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ARTUR ÂNGELO BARRACOSA MENDONÇA




          Praça da Constituição em Tavira (fins séc. XIX)


  A Revolta das Medidas em Tavira (1872):
subsídios para história da implementação do
       sistema decimal em Portugal




          VI JORNADAS DE HISTÓRIA DE TAVIRA
                      4 DE NOVEMBRO 2006
A Revolta das Medidas em Tavira (1872): subsídios para história da
                       implementação do sistema decimal em Portugal


                                                               Artur Ângelo Barracosa Mendonça


      A) O contexto político, económico e cultural da época
      Durante o ano de 1872, Portugal vive sob o impacto dos acontecimentos
internacionais como os ecos da Comuna de Paris, a revolução republicana espanhola ou
acontecimentos nacionais como o primeiro surto de greves operárias em Lisboa, a
realização de um conjunto de reuniões anticlericais no Porto, o malogro da tentativa
revolucionária denominada A Pavorosa, que conduziu à prisão o marquês de Angeja,
Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão iniciam a publicação de As Farpas, Oliveira Martins
publica Teoria do Socialismo, surge o jornal O Pensamento Social e Teófilo Braga
lança a obra Teoria da História Literária. Alguns destes acontecimentos e, em
particular, a Comuna da Paris, despertaram “um interesse que a política interna viciada
pelo jornalismo apagara de todo dos espíritos”1 como o reconheceu Teófilo Braga.
          No Algarve estes acontecimentos vivem-se com relativo distanciamento. A
imprensa local era quase inexistente e a de carácter nacional era difundida com atraso.
O telégrafo era o meio mais utilizado para difundir as notícias. Estas sofriam o efeito
nefasto da transformação em boato, que era muito frequente e regular ao tempo. A
dificuldade de comunicação com a região dificultava a propagação do impacto dos
acontecimentos. Seria nos meios urbanos, com mais acesso aos jornais, com população
mais alfabetizada que faria algum sentido falar do impacto destes acontecimentos. É
necessário ter presente que o comboio só vai chegar a Faro em 1889 e a Tavira em
1905. As viagens eram geralmente feitas por via marítima ou terrestre demorando
bastante tempo, com elevado risco de assalto ou avaria.
      Mais próximo, e com alguma repercussão na região, havia o problema da revolta
carlista em Espanha 2. Esta revolta provocava combates intensos na região da Andaluzia

      1
        Teófilo Braga, História das Ideias Republicanas em Portugal, col. Documenta Histórica, Veja,
Lisboa, 1983, p. 93.
      2
        Carlismo: movimento político legitimista, antiliberal e anti-revolucionário que se desenvolveu em
Espanha, durante o século XIX, tendo por objectivo o estabelecimento de um ramo alternativo aos
Bourbon no trono do país vizinho. A situação agravou-se quando, nas eleições de 1871, o partido carlista,
denominado Comunhão Católico-Monárquica, conseguiu eleger cerca de 50 deputados e 30 senadores.


                                                   2
que provocaram a debandada de alguns habitantes da região em busca de local seguro
no Algarve. A comunidade castelhana na região algarvia aumentou consideravelmente
nesta época conturbada da vida política no país vizinho. Muitas pessoas instalaram-se
nas principais vilas e cidades algarvias, dedicando-se especialmente ao comércio.
      A guerra carlista, que se desenrolou entre 1872 e 1876, já tinha sido antecedida
por outras que decorreram entre 1822-1823 e entre 1833-1840. O movimento carlista
tinha sido reorganizado após a revolução de 1868. Foi um período politicamente
conturbado, em Espanha, porque Amadeu I, entre Dezembro de 1870 e Fevereiro de
1872, realizou três eleições gerais, nomeou seis governos e registou oito crises
governamentais. Esta instabilidade conduziu o parlamento a proclamar a República.
Mas também o novo regime foi marcado pela grande instabilidade, em dez meses de
existência houve quatro presidentes.
      A vereação da Câmara Municipal de Tavira era, em 1872, constituída por:
Sebastião José Teixeira Neves de Aragão, João Pires, João Pedro da Fonseca Gomes,
José Mendes Pereira Neto, João Rodrigues Gomes Centeno. O presidente da câmara era
o major reformado José Joaquim Pimentel3. O comandante do Batalhão de Caçadores nº
4, era José António de Sousa Chagas4, o Juiz de Direito era Leocádio Maria Andresson5
e o Delegado do Procurador Régio era José Júlio de Oliveira Baptista 6. Estes foram
Perante a possibilidade de perder deputados em novas eleições e, sobretudo, preocupado em impedir uma
restauração da família de Bourbon, o partido carlista optou pela via da guerra em 21 de Abril de 1872.
        3
          Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, Câmara Municipal de
Tavira, Tavira, 1993, p. 151 e 155.
        4
          Ofir Chagas, Tavira. Memórias de uma Cidade, Edição do Autor, Tavira, 2004, p. 177. Tentando
desenvolver um pouco mais a biografia deste oficial pode afirmar-se que José António de Sousa Chagas
terá nascido cerca de 1813, assentou praça em 9-06-1832; alferes em 28-07-1837; tenente em 15-02-1845;
capitão em 20-01-1847; major em 29-04-1851; tenente-coronel em 21-01-1863 e coronel em 22-05-1868
in Almanach do Exercito ou Lista Geral de Antiguidades dos Officiaes e Empregados Civis do Exército ,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, p. 46-47. Não foi possível determinar a data exacta da morte deste
oficial do exército, mas ela deve ter ocorrido durante esta década de setenta do séc. XIX.
        5
          Pequena nota biográfica: Leocádio Maria Andresson, nasceu em Portel, em 06-09-1829, filho de
Eduardo Augusto Andresson Limpo de Vasconcellos e de Quitéria Margarida de Azevedo Vellez.
Matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em Outubro de 1845, tendo seguido a
carreira de Juiz. Cf. Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Livro de Certidões de Idade (1834-
1900), Livro LXX, fl. 13. Cota: IV-1ª D-5-2-70.
        6
          Paulo Jorge Fernandes, “Baptista, José Júlio de Oliveira”, Dicionário Biográfico-Parlamentar
1834-1910, vol. I (A –C), coord. Maria Filomena Mónica, Col. Parlamento, ICS/Assembleia da
República, 2004, p. 290-291. A biografia elaborada nesta obra permite compreender um pouco melhor a
situação que então teve lugar e os reflexos que causou na vida de alguns dos seus intervenientes.
Acrescentando algo mais a esta biografia pode dizer-se que José Júlio de Oliveira Baptista nasceu em 27-
05-1841, em Passarela, freguesia de Lagarinhos, concelho de Gouveia, filho de Joaquim Lourenço Borges
Saraiva e Ana de Oliveira Baptista. Realizou a sua primeira matrícula na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra em 05-10-1857. (Cf. Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Livro de
Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXVII, fl. 265. Cota: IV-1ª D-5-2-67.) Em 1880, quando era
deputado, foi eleito vice-secretário da Câmara dos Deputados e pertenceu à comissão de legislação civil.
Em 1883, era juiz de comarca em Olhão. Veio a falecer, no Porto, no hospital de alienados daquela
cidade, em Março de 1889. Cf. Anónimo, “Falecimentos”, Novidades, Lisboa, 24-03-1889, Ano V, nº


                                                   3
alguns dos protagonistas dos acontecimentos que tiveram lugar em Tavira em 8 de
Dezembro de 1872.


      B) A evolução do sistema métrico decimal em Portugal
      Desde tempos antigos que se vinha tentado implementar um sistema uniforme de
pesos e medidas, porque estas variavam “de região para região, de cidade para cidade,
de aldeia para aldeia7”, o que dificultava muito o desenvolvimento da actividade
comercial. Segundo David Justino, uma das primeiras tentativas frustradas que
aconteceram em Portugal, terá ocorrido em 1575, quando se publicou uma lei que
visava a uniformização dos pesos e medidas pelos padrões de Lisboa 8. A questão só
começou a ser solucionada em 1795, quando, em França, foi decretada a lei de 18 de
Germinal do ano III (7 de Abril de 1795), que instituiu o revolucionário sistema
métrico-décimal. Poucos meses depois, esta medida era avaliada em Portugal com uma
memória da autoria de José Abreu de Bacelar Chichorro, que analisando os dados
científicos que tinham conduzido à sua implementação em França a considerava mais
adequada para resolver a referida questão em Portugal.
      Publicaram-se alguns estudos ao longo dos tempos para tentar implementar a esta
medida a Portugal, mas existiam muitas resistências que barravam a sua concretização.
Em 1812, a Comissão para o Exame dos Forais e Melhoramento da Agricultura
recomenda a reforma do sistema dos pesos e medidas. Ainda no reinado de D. João VI,
em 18149, apesar do rei se encontrar no Brasil, houve a tentativa de executar novos
padrões de pesos e medidas respeitando os protótipos vindos de França que seriam
distribuídos pelos concelhos. Nesse ano chegou a ser criada uma comissão para a
Reforma dos Pesos e Medidas no Reino. Em 1815, Sebastião Francisco Mendes
Trigoso, publica uma memória na Academia Real das Ciências de Lisboa10 que

1467, p. 2, col. 2.
       7
         A. H. Oliveira Marques, “Pesos e Medidas”, Dicionário de História de Portugal, vol. V, dir. Joel
Serrão, Livraria Figueirinhas, Porto, 1992, p. 67.
       8
         David Justino, A Formação do Espaço Económico Nacional. Portugal 1810-1913, vol. II, col.
Documenta Histórica, Vega, Lisboa, s.d., p. 195, nota 71. Este autor elaborou uma resenha histórica da
evolução do sistema métrico-décimal em Portugal entre as páginas 194 e 200 desta obra.
       9
          http://www.cm-maia.pt/cmm/metrologia/historia.htm . Ainda sobre este tema ver o texto de
Nuno Crato, “Da Mão-Travessa ao Metro”, in http://www.instituto-camoes.pt/CVC/ciencia/e36.html.
Ver ainda o texto de Elenice de Souza Lodron Zuin, “O sistema métrico decimal em Portugal nos Liceus
do século XIX: considerações sobre o Tratado Elementar de Arithmethica de Luiz Porfírio da Motta
Pegado”, http://fordis.ese.ips.pt/docs/siem/texto25.doc.
       10
           Sebastião Francisco Mendes Trigoso,, “Memória sobre os pesos e medidas portuguesas, e sobre
a introdução do sistema metro-decimal”, Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de
Lisboa, Tomo V, 253-305, 1 mapa, Lisboa, 1815 [reed. Banco de Portugal, 1991].


