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                                   Mestrado em Arte e Educação
                                   Filosofia das Artes e da Cultura
                                       Docentes: José Arêdes
                                         António Teixeira




Campo - contracampo: Uma breve reflexão. Podemos começar a pensar as possibilidades do dialogismo
na educação pela arte? Um exemplo: Notre Musique e a Divina Comédia.
                                           Ana da Palma
                                        29 de Junho de 2009
Prelúdio



         Houve um dia, um fim de tarde cinzenta de Verão, carregada de cúmulos-nimbos,
         em Atenas, em que Platão, após uma longa conversa com Gláucon, conversa esta
         que nunca chegou a ser registada na República, escreveu que «convinha incluir os
         poetas na República e que apesar de serem seres alados, sagrados, inspirados
         pelos deuses, afinal não deviam ser expulsos da Cidade Perfeita. Mesmo que
         suscitassem sentimentos dúbios e imperfeitos, participavam na visão do mundo e
         contribuíam para o verdadeiro equilíbrio de todas as coisas, portanto deviam
         permanecer ao lado dos filósofos, trazendo o seu pensamento para dirigir a
         Cidade» 1 . Foi assim que, durante uns tempos, tudo mudou e que foi,
         singularmente, possível «começar a pensar». Foi assim que os filósofos se
         esqueceram de reescrever a poesia do mundo, posto que ela fazia parte do
         sistema, fazia parte integrante da própria vida de todos os cidadãos. A educação
         ficou entregue aos Poetas. Nesse outro tempo, Heidegger nunca pensou no
         capítulo 34, intitulado Da-sein et parole. La langue 2 , nem percorreu os caminhos
         da linguagem 3 de forma tão perfeita, nem reflectiu sobre Hölderlin 4 , Benjamin 5
         nunca viu numa árvore as raízes da linguagem 6 , e Derrida 7 nunca conheceu o seu
         monolínguismo, já que nunca fora do Outro e que sempre fora seu sem palavras.
         Mas, esse dia foi outro tempo e outro dia na Cidade Perfeita. Curiosamente, os
         registos perderam-se. Reza a lenda que foram espalhados pelo Bóreas num
         momento de fúria amorosa.


    1
      Fonte minha, desconhecida e incerta.
    2
      Martin Heidegger. Être et temps. Paris : Éditions Gallimard, 1986, pp.207-213.
    3
      Martin Heidegger. Acheminement vers la parole. Paris : Éditions Gallimard, 1999.
    4
      Martin Heidegger. Les hymnes de Hölderlin : la Germanie et le Rhin. Paris : Éditions Gallimard,
    1988.
    5
      Walter Benjamin. Œuvres I. Paris : Éditions Gallimard, coll. « Folio/essais », 2000.
    6
      Walter Benjamin. Œuvres II. Paris : Éditions Gallimard, coll. « Folio/essais », 2000, p. 350 :« A
    árvore e a linguagem. Subia um talude e recostava-me debaixo de uma árvore. Era um choupo
    ou um álamo. Por que razão não me lembro da espécie? Porque enquanto contemplava a sua
    folhagem e seguia os seus movimentos, de súbito a árvore apoderou-se da linguagem em mim, de
    forma que mais uma vez cumpriu-se na minha presença o rito antigo da aliança da árvore e da
    linguagem. Os ramos junto do cume ponderavam o pró e o contra, ou ainda declinavam com
    altivez; os raminhos não escondiam a sua inclinação e extrema inacessibilidade; a folhagem,
    com a áspera carícia de uma corrente de ar, arrepiava-se, estremecia com todas as folhas ou
    arqueava-se, o tronco instalava-se nas suas posições e uma folha ficava à sombra de outra. Um
    vento ligeiro tocava um ar nupcial e de seguida, com palavras de imagens, dispersou aos quatro
    cantos do mundo os rebentos nascidos desta união.» (Tradução minha)
    7
      Jacques Derrida. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996.
                                                                                                          2
Ana da Palma
Quem nunca alcançou, como num sonho, esta
                                                         substância lenhosa da língua, a que os antigos
                                                         chamavam silva (floresta), ainda que se cale,
                                                         está prisioneiro das representações.
                                                         (Ideia da matéria. Giorgio Agamben. 8 )



               Este breve ensaio pretende apenas reflectir sobre alguns pontos que nos parecem

      relevantes no que concerne a educação e a reforma do pensamento apontada por Edgar Morin9 .

      Pensamos que neste processo, que poderá fazer com que possamos «começar a pensar» 10 , é

      necessário reflectir sobre a pertinência de um possível dialogismo entre as artes. Sendo este

      assunto vasto e riquíssimo, optámos por evidenciar apenas um aspecto relevante. Tratando-se do

      dialogismo entre obras de géneros distintos, mas ambas remetendo para a poesia, optámos por

      enquadrá-lo em termos de linguagem cinematográfica, i.e., no campo-contracampo 11 , mas tal

      como Pasolini evoca no seu filme Teorema, também nós estamos «assombrados por uma questão

      a que não podemos responder» 12 e esta questão mais profunda evoca as tentativas esboçadas pela

      transversalidade, iremos apenas tentar abordá-la por meio da poesia. Assim, pretendemos esboçar

      um pensar do dialogismo entre a literatura e as imagens envolvendo uma proposta educativa ainda



      8
        Giorgio Agamben. Ideia da prosa. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 29.
      9
        Edgar Morin. Os sete saberes para a educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 39:
      « Para articular e organizar os conhecimentos e assim reconhecer e conhecer os problemas do
      mundo é necessário uma reforma do pensamento.»
      10
         Martin Heidegger. Qu’appelle-t-on penser? Paris : Quadrige/PUF, 1992
      11
         Esta escolha resulta de uma preocupação de prudência no sentido de ir ao encontro do tema
      apresentado, mas focando num aspecto em particular que remete para o dialogismo. Para este
      efeito transcrevemos a definição de contracampo: «Figura de planificação que faz suceder ao
      campo o campo especialmente oposto. A montagem em campo-contracampo é geralmente
      utilizada para filmar uma conversa: vemos sucessivamente de frente um interlocutor e depois o
      outro. Tradicionalmente, a câmara não deve transpor a linha imaginária que junta as
      personagens, para que os olhares dêem a sensação de se cruzar.» In Marie-Thérèse Journot.
      Vocabulário de cinema. Lisboa: Edições 70, 2009, p.34.
      12
         Citado In Gille Deleuze. Cinema 2. L’image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985, p.
      228: «Je suis hanté par une question à laquelle je ne puis répondre».
                                                                                                          3
Ana da Palma
por vir. Seguindo as sábias indicações de Umberto Eco 13 , apesar de não concordarmos totalmente

      com alguns aspectos levantados no capítulo intitulado «Cinema e literatura: a estrutura do

      enredo», principalmente no que concerne as analogias e a interpretação, assunto ao qual não nos

      vamos dedicar por enquanto, também não queremos nos aventurar por caminhos impressionistas,

      nem recorrer ao «uso empírico da metáfora» para imprimir um «valor literal». Portanto, num

      primeiro momento, iremos esboçar uma análise orientada para as questões da linguagem em

      ambos os géneros, considerando, por um lado, a proposta subjacente ao texto de Dante e, por

      outro lado, o trabalho de Godard. Depois, dedicar-nos-emos aos laços que são possíveis e que se

      podem tecer entre a Divina Comédia 14 de Dante e o filme intitulado Notre Musique 15 de Godard,

      contemplando a homologia da estrutura e evidenciando dois aspectos, primeiro, uma estrutura

      superficial e, depois, uma estrutura profunda. Finalmente, debruçar-nos-emos mais precisamente

      sobre o diálogo possível como ponto de partida para propostas direccionadas para uma educação

      pela arte, mas contemplando um verdadeiro dialogismo. Isto no intuito futuro de procurar os

      fundamentos para uma possível abordagem das línguas e literaturas pelas outras artes. Posto isto,

      o dizer da poesia é como aquela mão do poeta 16 estendida sobre o mar que nunca alcança a

      palavra e se começarmos a falar a sua palavra ecoa como as imagens ficam presas na retina da

      nossa memória.

