Este documento resume um artigo acadêmico que explora possíveis conexões entre a Divina Comédia de Dante e o filme Notre Musique de Godard:
1) Ambas as obras contemplam formas particulares de linguagem poética e comunicação.
2) A Divina Comédia de Dante reflete um universo simbólico através da estrutura e da língua italiana.
3) Notre Musique de Godard também examina questões linguísticas de forma cinematográfica.
4) Há possibilidades de di
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Campo Contracampo VersãO Pub
1. Universidade Aberta
Mestrado em Arte e Educação
Filosofia das Artes e da Cultura
Docentes: José Arêdes
António Teixeira
Campo - contracampo: Uma breve reflexão. Podemos começar a pensar as possibilidades do dialogismo
na educação pela arte? Um exemplo: Notre Musique e a Divina Comédia.
Ana da Palma
29 de Junho de 2009
2. Prelúdio
Houve um dia, um fim de tarde cinzenta de Verão, carregada de cúmulos-nimbos,
em Atenas, em que Platão, após uma longa conversa com Gláucon, conversa esta
que nunca chegou a ser registada na República, escreveu que «convinha incluir os
poetas na República e que apesar de serem seres alados, sagrados, inspirados
pelos deuses, afinal não deviam ser expulsos da Cidade Perfeita. Mesmo que
suscitassem sentimentos dúbios e imperfeitos, participavam na visão do mundo e
contribuíam para o verdadeiro equilíbrio de todas as coisas, portanto deviam
permanecer ao lado dos filósofos, trazendo o seu pensamento para dirigir a
Cidade» 1 . Foi assim que, durante uns tempos, tudo mudou e que foi,
singularmente, possível «começar a pensar». Foi assim que os filósofos se
esqueceram de reescrever a poesia do mundo, posto que ela fazia parte do
sistema, fazia parte integrante da própria vida de todos os cidadãos. A educação
ficou entregue aos Poetas. Nesse outro tempo, Heidegger nunca pensou no
capítulo 34, intitulado Da-sein et parole. La langue 2 , nem percorreu os caminhos
da linguagem 3 de forma tão perfeita, nem reflectiu sobre Hölderlin 4 , Benjamin 5
nunca viu numa árvore as raízes da linguagem 6 , e Derrida 7 nunca conheceu o seu
monolínguismo, já que nunca fora do Outro e que sempre fora seu sem palavras.
Mas, esse dia foi outro tempo e outro dia na Cidade Perfeita. Curiosamente, os
registos perderam-se. Reza a lenda que foram espalhados pelo Bóreas num
momento de fúria amorosa.
1
Fonte minha, desconhecida e incerta.
2
Martin Heidegger. Être et temps. Paris : Éditions Gallimard, 1986, pp.207-213.
3
Martin Heidegger. Acheminement vers la parole. Paris : Éditions Gallimard, 1999.
4
Martin Heidegger. Les hymnes de Hölderlin : la Germanie et le Rhin. Paris : Éditions Gallimard,
1988.
5
Walter Benjamin. Œuvres I. Paris : Éditions Gallimard, coll. « Folio/essais », 2000.
6
Walter Benjamin. Œuvres II. Paris : Éditions Gallimard, coll. « Folio/essais », 2000, p. 350 :« A
árvore e a linguagem. Subia um talude e recostava-me debaixo de uma árvore. Era um choupo
ou um álamo. Por que razão não me lembro da espécie? Porque enquanto contemplava a sua
folhagem e seguia os seus movimentos, de súbito a árvore apoderou-se da linguagem em mim, de
forma que mais uma vez cumpriu-se na minha presença o rito antigo da aliança da árvore e da
linguagem. Os ramos junto do cume ponderavam o pró e o contra, ou ainda declinavam com
altivez; os raminhos não escondiam a sua inclinação e extrema inacessibilidade; a folhagem,
com a áspera carícia de uma corrente de ar, arrepiava-se, estremecia com todas as folhas ou
arqueava-se, o tronco instalava-se nas suas posições e uma folha ficava à sombra de outra. Um
vento ligeiro tocava um ar nupcial e de seguida, com palavras de imagens, dispersou aos quatro
cantos do mundo os rebentos nascidos desta união.» (Tradução minha)
7
Jacques Derrida. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996.
