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Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio




                            23
              (Corresponde ao primeiro tópico do Capítulo 3,
                       intitulado Pessoa já é rede)




                          Gholas sociais

Um ghola não é um borg

No universo ficcional de Duna, obra monumental de Frank Herbert (1965-
1985), os tanques axlotl são mulheres tleilaxu que sofreram um coma
cerebral químico induzido, a par de outras intervenções genéticas, para
servir como usinas de gholas (espécies de clones de uma pessoa morta a
partir de seu material genético). Os Tleilaxu (ou Bene Tleilax) são uma
sociedade fechada de religiosos muito avançados tecnologicamente.

No entanto, os gholas são réplicas que não manifestam automaticamente as
qualidades dos originais. Para tanto eles devem passar por um processo
longo de aprendizagem e devem viver certas experiências (sobretudo de
relacionamento íntimo com seus treinadores) para despertar suas
habilidades.

A leitura das diversas camadas da escritura de Herbert (literal, alegórica ou
metafórica, simbólica etc.) permite um paralelo (meramente evocativo e
para efeitos heurísticos) entre o processo biológico-cultural de clonagem e
aprendizagem de um ghola e o processo social de geração de uma pessoa
(que seria, então, uma espécie de “ghola social”).

Os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos
seriam os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres que já
foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento. De sorte
que não somos humanos apenas por força da genética, da reprodução ou da
hereditariedade biológica (que replicamos como indivíduos da espécie
homo) e sim em virtude da rede social em que com-vivemos, cuja
configuração particular replicamos como pessoas, ou seja, “gholas sociais”.
Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal condição a partir
do relacionamento com seres humanizados. Somos (enquanto entes
culturais) filhos da rede social. E não podemos ser humanos sem esse tipo
de relacionamento. Como reza a máxima Zulu, “uma pessoa é uma pessoa
através de outras pessoas”.

Tudo isso é para dizer que um ghola (social) não é um borg. Mas por que é
tão importante dizer isso?

No universo ficcional de Star Trek os Borgs são uma “raça” alienígena de
ciborgues, humanóides de várias espécies assimilados e melhorados com a
injeção de nanossondas e a aplicação de implantes cibernéticos que alteram
sua anatomia e seu funcionamento bioquímico, ampliando suas habilidades
mentais e físicas.

Quando encontram suas presas - quaisquer membros de outras civilizações,
aos quais andam a cata – os Borg recitam, com algumas variações, a
seguinte litania:

      “Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou.
      Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa.
      Resistir é inútil”.

Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de
distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos
substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura



                                     2
fortemente centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico
absoluto), a única que pode pensar livremente (se é que isso é possível sem
o conversar). Seus cérebros são conectados a uma mente coletiva (a
Coletividade Borg) controlada por um hub central (Unimatrix Um). O
objetivo declarado do povo Borg (que só é um povo naquele particular
sentido original da palavra latina ‘populus’: “contingente de tropas”) é
“aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao caos”.

Uma interpretação possível para a metáfora é a seguinte: de certo modo
qualquer pessoa, transformada em peça substituível por uma organização
centralizada (hierárquica), é – em alguma medida – um borg.

Sim, o paralelo é mais fértil do que parece. Dizer que um ghola (social) não
é um borg (biotecnológico), seria como colocar na boca do primeiro – no
dealbar de uma época-fluzz – uma paródia da “saudação” borg como a
seguinte:

      Nós somos gholas sociais. Novas possibilidades de existência, até
      agora desconhecidas de todos nós, estão sendo abertas. Nossas
      qualidades biológico-culturais estão se combinando em novos padrões
      sociais. É só preciso deixar-ir.

A rigor, como uma configuração       de pessoas está sempre ligada a outras
configurações, todas as pessoas      estão de algum modo emaranhadas no
espaço-tempo dos fluxos (quem        sabe não era isso que chamávamos de
humanidade, uma prefiguração).       Assim, no limite, todas as pessoas são
feitas de todas as outras pessoas.