      13
          Umberto Eco. A definição da arte. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 191: «Voltando agora às
      relações entre cinema e narrativa, creio que entre os dois géneros artísticos se pode, pelo menos,
      assinalar uma espécie de homologia estrutural com base na qual se possa prosseguir; é que
      ambas são artes da acção».
      14
         Dante Alighieri. A divina Comédia. Lisboa : Bertrand Editora, 1997.
      15
         Jean-Luc Godard. Notre Musique. Paris : Les Cahiers du Cinéma, 2004.
      16
         Edmond Jabès. Le Seuil. Le Sable, Paris, Éditions Gallimard, 2003, p.203: «JE VOUS ÉCRIS D’UN
      PAYS PESANT :Aussi belle que la main de l’aimée/sur la mer./Aussi seule./J´écris pour vous. La douleur est un
      coquillage. On y écoute perler le coeur./J’écris pour vous, au seuil de l’idylle, pour la plante aux feuilles d’eau, aux
      épines de flammes, pour la rose d’amour. /J’écris pour rien, pour les mots luisants que trace ma mort, pour l’instant de
      vie éternellement dû./Aussi belle que la main de l’aimée/sur le signe./Aussi seule.(…)»

                                                                                                                            4
Ana da Palma
«Comment puis-je commencer à parler… si
                                                         vous ne m’entendez pas ?»
                                                         (Notre Musique)




               Se começamos por pensar na linguagem é precisamente porque, por um lado toda

        linguagem é comunicação de algo e, por outro lado, porque ambas as obras contemplam uma

        forma de expressão particular: a poesia. Apesar de não haver comparação possível entre

        linguagens de géneros diferentes, tais como a linguagem do poema e a linguagem do filme, as

        artes não crescem e se alimentam sozinhas. Vejamos. Na Divina Comédia, o autor reconhece

        na natureza o domínio soberano e metafísico da semelhança e da analogia. O mundo fantástico

        de Dante reflecte o universo sensível e supra-sensível considerado como uma Obra de Arte.

        Entramos em primeiro, no Abismo, ou Inferno, que corresponde ao mundo da perfeição que foi

        recusada pelo ser humano e este mundo é uma «selva escura...selvagem, aspra e forte». Da

        escuridão, vamos progressivamente para a luz. No Purgatório, que emergiu das águas, dando

        lugar a uma ilha, seguindo a «doce cor de oriental safiro...a bela Aurora...o amanhecer

        vizinho» caminhamos já com alguma luz. Nessa ilha há um monte, que corresponde ao Paraíso

        Terrestre, aí há uma floresta fresca e viva. A montanha encerra os horizontes infinitos da

        liberdade e da luz para os quais as almas tendem. As almas devem tender a alcançar a perfeição,

        porque só assim poderão atingir o Paraíso. Este paraíso encontra-se no limite extremo de dois

        mundos. Em baixo, o mundo da matéria a sublimar-se e, em cima, o mundo puramente

        imaterial cada vez mais vasto e luminoso. Este último é, para Dante, o paraíso da fé cristã. É

        numa espécie de ascensão espiritual por degraus, iluminada pelo amor, que o poeta atravessa
                                                                                                          5
Ana da Palma
simbolicamente os nove céus do sistema de Ptolomeu, para encontrar, em cima, a chama divina

        infinita: o Empireu. O poeta segue uma queda em linha vertical descendente desde o hemisfério

        boreal até ao hemisfério Austral, indo até ao topo do Purgatório, de onde se dirige para as

        profundezas do céu divino. Mas a proposta de Dante é mais vasta, posto que é a síntese de uma

        vida e de um pensamento. Este pensar contempla um canto geral que pretende alcançar a

        perfeição tanto por meio da estrutura formal do texto como pelo uso de uma língua. É assim

        que a Divina Comedia é dividida em três partes, cada parte sendo composta por trinta e três

        cantos e de um número uniforme de versos, havendo um canto introdutório suplementar que

        introduz o número cem, múltiplo de dez, símbolo da perfeição, mas isto não é totalmente

        inocente, tendo em conta a verdadeira proposta de Dante, que se revela revolucionaria na época,

        fundamentalmente, no que concerne a língua. Pois, o metro é em terza rima, vindo do sirventês

        popular e a língua é aquela que nos deu o italiano actual e que foi importante para uma

        unificação política. Dante é guiado principalmente pelo poeta Virgílio e por Beatriz. Por um

        lado, a poesia e por outro lado, além do amor puro, a língua materna representada pela mulher.

        Ambas as partes deste pensamento formulado na Divina Comédia, indicam uma única proposta

        onde a poesia aliada à língua constitui uma ideologia. Uma língua falada, uma língua viva que

        na floresta das línguas 17 se expõe em poesia, como palavra falada, palavra acção. É na Divina


        17
           Verificamos com alguma curiosidade que no que respeita à língua e linguagem tanto os
        poetas, como os filósofos evocam a floresta, a selva ou a árvore. De facto, quando pensamos em
        termos de História da Língua, representamo-la numa árvore, mas parece-me que esta
        representação tem raízes mais profundas que aquela que nos leva à evolução das línguas e às
        suas famílias. Mencionámos, anteriormente, um texto poético de Walter Benjamin, mas este
        encontra-se ligado a um ensaio intitulado: Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem
        humana, onde os problemas levantados por uma teoria da linguagem, a questão da magia da
        linguagem, a linguagem como conhecimento e a complexidade da nomeação são muito mais
        complexos. Contudo, recentrando esta simples nota, desejamos relembrar estas palavras de
        Agamben em torno do pensamento de Dante: «Por isso Dante não buscava, no De Vulgaris
        Eloquentia, esta ou aquela língua materna escolhida na floresta de línguas vernáculas da
                                                                                                          6
Ana da Palma
Comédia que Dante concretiza o que expos em De vulgari Eloquentia, pondo em causa a

        concepção gramatical vigente até então, alertando para uma uniformização ortográfica da

        escrita dos catorze dialectos italianos, dando realce às línguas vulgares e promovendo a língua

        vernácula, sendo o Toscano eleito como língua padrão.

               Quanto à linguagem de Godard, já sabemos que a escolha do cineasta não foi inocente

        para ilustrar estes laços, posto que tal como o realizador refere «o texto invadiu a imagem» 18 e

        isto encontra-se presente de uma forma muito peculiar em todos os seus filmes, onde o leitmotiv

        é quase sempre dado pelas palavras de Arthur Rimbaud: «Je est un autre» 19 , mas também

        pelos imensos fragmentos de textos citados e outras palavras e frases recompostas por meio de

        uma intertextualidade activa, recorrente e imprescindível aos filmes de Godard. Como filme

        remetendo para a memória, Mnemosine 20 sendo mãe da poesia, ecoam vários nomes que no

        fundo estão presentes, não só pelo poder do Nome citado, mas também pelo poder das palavras


        península, mas tão somente aquele vulgar ilustre que, deixando em todas o seu perfume, não
        se confundia com nenhuma(...)» Op.Cit. p. 40.
        18
           Esta afirmação não é comum, posto que o que se evidencia mais frequentemente, na
        contemporaneidade, é precisamente o contrário. É singular um cineasta indicar a importância
        predominante do texto sobre as imagens. Na verdade, ficamos confundidas, não sabendo se se
        refere ao metatexto escrito sobre as imagens, ou ao guião que invade as imagens não as
        deixando ser o que poderiam ser de forma espontânea. Mas esta questão é mais profunda,
        porque remete para uma distância entre ficção e documentário impossível de delinear nestas
        palavras de Godard.
        19
           Arthur Rimbaud. Oeuvres complètes. Paris : Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1992,
        Rimbaud à Paul Demeny, Charleville, 15 mai 1871, p. 250 : « Car Je est un autre. Si le cuivre
        s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute. Cela m’est évident : j’assiste à l’éclosion de ma
        pensée : je la regarde, je l’écoute : je lance un coup d’archet : la symphonie fait son
        remuement dans les profondeurs, ou vient d’un bond sur la scène.». (Sublinhado nosso). Este
        Eu que é Outro enquadra-se em torno de todo um pensamento sobre o artista, mas também sobre
        a nossa relação com o Outro e os outros. Não se trata aqui de um Eu que se descarta das suas
        acções ou responsabilidades, mas um Eu que reconhece a existência, mesmo que confusa, dos
        seus Eus e da existência dos Outros Eus.
        20
           Heidegger em Qu’appelle-t-on penser ? Diz-nos o seguinte: « Menémosyne, la fille de Ciel
        et de Terre, devient, comme fiancée de Zeus, en neuf nuits la Mère des Muses. Jeu et
        Musique, Danse et Poésie appartiennent au sein de Mnémosyne, à la Mémoire.»
                                                                                                            7
Ana da Palma
e das imagens associadas, de que poderíamos dizer simplesmente que se trata de imagem-

        poesia. Apenas relembro aqui as referências às palavras, posto que o que se pretende é ir ao