2
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3. Quem nunca alcançou, como num sonho, esta
substância lenhosa da língua, a que os antigos
chamavam silva (floresta), ainda que se cale,
está prisioneiro das representações.
(Ideia da matéria. Giorgio Agamben. 8 )
Este breve ensaio pretende apenas reflectir sobre alguns pontos que nos parecem
relevantes no que concerne a educação e a reforma do pensamento apontada por Edgar Morin9 .
Pensamos que neste processo, que poderá fazer com que possamos «começar a pensar» 10 , é
necessário reflectir sobre a pertinência de um possível dialogismo entre as artes. Sendo este
assunto vasto e riquíssimo, optámos por evidenciar apenas um aspecto relevante. Tratando-se do
dialogismo entre obras de géneros distintos, mas ambas remetendo para a poesia, optámos por
enquadrá-lo em termos de linguagem cinematográfica, i.e., no campo-contracampo 11 , mas tal
como Pasolini evoca no seu filme Teorema, também nós estamos «assombrados por uma questão
a que não podemos responder» 12 e esta questão mais profunda evoca as tentativas esboçadas pela
transversalidade, iremos apenas tentar abordá-la por meio da poesia. Assim, pretendemos esboçar
um pensar do dialogismo entre a literatura e as imagens envolvendo uma proposta educativa ainda
8
Giorgio Agamben. Ideia da prosa. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 29.
9
Edgar Morin. Os sete saberes para a educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 39:
« Para articular e organizar os conhecimentos e assim reconhecer e conhecer os problemas do
mundo é necessário uma reforma do pensamento.»
10
Martin Heidegger. Qu’appelle-t-on penser? Paris : Quadrige/PUF, 1992
11
Esta escolha resulta de uma preocupação de prudência no sentido de ir ao encontro do tema
apresentado, mas focando num aspecto em particular que remete para o dialogismo. Para este
efeito transcrevemos a definição de contracampo: «Figura de planificação que faz suceder ao
campo o campo especialmente oposto. A montagem em campo-contracampo é geralmente
utilizada para filmar uma conversa: vemos sucessivamente de frente um interlocutor e depois o
outro. Tradicionalmente, a câmara não deve transpor a linha imaginária que junta as
personagens, para que os olhares dêem a sensação de se cruzar.» In Marie-Thérèse Journot.
Vocabulário de cinema. Lisboa: Edições 70, 2009, p.34.
12
Citado In Gille Deleuze. Cinema 2. L’image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985, p.
228: «Je suis hanté par une question à laquelle je ne puis répondre».
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4. por vir. Seguindo as sábias indicações de Umberto Eco 13 , apesar de não concordarmos totalmente
com alguns aspectos levantados no capítulo intitulado «Cinema e literatura: a estrutura do
enredo», principalmente no que concerne as analogias e a interpretação, assunto ao qual não nos
vamos dedicar por enquanto, também não queremos nos aventurar por caminhos impressionistas,
nem recorrer ao «uso empírico da metáfora» para imprimir um «valor literal». Portanto, num
primeiro momento, iremos esboçar uma análise orientada para as questões da linguagem em
ambos os géneros, considerando, por um lado, a proposta subjacente ao texto de Dante e, por
outro lado, o trabalho de Godard. Depois, dedicar-nos-emos aos laços que são possíveis e que se
podem tecer entre a Divina Comédia 14 de Dante e o filme intitulado Notre Musique 15 de Godard,
contemplando a homologia da estrutura e evidenciando dois aspectos, primeiro, uma estrutura
superficial e, depois, uma estrutura profunda. Finalmente, debruçar-nos-emos mais precisamente
sobre o diálogo possível como ponto de partida para propostas direccionadas para uma educação
pela arte, mas contemplando um verdadeiro dialogismo. Isto no intuito futuro de procurar os
fundamentos para uma possível abordagem das línguas e literaturas pelas outras artes. Posto isto,
o dizer da poesia é como aquela mão do poeta 16 estendida sobre o mar que nunca alcança a
palavra e se começarmos a falar a sua palavra ecoa como as imagens ficam presas na retina da
nossa memória.