                                                   4
apontava para a necessidade de introduzir o novo sistema de pesos e medidas em
Portugal dando seguimento aos estudo que vinham a ser efectuados por diversos
membros daquela academia. Porém, a revolução de 1820, adiou todos estes projectos,
porque a situação chegou a um impasse e os seus principais defensores compreenderam
que os seus estudos e trabalhos científicos tinham caído num esquecimento que se iria
prolongar por várias décadas.
      Nos trabalhos parlamentares, encontram-se ecos deste assunto ter sido debatido
com alguma insistência entre Janeiro e Fevereiro de 1845, entre Fevereiro e Março de
1850 e em Junho e Julho de 1869. O tema ligado ao sistema de pesos e medidas volta a
ser debatido mais tarde, já em 1893 e 1896, mas com menor número de intervenções.
      Em 1852, a 13 de Dezembro, depois de cerca de quatro décadas de longos e
laboriosos estudos, foi adoptado o sistema métrico decimal. Porém, a sua
implementação iria acontecer gradualmente ao longo de um período de tempo. Segundo
este decreto, o país teria dez anos para implantar o sistema métrico. Em simultâneo com
a adopção do sistema métrico decimal, foi criada no Ministério das Obras Públicas,
Comércio e Indústria, a Comissão Central de Pesos e Medidas (22 de Dezembro de
185211), que propôs, em 1855, a criação de uma Inspecção Geral dos Pesos e Medidas
do Reino12 e uma Estação de Aferições, dependentes dessa Inspecção. Contudo, em
1868, foram extintas a Repartição dos Pesos e Medidas e as Inspecções Distritais,
confiando-se o afilamento dos pesos e medidas às Câmaras Municipais, sujeitas a
inspecção das Repartições Distritais de Obras Públicas, sendo posto em causa, em
poucos anos, todo o esforço de implementação do novo sistema.


      C) As revoltas contra o novo sistema de pesos e medidas
      O relatório que antecede a publicação do Decreto de 13 de Dezembro de 1852, e
que o justifica, afirmava “muito lucraria a nossa civilização se fora possível substituir
num breve espaço de tempo o novo sistema legal dos nossos antigos pesos e medidas, e
se os costumes e os hábitos longamente enraizados não opusessem sempre um certo


      11
         Diário do Governo, Lisboa, 22-12-1852, nº 302, p. 1363 e 1364.
      12
         Esta repartição teve como um dos seus elementos mais destacados, Joaquim Henriques Fradesso
da Silveira (15-04-1825 a 26-04-1875), professor da Escola Politécnica de Lisboa e autor de diversas
obras entre as quais destacamos: Compendio do novo systema legal de medidas, approvado pela
commissão central de pesos e medidas, Typ. Cent. Com., Lisboa, 1856; Mappas das Medidas do novo
Systema Legal: comparadas com as antigas nos dversos concelhos do Reino e Ilhas , Lisboa, Imp.
Nacional, 1868; A questão de fazenda, Impr. Nacional, Lisboa, 1872; O Ensino Primário na Belgica,
Imp. Nacional, Lisboa, 1872.


                                                 5
embaraço que a lei só pausada e prudentemente pode vencer com segurança” 13.
Antevendo os obstáculos que surgiriam, começaram por reconhecer que “decretar a
adopção imediata do sistema métrico, sem contar com as resistências e com as
dificuldades do uso, e da ignorância, seria comprometer o bom êxito de uma reforma de
tanto momento e interesse nacional”14. Estas dificuldades que se adivinhavam acabaram
por se confirmar, assim, o decreto no seu artigo 3º, definia um período de dez anos para
o novo sistema de pesos e medidas estar em pleno vigor.
     Para estimular e acelerar a entrada em vigor do decreto, o Ministério da Obras
Públicas, Comércio e Indústria, em 11 de Janeiro de 1853, mandava que a partir de 1 de
Fevereiro desse ano, todas as repartições dependentes do referido ministério adoptassem
o sistema métrico decimal15.
     Porém, a implementação do novo sistema de pesos e medidas levantou muitas
resistências e, em 1862, surgem notícias de um levantamento popular em Guimarães 16,
devido à obrigatoriedade do mesmo sistema. No ano seguinte surgem revoltas populares
na província do Minho e só durante a década de setenta do século XIX é que as câmaras
municipais generalizaram o sistema a todo o País, embora com algumas resistências
como as que se verificaram nas Freixedas (Pinhel) e Tavira.


     D) A Revolta das Medidas em Tavira na imprensa periódica
     As principais fontes utilizadas para acompanhar esta revolta foram os órgãos da
imprensa periódica de Lisboa e Coimbra, que fizeram eco da situação e acompanharam-
na durante vários dias. Também o testemunho de dois intervenientes na época que eram
o governador civil, José de Beires e o testemunho de José Júlio de Oliveira Baptista na
sua intervenção parlamentar em 21 de Março de 1881, quando numa intervenção relata
os acontecimentos ocorridos em Tavira. Finalmente, mas talvez mais importante, a
correspondência trocada, na época, entre o governador civil e o Ministério do Reino a
relatar a situação, que se encontra no Arquivo Distrital de Faro.




     13
        Diário do Governo, Lisboa, 22-12-1852, nº 302, p. 1363, col. 3.
     14
        Idem
     15
        Diário do Governo, Lisboa, 14-01-1853, nº 12, p. 63, col. 2 e 3.
     16
        David Justino, ob. cit., p. 198.


                                                   6
Os factos ocorridos relatam-se de forma sucinta: no dia 8 de Dezembro de 1872 17,
domingo, feriado nacional, em Tavira, realizava-se o habitual mercado dos domingos. A
Câmara Municipal, em reunião realizada dias antes, tomara a decisão de aplicar o novo
sistema de pesos e medidas. Perante esta alteração, surgiram logo muitas dúvidas aos
compradores no mercado que, desconfiados, tentavam saber se estavam a ser enganados
pelos comerciantes. Face a uma situação descoberta de oportunismo a população reage
em revolta e começa a destruir os novos pesos e medidas. A tropa que estava presente,
primeiro, tentou acalmar a situação, mas como a população parecia cada vez mais
revoltada acabou por realizar algumas detenções entre os mais exacerbados. Parece que
momentaneamente o problema acalmou, mas depois os desordeiros organizaram-se para
ir solicitar a libertação dos companheiros que tinham sido presos. Como não foram
atendidos, apedrejaram os soldados e o quartel de caçadores nº 4, ferindo alguns
soldados e oficiais. O comandante do quartel, face ao desacato à autoridade, acabou por
dar ordem de fogo sobre os manifestantes, o que aconteceu tendo causado seis mortos e
catorze feridos. O delegado do procurador régio, Dr. José Júlio de Oliveira Baptista,
interpôs uma acção em tribunal contra o coronel José António de Sousa Chagas, por
abuso de autoridade e de força que teria resultado na sua despromoção, mas o recurso
hierárquico interposto pelo militar e por influência do Barão de Rio Zêzere 18, acabou
por não ser pronunciado.
      O Governador Civil, José de Beires, logo que teve conhecimento dos
acontecimentos de Tavira teve o cuidado de dar conhecimento da situação ao Ministro
do Reino, António Rodrigues Sampaio, num telegrama datado de 8 de Dezembro, mas
ainda sem ter toda a informação afirmava “às 10 horas de hoje começou a amotinar-se o

      17
          Arnaldo Casimiro Anica, “A chamada Revolução das Medidas”, Lestalgarve, Tavira, 10-06-
1985, Ano IV, nº 98, p. 3, col. 1 a 3. Reproduz-se aqui um artigo publicado no Povo Algarvio, Tavira, 02-
12-1967, nº 1746, p. 1, col. 2 e 3 e p. 2, col. 1 e 2, a que se acrescentam algumas notas importantes do
distinto investigador da história de Tavira. Mais recentemente o mesmo autor, publica mais algumas notas
sobre este acontecimento que encontrou no processo existente no Tribunal de Tavira Cf. Arnaldo
Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, vol. II, Câmara Municipal de Tavira,
Tavira, 2001, p. 53 e 54. Ver também os verbetes: “Anderson [Andresson], Leocádio Maria”, p. 146;
“Chagas, José António de Sousa”, p. 177; “Revolta das Medidas”, p. 305 in Ofir Chagas, Tavira.
Memórias de uma cidade, Ed. do Autor, Tavira, 2004.
       18
          Joaquim Bento Pereira (Barão do Rio Zêzere), nasceu em Setúbal, a 7 de Setembro de 1798, e
faleceu em Lisboa, a 19 de Dezembro de 1875. Militar do exército, assentou praça em 27 de Junho de
1816. Combateu na campanha do Rio da Prata (América do Sul), regressou a Portugal e combateu os
miguelistas. Personalidade muito controversa, chegou a ser condenado à morte em conselho de guerra,
mas conseguiu repetir o julgamento e sair ilibado. Participou em diversos duelos e tornou-se um
inseparável amigo do marechal Saldanha, tendo-o acompanhado em todas as suas aventuras político-
militares. Foi comandante militar da região do Algarve a partir de 1850 até perto de 1866, conseguindo
estabelecer aí uma forte rede de influências que se fazia ainda sentir em 1872, quando dos acontecimentos
em questão.


                                                   7
povo em Tavira por causa das novas medidas, sendo necessário intervir a força. Deram-
se três ou quatro ferimentos em paisanos na ocasião em que estes atacavam o quartel de
Caçadores 4”19. No jornal Diário Popular20, publicado em Lisboa, dois dias depois,
dizia-se logo em primeira página “os serranos em Tavira revolucionaram-se contra as
novas medidas, quebrando-as. A tropa foi apedrejada, um sargento e oito soldados
feridos. A tropa fez fogo resultando muitos ferimentos e sete mortes” 21. No mesmo dia,
o jornal Revolução de Setembro22, publicava em primeira página “o governo teve ontem
notícia de que às 10 horas da manhã tinha havido desordens em Tavira por causa das
novas medidas, e que se tinha atacado o quartel sendo os desordeiros repelidos. Poucas
horas depois recebeu nova participação de que tinham acabado os tumultos, mas não
sem a morte de três paisanos e sem o ferimento de soldados e paisanos. Um telegrama
de hoje anunciava que o governador civil de Faro partira para Tavira, onde não havia
nada que indicasse novos motins. Parece que o governo tinha tido informações de que
se tentava ali alguma surpresa”23.
      O jornal Revolução de Setembro, referia por diversas vezes o governo e não o
fazia inocentemente. Na época, fazia parte do executivo António Rodrigues Sampaio,
Ministro do Interior e redactor principal deste diário português. A notícia procurava
realçar a acção governamental no controlo da situação e reforçar a ideia de manutenção
da ordem pública por parte do exército.
        19
           José de Beires, “Telegrama – Ao Ministério do Reino”, Arquivo Distrital de Faro (ADF) - Fundo
do Governo Civil, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, cota: Livro 348 A, fl.
25.
        20
           Jornal diário, fundado em Lisboa, em 13 de Julho de 1866. Tinha por director Mariano de
Carvalho, mais tarde substituído por Mariano Pina e por João Cesário de Lacerda. Foram redactores
Alberto Pimentel, Mariano Prezado, Câmara Lima, Silva Pinto, Tomás Bastos, Alfredo Ribeiro entre
outros. Este jornal surgiu resultando da fusão dos jornais O Noticiário Português (Lisboa, 1 de Maio a 12
de Julho de 1866) e As Notícias (Lisboa, 27 de Março a 15 de Julho de 1866), para tentar fazer
concorrência ao Diário de Notícias, fundado por Eduardo Coelho, porém termina a sua publicação em 13
de Junho de 1896. Era impresso na Tipografia Lusitana. Cf. Rocha Martins, Pequena História da
Imprensa Portuguesa, col. Cadernos Culturais, Editorial Inquérito, Lisboa, 1942, p. 69-70. Segundo
conseguimos apurar eram proprietários do jornal entre outros: António Centeno, Joaquim de Vasconcelos
Gusmão e o Marquês da Foz (Tristão Guedes Correia de Queirós Castelo Branco), pelo menos cerca de
1890, como afirma Silva Pinto, Pela Vida Fora (1870-1900), Livraria Editora Guimarães e Libânio,
Lisboa, 1900, p. 144. Cf. ainda Lourenço Cayolla, Revivendo o Passado, Imprensa Limitada, Lisboa,
1928, p. 144-145.
        21
           Anónimo, “Grande Desordem”, Diário Popular, Lisboa, 10-12-1872, Ano 7, nº 2192, p. 1, col. 3
        22
           Jornal diário fundado em Lisboa em 22 de Junho de 1840, que terminou a sua publicação em 20
de Janeiro de 1901. Foi um dos mais importantes jornais do seu tempo, onde colaboraram personalidades
como José Estêvão de Magalhães, Mendes Leite, António Rodrigues Sampaio, Júlio César Machado,
António Pedro Lopes de Mendonça e muitos outros ao longo de mais de meio século, embora com
algumas interrupções. Ernesto Rodrigues, professor de Cultura Portuguesa, na Faculdade de Letras de
Lisboa       considera-o     “o    diário   emblemático      do     Romantismo”      no     seu    blogue
http://culturaport.blogs.sapo.pt/arquivo/841621.html.
        23
           Anónimo, “O governo …”, A Revolução de Setembro, Lisboa, 10-12-1872, Ano 32, nº 9143, p.
1, col. 1 e 2.