        encontro da poesia pelas imagens. Toda a poesia é evocada por meio das imagens que surgem

        em campo contracampo, ou em lentos travelling laterais, ou ainda seguindo uma espécie de

        mise em abîme complexa. Hannah Arendt é evocada por meio de uma fotografia fixada na

        parede, mas relembrada através das palavras citadas de Gershom Scholem, dizendo que ela

        parecia a doze sinagogas, aproveitando para relembrar Walter Benjamin. Este, curiosamente, é

        também evocado através do poeta palestiniano Mahmoud Darwich 21 , mas igualmente pela sua

        ligação com Hegel quando uma voz nos diz que a História é sempre a história dos grandes

        vencedores. Notre musique quer-se apenas uma simples história, uma coisa tão simples como a

        poesia do mundo e isto só pode ser possível por meio de uma conversa, mas «pas ume

        conversation simple, mais une simple conversation» dirá a jovem jornalista e estas palavras

        remetem para todos os laços possíveis, não no sentido de fazer a História, mas de perceber as

        histórias e de acolher o Outro. Contudo, sendo uma conversa acaba por atingir a complexidade

        de uma conversa, onde as palavras ecoam umas nas outras e levam-nos, por vezes, por

        caminhos diversos, divergentes ou entrelaçados. Quando Olga nos diz que o verdadeiro

        problema filosófico é o suicídio, encontramo-nos com Albert Camus, mas também com

        questões muito mais prementes que nos transportam para o desespero experienciado por

        indivíduos e por povos inteiros. Algumas palavras de Emanuel Levinas 22 são evocadas no

        início:«On peut envisager la mort de deux façons. L’une comme étant l’impossible du possible,

        l’autre comme le possible de l’impossible» e todos os diálogos acabam por ser como o clamor


        21
           Mahmoud Darwich, poeta palestiniano falecido em 2008, é entrevistado pela jovem jornalista Judith e
        reflecte sobre a palavra poética.
        22
           Emanuel Levinas. Entre nous. Essais sur le penser-à-l’autre. Paris : Grasset, 1991, pp.204-214
                                                                                                                 8
Ana da Palma
das correspondências possíveis, por isso o poema de Baudelaire é recitado por uma voz

        deambulando, pela biblioteca em ruínas de Sarajevo. Juan Goytisolo traz a sua floresta da

        escrita à luz das palavras, quando nos diz que «a luz é o primeiro animal visível do invisível»

        brandindo o direito inalienável das letras em que regressamos à árvore de Benjamim. Homero

        é evocado através do grande poeta palestiniano. Os aforismos poéticos e filosóficos semeados

        ao longo das imagens dão-nos a estranha sensação de estar a ler um livro de imagens poéticas.

        Procuramos ver qualquer coisa ao ler atentamente a Divina Comédia e ao ver lentamente Notre

        Musique, anotando os textos, os movimentos da câmara e os procedimentos semânticos

        complexos do realizador, mas, ao fechar os olhos, re-presentámo-nos o poema de Dante.



                                                            Chercher à voir quelque chose, chercher à se
                                                            représenter quelque chose, dans le premier cas,
                                                            on dit regarder là et dans le second, fermer les
                                                            yeux. Champ et contre-champ. Imaginaire –
                                                            Certitude. Réel – Incertitude.
                                                            (Notre musique)


               É neste sentido que verificámos que havia em ambas as obras uma procura semelhante.

       Esta procura tenta alcançar o conhecimento, a perfeição e o amor por meio da palavra poética. A

       palavra do poeta exposta 23 e é neste sentido que importa reconhecer os laços possíveis que

       podem criar um diálogo entre as duas obras de arte. Estes laços que nos permitem alcançar,

       senão todo o conhecimento, pelo menos uma escassa parte do conhecimento é um ponto de

       partida para pensar o mundo que habitamos. Primeiro, naquilo que chamámos a estrutura

       superficial, onde apenas podemos traçar ponto de encontro. Verificamos a orquestração dos



       23
         Giogio Agamben. A ideia da prosa. Lisboa: Cotovia. 1999. p.39. No capítulo intitulado Ideia do único,
       o autor expõe a palavra poética de Paul Celan e relembra a intenção de Dante no que concerne as línguas
       vernáculas.
                                                                                                                 9
Ana da Palma
tempos em Inferno, Purgatório e Paraíso. No Inferno, não se trata de uma simples imagem,

       apenas uma imagem simples, onde homens saídos das águas, como aqueles que se encontram na

       « ribeira triste do Aqueronte», ouvem a voz e uma mulher dizendo: «Ainsi dans le temps des

       fables, après les inondations et les déluges, il sortit de la terre des hommes armés qui

       s’entretuèrent.» Neste inferno, uma vez atravessadas as águas do Styx, a ficção e o documentário

       aliam-se numa melodia de imagens que se sucedem em tons vermelhos, amarelos e cinzentos.

       São dois mundos que se encontram. O mundo do real e o mundo da ficção, contudo a ficção

       parece sobrepor-se ao real. Neste abismo de Dante e de Godard, o ser humano está mergulhado

       na vida egoísta das suas paixões, quando perde a consciência do ser e é apenas um fragmento

       separado do universo. O percurso até ao Purgatório faz-se paralelamente com a ascensão

       descendente de Dante e a chegada por avião dos poetas a Sarajevo para um encontro literário. Aí

       dá-se a mistura das línguas. Mas não se trata de uma mescla confusa ou caótica, mesmo que, na

       verdade, não se perceba os significados das palavras ditas, ouve-se a música de todas as línguas.

       O intérprete é um dos guias, os outros são mulheres, mais precisamente três mulheres, como as

       três mulheres que acompanham Dante: Lúcia, Maria e Beatriz. O Purgatório é o espaço de

       liberdade onde cada um pode escolher o seu caminho. No Paraíso, uma fresca, frondosa e

       exuberante floresta, o espaço imaterial de Dante e de Godard, onde jovens jogam à bola sem

       bola. Apesar do Paraíso de Notre Musique ser guardado por marines americanos. Naquilo que

       remete para uma estrutura profunda encontramo-nos na floresta da língua e principalmente na

       poesia. Os laços entre um e outro são quase demasiado evidentes, mas o que interessa é

       precisamente realçar e pôr em evidencia as ligações das imagens com os textos, e além disso, a

       melodia da língua, de uma língua, mesmo esta estando fora do campo, remeter por um lado para

       a poesia e por outro lado para uma ideologia, ou uma compreensão do mundo. Não pretendo

                                                                                                           10
Ana da Palma
aqui analisar a ideologia de Godard sobre o mundo e, em particular, os grandes conflitos do

       mundo, mas apenas contemplar uma questão que aponta principalmente para a comunicação

       entre as coisas, todas as coisas. Esta comunicação que me levou a rever Platão em torno da

       educação, mais precisamente a inventar um diálogo que nunca existiu 24 confrontado com as

       práticas actuais e com outros textos paradigmáticos. A educação num mundo em perpétuo devir,

       para utilizar a palavra de Blanchot, exige que o saber possa fornecer todas as ligações úteis,

       ainda longe do hipertexto, mas já muito perto do mesmo, mas uma ligação que possa esclarecer

       e que seja eficaz. Estando num mundo que pré-existe e pós –existe, a existência dos ser humano

       nas intermitências das pequenas mortes requer, não uma ponte para o pensar o mundo, mas,

       sobretudo à maneira de Heidegger, pensar-SE dentro do mundo. A literatura abrangendo todo o

       mundo dos saberes seria a forma mais eficaz, criativa e educativa de pensar-SE no mundo. Isto é

       pensar dentro e para o mundo estando e sendo no mundo. Por isto precisamos de estabelecer as

       Correspondências possíveis.