13
Umberto Eco. A definição da arte. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 191: «Voltando agora às
relações entre cinema e narrativa, creio que entre os dois géneros artísticos se pode, pelo menos,
assinalar uma espécie de homologia estrutural com base na qual se possa prosseguir; é que
ambas são artes da acção».
14
Dante Alighieri. A divina Comédia. Lisboa : Bertrand Editora, 1997.
15
Jean-Luc Godard. Notre Musique. Paris : Les Cahiers du Cinéma, 2004.
16
Edmond Jabès. Le Seuil. Le Sable, Paris, Éditions Gallimard, 2003, p.203: «JE VOUS ÉCRIS D’UN
PAYS PESANT :Aussi belle que la main de l’aimée/sur la mer./Aussi seule./J´écris pour vous. La douleur est un
coquillage. On y écoute perler le coeur./J’écris pour vous, au seuil de l’idylle, pour la plante aux feuilles d’eau, aux
épines de flammes, pour la rose d’amour. /J’écris pour rien, pour les mots luisants que trace ma mort, pour l’instant de
vie éternellement dû./Aussi belle que la main de l’aimée/sur le signe./Aussi seule.(…)»
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5. «Comment puis-je commencer à parler… si
vous ne m’entendez pas ?»
(Notre Musique)
Se começamos por pensar na linguagem é precisamente porque, por um lado toda
linguagem é comunicação de algo e, por outro lado, porque ambas as obras contemplam uma
forma de expressão particular: a poesia. Apesar de não haver comparação possível entre
linguagens de géneros diferentes, tais como a linguagem do poema e a linguagem do filme, as
artes não crescem e se alimentam sozinhas. Vejamos. Na Divina Comédia, o autor reconhece
na natureza o domínio soberano e metafísico da semelhança e da analogia. O mundo fantástico
de Dante reflecte o universo sensível e supra-sensível considerado como uma Obra de Arte.
Entramos em primeiro, no Abismo, ou Inferno, que corresponde ao mundo da perfeição que foi
recusada pelo ser humano e este mundo é uma «selva escura...selvagem, aspra e forte». Da
escuridão, vamos progressivamente para a luz. No Purgatório, que emergiu das águas, dando
lugar a uma ilha, seguindo a «doce cor de oriental safiro...a bela Aurora...o amanhecer
vizinho» caminhamos já com alguma luz. Nessa ilha há um monte, que corresponde ao Paraíso
Terrestre, aí há uma floresta fresca e viva. A montanha encerra os horizontes infinitos da
liberdade e da luz para os quais as almas tendem. As almas devem tender a alcançar a perfeição,
porque só assim poderão atingir o Paraíso. Este paraíso encontra-se no limite extremo de dois
mundos. Em baixo, o mundo da matéria a sublimar-se e, em cima, o mundo puramente
imaterial cada vez mais vasto e luminoso. Este último é, para Dante, o paraíso da fé cristã. É
numa espécie de ascensão espiritual por degraus, iluminada pelo amor, que o poeta atravessa
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6. simbolicamente os nove céus do sistema de Ptolomeu, para encontrar, em cima, a chama divina
infinita: o Empireu. O poeta segue uma queda em linha vertical descendente desde o hemisfério
boreal até ao hemisfério Austral, indo até ao topo do Purgatório, de onde se dirige para as
profundezas do céu divino. Mas a proposta de Dante é mais vasta, posto que é a síntese de uma
vida e de um pensamento. Este pensar contempla um canto geral que pretende alcançar a
perfeição tanto por meio da estrutura formal do texto como pelo uso de uma língua. É assim
que a Divina Comedia é dividida em três partes, cada parte sendo composta por trinta e três
cantos e de um número uniforme de versos, havendo um canto introdutório suplementar que
introduz o número cem, múltiplo de dez, símbolo da perfeição, mas isto não é totalmente
inocente, tendo em conta a verdadeira proposta de Dante, que se revela revolucionaria na época,
fundamentalmente, no que concerne a língua. Pois, o metro é em terza rima, vindo do sirventês
popular e a língua é aquela que nos deu o italiano actual e que foi importante para uma
unificação política. Dante é guiado principalmente pelo poeta Virgílio e por Beatriz. Por um
lado, a poesia e por outro lado, além do amor puro, a língua materna representada pela mulher.