                                                   8
Por outro lado, o Diário Popular dedica nove artigos, mais ou menos longos, ao
assunto da revolta de Tavira, aproveitando para levantar alguns problemas mais
complicados ao governo. Já nessa altura, talvez mais que nos nossos dias, os órgãos da
imprensa eram muito próximos das correntes políticas dominantes, como reconheceu
José Tengarrinha, “nitidamente noticiosos, só o Diário de Notícias e o Diário Popular;
os outros são, mais ou menos veladamente, órgãos de partidos e facções” 24. Neste
contexto noticioso, o Diário Popular transcreve uma correspondência de Faro,
publicada no Jornal do Comércio, em que faz um relato pormenorizado da revolta e
identifica o correspondente25.
       A Revolução de Setembro, no dia 11 de Dezembro, dedica o seu artigo de fundo
ao problema da revolta de Tavira e qualifica-o de deplorável, e acrescenta “estão
apagados no espírito dos agitadores todos os sentimentos de patriotismo e de
moralidade política”26. O autor deste artigo poderia, muito provavelmente, ser António
Rodrigues Sampaio, que começa por traçar o quadro comparativo da situação entre
Portugal e Espanha. Afirmava o autor, que o país vizinho, “debate-se entre convulsões
dos partidos extremos, que não levantam audaciosamente a bandeira da revolta, mas que
empregam o banditismo, a luta de guerrilhas como meio de agitar o país, de inquietar o
governo, e de preparar enfim os elementos de insurreição mais séria”. Por seu lado,
“Portugal prossegue em paz no seu desenvolvimento civilizador, dá um exemplo de
cordura às nações”27. Parece óbvia a tentativa que este autor faz de paralelismo entre a
situação de Portugal e de Espanha, criar uma dicotomia entre o que está bem e o que
está mal, porque em Espanha havia guerra e em Portugal não e assim poderíamos
“rivalizar com a Bélgica, logo, que, desembaraçados dos perigos financeiros”28.
       A análise feita neste artigo levanta suspeitas de envolvimentos dos agitadores com
os espanhóis, aproveitando o facto de estar em voga, na época, a ideia de iberismo e de
federalismo, que alimentava os sonhos de uma Península Ibérica unida politicamente
para enfrentar as grandes potências da Europa central. Em Portugal as concepções
       24
            José Tengarrinha, História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2ª ed., Caminho, Lisboa, 1989, p.
231.
       25
           A identificação dos correspondentes locais dos diferentes jornais nacionais é um trabalho muito
curioso e que ainda está por fazer. Porque estes correspondentes acabavam por criar uma determinada
imagem das situações, porque reconstruíam a realidade através do seu olhar e muitas vezes acabavam por
criar situações de conflito com personalidades locais que lhes dificultavam a tarefa. Temos acompanhado
muitas correspondências locais nos diferentes jornais portugueses dos finais do século XIX e muito
poucos são os correspondentes identificados, porque raramente os artigos eram assinados.
        26
           Anónimo, “Interior”, Revolução de Setembro, Lisboa, 11-12-1872, Ano XXXIII, nº 9144, p. 1,
col. 1 e 2.
        27
           Idem, ibidem.
        28
           Idem, ibidem.


                                                      9
iberistas tiveram algum eco através dos autores ligados ao embrionário movimento
republicano que era muito influenciado por pensadores espanhóis e franceses29.
      Colocando em comparação a forma como as notícias são apresentadas no Diário
Popular e na Revolução de Setembro podem retirar-se algumas conclusões. O Diário
Popular procurou encontrar várias versões sobre o mesmo acontecimento, entrou em
pormenores, apontou nomes, narrou acontecimentos e apontou algumas críticas. Nas
colunas desse órgão da imprensa escrita chega a afirmar-se em correspondência de
Tavira: “Governo sabia de tudo, estava prevenido de tudo, e não evitou nem as
desordens, nem o derramamento de sangue”30. Esta teria sido a primeira grande dúvida
que se levantou entre a população, como é que um governo sabendo que a revolta
estaria latente, não teria prevenido a situação enviando mais tropas para o mercado? Os
boatos lançados através da imprensa que apoiava o governo regenerador serviram para
criar mais dúvidas, criando situações que fizessem emergir algum “inimigo” com quem
partilhasse as culpas pela revolta. O mesmo jornal, levanta a suspeita de os jornais
governamentais imputarem a responsabilidade da revolta aos republicanos federais e
questiona: “que interesse teriam os republicanos federais em fazer com que um
destacamento espancasse o povo e depois se reunisse ao corpo?” 31. Constata-se aqui a
preocupação em questionar, com alguma razão, o facto de os regeneradores estarem a
tentar arranjar alguém mais com quem repartir as responsabilidades, acabando por
encontrar nos republicanos federais, os alvos preferenciais. Por fim, coloca ainda outra
questão pertinente, “sendo a introdução de contrabando tão fácil no Algarve (…), como
se explica que os incitadores não introduzissem armas e deixassem os seus sectários
unicamente com pedras, cacos, nabiças, cidras, rabanetes e outras armas pouco
ofensivas”32. Com um armamento tão pouco ofensivo torna-se interessante também
questionar a desproporção da resposta utilizada pelos militares, ainda para mais quando
os órgãos informativos referem algumas dezenas de pessoas revoltadas. Esta situação
parece indiciar uso excessivo da força por parte dos oficiais da Companhia de
Caçadores nº 4 ou alguma precipitação na tomada de decisões.

      29
         Teófilo Braga, História das Ideias Republicanas em Portugal, col. Documenta Histórica, Vega,
Lisboa, 1983, p. 159-161. Sobre a evolução e transformação do positivismo em Portugal cf. Fernando
Catroga, A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal 1865-1911, [tese de
doutoramento, policopiada], Coimbra, 1988, p. 107 a 219.
      30
         Anónimo, “A propósito das desordens em Tavira”, Diário Popular, Lisboa, 14-12-1872, Ano 7,
nº 2196, p. 1, col. 4.
      31
         Anónimo, “Segundo as folhas ministeriais …”, Diário Popular, Lisboa, 18-12-1872, Ano 7, nº
2200, p. 2, col. 3.
      32
         Idem, art. cit.


                                                 10
Por seu lado, a Revolução de Setembro aborda o problema numa perspectiva mais
analítica, procurando problematizar as situações e estabelecer as comparações entre
países, especialmente a Espanha e Portugal e França e Bélgica. Num primeiro momento,
lança acusações de aventureirismo e banditismo político aos participantes e incitadores
na revolta popular. Por outro lado, defende a posição tomada pelos militares e afirma
que o Governo deve agir “com energia” 33. Porém, esforça-se por lançar a dúvida sobre
quem estava por detrás da revolta e afirmava que estes aventureiros “não chegam a
constituir um partido novo com uma ideia nova, nunca actuaram sobre o país com uma
propaganda que desse aos seus compatriotas uma ideia do seu programa e do seu fim, e
são eles com tudo isso homens das revoluções” 34. Na mesma linha de raciocínio se
desenvolveram os artigos publicados sobre este assunto noutro diário afecto ao Partido
Regenerador, neste caso o Diário Ilustrado35.
      Pode dizer-se que os redactores e correspondentes locais do Diário Popular são
mais factuais, narram os factos, colocam algumas questões importantes mas não se
alongam em grandes análises dos acontecimentos. Por seu lado, os autores das colunas
do diário Revolução de Setembro, procuram lançar a culpa dos acontecimentos para
supostas intervenções estrangeiras ou para os revolucionários e perigosos republicanos.
      Também O Conimbricense dedicou quatro artigos à questão da revolta de Tavira.
Três deles breves, fazendo relato das ocorrências, dando conta das movimentações
militares que mostravam uma “certa efervescência no Algarve” 36 e os receios de que os
problemas pudessem voltar-se a repetir. Por outro lado, fazia referência ao problema dos
boatos que circulavam em Lisboa acerca da situação conturbada na região, mas
assinalava a forte presença da força militar para consolidar a manutenção da ordem
pública. No artigo publicado a 21 de Dezembro de 1872, o autor referia-se aos diversos
tumultos que vinham a ocorrer em diversas regiões do país, “sem causa que os provoque
nem motivo que os justifique”37. Estas desordens e tumultos que “um grupo de
desordeiros e mal intencionados […] desejam promover a anarquia entre os povos”,
      33
           Anónimo, “Interior, Lisboa, 10 de Dezembro ”, Revolução de Setembro, Lisboa, 11-12-1872,
Ano XXXIII, nº 9144, p. 1, col. 1 e 2.
        34
           Idem, art. cit.
        35
            Este jornal diário foi fundado em Lisboa, por Pedro Correia da Silva, em Junho de 1872 e
prolongou a sua existência até 1910. Era impresso na Tipografia de Joaquim Germano de Sousa Neves e a
redacção localizava-se na Travessa da Queimada, em Lisboa. Foram directores deste jornal Sérgio de
Castro e mais tarde Agostinho de Campos. Eram colaboradores do Diário Ilustrado, entre outros:
Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Carlos Lobo de Ávila, etc.
        36
           Anónimo, “Assuntos do Dia”, O Conimbricense, Coimbra, 17-12-1872, Ano XXVI, nº 2650, p.
3, col. 1.
        37
           Anónimo “Coimbra”, O Conimbricense, Coimbra, 21-12-1872, Ano XXVI, nº 2651, p. 1, col. 1
e 2.