                                                                  La Nature est un temple où de vivants piliers
                                                                  Laissent parfois sortir de confuses paroles ;
                                                                  L’homme y passe à travers des forêts de
                                                                  symboles
                                                                  Qui l’observent avec des regards familiers.
                                                                  (Correspondances, Baudelaire) 25


                  O lugar de Notre Musique acaba por ser os textos e as imagens evocados que

       correspondem entre eles e nos levam ao percurso de Dante e à Divina Comédia. Além da

       dimensão ideológica, mas que permite re-situar as questões levantadas por Morin, quanto ao

       conhecimento e reconhecimento dos problemas do mundo, a poesia leva-nos sobre os múltiplos

       24
            Trata-se do pequeno texto, no início deste pequeno ensaio, intitulado Prelúdio.
       25
            Charles Baudelaire. Les fleurs du mal. Paris : Éditions Garnier Frères, 1958, p. 14.
                                                                                                                  11
Ana da Palma
caminhos das línguas, das poesias das línguas e da imagem-poema, assim como da História e das

       histórias do mundo. É neste dialogismo que se inscreve a necessidade de uma abordagem das

       artes pela literatura. Isto como ponto de partida para o conhecimento, que é no fundo um nascer

       para o mundo com tanto e tão pouco! Aqui regressamos a Mnemosine e revisitamos Heidegger 26 ,

       porque este pensar fez crescer em nós a louca aliança entre a poesia e a imagem. Posto que as

       imagens se tornaram uma parte importante da memória do mundo, mas, por outro lado, muitas

       imagens parecem contaminá-la de uma forma ensurdecedora, mas também a memória do mundo

       não dispensa as palavras. Retomando Morin e Arendt, entre, respectivamente, os sete saberes 27 e

       a crise da educação 28 , o dialogismo possibilitado pela literatura poderá ser uma das respostas, no

       campo das artes, para as múltiplas questões e problemas da educação. Acreditamos que a

       literatura pode ir ao encontro dos pontos salientados por Edgar Morin no que concerne o

       conhecimento, o erro, a ilusão, o saber o global e inscrevê-lo no local, a identidade complexa e

       comum, a compreensão e a questão da incerteza do real. Godard não é um estranho da

       linguagem, mas neste filme vai muito longe na sua abordagem dos conflitos humanos, remetendo

       contudo sempre para a poesia da língua, i.e., a poesia em si ou seja o texto poético mas também

       para o diálogo que se estabelece entre a ficção e a realidade, certeza e incerteza. Além da

       linguagem poder ser um muro para a comunicação, o elo é o intérprete, aquele que faz a ligação

       entre as coisas, todas as coisas. Cada arte tem a sua linguagem, mas o que podemos verificar é

       que se têm contagiado umas às outras de forma a imprimir uma riqueza infindável, quase

       26
          Martin Heidegger. Qu’appelle-t-on penser ? Paris : Quadrige/PUF, 1992, p. 29,30 :« Mnémosyne, la fille de
       Ciel et de Terre, devient, comme fiancée de Zeus, en neuf nuits la Mère des Muses. Jeu et Musique, Danse
       et Poésie appartiennent au sein de Mnémosyne, à la Mémoire. Il est manifeste que ce mot désigne autre
       chose que la seule faculté, déterminable par la psychologie, de retenir le passé dans la représentation.
       Mémoire pense à ce qui a été pensé. (…) Mémoire est le rassemblement de la pensée fidèle. (…) La pensée
       fidèle à ce qui demande à être pensé est le fond d’où sourd la poésie.»
      27
           Op.Cit.
      28
           Hannah Arendt. La Crise de la Culture. Paris: Gallimard, folio/Essais, 1996, pp.223-252.
                                                                                                                12
Ana da Palma
invisível, ou então tão intrincada, que pode obscurecer o pensamento, deixando rastos de ideias

       difusas e confusas. A linguagem alvo, a linguagem esclarecida ou esclarecedora, a linguagem que

       procura ser um lugar que se habita, tal como para o poeta Edmond Jabés 29 , ou o filósofo Derrida,

       mas também uma linguagem a balbuciar o ser que na contemporaneidade procura o mundo. É um

       balbuciar mais que um soletrar e provavelmente um balbuciar-se, devido à relação profunda

       entre a língua e o estar no mundo tal como Heidegger 30 se propõe a mostrar quando pensa o ser

       em relação ao tempo, parecendo estabelecer que a fenomenologia é o método da ontologia, assim

       sendo, e tal como o autor indica, o logos grego seria como que algo semelhante ao dar a

       conhecer, ou mostrar. Sendo a disposibilidade e o entender co-originais e estes constituindo a

       abertura do ser-ao-mundo, estabeleceram como que um acordo, ou um pacto, que permite a

       aptidão à explicitação e sobretudo a possibilidade de explicitação, que o autor explica como

       sendo a apropriação daquilo que é entendido. Isto seria como que este estar disposto para, ou

       aberto para, faça com que possa haver linguagem, como se fosse a condição de possibilidade da

       linguagem. Na possibilidade da linguagem há a possibilidade de pensar, há a possibilidade de

       dialogar com o Outro e tecer os laços imprescindíveis para um conhecimento do mundo.




                                                                 Nous ne pouvons jamais apprendre, nous
                                                                 modernes surtout, que si du même mouvement
                                                                 nous désapprenons. Pour le cas qui nous
                                                                 occupe, nous ne pouvons apprendre la pensée
                                                                 que si nous désapprenons radicalement son
                                                                 essence traditionnelle. Mais il est pour cela
                                                                 nécessaire que nous fassions en même temps sa
                                                                 connaissance. (Heidegger)



      29
           Autor citado na introdução.
      30
           Martin Heidegger, Être et temps, Paris, Editions Gallimard, 1986, §34.
                                                                                                                 13
Ana da Palma
Foi por estes meandros que chegámos a Dante e à Divina Comédia, pela estrutura em

         tríade: inferno, purgatório e paraíso. O inferno, espaço de imagens onde a poesia flui; o

         purgatório, espaço das línguas misturadas; o paraíso onde jaz o silêncio da poesia do mundo.

         Todo o conhecimento não é estanque e apela, nutre-se, ecoa, revigora-se e cria-se numa teia

         complexa que, hoje em dia, nos submerge e de que temos apenas uma pequena percepção. Aqui

         na terra, nesta realidade que nos assombra, as propostas de Platão ficaram nas gavetas poeirentas

         dos Estados democráticos. A palavra pode ser uma arma muito útil, demasiado útil para o

         comum, simples e mortal cidadão. A palavra poética é precisa, posto que é aquela que permite

         tecer os saberes entre eles, revelar ou imiscuir-se nas imagens do mundo. Será que não interessa

         promover uma educação que nos permita, finalmente, começar a pensar? Será que continuamos

         a rejeitar a perfeição evocada por Dante, assim como nos afastamos daquilo que poderá pensar

         em nós?




                                                                                                             14
Ana da Palma
Referências bibliográficas :

Agamben, Giorgio, Ideia da Prosa, Lisboa : Cotovia, 1999.

Alighieri, Dante, A Divina Comédia, Lisboa: Bertrand Editora, 1997.

Arendt, Hannah, Walter Benjamin 1892-1940, Paris : Editions Allia, 2007.

-----------------, Du mensonge à la violence. Essais de politique contemporaine, éd. Calmann-Lévy, coll.

« Agora/les classiques », 1972.

Baudelaire, Charles, Les Fleurs du mal, Paris : Éditions Garnier Frères, 1958.

Benjamin, Walter, Œuvres I, II, III, Paris : éd. Gallimard, coll. « Folio/essais », 2000.

Blanchot, Maurice, O livro por vir, Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1984.

Deleuze, Gille, Cinéma 2. L’image-temps, Paris : édition Minuit, coll. « Critique », 1985.

Derrida, Jacques, Le Monolinguisme de l’autre, Paris : Édition Galilée, 1996.

Eco, Humberto, Sobre literatura, Lisboa : Difel, 2003.

-----------------, A definição da arte, Lisboa: Edições 70, 2000.

Godard, Jean-Luc, Notre Musique, Paris : collection 2 films/Les Cahiers du Cinéma, 2004.

Jabès, Edmond, Le Seuil. Le Sable, Paris : Éditions Gallimard, 2003.

Journot, Marie-Thérèse, Vocabulário de cinema, Lisboa : Edições 70, 2009.

Levinas, Emmanuel. Entre nous. Essais sur le penser-à-l’autre. Paris : Édition Grasset, 1991.

Heidegger, Martin, Être et temps, Paris :Gallimard, 2007.

----------------------, Acheminement vers la parole, Paris :Tel/Gallimard, 1999.

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Martin, Marcel, Le langage cinématographique, Paris : Les éditions du cerf, 2001.

Merleau-Ponty, Maurice, L’œil et l’esprit, Paris : Gallimard, 2006.

                                                                                                     15
Ana da Palma
Morin, Edgar, Os sete saberes para a educação do futuro, Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

Platão, A República & Politeia, Lisboa: Guimarães Editores, 2005.

Read, Herbert, Educação pela arte, Lisboa: Edições 70, 2007.

Richir, Marc, Fragments phénoménologiques sur le langage, Grenoble : Éditions Jérôme Million, 2008.

Rimbaud, Arthur, Poésies complètes. Paris : Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade : 1992.