Ambas as partes deste pensamento formulado na Divina Comédia, indicam uma única proposta
onde a poesia aliada à língua constitui uma ideologia. Uma língua falada, uma língua viva que
na floresta das línguas 17 se expõe em poesia, como palavra falada, palavra acção. É na Divina
17
Verificamos com alguma curiosidade que no que respeita à língua e linguagem tanto os
poetas, como os filósofos evocam a floresta, a selva ou a árvore. De facto, quando pensamos em
termos de História da Língua, representamo-la numa árvore, mas parece-me que esta
representação tem raízes mais profundas que aquela que nos leva à evolução das línguas e às
suas famílias. Mencionámos, anteriormente, um texto poético de Walter Benjamin, mas este
encontra-se ligado a um ensaio intitulado: Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem
humana, onde os problemas levantados por uma teoria da linguagem, a questão da magia da
linguagem, a linguagem como conhecimento e a complexidade da nomeação são muito mais
complexos. Contudo, recentrando esta simples nota, desejamos relembrar estas palavras de
Agamben em torno do pensamento de Dante: «Por isso Dante não buscava, no De Vulgaris
Eloquentia, esta ou aquela língua materna escolhida na floresta de línguas vernáculas da
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7. Comédia que Dante concretiza o que expos em De vulgari Eloquentia, pondo em causa a
concepção gramatical vigente até então, alertando para uma uniformização ortográfica da
escrita dos catorze dialectos italianos, dando realce às línguas vulgares e promovendo a língua
vernácula, sendo o Toscano eleito como língua padrão.
Quanto à linguagem de Godard, já sabemos que a escolha do cineasta não foi inocente
para ilustrar estes laços, posto que tal como o realizador refere «o texto invadiu a imagem» 18 e
isto encontra-se presente de uma forma muito peculiar em todos os seus filmes, onde o leitmotiv
é quase sempre dado pelas palavras de Arthur Rimbaud: «Je est un autre» 19 , mas também
pelos imensos fragmentos de textos citados e outras palavras e frases recompostas por meio de
uma intertextualidade activa, recorrente e imprescindível aos filmes de Godard. Como filme
remetendo para a memória, Mnemosine 20 sendo mãe da poesia, ecoam vários nomes que no
fundo estão presentes, não só pelo poder do Nome citado, mas também pelo poder das palavras
península, mas tão somente aquele vulgar ilustre que, deixando em todas o seu perfume, não
se confundia com nenhuma(...)» Op.Cit. p. 40.
18
Esta afirmação não é comum, posto que o que se evidencia mais frequentemente, na
contemporaneidade, é precisamente o contrário. É singular um cineasta indicar a importância
predominante do texto sobre as imagens. Na verdade, ficamos confundidas, não sabendo se se
refere ao metatexto escrito sobre as imagens, ou ao guião que invade as imagens não as
deixando ser o que poderiam ser de forma espontânea. Mas esta questão é mais profunda,
porque remete para uma distância entre ficção e documentário impossível de delinear nestas
palavras de Godard.