                                                 11
resultando que “os seus agentes devem sofrer todas as consequências de tão estranho e
inqualificável procedimento”38. Conclui-se, portanto, da leitura deste semanário
conimbricense, que a revolta de 8 de Dezembro de 1872 estaria ligada a um movimento
de contestação mais alargado, que visava alterar a ordem pública e a força militar teria
reagido para repor essa situação. Fazia-se a defesa do Estado autoritário, forte,
cumpridor estrito das leis e da sua implementação, como tal não tinha sido possível em
Tavira, tornou-se necessário utilizar os recursos de que dispunham para punir aqueles
que “atentam contra os sagrados e invioláveis direitos da ordem pública”39.
      Outro órgão noticioso que também dedica alguma atenção aos assuntos da Revolta
das Medidas foi o semanário coimbrão Correspondência de Coimbra40. Nas duas
notícias que encontramos neste semanário, uma delas merece destaque porque faz a
análise do problema numa perspectiva diferente. Num artigo não assinado, mas
integrado na rubrica regular “Províncias”, faz-se uma análise dos acontecimentos.
Primeiro lamenta o sucedido e aponta os responsáveis dos acontecimentos, que, na sua
opinião, seriam “a ignorância e a péssima educação constitucional, que os políticos lhe
têm dado [ao povo] há trinta anos a esta parte” 41. Por outro lado, critica a
desorganização e a falta de interesse pela escola, o pouco empenho dos párocos em
explicar a importância do Estado e, finalmente, os influentes políticos locais que
exploram a ignorância, a mesquinhez e criam obstáculos ao progresso que era
representado pela introdução do novo sistema de pesos e medidas.
      Segundo o autor do artigo na Correspondência de Coimbra havia duas causas
essenciais que estiveram na origem da Revolta das Medidas: “primeira – a ignorância
absoluta do sistema métrico decimal e das suas vantagens aplicadas aos pesos e
medidas”, apontando a grande importância da escola e do ensino para ultrapassar esta
situação. Concomitantemente, o outro problema era “a cobardia inacreditável com que
os governos reconsideram na pronta execução das leis, que suspendem e vão adiando de
ano para ano”42. O autor do texto defendia que a firmeza na aplicação do novo sistema
      38
          Idem, art. cit.
      39
          Idem, ibidem.
       40
          Jornal semanário que se publicou em Coimbra a partir de 1 de Janeiro de 1872, fundado por
Joaquim Gualberto Soares e por Araújo Pinto. O redactor principal era o professor da Faculdade de
Direito, Manuel Emídio Garcia (até 1874) e eram colaboradores deste jornal, entre outros: José Silvestre
Ribeiro, Júlio de Vilhena, Luís Jardim (Conde de Valenças), José Cavalheiro, Oliveira Matos e Sousa
Refoios. Terminou a sua publicação em 1908. Cf. A. Carneiro da Silva, Jornais e Revistas do Distrito de
Coimbra, Edição da Biblioteca Municipal, Coimbra, 1947, p. 49-50.
       41
          Anónimo, “Províncias –Tavira”, Correspondência de Coimbra, Coimbra, 15-12-1872, Ano I, nº
51, p. 3, col. 2 e 3.
       42
          Anónimo, “Províncias – Tavira”, Correspondência de Coimbra, Coimbra, 15-12-1872, Ano I, nº
51, p. 3, col. 2 e 3.


                                                  12
de pesos e medidas, por parte do poder executivo, não teria criado tantos obstáculos e
não suscitaria tanta oposição à obediência das leis. Com a situação criada, de avanços e
recuos na aplicação do sistema decimal, tornou-se necessário recorrer ao uso da força
para conseguir fazer respeitar as leis.


      E) As impressões da revolta nas autoridades locais
      No Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Faro, publicado em
Coimbra, por José de Beires, no ano seguinte aos acontecimentos, dedicou várias
páginas a este assunto, no capítulo da “Ordem e Segurança”. O Governador Civil
começa por lamentar o sucedido “com bem mágoa no meu coração” 43 e, destaca a
gravidade dos factos ocorridos, porque “enlutou algumas famílias, arrastou muitas
infelizes ao leito da dor e encheu de consternação os povos do Algarve” 44. O relato feito
dos acontecimentos de Tavira, acrescenta alguns aspectos novos que não são descritos
nos artigos da imprensa, como o facto dos indivíduos revoltosos terem entrado em
diversos estabelecimentos comerciais de uma das mais frequentadas ruas de Tavira e
destruído as novas medidas em diversas lojas. Outro elemento a considerar são os
mortos resultantes da revolta que, na sua versão, foram cinco, enquanto os órgãos da
imprensa periódica referiam somente três, quatro ou sete. Finalmente, refere-se também
à repercussão da revolta na região e no país que provocou “grande sensação” e
alimentou boatos de que haveriam, em preparação, novas tentativas de revolta. Porém, o
Governador Civil, saúda o facto de que tal não tenha acontecido porque, “as medidas de
prevenção adoptadas impusessem respeito aos mal intencionados” ou “porque no
espírito naturalmente bondoso e pacífico daquela população, momentaneamente
desvairada até à loucura, não podiam, depois da reflexão, caber ideias subversivas” 45.
Concluía José de Beires que o processo da revolta estava a ser julgado pelos tribunais
sendo necessário analisar legalmente os factos e “punir os verdadeiros criminosos”46.
      Um aspecto muito importante deste relato é o facto de não se apresentar a defesa
de nenhuma das partes. José de Beires tem o cuidado de nunca referir nomes, nem
identificar culpados de forma nominal. Relata a situação, como ele teve conhecimento, e
porque teria acontecido, mas não tenta encontrar culpados. Mesmo sendo um nomeado


      43
           José de Beires, Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Faro (1873), Imprensa
Literária, Coimbra, 1873, p. 26.
       44
          José de Beires, ob. cit., p. 26
       45
          Idem, ibidem, p. 27-28.
       46
          Idem, ibidem, p. 28.


                                                13
político, não procura encontrar nos adversários políticos as culpas dos acontecimentos
como os jornais tinham procurado fazer.
      Nove anos mais tarde, em 1881, José Júlio de Oliveira Baptista, deputado eleito
pelo círculo de Tavira, recorda, num longo discurso realizado perante a Câmara dos
Deputados no dia 21 de Março, alguns aspectos menos conhecidos e as consequências
daquela revolta. Um dos principais visados, pela sua visão critica dos acontecimentos,
era o então Ministro da Justiça, Augusto César Barjona de Freitas, porque tomou
posição em favor de uma das partes, tentou limitar a acção do procurador régio 47 e
favorecer a sua própria situação política. Assim, Oliveira Baptista acusou-o de ser um
dos responsáveis pela sua transferência para delegado do procurador régio na comarca
da ilha de S. Jorge, porque ele tinha tomado a decisão de querelar sem sua anuência, o
comandante do Batalhão de Caçadores nº 4. Esta decisão era uma consequência da
análise legal dos factos, porque o coronel José António de Sousa Chagas teria “usurpado
ilegalmente as atribuições”48 que, no ponto de vista de José Júlio de Oliveira Baptista,
pertenceriam ao administrador substituto do concelho. Por outro lado, era bastante
estranho que cerca de “cento e trinta homens, todos armados e mais ou menos
disciplinados”49 que estariam no quartel de Tavira, não conseguissem fazer recuar
quatro ou cinco dezenas de revoltosos. Finalmente, e talvez a questão de maior
gravidade fosse o problema de se ter verificado “pelos exames, que muitos desses
ferimentos eram nas costas”50, tendo o juiz legitimamente concluído que estes
ferimentos tinham sido infligidos quando as pessoas já estavam em fuga, o que se
tornaria um crime de homicídio.
      Perante todos estes acontecimentos, o então delegado do procurador régio, enviou
um ofício para a Procuradoria Régia para solicitar apoio na tomada de decisões. Porém,
na Procuradoria Régia, só estavam preocupados com as testemunhas parciais arroladas
para relatar os factos, com a tentativa de comprometer a força armada e a situação em
que estava o processo em face do depoimento prestado pelas testemunhas. José Júlio de
Oliveira Baptista tomou então a responsabilidade de interpor querela “não só contra os
tumultuosos, mas contra o comandante do Batalhão de Caçadores nº4, por ter excedido
os limites da justa defesa; reconheci-lhe o direito de se defender a si, ao batalhão do seu
comando e ao seu quartel, mas entendi, em face das provas dos autos, que ele tinha ido
      47
         Era Procurador-Geral da Coroa, João Baptista da Silva Ferrão Carvalho Martens (28-01-1824 a
15-11-1895), nomeado em 28 de Julho de 1868 e manteve-se nessas funções até cerca de 1885.
      48
         Diário da Câmara dos Senhores Deputados (1881), Imprensa Nacional, Lisboa, 1881, p. 1105.
      49
         Idem, ibidem.
      50
         Idem, ibidem.


                                                 14
além desse direito e que por isso devia responder criminalmente” 51. Ao transmitir esta
informação à Procuradoria Régia soube que, nesse mesmo dia, foi enviado um ofício
daquela instituição ao conservador colocado em Tavira, com o objectivo de conseguir
informações pessoais sobre o procurador. Dois dias depois era transferido para a
comarca da ilha de S. Jorge.
     O processo de transferência contra o delegado do Procurador Régio de Tavira foi
ainda marcado por uma tentativa feita pelo próprio de conseguir uma entrevista junto de
Barjona de Freitas, que se realizou na Câmara dos Deputados. Nesse encontro, Barjona
de Freitas teria dito que “o castigava com a transferência, porque não podia tolerar que
um agente do Governo querelasse sem a sua anuência outro agente do mesmo
Governo”52. A questão jurídica era encarada de formas diferentes por um governante e
por executante no terreno das decisões vindas do ministério. Porque, no entendimento
de Barjona de Freitas, o delegado do Procurador Régio deveria ter consultado primeiro
o ministro para formular uma acusação, mas, mais grave ainda, era o facto de ter
interposto um acção criminal contra o comandante do Batalhão de Caçadores nº 4 e não
contra incertos.
     No seu longo discurso na Câmara dos Deputados, Oliveira Baptista reconhece que
tentou encontrar apoiantes com alguma influência para tentar demover o Ministro da
Justiça de conseguir realizar a transferência proposta. Porém, a resposta não lhe foi
favorável e foi mesmo intimado a tomar posse. Porém, como estava impossibilitado de
viajar, juntou ao seu processo um atestado médico comprovativo, mas nem essa situação
conseguiu demover o ministro. Como resultado de não ter cumprido as ordens, que
tinha recebido do Ministério da Justiça, para tomar posse na ilha de S. Jorge, acabou por
ser demitido, tendo sido publicado um despacho no Diário do Governo.
     A principal conclusão que se retira da análise deste discurso é a necessidade de
ajuste de contas entre Oliveira Baptista, Barjona de Freitas e o Barão de Rio Zêzere. As
acusações mais graves eram feitas ao então Ministro da Justiça e ao barão. O ministro,
porque tentou interferir nas decisões do delegado e, como não o conseguiu, acabou por
criar um esquema que conduziu ao seu castigo. O Barão, porque manobrando sempre na
sombra, conseguiu mover as suas influências pessoais para escapar ao cumprimento da
lei e protegendo assim, o amigo e compadre, coronel José António de Sousa Chagas.