Sites consultados sobre Notre Musique :

http://fr.wikipedia.org/wiki/Notre_musique
 (Consultado Maio 2009)
http://www.cineclubdecaen.com/realisat/godard/notremusique.htm
(Consultado Maio 2009)
http://www.panorama-cinema.com/html/critiques/notremusique.htm
(Consultado Maio 2009)
http://cinema.fluctuat.net/films/notre-musique/884-chronique-no-pasaran.html
(Consultado Maio 2009)
http://www.cahiersducinema.com/site/article398.html
(Consultado Maio 2009)
http://remue.net/spip.php?article957
(Consultado Maio 2009)

Sites consultados sobre Mahmoud Darwich:

http://www.mahmouddarwish.com/english/index.htm
(Consultado Junho 2009)
http://fr.wikipedia.org/wiki/Mahmoud_Darwich
(Consultado Junho 2009)
http://mahmoud-darwich.chez-alice.fr/accueil.html
(Consultado Junho 2009)
http://www.jerusalemites.org/book&film/film17.htm
(Consultado Junho 2009)




                                                                                                      16
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  • 1. Universidade Aberta Mestrado em Arte e Educação Filosofia das Artes e da Cultura Docentes: José Arêdes António Teixeira Campo - contracampo: Uma breve reflexão. Podemos começar a pensar as possibilidades do dialogismo na educação pela arte? Um exemplo: Notre Musique e a Divina Comédia. Ana da Palma 29 de Junho de 2009
  • 2. Prelúdio Houve um dia, um fim de tarde cinzenta de Verão, carregada de cúmulos-nimbos, em Atenas, em que Platão, após uma longa conversa com Gláucon, conversa esta que nunca chegou a ser registada na República, escreveu que «convinha incluir os poetas na República e que apesar de serem seres alados, sagrados, inspirados pelos deuses, afinal não deviam ser expulsos da Cidade Perfeita. Mesmo que suscitassem sentimentos dúbios e imperfeitos, participavam na visão do mundo e contribuíam para o verdadeiro equilíbrio de todas as coisas, portanto deviam permanecer ao lado dos filósofos, trazendo o seu pensamento para dirigir a Cidade» 1 . Foi assim que, durante uns tempos, tudo mudou e que foi, singularmente, possível «começar a pensar». Foi assim que os filósofos se esqueceram de reescrever a poesia do mundo, posto que ela fazia parte do sistema, fazia parte integrante da própria vida de todos os cidadãos. A educação ficou entregue aos Poetas. Nesse outro tempo, Heidegger nunca pensou no capítulo 34, intitulado Da-sein et parole. La langue 2 , nem percorreu os caminhos da linguagem 3 de forma tão perfeita, nem reflectiu sobre Hölderlin 4 , Benjamin 5 nunca viu numa árvore as raízes da linguagem 6 , e Derrida 7 nunca conheceu o seu monolínguismo, já que nunca fora do Outro e que sempre fora seu sem palavras. Mas, esse dia foi outro tempo e outro dia na Cidade Perfeita. Curiosamente, os registos perderam-se. Reza a lenda que foram espalhados pelo Bóreas num momento de fúria amorosa. 1 Fonte minha, desconhecida e incerta. 2 Martin Heidegger. Être et temps. Paris : Éditions Gallimard, 1986, pp.207-213. 3 Martin Heidegger. Acheminement vers la parole. Paris : Éditions Gallimard, 1999. 4 Martin Heidegger. Les hymnes de Hölderlin : la Germanie et le Rhin. Paris : Éditions Gallimard, 1988. 5 Walter Benjamin. Œuvres I. Paris : Éditions Gallimard, coll. « Folio/essais », 2000. 6 Walter Benjamin. Œuvres II. Paris : Éditions Gallimard, coll. « Folio/essais », 2000, p. 350 :« A árvore e a linguagem. Subia um talude e recostava-me debaixo de uma árvore. Era um choupo ou um álamo. Por que razão não me lembro da espécie? Porque enquanto contemplava a sua folhagem e seguia os seus movimentos, de súbito a árvore apoderou-se da linguagem em mim, de forma que mais uma vez cumpriu-se na minha presença o rito antigo da aliança da árvore e da linguagem. Os ramos junto do cume ponderavam o pró e o contra, ou ainda declinavam com altivez; os raminhos não escondiam a sua inclinação e extrema inacessibilidade; a folhagem, com a áspera carícia de uma corrente de ar, arrepiava-se, estremecia com todas as folhas ou arqueava-se, o tronco instalava-se nas suas posições e uma folha ficava à sombra de outra. Um vento ligeiro tocava um ar nupcial e de seguida, com palavras de imagens, dispersou aos quatro cantos do mundo os rebentos nascidos desta união.» (Tradução minha) 7 Jacques Derrida. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996. 2 Ana da Palma
  • 3. Quem nunca alcançou, como num sonho, esta substância lenhosa da língua, a que os antigos chamavam silva (floresta), ainda que se cale, está prisioneiro das representações. (Ideia da matéria. Giorgio Agamben. 8 ) Este breve ensaio pretende apenas reflectir sobre alguns pontos que nos parecem relevantes no que concerne a educação e a reforma do pensamento apontada por Edgar Morin9 . Pensamos que neste processo, que poderá fazer com que possamos «começar a pensar» 10 , é necessário reflectir sobre a pertinência de um possível dialogismo entre as artes. Sendo este assunto vasto e riquíssimo, optámos por evidenciar apenas um aspecto relevante. Tratando-se do dialogismo entre obras de géneros distintos, mas ambas remetendo para a poesia, optámos por enquadrá-lo em termos de linguagem cinematográfica, i.e., no campo-contracampo 11 , mas tal como Pasolini evoca no seu filme Teorema, também nós estamos «assombrados por uma questão a que não podemos responder» 12 e esta questão mais profunda evoca as tentativas esboçadas pela transversalidade, iremos apenas tentar abordá-la por meio da poesia. Assim, pretendemos esboçar um pensar do dialogismo entre a literatura e as imagens envolvendo uma proposta educativa ainda 8 Giorgio Agamben. Ideia da prosa. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 29. 9 Edgar Morin. Os sete saberes para a educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 39: « Para articular e organizar os conhecimentos e assim reconhecer e conhecer os problemas do mundo é necessário uma reforma do pensamento.» 10 Martin Heidegger. Qu’appelle-t-on penser? Paris : Quadrige/PUF, 1992 11 Esta escolha resulta de uma preocupação de prudência no sentido de ir ao encontro do tema apresentado, mas focando num aspecto em particular que remete para o dialogismo. Para este efeito transcrevemos a definição de contracampo: «Figura de planificação que faz suceder ao campo o campo especialmente oposto. A montagem em campo-contracampo é geralmente utilizada para filmar uma conversa: vemos sucessivamente de frente um interlocutor e depois o outro. Tradicionalmente, a câmara não deve transpor a linha imaginária que junta as personagens, para que os olhares dêem a sensação de se cruzar.» In Marie-Thérèse Journot. Vocabulário de cinema. Lisboa: Edições 70, 2009, p.34. 12 Citado In Gille Deleuze. Cinema 2. L’image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985, p. 228: «Je suis hanté par une question à laquelle je ne puis répondre». 3 Ana da Palma
  • 4. por vir. Seguindo as sábias indicações de Umberto Eco 13 , apesar de não concordarmos totalmente com alguns aspectos levantados no capítulo intitulado «Cinema e literatura: a estrutura do enredo», principalmente no que concerne as analogias e a interpretação, assunto ao qual não nos vamos dedicar por enquanto, também não queremos nos aventurar por caminhos impressionistas, nem recorrer ao «uso empírico da metáfora» para imprimir um «valor literal». Portanto, num primeiro momento, iremos esboçar uma análise orientada para as questões da linguagem em ambos os géneros, considerando, por um lado, a proposta subjacente ao texto de Dante e, por outro lado, o trabalho de Godard. Depois, dedicar-nos-emos aos laços que são possíveis e que se podem tecer entre a Divina Comédia 14 de Dante e o filme intitulado Notre Musique 15 de Godard, contemplando a homologia da estrutura e evidenciando dois aspectos, primeiro, uma estrutura superficial e, depois, uma estrutura profunda. Finalmente, debruçar-nos-emos mais precisamente sobre o diálogo possível como ponto de partida para propostas direccionadas para uma educação pela arte, mas contemplando um verdadeiro dialogismo. Isto no intuito futuro de procurar os fundamentos para uma possível abordagem das línguas e literaturas pelas outras artes. Posto isto, o dizer da poesia é como aquela mão do poeta 16 estendida sobre o mar que nunca alcança a palavra e se começarmos a falar a sua palavra ecoa como as imagens ficam presas na retina da nossa memória. 13 Umberto Eco. A definição da arte. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 191: «Voltando agora às relações entre cinema e narrativa, creio que entre os dois géneros artísticos se pode, pelo menos, assinalar uma espécie de homologia estrutural com base na qual se possa prosseguir; é que ambas são artes da acção». 14 Dante Alighieri. A divina Comédia. Lisboa : Bertrand Editora, 1997. 15 Jean-Luc Godard. Notre Musique. Paris : Les Cahiers du Cinéma, 2004. 16 Edmond Jabès. Le Seuil. Le Sable, Paris, Éditions Gallimard, 2003, p.203: «JE VOUS ÉCRIS D’UN PAYS PESANT :Aussi belle que la main de l’aimée/sur la mer./Aussi seule./J´écris pour vous. La douleur est un coquillage. On y écoute perler le coeur./J’écris pour vous, au seuil de l’idylle, pour la plante aux feuilles d’eau, aux épines de flammes, pour la rose d’amour. /J’écris pour rien, pour les mots luisants que trace ma mort, pour l’instant de vie éternellement dû./Aussi belle que la main de l’aimée/sur le signe./Aussi seule.(…)» 4 Ana da Palma