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Gholas sociais e borgs: uma comparação

  • 1. Em pílulas Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio 23 (Corresponde ao primeiro tópico do Capítulo 3, intitulado Pessoa já é rede) Gholas sociais Um ghola não é um borg No universo ficcional de Duna, obra monumental de Frank Herbert (1965- 1985), os tanques axlotl são mulheres tleilaxu que sofreram um coma cerebral químico induzido, a par de outras intervenções genéticas, para servir como usinas de gholas (espécies de clones de uma pessoa morta a partir de seu material genético). Os Tleilaxu (ou Bene Tleilax) são uma sociedade fechada de religiosos muito avançados tecnologicamente. No entanto, os gholas são réplicas que não manifestam automaticamente as qualidades dos originais. Para tanto eles devem passar por um processo
  • 2. longo de aprendizagem e devem viver certas experiências (sobretudo de relacionamento íntimo com seus treinadores) para despertar suas habilidades. A leitura das diversas camadas da escritura de Herbert (literal, alegórica ou metafórica, simbólica etc.) permite um paralelo (meramente evocativo e para efeitos heurísticos) entre o processo biológico-cultural de clonagem e aprendizagem de um ghola e o processo social de geração de uma pessoa (que seria, então, uma espécie de “ghola social”). Os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos seriam os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres que já foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento. De sorte que não somos humanos apenas por força da genética, da reprodução ou da hereditariedade biológica (que replicamos como indivíduos da espécie homo) e sim em virtude da rede social em que com-vivemos, cuja configuração particular replicamos como pessoas, ou seja, “gholas sociais”. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal condição a partir do relacionamento com seres humanizados. Somos (enquanto entes culturais) filhos da rede social. E não podemos ser humanos sem esse tipo de relacionamento. Como reza a máxima Zulu, “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Tudo isso é para dizer que um ghola (social) não é um borg. Mas por que é tão importante dizer isso? No universo ficcional de Star Trek os Borgs são uma “raça” alienígena de ciborgues, humanóides de várias espécies assimilados e melhorados com a injeção de nanossondas e a aplicação de implantes cibernéticos que alteram sua anatomia e seu funcionamento bioquímico, ampliando suas habilidades mentais e físicas. Quando encontram suas presas - quaisquer membros de outras civilizações, aos quais andam a cata – os Borg recitam, com algumas variações, a seguinte litania: “Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou. Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa. Resistir é inútil”. Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura 2
  • 3. fortemente centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico absoluto), a única que pode pensar livremente (se é que isso é possível sem o conversar). Seus cérebros são conectados a uma mente coletiva (a Coletividade Borg) controlada por um hub central (Unimatrix Um). O objetivo declarado do povo Borg (que só é um povo naquele particular sentido original da palavra latina ‘populus’: “contingente de tropas”) é “aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao caos”. Uma interpretação possível para a metáfora é a seguinte: de certo modo qualquer pessoa, transformada em peça substituível por uma organização centralizada (hierárquica), é – em alguma medida – um borg. Sim, o paralelo é mais fértil do que parece. Dizer que um ghola (social) não é um borg (biotecnológico), seria como colocar na boca do primeiro – no dealbar de uma época-fluzz – uma paródia da “saudação” borg como a seguinte: Nós somos gholas sociais. Novas possibilidades de existência, até agora desconhecidas de todos nós, estão sendo abertas. Nossas qualidades biológico-culturais estão se combinando em novos padrões sociais. É só preciso deixar-ir. A rigor, como uma configuração de pessoas está sempre ligada a outras configurações, todas as pessoas estão de algum modo emaranhadas no espaço-tempo dos fluxos (quem sabe não era isso que chamávamos de humanidade, uma prefiguração). Assim, no limite, todas as pessoas são feitas de todas as outras pessoas. 3