     51
          Idem, ibidem, p. 1106.
     52
          Idem, ibidem.


                                           15
Quanto à documentação oficial sobre a “Revolta das Medidas”, encontraram-se
nove cartas e telegramas enviados sobre este assunto pelo Governador Civil ao
Ministério do Reino. Dois telegramas datados de 8 de Dezembro, dia da revolta popular,
dirigidos ao Ministério do Reino. No dia seguinte, outro telegrama dirigido ao mesmo
ministério. No dia 10, encontramos um telegrama dirigido ao Governador Civil de Beja
e um longo relato em forma de correspondência confidencial ao Ministério do Reino.
No dia 11, novo telegrama confidencial ao referido ministério a alertar para a
necessidade de tomar de novas medidas e outro telegrama a informar sobre a situação
local. Três dias depois novo telegrama sobre o mesmo assunto ao ministério supra
referido. No dia 16, José de Beires, envia nova carta pormenorizada sobre a revolta de
Tavira.
      Que informações nos fornecem estes documentos oficiais? Como são feitos os
relatos dos acontecimentos? Que medidas foram tomadas pelo Governador Civil?
      Os telegramas do dia da revolta mostram que o governador civil ainda dispunha de
informações truncadas e parciais. O primeiro telegrama parece ter sido enviado ao início
da tarde, não sendo ainda conhecidos os acontecimentos mais graves 53. No outro
telegrama urgente, enviado nesse mesmo dia pelo Governador Civil, já se fazia menção
às vítimas mortais “houve infelizmente a lamentar a morte de 3 paisanos, e ferimentos
em 3 soldados e alguns paisanos”54.
      No dia 9 de Dezembro de 1872, o Governador Civil, José de Beires, esteve em
Tavira, a acompanhar os acontecimentos. O relato dos mesmos assume cada vez maior
gravidade, aumentara o número de vítimas mortais e os dados são apresentados de
forma clara. Os feridos, entre os populares, eram catorze, e entre os militares eram doze.
A tropa, na expressão utilizada pelo Governador Civil, “só fez fogo na última
extremidade, e depois de receber ferimentos e insultos graves no próprio quartel, que foi
acometido à pedrada”55.
      No dia 10, é então enviada uma longa missiva, com carácter confidencial, onde o
Governador Civil começa por se queixar que o administrador do concelho não lhe
transmitiu totalmente os assuntos. Narra os acontecimentos com base nos testemunhos

      53
         José de Beires, “Telegrama – Ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às
Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25. Nota: o telegrama era
acompanhado da nota urgente.
      54
         José de Beires, “Telegrama – Ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às
Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25 v.
      55
         José de Beires, “Telegrama – Ao mesmo”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições
Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25 v.


                                                16
que recolheu junto das “autoridades civis, militares, câmara municipal e principais
cavalheiros da localidade”56.
      Desta missiva retiram-se alguns elementos interessantes e novos. Segundo José de
Beires, a introdução do novo sistema de pesos e medidas, no distrito de Faro, tinha
vindo a acontecer “a pouco e pouco e sem repugnâncias notáveis (…) tendo contribuído
para isso a prudente direcção que este serviço têm dado as Câmaras e autoridades
locais”57. Na opinião deste representante do poder central, em Tavira, a Câmara
Municipal forçou a intervenção do administrador do concelho com o objectivo de
“impedir o uso das medidas antigas nos mercados públicos”. Este optou por explicar, no
dia 1 de Dezembro, aos vendedores e compradores no mercado, o funcionamento das
novas medidas e avisou que no mercado seguinte era obrigatório utilizar o novo sistema.
      No dia 8 de Dezembro, o mercado começou por funcionar normalmente, com a
utilização do novo sistema de pesos e medidas. Porém, cerca das dez horas da manhã,
“três ou quatro indivíduos gritando contra as novas medidas, quebrando as primeiras
que se lhe deparavam, e incitando o povo à destruição de todas. Foi instantâneo e geral
o motim então no mercado”58. A revolta popular dirigiu-se contra os representantes do
Estado presentes no mercado, destruindo as medidas, agredindo os representantes da
autoridade, invadindo e destruindo estabelecimentos comerciais pela cidade de Tavira e
apedrejando as forças militares presentes na cidade. No início, o administrador do
concelho, com 40 praças, tentou restabelecer a calma sem utilizar meios violentos e
acabou por conseguir terminar o tumulto na praça da cidade cerca das duas horas da
tarde. Porém, ao mesmo tempo que isto acalmava num lado surgia noutro ponto da
cidade. Um grupo de populares dirigiu-se ao quartel e apedrejou-o, provocando alguns
feridos entre oficiais e praças, os ataques e agressões continuaram até que houve a
tentativa de invasão do quartel. Face a esta ameaça, o relato afirma que “a força que se
achava dentro do quartel se viu obrigada a fazer fogo e, ainda assim, dando os primeiros
tiros para o ar”59. Apresenta-se o balanço mais actualizado dos mortos e feridos em
consequência da revolta e termina por lançar a culpa pelos incidentes aos populares
vindos das aldeias, embora reconheça que não foi orquestrado, ou preparado com
antecedência, como alguma imprensa tentou fazer crer, porque reconhecia José de

      56
         José de Beires, “Telegrama – Ao mesmo”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições
Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25 v. Esta correspondência apresenta,
marginalmente, o número 176.
      57
         Idem, ibidem.
      58
         Idem, ibidem, fl. 26.
      59
         Idem, ibidem, fl. 26 v.


                                               17
Beires, “se apresentaram desarmados servindo-se unicamente de pedras” 60. Finalizava a
carta “lastimando as deploráveis consequências da desordem” e elogiando “o modo
prudente por que, tanto a autoridade, como a força pública se houveram”61.
      Face aos rumores que circulavam, às notícias que os jornais publicavam e à
efervescência que se vivia na região, provocada pelos acontecimentos em Tavira, o
Governador Civil decide, no dia 11 de Dezembro, tomar algumas medidas preventivas.
Assim, comunica ao Ministério do Reino, por novo telegrama confidencial, que seria
“arriscado deixar Loulé completamente desguarnecido de força, principalmente no
domingo, dia de mercado, sem dúvida o mais concorrido do Algarve” 62. Esta situação da
deslocação de tropas terá provocado alguma preocupação, porque existem indícios de
fortes concentrações militares em Tavira nos dias que se seguem à revolta. Existem
mesmo notícias de destacamentos vindos de longe que se vieram juntar nesta cidade63,
procurando impedir novas revoltas. Havia receio que surgissem situações semelhantes
em outros lugares onde houvesse grande concentração de pessoas, neste caso, eram
particularmente acompanhados os mercados e feiras, que se realizavam periodicamente
pelo País e pela região.
      Os boatos que circulavam levaram as autoridades a tomar medidas para prevenir
situações que podiam ser bastante desagradáveis. Assim, José de Beires, em telegrama
datado de dia 11 de Dezembro, dava conta das preocupações existentes de se “preparar
para domingo uma agressão armada à força militar de Tavira e às repartições
públicas”64. Anunciava a sua intenção de acompanhar pessoalmente a situação no local
e, entretanto, procurava estabelecer contactos para impedir que se dessem “tais
desvarios”. Não podemos comprovar se houve de facto contactos entre o Governador
Civil e os grupos de descontentes, mas o certo é que não voltou a haver problemas como
se chegou a pensar.


      60
           Idem, ibidem.
      61
           Idem, ibidem.
        62
            José de Beires, “Telegrama confidencial urgente ao Ministério do Reino”, Livros de
Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 27.
        63
           Anónimo, “Caçadores 6”, Diário Ilustrado, Lisboa, 13-12-1872, Ano I, nº 166, p. 1, col. 2 e 3.
Cf. também Anónimo, “Províncias – Tavira”, Correspondência de Coimbra, Coimbra, 15.12-1872, Ano
I, nº 51, p. 3, col. 4. Cf ainda Anónimo, “Assuntos do Dia – Continua a reinar…”, O Conimbricence,
Coimbra, 17-12-1872, Ano XXVI, nº 2650, p. 3, col. 1. Estes jornais fazem menção aos regimentos de
infantaria nº 15, de caçadores nº 6 e infantaria nº 17.Como cada regimento era composto por cerca de
cem homens segundo informavam as nossas fontes, significa que a cidade de Tavira ficou em estado de
sítio com quase meio milhar de militares a patrulhar o perímetro urbano.
        64
           José de Beires, “Telegrama ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às
Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 27 e 27 v.


                                                   18
No dia 14 de Dezembro, José de Beires, parte de Faro para Tavira, mas as
informações de que dispunha eram já animadoras, antevendo que não houvesse os
problemas que se temiam. Dois dias depois envia nova longa correspondência para o
Ministério do Reino, dando conta dos receios que tinham existido de uma revolta
devido à “excitação de ânimos que nos primeiros dias se observava na classe artística e
marítima da cidade, em consequência de pertencerem a estas classes dois dos indivíduos
falecidos em virtude daquele conflito”65. Os boatos que circularam indicavam que teria
estado a ser preparada, entre as populações rurais, uma força para atacar os quartéis
militares e as repartições públicas. Porém, as medidas de prevenção tomadas impediram
novas tentativas de revolta, como assinalava, habilmente, o Governador Civil. A
requisição de forças militares em grande número, para estarem presentes nos mercados
dominicais de Tavira e Loulé, mostraram estar dispostas a “empregar todos os meios de
prevenção para obstar e reprimir, sendo necessário, qualquer tentativa” 66 e impedir
novas aventuras revolucionárias.
      As medidas que a autoridade administrativa mais importante na região tomou são
enumeradas e explicadas pelo próprio. O envolvimento pessoal na questão é destacado
nos textos que envia ao Ministério do Reino. Esforça-se por conseguir o
reconhecimento da sua acção pós conflito, e esta parece ser preponderante, pois afirma
nessa missiva “recomendei à autoridade local e a algumas pessoas ali preponderantes
que, por interesse próprio, fizessem por acalmar os ânimos e interviessem com os
párocos e pessoas mais influentes das freguesias rurais para desviarem os povos de
qualquer tentativa criminosa fazendo-lhes ver o mal inevitável que os esperava”67. Note-
se o reconhecimento do papel dos influentes locais e dos párocos, que conseguiam
moldar os comportamentos das populações nos meios rurais, sendo eles os
intervenientes preferenciais a utilizar para acalmar a agitação que se fazia sentir. Por
outro lado, é de salientar o facto de o nomeado político nunca assumir, em qualquer das
suas missivas qualquer acusação contra quem quer que fosse. Observa-se o cuidado que
tem em não apontar críticas aos militares, tenta mesmo defender a sua acção e utiliza-os
para intimidar e impor a autoridade e a ordem legal do Estado, mas procura persuadir de
forma pacífica as populações revoltadas.


      65
         José de Beires, “Ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições
Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 28.
      66
         Idem, ibidem.
      67
         Idem, ibidem, fl. 28 v.


                                                19
No fim desta carta, datada de 16 de Dezembro de 1872, o Governador Civil,
reconhecia que os boatos que indicavam a existência de manobras por parte de
opositores políticos ou agitadores estrangeiros, eram completamente infundadas, mas
curiosamente era esse o teor dos artigos escritos nos jornais nessa altura. As autoridades
políticas já tinham conhecimento que estes boatos não faziam qualquer sentido, mas o
debate na imprensa prolongou-se por mais alguns dias. Era importante manter a
população letrada entretida a debater assuntos que os políticos já tinham resolvido,
como acontece tantas vezes nos nossos dias.


     G) Conclusões
     A Revolta das Medidas, em Tavira, foi um acontecimento de âmbito nacional, o
que se nota pela imprensa, que se desencadeou de forma espontânea entre os populares
presentes no mercado, quando suspeitaram que estavam a ser enganados e começaram a
destruir as novas medidas e os estabelecimentos comerciais. A reacção dos militares
parece ter sido algo desproporcionada face ao perigo que representavam realmente os
revoltosos, mas entende-se quando o próprio quartel foi atacado.
     O debate sobre a revolta na imprensa é muito politizado. Os jornais regeneradores
defenderam a posição de força do exército, porque defendiam a manutenção da lei e da
ordem, mas procuram lançar boatos na opinião pública de que as oposições políticas, no
caso, os republicanos federais, poderiam estar na origem do conflito. Por outro lado, os
acontecimentos na vizinha Espanha, em particular na Andaluzia, podiam estar também
na base de uma tentativa de criação de uma República Federada na Península Ibérica.
     As perspectivas sobre a revolta na imprensa levantam no entanto alguns problemas
muito interessantes, como a questão do analfabetismo ser um factor impeditivo para a
compreensão do novo sistema de pesos e medidas. Outra situação que a imprensa
levanta é o problema do atraso face aos restantes países europeus, que era necessário
ultrapassar, e a introdução do novo sistema de pesos e medidas facilitaria o
desenvolvimento comercial e funcionaria como um sinal de modernidade.
     Alguns jornais adoptam uma atitude mais descritiva dos acontecimentos, enquanto
outros procuram analisar a questão sob perspectivas novas e diferentes. Os jornais
oposicionistas procuram salientar essencialmente a acção militar e os mortos e feridos
provocados. Lançam dúvidas sobre a necessidade daquele tipo de intervenção e realçam
o atraso económico do país.