  • 5. «Comment puis-je commencer à parler… si vous ne m’entendez pas ?» (Notre Musique) Se começamos por pensar na linguagem é precisamente porque, por um lado toda linguagem é comunicação de algo e, por outro lado, porque ambas as obras contemplam uma forma de expressão particular: a poesia. Apesar de não haver comparação possível entre linguagens de géneros diferentes, tais como a linguagem do poema e a linguagem do filme, as artes não crescem e se alimentam sozinhas. Vejamos. Na Divina Comédia, o autor reconhece na natureza o domínio soberano e metafísico da semelhança e da analogia. O mundo fantástico de Dante reflecte o universo sensível e supra-sensível considerado como uma Obra de Arte. Entramos em primeiro, no Abismo, ou Inferno, que corresponde ao mundo da perfeição que foi recusada pelo ser humano e este mundo é uma «selva escura...selvagem, aspra e forte». Da escuridão, vamos progressivamente para a luz. No Purgatório, que emergiu das águas, dando lugar a uma ilha, seguindo a «doce cor de oriental safiro...a bela Aurora...o amanhecer vizinho» caminhamos já com alguma luz. Nessa ilha há um monte, que corresponde ao Paraíso Terrestre, aí há uma floresta fresca e viva. A montanha encerra os horizontes infinitos da liberdade e da luz para os quais as almas tendem. As almas devem tender a alcançar a perfeição, porque só assim poderão atingir o Paraíso. Este paraíso encontra-se no limite extremo de dois mundos. Em baixo, o mundo da matéria a sublimar-se e, em cima, o mundo puramente imaterial cada vez mais vasto e luminoso. Este último é, para Dante, o paraíso da fé cristã. É numa espécie de ascensão espiritual por degraus, iluminada pelo amor, que o poeta atravessa 5 Ana da Palma
  • 6. simbolicamente os nove céus do sistema de Ptolomeu, para encontrar, em cima, a chama divina infinita: o Empireu. O poeta segue uma queda em linha vertical descendente desde o hemisfério boreal até ao hemisfério Austral, indo até ao topo do Purgatório, de onde se dirige para as profundezas do céu divino. Mas a proposta de Dante é mais vasta, posto que é a síntese de uma vida e de um pensamento. Este pensar contempla um canto geral que pretende alcançar a perfeição tanto por meio da estrutura formal do texto como pelo uso de uma língua. É assim que a Divina Comedia é dividida em três partes, cada parte sendo composta por trinta e três cantos e de um número uniforme de versos, havendo um canto introdutório suplementar que introduz o número cem, múltiplo de dez, símbolo da perfeição, mas isto não é totalmente inocente, tendo em conta a verdadeira proposta de Dante, que se revela revolucionaria na época, fundamentalmente, no que concerne a língua. Pois, o metro é em terza rima, vindo do sirventês popular e a língua é aquela que nos deu o italiano actual e que foi importante para uma unificação política. Dante é guiado principalmente pelo poeta Virgílio e por Beatriz. Por um lado, a poesia e por outro lado, além do amor puro, a língua materna representada pela mulher. Ambas as partes deste pensamento formulado na Divina Comédia, indicam uma única proposta onde a poesia aliada à língua constitui uma ideologia. Uma língua falada, uma língua viva que na floresta das línguas 17 se expõe em poesia, como palavra falada, palavra acção. É na Divina 17 Verificamos com alguma curiosidade que no que respeita à língua e linguagem tanto os poetas, como os filósofos evocam a floresta, a selva ou a árvore. De facto, quando pensamos em termos de História da Língua, representamo-la numa árvore, mas parece-me que esta representação tem raízes mais profundas que aquela que nos leva à evolução das línguas e às suas famílias. Mencionámos, anteriormente, um texto poético de Walter Benjamin, mas este encontra-se ligado a um ensaio intitulado: Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana, onde os problemas levantados por uma teoria da linguagem, a questão da magia da linguagem, a linguagem como conhecimento e a complexidade da nomeação são muito mais complexos. Contudo, recentrando esta simples nota, desejamos relembrar estas palavras de Agamben em torno do pensamento de Dante: «Por isso Dante não buscava, no De Vulgaris Eloquentia, esta ou aquela língua materna escolhida na floresta de línguas vernáculas da 6 Ana da Palma
  • 7. Comédia que Dante concretiza o que expos em De vulgari Eloquentia, pondo em causa a concepção gramatical vigente até então, alertando para uma uniformização ortográfica da escrita dos catorze dialectos italianos, dando realce às línguas vulgares e promovendo a língua vernácula, sendo o Toscano eleito como língua padrão. Quanto à linguagem de Godard, já sabemos que a escolha do cineasta não foi inocente para ilustrar estes laços, posto que tal como o realizador refere «o texto invadiu a imagem» 18 e isto encontra-se presente de uma forma muito peculiar em todos os seus filmes, onde o leitmotiv é quase sempre dado pelas palavras de Arthur Rimbaud: «Je est un autre» 19 , mas também pelos imensos fragmentos de textos citados e outras palavras e frases recompostas por meio de uma intertextualidade activa, recorrente e imprescindível aos filmes de Godard. Como filme remetendo para a memória, Mnemosine 20 sendo mãe da poesia, ecoam vários nomes que no fundo estão presentes, não só pelo poder do Nome citado, mas também pelo poder das palavras península, mas tão somente aquele vulgar ilustre que, deixando em todas o seu perfume, não se confundia com nenhuma(...)» Op.Cit. p. 40. 18 Esta afirmação não é comum, posto que o que se evidencia mais frequentemente, na contemporaneidade, é precisamente o contrário. É singular um cineasta indicar a importância predominante do texto sobre as imagens. Na verdade, ficamos confundidas, não sabendo se se refere ao metatexto escrito sobre as imagens, ou ao guião que invade as imagens não as deixando ser o que poderiam ser de forma espontânea. Mas esta questão é mais profunda, porque remete para uma distância entre ficção e documentário impossível de delinear nestas palavras de Godard. 19 Arthur Rimbaud. Oeuvres complètes. Paris : Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1992, Rimbaud à Paul Demeny, Charleville, 15 mai 1871, p. 250 : « Car Je est un autre. Si le cuivre s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute. Cela m’est évident : j’assiste à l’éclosion de ma pensée : je la regarde, je l’écoute : je lance un coup d’archet : la symphonie fait son remuement dans les profondeurs, ou vient d’un bond sur la scène.». (Sublinhado nosso). Este Eu que é Outro enquadra-se em torno de todo um pensamento sobre o artista, mas também sobre a nossa relação com o Outro e os outros. Não se trata aqui de um Eu que se descarta das suas acções ou responsabilidades, mas um Eu que reconhece a existência, mesmo que confusa, dos seus Eus e da existência dos Outros Eus. 20 Heidegger em Qu’appelle-t-on penser ? Diz-nos o seguinte: « Menémosyne, la fille de Ciel et de Terre, devient, comme fiancée de Zeus, en neuf nuits la Mère des Muses. Jeu et Musique, Danse et Poésie appartiennent au sein de Mnémosyne, à la Mémoire.» 7 Ana da Palma