19
Arthur Rimbaud. Oeuvres complètes. Paris : Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1992,
Rimbaud à Paul Demeny, Charleville, 15 mai 1871, p. 250 : « Car Je est un autre. Si le cuivre
s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute. Cela m’est évident : j’assiste à l’éclosion de ma
pensée : je la regarde, je l’écoute : je lance un coup d’archet : la symphonie fait son
remuement dans les profondeurs, ou vient d’un bond sur la scène.». (Sublinhado nosso). Este
Eu que é Outro enquadra-se em torno de todo um pensamento sobre o artista, mas também sobre
a nossa relação com o Outro e os outros. Não se trata aqui de um Eu que se descarta das suas
acções ou responsabilidades, mas um Eu que reconhece a existência, mesmo que confusa, dos
seus Eus e da existência dos Outros Eus.
20
Heidegger em Qu’appelle-t-on penser ? Diz-nos o seguinte: « Menémosyne, la fille de Ciel
et de Terre, devient, comme fiancée de Zeus, en neuf nuits la Mère des Muses. Jeu et
Musique, Danse et Poésie appartiennent au sein de Mnémosyne, à la Mémoire.»
7
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8. e das imagens associadas, de que poderíamos dizer simplesmente que se trata de imagem-
poesia. Apenas relembro aqui as referências às palavras, posto que o que se pretende é ir ao
encontro da poesia pelas imagens. Toda a poesia é evocada por meio das imagens que surgem
em campo contracampo, ou em lentos travelling laterais, ou ainda seguindo uma espécie de
mise em abîme complexa. Hannah Arendt é evocada por meio de uma fotografia fixada na
parede, mas relembrada através das palavras citadas de Gershom Scholem, dizendo que ela
parecia a doze sinagogas, aproveitando para relembrar Walter Benjamin. Este, curiosamente, é
também evocado através do poeta palestiniano Mahmoud Darwich 21 , mas igualmente pela sua
ligação com Hegel quando uma voz nos diz que a História é sempre a história dos grandes
vencedores. Notre musique quer-se apenas uma simples história, uma coisa tão simples como a
poesia do mundo e isto só pode ser possível por meio de uma conversa, mas «pas ume
conversation simple, mais une simple conversation» dirá a jovem jornalista e estas palavras
remetem para todos os laços possíveis, não no sentido de fazer a História, mas de perceber as
histórias e de acolher o Outro. Contudo, sendo uma conversa acaba por atingir a complexidade
de uma conversa, onde as palavras ecoam umas nas outras e levam-nos, por vezes, por
caminhos diversos, divergentes ou entrelaçados. Quando Olga nos diz que o verdadeiro
problema filosófico é o suicídio, encontramo-nos com Albert Camus, mas também com
questões muito mais prementes que nos transportam para o desespero experienciado por
indivíduos e por povos inteiros. Algumas palavras de Emanuel Levinas 22 são evocadas no
início:«On peut envisager la mort de deux façons. L’une comme étant l’impossible du possible,
l’autre comme le possible de l’impossible» e todos os diálogos acabam por ser como o clamor
21
Mahmoud Darwich, poeta palestiniano falecido em 2008, é entrevistado pela jovem jornalista Judith e
reflecte sobre a palavra poética.
22
Emanuel Levinas. Entre nous. Essais sur le penser-à-l’autre. Paris : Grasset, 1991, pp.204-214
8
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9. das correspondências possíveis, por isso o poema de Baudelaire é recitado por uma voz
deambulando, pela biblioteca em ruínas de Sarajevo. Juan Goytisolo traz a sua floresta da
escrita à luz das palavras, quando nos diz que «a luz é o primeiro animal visível do invisível»
brandindo o direito inalienável das letras em que regressamos à árvore de Benjamim. Homero
é evocado através do grande poeta palestiniano. Os aforismos poéticos e filosóficos semeados
ao longo das imagens dão-nos a estranha sensação de estar a ler um livro de imagens poéticas.