                                           20
Os relatos oficiais são mais narrativos e autojustificativos. Lamentando sempre os
acontecimentos, o Governador Civil, o delegado do Procurador-Geral da Coroa e as
correspondências oficiais são disso um espelho. Verifica-se ainda a utilização de
estratégias de salvaguarda pessoal, de intermediação, de influência e protecção de
carreiras públicas que ficavam inevitavelmente marcadas por estes acontecimentos.
     Algumas questões ficam ainda por responder, esperemos que outros trabalhos
deste género ou mais aprofundados as possam clarificar. Por exemplo:
     - Quem seriam os correspondentes locais da imprensa lisboeta?
     - Que ligações efectivas haveria antes dos acontecimentos entre o delegado da
Procuradoria Régia, o juiz e o comandante de Caçadores nº 4?
     - Quem teria sido contactado pelo Governador Civil para colaborar no processo de
apaziguamento dos acontecimentos?
     - Haverá em Tavira ainda descendentes dos intervenientes na revolta com alguma
documentação por revelar, em particular, cartas e telegramas trocados por ocasião ou
sobre os acontecimentos?
     Tentou-se dar um pequeno contributo para conhecer melhor este episódio algo
esquecido, mas revelador do lento caminho que, em Portugal, por vezes é necessário
trilhar para alcançar aquilo que designa por modernidade. Porque as mudanças
encontram sempre obstáculos e, sobretudo se as pessoas que são confrontadas com as
transformações, não estão preparadas para as ultrapassar, não têm as suas dúvidas
esclarecidas e não as compreendem, a mudança pode significar instabilidade,
insegurança e revolta. A Revolta das Medidas, de Tavira, insere-se neste processo de
mudança que se assistia nos finais do século XIX em Portugal, com o fim dos anos
dourados do progresso fontista, das falências que se avizinhavam, com o
desenvolvimento das novas ideias republicanas e socialistas e o aumento da
instabilidade política que se acentua neste último trecho de oitocentos.




     H) Fontes e Bibliografia
     - Fontes Manuscritas
     Arquivo da Universidade de Coimbra:
     Livro de Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXVII
     Livro de Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXX


                                            21
Arquivo Distrital de Faro:
     Fundo do Governo Civil, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições
Superiores, cota: Livro 348 A


     - Fontes Impressas:
     Periódicos:
     Almanach do Exercito ou Lista Geral de Antiguidades dos Officiaes e
Empregados Civis do Exército, Lisboa, Imprensa Nacional, 1873
     Conimbricense, O, Coimbra, Dez. 1872
     Correspondência de Coimbra, Coimbra, Dez. 1872
     Diário da Câmara dos Senhores Deputados (1881), Imprensa Nacional, Lisboa,
1881.
     Diário do Governo, Lisboa, 14-01-1853
     Diário do Governo, Lisboa, 22-12-1852
     Diário Ilustrado, Lisboa, Dez. 1872
     Diário Popular, Lisboa, Dez. 1872
     Lestalgarve, Tavira, 10-06-1985
     Novidades, Lisboa, 24-03-1889
     Povo Algarvio, Tavira, 02-12-1967
     Revolução de Setembro, A, Lisboa, Dez. 1872


     Bibliografia consultada:
     ANICA, Arnaldo Casimiro Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, Câmara
Municipal de Tavira, Tavira, 1993.
     ANICA, Arnaldo Casimiro, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, vol. II,
Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 2001.
     BEIRES, José de Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Faro
(1873), Imprensa Literária, Coimbra, 1873.
     BRAGA, Teófilo, História das Ideias Republicanas em Portugal, col. Documenta
Histórica, Veja, Lisboa, 1983.
     CATROGA, Fernando, A Militância Laica e a Descristianização da Morte em
Portugal 1865-1911, [tese de doutoramento, policopiada], Coimbra, 1988.
     CAYOLLA, Lourenço, Revivendo o Passado, Imprensa Limitada, Lisboa, 1928.


                                           22
CHAGAS, Ofir Tavira. Memórias de uma Cidade, Edição do Autor, Tavira, 2004.
     CRATO, Nuno, “Da Mão-Travessa ao Metro”, in http://www.instituto-
camoes.pt/CVC/ciencia/e36.html.
     FERNANDES, Paulo Jorge “Baptista, José Júlio de Oliveira”, Dicionário
Biográfico-Parlamentar 1834-1910, vol. I (A –C), coord. Maria Filomena Mónica, Col.
Parlamento, ICS/Assembleia da República, 2004.
     JUSTINO, David, A Formação do Espaço Económico Nacional. Portugal 1810-
1913, vol. II, col. Documenta Histórica, Vega, Lisboa, s.d.
     MARQUES, A. H. Oliveira “Pesos e Medidas”, Dicionário de História de
Portugal, vol. V, dir. Joel Serrão, Livraria Figueirinhas, Porto, 1992.
     MARTINS, Rocha, Pequena História da Imprensa Portuguesa, col. Cadernos
Culturais, Editorial Inquérito, Lisboa, 1942.
     PINTO, Silva, Pela Vida Fora (1870-1900), Livraria Editora Guimarães e
Libânio, Lisboa, 1900.
     RODRIGUES, Ernesto, http://culturaport.blogs.sapo.pt/arquivo/841621.html.
     SILVA, A. Carneiro da, Jornais e Revistas do Distrito de Coimbra, Edição da
Biblioteca Municipal, Coimbra, 1947.
     TENGARRINHA, José, História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2ª ed.,
Caminho, Lisboa, 1989.
     TRIGOSO, Sebastião Francisco Mendes, “Memória sobre os pesos e medidas
portuguesas, e sobre a introdução do sistema metro-decimal”, Memórias Económicas da
Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo V, 253-305, 1 mapa, Lisboa, 1815 [reed.
Banco de Portugal, 1991]
     ZUIN, Elenice de Souza Lodron, “O sistema métrico decimal em Portugal nos
Liceus do século XIX: considerações sobre o Tratado Elementar de Arithmethica de
Luiz Porfírio da Motta Pegado”, http://fordis.ese.ips.pt/docs/siem/texto25.doc.




                                            23

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A Revolta das Medidas em Tavira