  • 8. e das imagens associadas, de que poderíamos dizer simplesmente que se trata de imagem- poesia. Apenas relembro aqui as referências às palavras, posto que o que se pretende é ir ao encontro da poesia pelas imagens. Toda a poesia é evocada por meio das imagens que surgem em campo contracampo, ou em lentos travelling laterais, ou ainda seguindo uma espécie de mise em abîme complexa. Hannah Arendt é evocada por meio de uma fotografia fixada na parede, mas relembrada através das palavras citadas de Gershom Scholem, dizendo que ela parecia a doze sinagogas, aproveitando para relembrar Walter Benjamin. Este, curiosamente, é também evocado através do poeta palestiniano Mahmoud Darwich 21 , mas igualmente pela sua ligação com Hegel quando uma voz nos diz que a História é sempre a história dos grandes vencedores. Notre musique quer-se apenas uma simples história, uma coisa tão simples como a poesia do mundo e isto só pode ser possível por meio de uma conversa, mas «pas ume conversation simple, mais une simple conversation» dirá a jovem jornalista e estas palavras remetem para todos os laços possíveis, não no sentido de fazer a História, mas de perceber as histórias e de acolher o Outro. Contudo, sendo uma conversa acaba por atingir a complexidade de uma conversa, onde as palavras ecoam umas nas outras e levam-nos, por vezes, por caminhos diversos, divergentes ou entrelaçados. Quando Olga nos diz que o verdadeiro problema filosófico é o suicídio, encontramo-nos com Albert Camus, mas também com questões muito mais prementes que nos transportam para o desespero experienciado por indivíduos e por povos inteiros. Algumas palavras de Emanuel Levinas 22 são evocadas no início:«On peut envisager la mort de deux façons. L’une comme étant l’impossible du possible, l’autre comme le possible de l’impossible» e todos os diálogos acabam por ser como o clamor 21 Mahmoud Darwich, poeta palestiniano falecido em 2008, é entrevistado pela jovem jornalista Judith e reflecte sobre a palavra poética. 22 Emanuel Levinas. Entre nous. Essais sur le penser-à-l’autre. Paris : Grasset, 1991, pp.204-214 8 Ana da Palma
  • 9. das correspondências possíveis, por isso o poema de Baudelaire é recitado por uma voz deambulando, pela biblioteca em ruínas de Sarajevo. Juan Goytisolo traz a sua floresta da escrita à luz das palavras, quando nos diz que «a luz é o primeiro animal visível do invisível» brandindo o direito inalienável das letras em que regressamos à árvore de Benjamim. Homero é evocado através do grande poeta palestiniano. Os aforismos poéticos e filosóficos semeados ao longo das imagens dão-nos a estranha sensação de estar a ler um livro de imagens poéticas. Procuramos ver qualquer coisa ao ler atentamente a Divina Comédia e ao ver lentamente Notre Musique, anotando os textos, os movimentos da câmara e os procedimentos semânticos complexos do realizador, mas, ao fechar os olhos, re-presentámo-nos o poema de Dante. Chercher à voir quelque chose, chercher à se représenter quelque chose, dans le premier cas, on dit regarder là et dans le second, fermer les yeux. Champ et contre-champ. Imaginaire – Certitude. Réel – Incertitude. (Notre musique) É neste sentido que verificámos que havia em ambas as obras uma procura semelhante. Esta procura tenta alcançar o conhecimento, a perfeição e o amor por meio da palavra poética. A palavra do poeta exposta 23 e é neste sentido que importa reconhecer os laços possíveis que podem criar um diálogo entre as duas obras de arte. Estes laços que nos permitem alcançar, senão todo o conhecimento, pelo menos uma escassa parte do conhecimento é um ponto de partida para pensar o mundo que habitamos. Primeiro, naquilo que chamámos a estrutura superficial, onde apenas podemos traçar ponto de encontro. Verificamos a orquestração dos 23 Giogio Agamben. A ideia da prosa. Lisboa: Cotovia. 1999. p.39. No capítulo intitulado Ideia do único, o autor expõe a palavra poética de Paul Celan e relembra a intenção de Dante no que concerne as línguas vernáculas. 9 Ana da Palma
  • 10. tempos em Inferno, Purgatório e Paraíso. No Inferno, não se trata de uma simples imagem, apenas uma imagem simples, onde homens saídos das águas, como aqueles que se encontram na « ribeira triste do Aqueronte», ouvem a voz e uma mulher dizendo: «Ainsi dans le temps des fables, après les inondations et les déluges, il sortit de la terre des hommes armés qui s’entretuèrent.» Neste inferno, uma vez atravessadas as águas do Styx, a ficção e o documentário aliam-se numa melodia de imagens que se sucedem em tons vermelhos, amarelos e cinzentos. São dois mundos que se encontram. O mundo do real e o mundo da ficção, contudo a ficção parece sobrepor-se ao real. Neste abismo de Dante e de Godard, o ser humano está mergulhado na vida egoísta das suas paixões, quando perde a consciência do ser e é apenas um fragmento separado do universo. O percurso até ao Purgatório faz-se paralelamente com a ascensão descendente de Dante e a chegada por avião dos poetas a Sarajevo para um encontro literário. Aí dá-se a mistura das línguas. Mas não se trata de uma mescla confusa ou caótica, mesmo que, na verdade, não se perceba os significados das palavras ditas, ouve-se a música de todas as línguas. O intérprete é um dos guias, os outros são mulheres, mais precisamente três mulheres, como as três mulheres que acompanham Dante: Lúcia, Maria e Beatriz. O Purgatório é o espaço de liberdade onde cada um pode escolher o seu caminho. No Paraíso, uma fresca, frondosa e exuberante floresta, o espaço imaterial de Dante e de Godard, onde jovens jogam à bola sem bola. Apesar do Paraíso de Notre Musique ser guardado por marines americanos. Naquilo que remete para uma estrutura profunda encontramo-nos na floresta da língua e principalmente na poesia. Os laços entre um e outro são quase demasiado evidentes, mas o que interessa é precisamente realçar e pôr em evidencia as ligações das imagens com os textos, e além disso, a melodia da língua, de uma língua, mesmo esta estando fora do campo, remeter por um lado para a poesia e por outro lado para uma ideologia, ou uma compreensão do mundo. Não pretendo 10 Ana da Palma
  • 11. aqui analisar a ideologia de Godard sobre o mundo e, em particular, os grandes conflitos do mundo, mas apenas contemplar uma questão que aponta principalmente para a comunicação entre as coisas, todas as coisas. Esta comunicação que me levou a rever Platão em torno da educação, mais precisamente a inventar um diálogo que nunca existiu 24 confrontado com as práticas actuais e com outros textos paradigmáticos. A educação num mundo em perpétuo devir, para utilizar a palavra de Blanchot, exige que o saber possa fornecer todas as ligações úteis, ainda longe do hipertexto, mas já muito perto do mesmo, mas uma ligação que possa esclarecer e que seja eficaz. Estando num mundo que pré-existe e pós –existe, a existência dos ser humano nas intermitências das pequenas mortes requer, não uma ponte para o pensar o mundo, mas, sobretudo à maneira de Heidegger, pensar-SE dentro do mundo. A literatura abrangendo todo o mundo dos saberes seria a forma mais eficaz, criativa e educativa de pensar-SE no mundo. Isto é pensar dentro e para o mundo estando e sendo no mundo. Por isto precisamos de estabelecer as Correspondências possíveis. La Nature est un temple où de vivants piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles ; L’homme y passe à travers des forêts de symboles Qui l’observent avec des regards familiers. (Correspondances, Baudelaire) 25 O lugar de Notre Musique acaba por ser os textos e as imagens evocados que correspondem entre eles e nos levam ao percurso de Dante e à Divina Comédia. Além da dimensão ideológica, mas que permite re-situar as questões levantadas por Morin, quanto ao conhecimento e reconhecimento dos problemas do mundo, a poesia leva-nos sobre os múltiplos 24 Trata-se do pequeno texto, no início deste pequeno ensaio, intitulado Prelúdio. 25 Charles Baudelaire. Les fleurs du mal. Paris : Éditions Garnier Frères, 1958, p. 14. 11 Ana da Palma