Procuramos ver qualquer coisa ao ler atentamente a Divina Comédia e ao ver lentamente Notre
Musique, anotando os textos, os movimentos da câmara e os procedimentos semânticos
complexos do realizador, mas, ao fechar os olhos, re-presentámo-nos o poema de Dante.
Chercher à voir quelque chose, chercher à se
représenter quelque chose, dans le premier cas,
on dit regarder là et dans le second, fermer les
yeux. Champ et contre-champ. Imaginaire –
Certitude. Réel – Incertitude.
(Notre musique)
É neste sentido que verificámos que havia em ambas as obras uma procura semelhante.
Esta procura tenta alcançar o conhecimento, a perfeição e o amor por meio da palavra poética. A
palavra do poeta exposta 23 e é neste sentido que importa reconhecer os laços possíveis que
podem criar um diálogo entre as duas obras de arte. Estes laços que nos permitem alcançar,
senão todo o conhecimento, pelo menos uma escassa parte do conhecimento é um ponto de
partida para pensar o mundo que habitamos. Primeiro, naquilo que chamámos a estrutura
superficial, onde apenas podemos traçar ponto de encontro. Verificamos a orquestração dos
23
Giogio Agamben. A ideia da prosa. Lisboa: Cotovia. 1999. p.39. No capítulo intitulado Ideia do único,
o autor expõe a palavra poética de Paul Celan e relembra a intenção de Dante no que concerne as línguas
vernáculas.
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10. tempos em Inferno, Purgatório e Paraíso. No Inferno, não se trata de uma simples imagem,
apenas uma imagem simples, onde homens saídos das águas, como aqueles que se encontram na
« ribeira triste do Aqueronte», ouvem a voz e uma mulher dizendo: «Ainsi dans le temps des
fables, après les inondations et les déluges, il sortit de la terre des hommes armés qui
s’entretuèrent.» Neste inferno, uma vez atravessadas as águas do Styx, a ficção e o documentário
aliam-se numa melodia de imagens que se sucedem em tons vermelhos, amarelos e cinzentos.
São dois mundos que se encontram. O mundo do real e o mundo da ficção, contudo a ficção
parece sobrepor-se ao real. Neste abismo de Dante e de Godard, o ser humano está mergulhado
na vida egoísta das suas paixões, quando perde a consciência do ser e é apenas um fragmento
separado do universo. O percurso até ao Purgatório faz-se paralelamente com a ascensão
descendente de Dante e a chegada por avião dos poetas a Sarajevo para um encontro literário. Aí
dá-se a mistura das línguas. Mas não se trata de uma mescla confusa ou caótica, mesmo que, na
verdade, não se perceba os significados das palavras ditas, ouve-se a música de todas as línguas.
O intérprete é um dos guias, os outros são mulheres, mais precisamente três mulheres, como as
três mulheres que acompanham Dante: Lúcia, Maria e Beatriz. O Purgatório é o espaço de
liberdade onde cada um pode escolher o seu caminho. No Paraíso, uma fresca, frondosa e
exuberante floresta, o espaço imaterial de Dante e de Godard, onde jovens jogam à bola sem
bola. Apesar do Paraíso de Notre Musique ser guardado por marines americanos. Naquilo que
remete para uma estrutura profunda encontramo-nos na floresta da língua e principalmente na
poesia. Os laços entre um e outro são quase demasiado evidentes, mas o que interessa é
precisamente realçar e pôr em evidencia as ligações das imagens com os textos, e além disso, a
melodia da língua, de uma língua, mesmo esta estando fora do campo, remeter por um lado para
a poesia e por outro lado para uma ideologia, ou uma compreensão do mundo. Não pretendo
10
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11. aqui analisar a ideologia de Godard sobre o mundo e, em particular, os grandes conflitos do
mundo, mas apenas contemplar uma questão que aponta principalmente para a comunicação
entre as coisas, todas as coisas. Esta comunicação que me levou a rever Platão em torno da
educação, mais precisamente a inventar um diálogo que nunca existiu 24 confrontado com as
práticas actuais e com outros textos paradigmáticos. A educação num mundo em perpétuo devir,
para utilizar a palavra de Blanchot, exige que o saber possa fornecer todas as ligações úteis,
ainda longe do hipertexto, mas já muito perto do mesmo, mas uma ligação que possa esclarecer
e que seja eficaz. Estando num mundo que pré-existe e pós –existe, a existência dos ser humano
nas intermitências das pequenas mortes requer, não uma ponte para o pensar o mundo, mas,
sobretudo à maneira de Heidegger, pensar-SE dentro do mundo. A literatura abrangendo todo o
mundo dos saberes seria a forma mais eficaz, criativa e educativa de pensar-SE no mundo. Isto é
pensar dentro e para o mundo estando e sendo no mundo. Por isto precisamos de estabelecer as
Correspondências possíveis.
