S. do Complexo nos dias 14 a 21 de março de 2004, Coimbra. Câmara Municipal. 2006. Can- em diversos horários, como atividade do Grupo de didatura ao Programa de Recuperação de Áreas Pesquisa Cidade, Aldeia e Patrimônio do Laboratório de Urbanas Degradadas. Coimbra: Gabinete Antropologia da UFPA. O perfil dos 127 entrevista- para o Centro Histórico. dos abrangeu desde crianças até pessoas com mais Fortuna, C. 1997. Destradicionalização e ima- de 60 anos, sendo que a maioria dos entrevistados gem da cidade, in Cidade, cultura e globalização – En- possui entre 21 e 35 anos, é morador dos bairros da saios de sociologia. Organizado por C. Fortuna, pp. 1ª légua patrimonial de Belém. 231-257. Lisboa: Celta Editora. 23 A Casa das 11 janelas foi Hospital Militar e Quartel Fortuna, C.; C. Ferreira; P. Abreu; P. Peixoto e C. do Exército até a restauração da área denominada Gomes. 2006. A Alta da Cidade de Coimbra: pro- “Feliz Lusitânia” pelo Governo do Estado do Pará. cessos de revalorização patrimonial e dinâmicas 24 Entrevista concedida a autora por Rubem Es- de recomposição sócio-cultural. Coimbra: CES. tevam Lobato, em 11 de fevereiro de 2004. Relatório Final de Pesquisa. 25 Magnani esclarece o sentido de “pedaço” Frias, A. & P. Peixoto. 2000. Representação como uma “intricada rede de relações for- imaginária da cidade. Processos de racionaliza- mada por laços de parentesco, vizinhança e ção e de estetização do patrimônio urbano de coleguismo.”(Magnani 1998:113) São dois os Coimbra. Oficinas do CES Nº 183. elementos constituintes do “pedaço”: um com- Magnani, J. G. C. 1998. Festa no pedaço: cultura popu- ponente espacial a que corresponde uma deter- lar e lazer na cidade. São Paulo: Hucitec; UNESP. minada rede de relações sociais. Alguns pontos de referência delimitam seu núcleo: o telefone Melo, M. 2009. Coimbra. Viagem e Turismo 10: 73-74. público, a padaria, alguns bares e comércios, o Miranda, C. S. 2009. Cultura e Patrimônio em Belém- terreiro e o templo, o campo de futebol e algum PA: uma história de profissionalização. 80 p. salão de baile. Não basta, contudo, morar perto Monografia (1º Edital de Seleção de Pesquisas do pedaço para pertencer a ele – é preciso estar A Preservação do Patrimônio Cultural no Bra- situado numa rede de relações que combina par- sil) Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico entesco, vizinhança e procedência. Nacional. Brasil, Belém. Nora, P 1997. Les Lieux de Mémoire. Paris: Gallimard. . REFERÊNCIAS Peixoto, P. 2006. O Passado ainda não começou: funções Augè, M. 2001. Não-lugares: introdução a uma antro- e estatutos dos centros históricos no contexto urbano portu- pologia da supermodernidade. (Coleção Travessia do guês. Tese de Doutorado. Faculdade de Econo- Século)Campinas: Papirus. mia, Universidade de Coimbra, Coimbra.. Benjamin, W. 1985. A obra de arte na era Tocantins, L. 1976. Santa Maria de Belém do Grão de sua Reprodutibilidade técnica, in Obras Pará: instantes e evocações da cidade. Rio: Civilização Escolhidas v. 1. Tradução de José Carlos Brasileira; Brasília: INL. Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense. Zukin, S. 1996. Paisagens urbanas pós-modernas: Choay, F. 2000. A alegoria do patrimônio. Lisboa: mapeando cultura e poder. Revista do Patrimônio Edições 70. Histórico e Artístico Nacional 24: 205-219. Coimbra. Câmara Municipal. 2005. Relatório Interdisciplinar da Baixa. Disponível Recebido em 10/04/2011. em: http://www.coimbravivasru.pt/pdf/ relatorio_marco_2005.pdf. Acesso em 18 out 2008. Aprovado em 02/09/2011. 368 Amazônica 3 (2): 348-368, 2011