  • 12. caminhos das línguas, das poesias das línguas e da imagem-poema, assim como da História e das histórias do mundo. É neste dialogismo que se inscreve a necessidade de uma abordagem das artes pela literatura. Isto como ponto de partida para o conhecimento, que é no fundo um nascer para o mundo com tanto e tão pouco! Aqui regressamos a Mnemosine e revisitamos Heidegger 26 , porque este pensar fez crescer em nós a louca aliança entre a poesia e a imagem. Posto que as imagens se tornaram uma parte importante da memória do mundo, mas, por outro lado, muitas imagens parecem contaminá-la de uma forma ensurdecedora, mas também a memória do mundo não dispensa as palavras. Retomando Morin e Arendt, entre, respectivamente, os sete saberes 27 e a crise da educação 28 , o dialogismo possibilitado pela literatura poderá ser uma das respostas, no campo das artes, para as múltiplas questões e problemas da educação. Acreditamos que a literatura pode ir ao encontro dos pontos salientados por Edgar Morin no que concerne o conhecimento, o erro, a ilusão, o saber o global e inscrevê-lo no local, a identidade complexa e comum, a compreensão e a questão da incerteza do real. Godard não é um estranho da linguagem, mas neste filme vai muito longe na sua abordagem dos conflitos humanos, remetendo contudo sempre para a poesia da língua, i.e., a poesia em si ou seja o texto poético mas também para o diálogo que se estabelece entre a ficção e a realidade, certeza e incerteza. Além da linguagem poder ser um muro para a comunicação, o elo é o intérprete, aquele que faz a ligação entre as coisas, todas as coisas. Cada arte tem a sua linguagem, mas o que podemos verificar é que se têm contagiado umas às outras de forma a imprimir uma riqueza infindável, quase 26 Martin Heidegger. Qu’appelle-t-on penser ? Paris : Quadrige/PUF, 1992, p. 29,30 :« Mnémosyne, la fille de Ciel et de Terre, devient, comme fiancée de Zeus, en neuf nuits la Mère des Muses. Jeu et Musique, Danse et Poésie appartiennent au sein de Mnémosyne, à la Mémoire. Il est manifeste que ce mot désigne autre chose que la seule faculté, déterminable par la psychologie, de retenir le passé dans la représentation. Mémoire pense à ce qui a été pensé. (…) Mémoire est le rassemblement de la pensée fidèle. (…) La pensée fidèle à ce qui demande à être pensé est le fond d’où sourd la poésie.» 27 Op.Cit. 28 Hannah Arendt. La Crise de la Culture. Paris: Gallimard, folio/Essais, 1996, pp.223-252. 12 Ana da Palma
  • 13. invisível, ou então tão intrincada, que pode obscurecer o pensamento, deixando rastos de ideias difusas e confusas. A linguagem alvo, a linguagem esclarecida ou esclarecedora, a linguagem que procura ser um lugar que se habita, tal como para o poeta Edmond Jabés 29 , ou o filósofo Derrida, mas também uma linguagem a balbuciar o ser que na contemporaneidade procura o mundo. É um balbuciar mais que um soletrar e provavelmente um balbuciar-se, devido à relação profunda entre a língua e o estar no mundo tal como Heidegger 30 se propõe a mostrar quando pensa o ser em relação ao tempo, parecendo estabelecer que a fenomenologia é o método da ontologia, assim sendo, e tal como o autor indica, o logos grego seria como que algo semelhante ao dar a conhecer, ou mostrar. Sendo a disposibilidade e o entender co-originais e estes constituindo a abertura do ser-ao-mundo, estabeleceram como que um acordo, ou um pacto, que permite a aptidão à explicitação e sobretudo a possibilidade de explicitação, que o autor explica como sendo a apropriação daquilo que é entendido. Isto seria como que este estar disposto para, ou aberto para, faça com que possa haver linguagem, como se fosse a condição de possibilidade da linguagem. Na possibilidade da linguagem há a possibilidade de pensar, há a possibilidade de dialogar com o Outro e tecer os laços imprescindíveis para um conhecimento do mundo. Nous ne pouvons jamais apprendre, nous modernes surtout, que si du même mouvement nous désapprenons. Pour le cas qui nous occupe, nous ne pouvons apprendre la pensée que si nous désapprenons radicalement son essence traditionnelle. Mais il est pour cela nécessaire que nous fassions en même temps sa connaissance. (Heidegger) 29 Autor citado na introdução. 30 Martin Heidegger, Être et temps, Paris, Editions Gallimard, 1986, §34. 13 Ana da Palma
  • 14. Foi por estes meandros que chegámos a Dante e à Divina Comédia, pela estrutura em tríade: inferno, purgatório e paraíso. O inferno, espaço de imagens onde a poesia flui; o purgatório, espaço das línguas misturadas; o paraíso onde jaz o silêncio da poesia do mundo. Todo o conhecimento não é estanque e apela, nutre-se, ecoa, revigora-se e cria-se numa teia complexa que, hoje em dia, nos submerge e de que temos apenas uma pequena percepção. Aqui na terra, nesta realidade que nos assombra, as propostas de Platão ficaram nas gavetas poeirentas dos Estados democráticos. A palavra pode ser uma arma muito útil, demasiado útil para o comum, simples e mortal cidadão. A palavra poética é precisa, posto que é aquela que permite tecer os saberes entre eles, revelar ou imiscuir-se nas imagens do mundo. Será que não interessa promover uma educação que nos permita, finalmente, começar a pensar? Será que continuamos a rejeitar a perfeição evocada por Dante, assim como nos afastamos daquilo que poderá pensar em nós? 14 Ana da Palma
  • 15. Referências bibliográficas : Agamben, Giorgio, Ideia da Prosa, Lisboa : Cotovia, 1999. Alighieri, Dante, A Divina Comédia, Lisboa: Bertrand Editora, 1997. Arendt, Hannah, Walter Benjamin 1892-1940, Paris : Editions Allia, 2007. -----------------, Du mensonge à la violence. Essais de politique contemporaine, éd. Calmann-Lévy, coll. « Agora/les classiques », 1972. Baudelaire, Charles, Les Fleurs du mal, Paris : Éditions Garnier Frères, 1958. Benjamin, Walter, Œuvres I, II, III, Paris : éd. Gallimard, coll. « Folio/essais », 2000. Blanchot, Maurice, O livro por vir, Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1984. Deleuze, Gille, Cinéma 2. L’image-temps, Paris : édition Minuit, coll. « Critique », 1985. Derrida, Jacques, Le Monolinguisme de l’autre, Paris : Édition Galilée, 1996. Eco, Humberto, Sobre literatura, Lisboa : Difel, 2003. -----------------, A definição da arte, Lisboa: Edições 70, 2000. Godard, Jean-Luc, Notre Musique, Paris : collection 2 films/Les Cahiers du Cinéma, 2004. Jabès, Edmond, Le Seuil. Le Sable, Paris : Éditions Gallimard, 2003. Journot, Marie-Thérèse, Vocabulário de cinema, Lisboa : Edições 70, 2009. Levinas, Emmanuel. Entre nous. Essais sur le penser-à-l’autre. Paris : Édition Grasset, 1991. Heidegger, Martin, Être et temps, Paris :Gallimard, 2007. ----------------------, Acheminement vers la parole, Paris :Tel/Gallimard, 1999. ----------------------, Qu’appelle-t-on penser? Paris: Quadrige/PUF, 1992. Martin, Marcel, Le langage cinématographique, Paris : Les éditions du cerf, 2001. Merleau-Ponty, Maurice, L’œil et l’esprit, Paris : Gallimard, 2006. 15 Ana da Palma
  • 16. Morin, Edgar, Os sete saberes para a educação do futuro, Lisboa: Instituto Piaget, 2002. Platão, A República & Politeia, Lisboa: Guimarães Editores, 2005. Read, Herbert, Educação pela arte, Lisboa: Edições 70, 2007. Richir, Marc, Fragments phénoménologiques sur le langage, Grenoble : Éditions Jérôme Million, 2008. Rimbaud, Arthur, Poésies complètes. Paris : Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade : 1992. Sites consultados sobre Notre Musique : http://fr.wikipedia.org/wiki/Notre_musique (Consultado Maio 2009) http://www.cineclubdecaen.com/realisat/godard/notremusique.htm (Consultado Maio 2009) http://www.panorama-cinema.com/html/critiques/notremusique.htm (Consultado Maio 2009) http://cinema.fluctuat.net/films/notre-musique/884-chronique-no-pasaran.html (Consultado Maio 2009) http://www.cahiersducinema.com/site/article398.html (Consultado Maio 2009) http://remue.net/spip.php?article957 (Consultado Maio 2009) Sites consultados sobre Mahmoud Darwich: http://www.mahmouddarwish.com/english/index.htm (Consultado Junho 2009) http://fr.wikipedia.org/wiki/Mahmoud_Darwich (Consultado Junho 2009) http://mahmoud-darwich.chez-alice.fr/accueil.html (Consultado Junho 2009) http://www.jerusalemites.org/book&film/film17.htm (Consultado Junho 2009) 16 Ana da Palma