  • 1. ARTUR ÂNGELO BARRACOSA MENDONÇA Praça da Constituição em Tavira (fins séc. XIX) A Revolta das Medidas em Tavira (1872): subsídios para história da implementação do sistema decimal em Portugal VI JORNADAS DE HISTÓRIA DE TAVIRA 4 DE NOVEMBRO 2006
  • 2. A Revolta das Medidas em Tavira (1872): subsídios para história da implementação do sistema decimal em Portugal Artur Ângelo Barracosa Mendonça A) O contexto político, económico e cultural da época Durante o ano de 1872, Portugal vive sob o impacto dos acontecimentos internacionais como os ecos da Comuna de Paris, a revolução republicana espanhola ou acontecimentos nacionais como o primeiro surto de greves operárias em Lisboa, a realização de um conjunto de reuniões anticlericais no Porto, o malogro da tentativa revolucionária denominada A Pavorosa, que conduziu à prisão o marquês de Angeja, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão iniciam a publicação de As Farpas, Oliveira Martins publica Teoria do Socialismo, surge o jornal O Pensamento Social e Teófilo Braga lança a obra Teoria da História Literária. Alguns destes acontecimentos e, em particular, a Comuna da Paris, despertaram “um interesse que a política interna viciada pelo jornalismo apagara de todo dos espíritos”1 como o reconheceu Teófilo Braga. No Algarve estes acontecimentos vivem-se com relativo distanciamento. A imprensa local era quase inexistente e a de carácter nacional era difundida com atraso. O telégrafo era o meio mais utilizado para difundir as notícias. Estas sofriam o efeito nefasto da transformação em boato, que era muito frequente e regular ao tempo. A dificuldade de comunicação com a região dificultava a propagação do impacto dos acontecimentos. Seria nos meios urbanos, com mais acesso aos jornais, com população mais alfabetizada que faria algum sentido falar do impacto destes acontecimentos. É necessário ter presente que o comboio só vai chegar a Faro em 1889 e a Tavira em 1905. As viagens eram geralmente feitas por via marítima ou terrestre demorando bastante tempo, com elevado risco de assalto ou avaria. Mais próximo, e com alguma repercussão na região, havia o problema da revolta carlista em Espanha 2. Esta revolta provocava combates intensos na região da Andaluzia 1 Teófilo Braga, História das Ideias Republicanas em Portugal, col. Documenta Histórica, Veja, Lisboa, 1983, p. 93. 2 Carlismo: movimento político legitimista, antiliberal e anti-revolucionário que se desenvolveu em Espanha, durante o século XIX, tendo por objectivo o estabelecimento de um ramo alternativo aos Bourbon no trono do país vizinho. A situação agravou-se quando, nas eleições de 1871, o partido carlista, denominado Comunhão Católico-Monárquica, conseguiu eleger cerca de 50 deputados e 30 senadores. 2
  • 3. que provocaram a debandada de alguns habitantes da região em busca de local seguro no Algarve. A comunidade castelhana na região algarvia aumentou consideravelmente nesta época conturbada da vida política no país vizinho. Muitas pessoas instalaram-se nas principais vilas e cidades algarvias, dedicando-se especialmente ao comércio. A guerra carlista, que se desenrolou entre 1872 e 1876, já tinha sido antecedida por outras que decorreram entre 1822-1823 e entre 1833-1840. O movimento carlista tinha sido reorganizado após a revolução de 1868. Foi um período politicamente conturbado, em Espanha, porque Amadeu I, entre Dezembro de 1870 e Fevereiro de 1872, realizou três eleições gerais, nomeou seis governos e registou oito crises governamentais. Esta instabilidade conduziu o parlamento a proclamar a República. Mas também o novo regime foi marcado pela grande instabilidade, em dez meses de existência houve quatro presidentes. A vereação da Câmara Municipal de Tavira era, em 1872, constituída por: Sebastião José Teixeira Neves de Aragão, João Pires, João Pedro da Fonseca Gomes, José Mendes Pereira Neto, João Rodrigues Gomes Centeno. O presidente da câmara era o major reformado José Joaquim Pimentel3. O comandante do Batalhão de Caçadores nº 4, era José António de Sousa Chagas4, o Juiz de Direito era Leocádio Maria Andresson5 e o Delegado do Procurador Régio era José Júlio de Oliveira Baptista 6. Estes foram Perante a possibilidade de perder deputados em novas eleições e, sobretudo, preocupado em impedir uma restauração da família de Bourbon, o partido carlista optou pela via da guerra em 21 de Abril de 1872. 3 Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 1993, p. 151 e 155. 4 Ofir Chagas, Tavira. Memórias de uma Cidade, Edição do Autor, Tavira, 2004, p. 177. Tentando desenvolver um pouco mais a biografia deste oficial pode afirmar-se que José António de Sousa Chagas terá nascido cerca de 1813, assentou praça em 9-06-1832; alferes em 28-07-1837; tenente em 15-02-1845; capitão em 20-01-1847; major em 29-04-1851; tenente-coronel em 21-01-1863 e coronel em 22-05-1868 in Almanach do Exercito ou Lista Geral de Antiguidades dos Officiaes e Empregados Civis do Exército , Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, p. 46-47. Não foi possível determinar a data exacta da morte deste oficial do exército, mas ela deve ter ocorrido durante esta década de setenta do séc. XIX. 5 Pequena nota biográfica: Leocádio Maria Andresson, nasceu em Portel, em 06-09-1829, filho de Eduardo Augusto Andresson Limpo de Vasconcellos e de Quitéria Margarida de Azevedo Vellez. Matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em Outubro de 1845, tendo seguido a carreira de Juiz. Cf. Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Livro de Certidões de Idade (1834- 1900), Livro LXX, fl. 13. Cota: IV-1ª D-5-2-70. 6 Paulo Jorge Fernandes, “Baptista, José Júlio de Oliveira”, Dicionário Biográfico-Parlamentar 1834-1910, vol. I (A –C), coord. Maria Filomena Mónica, Col. Parlamento, ICS/Assembleia da República, 2004, p. 290-291. A biografia elaborada nesta obra permite compreender um pouco melhor a situação que então teve lugar e os reflexos que causou na vida de alguns dos seus intervenientes. Acrescentando algo mais a esta biografia pode dizer-se que José Júlio de Oliveira Baptista nasceu em 27- 05-1841, em Passarela, freguesia de Lagarinhos, concelho de Gouveia, filho de Joaquim Lourenço Borges Saraiva e Ana de Oliveira Baptista. Realizou a sua primeira matrícula na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 05-10-1857. (Cf. Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Livro de Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXVII, fl. 265. Cota: IV-1ª D-5-2-67.) Em 1880, quando era deputado, foi eleito vice-secretário da Câmara dos Deputados e pertenceu à comissão de legislação civil. Em 1883, era juiz de comarca em Olhão. Veio a falecer, no Porto, no hospital de alienados daquela cidade, em Março de 1889. Cf. Anónimo, “Falecimentos”, Novidades, Lisboa, 24-03-1889, Ano V, nº 3
  • 4. alguns dos protagonistas dos acontecimentos que tiveram lugar em Tavira em 8 de Dezembro de 1872. B) A evolução do sistema métrico decimal em Portugal Desde tempos antigos que se vinha tentado implementar um sistema uniforme de pesos e medidas, porque estas variavam “de região para região, de cidade para cidade, de aldeia para aldeia7”, o que dificultava muito o desenvolvimento da actividade comercial. Segundo David Justino, uma das primeiras tentativas frustradas que aconteceram em Portugal, terá ocorrido em 1575, quando se publicou uma lei que visava a uniformização dos pesos e medidas pelos padrões de Lisboa 8. A questão só começou a ser solucionada em 1795, quando, em França, foi decretada a lei de 18 de Germinal do ano III (7 de Abril de 1795), que instituiu o revolucionário sistema métrico-décimal. Poucos meses depois, esta medida era avaliada em Portugal com uma memória da autoria de José Abreu de Bacelar Chichorro, que analisando os dados científicos que tinham conduzido à sua implementação em França a considerava mais adequada para resolver a referida questão em Portugal. Publicaram-se alguns estudos ao longo dos tempos para tentar implementar a esta medida a Portugal, mas existiam muitas resistências que barravam a sua concretização. Em 1812, a Comissão para o Exame dos Forais e Melhoramento da Agricultura recomenda a reforma do sistema dos pesos e medidas. Ainda no reinado de D. João VI, em 18149, apesar do rei se encontrar no Brasil, houve a tentativa de executar novos padrões de pesos e medidas respeitando os protótipos vindos de França que seriam distribuídos pelos concelhos. Nesse ano chegou a ser criada uma comissão para a Reforma dos Pesos e Medidas no Reino. Em 1815, Sebastião Francisco Mendes Trigoso, publica uma memória na Academia Real das Ciências de Lisboa10 que 1467, p. 2, col. 2. 7 A. H. Oliveira Marques, “Pesos e Medidas”, Dicionário de História de Portugal, vol. V, dir. Joel Serrão, Livraria Figueirinhas, Porto, 1992, p. 67. 8 David Justino, A Formação do Espaço Económico Nacional. Portugal 1810-1913, vol. II, col. Documenta Histórica, Vega, Lisboa, s.d., p. 195, nota 71. Este autor elaborou uma resenha histórica da evolução do sistema métrico-décimal em Portugal entre as páginas 194 e 200 desta obra. 9 http://www.cm-maia.pt/cmm/metrologia/historia.htm . Ainda sobre este tema ver o texto de Nuno Crato, “Da Mão-Travessa ao Metro”, in http://www.instituto-camoes.pt/CVC/ciencia/e36.html. Ver ainda o texto de Elenice de Souza Lodron Zuin, “O sistema métrico decimal em Portugal nos Liceus do século XIX: considerações sobre o Tratado Elementar de Arithmethica de Luiz Porfírio da Motta Pegado”, http://fordis.ese.ips.pt/docs/siem/texto25.doc. 10 Sebastião Francisco Mendes Trigoso,, “Memória sobre os pesos e medidas portuguesas, e sobre a introdução do sistema metro-decimal”, Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo V, 253-305, 1 mapa, Lisboa, 1815 [reed. Banco de Portugal, 1991]. 4
  • 5. apontava para a necessidade de introduzir o novo sistema de pesos e medidas em Portugal dando seguimento aos estudo que vinham a ser efectuados por diversos membros daquela academia. Porém, a revolução de 1820, adiou todos estes projectos, porque a situação chegou a um impasse e os seus principais defensores compreenderam que os seus estudos e trabalhos científicos tinham caído num esquecimento que se iria prolongar por várias décadas. Nos trabalhos parlamentares, encontram-se ecos deste assunto ter sido debatido com alguma insistência entre Janeiro e Fevereiro de 1845, entre Fevereiro e Março de 1850 e em Junho e Julho de 1869. O tema ligado ao sistema de pesos e medidas volta a ser debatido mais tarde, já em 1893 e 1896, mas com menor número de intervenções. Em 1852, a 13 de Dezembro, depois de cerca de quatro décadas de longos e laboriosos estudos, foi adoptado o sistema métrico decimal. Porém, a sua implementação iria acontecer gradualmente ao longo de um período de tempo. Segundo este decreto, o país teria dez anos para implantar o sistema métrico. Em simultâneo com a adopção do sistema métrico decimal, foi criada no Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, a Comissão Central de Pesos e Medidas (22 de Dezembro de 185211), que propôs, em 1855, a criação de uma Inspecção Geral dos Pesos e Medidas do Reino12 e uma Estação de Aferições, dependentes dessa Inspecção. Contudo, em 1868, foram extintas a Repartição dos Pesos e Medidas e as Inspecções Distritais, confiando-se o afilamento dos pesos e medidas às Câmaras Municipais, sujeitas a inspecção das Repartições Distritais de Obras Públicas, sendo posto em causa, em poucos anos, todo o esforço de implementação do novo sistema. C) As revoltas contra o novo sistema de pesos e medidas O relatório que antecede a publicação do Decreto de 13 de Dezembro de 1852, e que o justifica, afirmava “muito lucraria a nossa civilização se fora possível substituir num breve espaço de tempo o novo sistema legal dos nossos antigos pesos e medidas, e se os costumes e os hábitos longamente enraizados não opusessem sempre um certo 11 Diário do Governo, Lisboa, 22-12-1852, nº 302, p. 1363 e 1364. 12 Esta repartição teve como um dos seus elementos mais destacados, Joaquim Henriques Fradesso da Silveira (15-04-1825 a 26-04-1875), professor da Escola Politécnica de Lisboa e autor de diversas obras entre as quais destacamos: Compendio do novo systema legal de medidas, approvado pela commissão central de pesos e medidas, Typ. Cent. Com., Lisboa, 1856; Mappas das Medidas do novo Systema Legal: comparadas com as antigas nos dversos concelhos do Reino e Ilhas , Lisboa, Imp. Nacional, 1868; A questão de fazenda, Impr. Nacional, Lisboa, 1872; O Ensino Primário na Belgica, Imp. Nacional, Lisboa, 1872. 5