La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles ;
L’homme y passe à travers des forêts de
symboles
Qui l’observent avec des regards familiers.
(Correspondances, Baudelaire) 25
O lugar de Notre Musique acaba por ser os textos e as imagens evocados que
correspondem entre eles e nos levam ao percurso de Dante e à Divina Comédia. Além da
dimensão ideológica, mas que permite re-situar as questões levantadas por Morin, quanto ao
conhecimento e reconhecimento dos problemas do mundo, a poesia leva-nos sobre os múltiplos
24
Trata-se do pequeno texto, no início deste pequeno ensaio, intitulado Prelúdio.
25
Charles Baudelaire. Les fleurs du mal. Paris : Éditions Garnier Frères, 1958, p. 14.
11
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12. caminhos das línguas, das poesias das línguas e da imagem-poema, assim como da História e das
histórias do mundo. É neste dialogismo que se inscreve a necessidade de uma abordagem das
artes pela literatura. Isto como ponto de partida para o conhecimento, que é no fundo um nascer
para o mundo com tanto e tão pouco! Aqui regressamos a Mnemosine e revisitamos Heidegger 26 ,
porque este pensar fez crescer em nós a louca aliança entre a poesia e a imagem. Posto que as
imagens se tornaram uma parte importante da memória do mundo, mas, por outro lado, muitas
imagens parecem contaminá-la de uma forma ensurdecedora, mas também a memória do mundo
não dispensa as palavras. Retomando Morin e Arendt, entre, respectivamente, os sete saberes 27 e
a crise da educação 28 , o dialogismo possibilitado pela literatura poderá ser uma das respostas, no
campo das artes, para as múltiplas questões e problemas da educação. Acreditamos que a
literatura pode ir ao encontro dos pontos salientados por Edgar Morin no que concerne o
conhecimento, o erro, a ilusão, o saber o global e inscrevê-lo no local, a identidade complexa e
comum, a compreensão e a questão da incerteza do real. Godard não é um estranho da
linguagem, mas neste filme vai muito longe na sua abordagem dos conflitos humanos, remetendo
contudo sempre para a poesia da língua, i.e., a poesia em si ou seja o texto poético mas também
para o diálogo que se estabelece entre a ficção e a realidade, certeza e incerteza. Além da
linguagem poder ser um muro para a comunicação, o elo é o intérprete, aquele que faz a ligação
entre as coisas, todas as coisas. Cada arte tem a sua linguagem, mas o que podemos verificar é
que se têm contagiado umas às outras de forma a imprimir uma riqueza infindável, quase
26
Martin Heidegger. Qu’appelle-t-on penser ? Paris : Quadrige/PUF, 1992, p. 29,30 :« Mnémosyne, la fille de
Ciel et de Terre, devient, comme fiancée de Zeus, en neuf nuits la Mère des Muses. Jeu et Musique, Danse
et Poésie appartiennent au sein de Mnémosyne, à la Mémoire. Il est manifeste que ce mot désigne autre
chose que la seule faculté, déterminable par la psychologie, de retenir le passé dans la représentation.
Mémoire pense à ce qui a été pensé. (…) Mémoire est le rassemblement de la pensée fidèle. (…) La pensée
fidèle à ce qui demande à être pensé est le fond d’où sourd la poésie.»
27
Op.Cit.
28
Hannah Arendt. La Crise de la Culture. Paris: Gallimard, folio/Essais, 1996, pp.223-252.
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13. invisível, ou então tão intrincada, que pode obscurecer o pensamento, deixando rastos de ideias
difusas e confusas. A linguagem alvo, a linguagem esclarecida ou esclarecedora, a linguagem que
procura ser um lugar que se habita, tal como para o poeta Edmond Jabés 29 , ou o filósofo Derrida,
mas também uma linguagem a balbuciar o ser que na contemporaneidade procura o mundo. É um
balbuciar mais que um soletrar e provavelmente um balbuciar-se, devido à relação profunda
entre a língua e o estar no mundo tal como Heidegger 30 se propõe a mostrar quando pensa o ser
em relação ao tempo, parecendo estabelecer que a fenomenologia é o método da ontologia, assim
sendo, e tal como o autor indica, o logos grego seria como que algo semelhante ao dar a
conhecer, ou mostrar. Sendo a disposibilidade e o entender co-originais e estes constituindo a
abertura do ser-ao-mundo, estabeleceram como que um acordo, ou um pacto, que permite a
aptidão à explicitação e sobretudo a possibilidade de explicitação, que o autor explica como
sendo a apropriação daquilo que é entendido. Isto seria como que este estar disposto para, ou
aberto para, faça com que possa haver linguagem, como se fosse a condição de possibilidade da
linguagem. Na possibilidade da linguagem há a possibilidade de pensar, há a possibilidade de
dialogar com o Outro e tecer os laços imprescindíveis para um conhecimento do mundo.
Nous ne pouvons jamais apprendre, nous
modernes surtout, que si du même mouvement
nous désapprenons. Pour le cas qui nous
occupe, nous ne pouvons apprendre la pensée
que si nous désapprenons radicalement son
essence traditionnelle. Mais il est pour cela
nécessaire que nous fassions en même temps sa
connaissance. (Heidegger)
29
Autor citado na introdução.
30
Martin Heidegger, Être et temps, Paris, Editions Gallimard, 1986, §34.
13
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14. Foi por estes meandros que chegámos a Dante e à Divina Comédia, pela estrutura em
tríade: inferno, purgatório e paraíso. O inferno, espaço de imagens onde a poesia flui; o
purgatório, espaço das línguas misturadas; o paraíso onde jaz o silêncio da poesia do mundo.
Todo o conhecimento não é estanque e apela, nutre-se, ecoa, revigora-se e cria-se numa teia
complexa que, hoje em dia, nos submerge e de que temos apenas uma pequena percepção. Aqui
na terra, nesta realidade que nos assombra, as propostas de Platão ficaram nas gavetas poeirentas
dos Estados democráticos. A palavra pode ser uma arma muito útil, demasiado útil para o
comum, simples e mortal cidadão. A palavra poética é precisa, posto que é aquela que permite
tecer os saberes entre eles, revelar ou imiscuir-se nas imagens do mundo. Será que não interessa
promover uma educação que nos permita, finalmente, começar a pensar? Será que continuamos
a rejeitar a perfeição evocada por Dante, assim como nos afastamos daquilo que poderá pensar
em nós?
14
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15. Referências bibliográficas :
Agamben, Giorgio, Ideia da Prosa, Lisboa : Cotovia, 1999.
Alighieri, Dante, A Divina Comédia, Lisboa: Bertrand Editora, 1997.
Arendt, Hannah, Walter Benjamin 1892-1940, Paris : Editions Allia, 2007.
-----------------, Du mensonge à la violence. Essais de politique contemporaine, éd. Calmann-Lévy, coll.
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Baudelaire, Charles, Les Fleurs du mal, Paris : Éditions Garnier Frères, 1958.
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