  • 6. embaraço que a lei só pausada e prudentemente pode vencer com segurança” 13. Antevendo os obstáculos que surgiriam, começaram por reconhecer que “decretar a adopção imediata do sistema métrico, sem contar com as resistências e com as dificuldades do uso, e da ignorância, seria comprometer o bom êxito de uma reforma de tanto momento e interesse nacional”14. Estas dificuldades que se adivinhavam acabaram por se confirmar, assim, o decreto no seu artigo 3º, definia um período de dez anos para o novo sistema de pesos e medidas estar em pleno vigor. Para estimular e acelerar a entrada em vigor do decreto, o Ministério da Obras Públicas, Comércio e Indústria, em 11 de Janeiro de 1853, mandava que a partir de 1 de Fevereiro desse ano, todas as repartições dependentes do referido ministério adoptassem o sistema métrico decimal15. Porém, a implementação do novo sistema de pesos e medidas levantou muitas resistências e, em 1862, surgem notícias de um levantamento popular em Guimarães 16, devido à obrigatoriedade do mesmo sistema. No ano seguinte surgem revoltas populares na província do Minho e só durante a década de setenta do século XIX é que as câmaras municipais generalizaram o sistema a todo o País, embora com algumas resistências como as que se verificaram nas Freixedas (Pinhel) e Tavira. D) A Revolta das Medidas em Tavira na imprensa periódica As principais fontes utilizadas para acompanhar esta revolta foram os órgãos da imprensa periódica de Lisboa e Coimbra, que fizeram eco da situação e acompanharam- na durante vários dias. Também o testemunho de dois intervenientes na época que eram o governador civil, José de Beires e o testemunho de José Júlio de Oliveira Baptista na sua intervenção parlamentar em 21 de Março de 1881, quando numa intervenção relata os acontecimentos ocorridos em Tavira. Finalmente, mas talvez mais importante, a correspondência trocada, na época, entre o governador civil e o Ministério do Reino a relatar a situação, que se encontra no Arquivo Distrital de Faro. 13 Diário do Governo, Lisboa, 22-12-1852, nº 302, p. 1363, col. 3. 14 Idem 15 Diário do Governo, Lisboa, 14-01-1853, nº 12, p. 63, col. 2 e 3. 16 David Justino, ob. cit., p. 198. 6
  • 7. Os factos ocorridos relatam-se de forma sucinta: no dia 8 de Dezembro de 1872 17, domingo, feriado nacional, em Tavira, realizava-se o habitual mercado dos domingos. A Câmara Municipal, em reunião realizada dias antes, tomara a decisão de aplicar o novo sistema de pesos e medidas. Perante esta alteração, surgiram logo muitas dúvidas aos compradores no mercado que, desconfiados, tentavam saber se estavam a ser enganados pelos comerciantes. Face a uma situação descoberta de oportunismo a população reage em revolta e começa a destruir os novos pesos e medidas. A tropa que estava presente, primeiro, tentou acalmar a situação, mas como a população parecia cada vez mais revoltada acabou por realizar algumas detenções entre os mais exacerbados. Parece que momentaneamente o problema acalmou, mas depois os desordeiros organizaram-se para ir solicitar a libertação dos companheiros que tinham sido presos. Como não foram atendidos, apedrejaram os soldados e o quartel de caçadores nº 4, ferindo alguns soldados e oficiais. O comandante do quartel, face ao desacato à autoridade, acabou por dar ordem de fogo sobre os manifestantes, o que aconteceu tendo causado seis mortos e catorze feridos. O delegado do procurador régio, Dr. José Júlio de Oliveira Baptista, interpôs uma acção em tribunal contra o coronel José António de Sousa Chagas, por abuso de autoridade e de força que teria resultado na sua despromoção, mas o recurso hierárquico interposto pelo militar e por influência do Barão de Rio Zêzere 18, acabou por não ser pronunciado. O Governador Civil, José de Beires, logo que teve conhecimento dos acontecimentos de Tavira teve o cuidado de dar conhecimento da situação ao Ministro do Reino, António Rodrigues Sampaio, num telegrama datado de 8 de Dezembro, mas ainda sem ter toda a informação afirmava “às 10 horas de hoje começou a amotinar-se o 17 Arnaldo Casimiro Anica, “A chamada Revolução das Medidas”, Lestalgarve, Tavira, 10-06- 1985, Ano IV, nº 98, p. 3, col. 1 a 3. Reproduz-se aqui um artigo publicado no Povo Algarvio, Tavira, 02- 12-1967, nº 1746, p. 1, col. 2 e 3 e p. 2, col. 1 e 2, a que se acrescentam algumas notas importantes do distinto investigador da história de Tavira. Mais recentemente o mesmo autor, publica mais algumas notas sobre este acontecimento que encontrou no processo existente no Tribunal de Tavira Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, vol. II, Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 2001, p. 53 e 54. Ver também os verbetes: “Anderson [Andresson], Leocádio Maria”, p. 146; “Chagas, José António de Sousa”, p. 177; “Revolta das Medidas”, p. 305 in Ofir Chagas, Tavira. Memórias de uma cidade, Ed. do Autor, Tavira, 2004. 18 Joaquim Bento Pereira (Barão do Rio Zêzere), nasceu em Setúbal, a 7 de Setembro de 1798, e faleceu em Lisboa, a 19 de Dezembro de 1875. Militar do exército, assentou praça em 27 de Junho de 1816. Combateu na campanha do Rio da Prata (América do Sul), regressou a Portugal e combateu os miguelistas. Personalidade muito controversa, chegou a ser condenado à morte em conselho de guerra, mas conseguiu repetir o julgamento e sair ilibado. Participou em diversos duelos e tornou-se um inseparável amigo do marechal Saldanha, tendo-o acompanhado em todas as suas aventuras político- militares. Foi comandante militar da região do Algarve a partir de 1850 até perto de 1866, conseguindo estabelecer aí uma forte rede de influências que se fazia ainda sentir em 1872, quando dos acontecimentos em questão. 7
  • 8. povo em Tavira por causa das novas medidas, sendo necessário intervir a força. Deram- se três ou quatro ferimentos em paisanos na ocasião em que estes atacavam o quartel de Caçadores 4”19. No jornal Diário Popular20, publicado em Lisboa, dois dias depois, dizia-se logo em primeira página “os serranos em Tavira revolucionaram-se contra as novas medidas, quebrando-as. A tropa foi apedrejada, um sargento e oito soldados feridos. A tropa fez fogo resultando muitos ferimentos e sete mortes” 21. No mesmo dia, o jornal Revolução de Setembro22, publicava em primeira página “o governo teve ontem notícia de que às 10 horas da manhã tinha havido desordens em Tavira por causa das novas medidas, e que se tinha atacado o quartel sendo os desordeiros repelidos. Poucas horas depois recebeu nova participação de que tinham acabado os tumultos, mas não sem a morte de três paisanos e sem o ferimento de soldados e paisanos. Um telegrama de hoje anunciava que o governador civil de Faro partira para Tavira, onde não havia nada que indicasse novos motins. Parece que o governo tinha tido informações de que se tentava ali alguma surpresa”23. O jornal Revolução de Setembro, referia por diversas vezes o governo e não o fazia inocentemente. Na época, fazia parte do executivo António Rodrigues Sampaio, Ministro do Interior e redactor principal deste diário português. A notícia procurava realçar a acção governamental no controlo da situação e reforçar a ideia de manutenção da ordem pública por parte do exército. 19 José de Beires, “Telegrama – Ao Ministério do Reino”, Arquivo Distrital de Faro (ADF) - Fundo do Governo Civil, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, cota: Livro 348 A, fl. 25. 20 Jornal diário, fundado em Lisboa, em 13 de Julho de 1866. Tinha por director Mariano de Carvalho, mais tarde substituído por Mariano Pina e por João Cesário de Lacerda. Foram redactores Alberto Pimentel, Mariano Prezado, Câmara Lima, Silva Pinto, Tomás Bastos, Alfredo Ribeiro entre outros. Este jornal surgiu resultando da fusão dos jornais O Noticiário Português (Lisboa, 1 de Maio a 12 de Julho de 1866) e As Notícias (Lisboa, 27 de Março a 15 de Julho de 1866), para tentar fazer concorrência ao Diário de Notícias, fundado por Eduardo Coelho, porém termina a sua publicação em 13 de Junho de 1896. Era impresso na Tipografia Lusitana. Cf. Rocha Martins, Pequena História da Imprensa Portuguesa, col. Cadernos Culturais, Editorial Inquérito, Lisboa, 1942, p. 69-70. Segundo conseguimos apurar eram proprietários do jornal entre outros: António Centeno, Joaquim de Vasconcelos Gusmão e o Marquês da Foz (Tristão Guedes Correia de Queirós Castelo Branco), pelo menos cerca de 1890, como afirma Silva Pinto, Pela Vida Fora (1870-1900), Livraria Editora Guimarães e Libânio, Lisboa, 1900, p. 144. Cf. ainda Lourenço Cayolla, Revivendo o Passado, Imprensa Limitada, Lisboa, 1928, p. 144-145. 21 Anónimo, “Grande Desordem”, Diário Popular, Lisboa, 10-12-1872, Ano 7, nº 2192, p. 1, col. 3 22 Jornal diário fundado em Lisboa em 22 de Junho de 1840, que terminou a sua publicação em 20 de Janeiro de 1901. Foi um dos mais importantes jornais do seu tempo, onde colaboraram personalidades como José Estêvão de Magalhães, Mendes Leite, António Rodrigues Sampaio, Júlio César Machado, António Pedro Lopes de Mendonça e muitos outros ao longo de mais de meio século, embora com algumas interrupções. Ernesto Rodrigues, professor de Cultura Portuguesa, na Faculdade de Letras de Lisboa considera-o “o diário emblemático do Romantismo” no seu blogue http://culturaport.blogs.sapo.pt/arquivo/841621.html. 23 Anónimo, “O governo …”, A Revolução de Setembro, Lisboa, 10-12-1872, Ano 32, nº 9143, p. 1, col. 1 e 2. 8
  • 9. Por outro lado, o Diário Popular dedica nove artigos, mais ou menos longos, ao assunto da revolta de Tavira, aproveitando para levantar alguns problemas mais complicados ao governo. Já nessa altura, talvez mais que nos nossos dias, os órgãos da imprensa eram muito próximos das correntes políticas dominantes, como reconheceu José Tengarrinha, “nitidamente noticiosos, só o Diário de Notícias e o Diário Popular; os outros são, mais ou menos veladamente, órgãos de partidos e facções” 24. Neste contexto noticioso, o Diário Popular transcreve uma correspondência de Faro, publicada no Jornal do Comércio, em que faz um relato pormenorizado da revolta e identifica o correspondente25. A Revolução de Setembro, no dia 11 de Dezembro, dedica o seu artigo de fundo ao problema da revolta de Tavira e qualifica-o de deplorável, e acrescenta “estão apagados no espírito dos agitadores todos os sentimentos de patriotismo e de moralidade política”26. O autor deste artigo poderia, muito provavelmente, ser António Rodrigues Sampaio, que começa por traçar o quadro comparativo da situação entre Portugal e Espanha. Afirmava o autor, que o país vizinho, “debate-se entre convulsões dos partidos extremos, que não levantam audaciosamente a bandeira da revolta, mas que empregam o banditismo, a luta de guerrilhas como meio de agitar o país, de inquietar o governo, e de preparar enfim os elementos de insurreição mais séria”. Por seu lado, “Portugal prossegue em paz no seu desenvolvimento civilizador, dá um exemplo de cordura às nações”27. Parece óbvia a tentativa que este autor faz de paralelismo entre a situação de Portugal e de Espanha, criar uma dicotomia entre o que está bem e o que está mal, porque em Espanha havia guerra e em Portugal não e assim poderíamos “rivalizar com a Bélgica, logo, que, desembaraçados dos perigos financeiros”28. A análise feita neste artigo levanta suspeitas de envolvimentos dos agitadores com os espanhóis, aproveitando o facto de estar em voga, na época, a ideia de iberismo e de federalismo, que alimentava os sonhos de uma Península Ibérica unida politicamente para enfrentar as grandes potências da Europa central. Em Portugal as concepções 24 José Tengarrinha, História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2ª ed., Caminho, Lisboa, 1989, p. 231. 25 A identificação dos correspondentes locais dos diferentes jornais nacionais é um trabalho muito curioso e que ainda está por fazer. Porque estes correspondentes acabavam por criar uma determinada imagem das situações, porque reconstruíam a realidade através do seu olhar e muitas vezes acabavam por criar situações de conflito com personalidades locais que lhes dificultavam a tarefa. Temos acompanhado muitas correspondências locais nos diferentes jornais portugueses dos finais do século XIX e muito poucos são os correspondentes identificados, porque raramente os artigos eram assinados. 26 Anónimo, “Interior”, Revolução de Setembro, Lisboa, 11-12-1872, Ano XXXIII, nº 9144, p. 1, col. 1 e 2. 27 Idem, ibidem. 28 Idem, ibidem. 9
  • 10. iberistas tiveram algum eco através dos autores ligados ao embrionário movimento republicano que era muito influenciado por pensadores espanhóis e franceses29. Colocando em comparação a forma como as notícias são apresentadas no Diário Popular e na Revolução de Setembro podem retirar-se algumas conclusões. O Diário Popular procurou encontrar várias versões sobre o mesmo acontecimento, entrou em pormenores, apontou nomes, narrou acontecimentos e apontou algumas críticas. Nas colunas desse órgão da imprensa escrita chega a afirmar-se em correspondência de Tavira: “Governo sabia de tudo, estava prevenido de tudo, e não evitou nem as desordens, nem o derramamento de sangue”30. Esta teria sido a primeira grande dúvida que se levantou entre a população, como é que um governo sabendo que a revolta estaria latente, não teria prevenido a situação enviando mais tropas para o mercado? Os boatos lançados através da imprensa que apoiava o governo regenerador serviram para criar mais dúvidas, criando situações que fizessem emergir algum “inimigo” com quem partilhasse as culpas pela revolta. O mesmo jornal, levanta a suspeita de os jornais governamentais imputarem a responsabilidade da revolta aos republicanos federais e questiona: “que interesse teriam os republicanos federais em fazer com que um destacamento espancasse o povo e depois se reunisse ao corpo?” 31. Constata-se aqui a preocupação em questionar, com alguma razão, o facto de os regeneradores estarem a tentar arranjar alguém mais com quem repartir as responsabilidades, acabando por encontrar nos republicanos federais, os alvos preferenciais. Por fim, coloca ainda outra questão pertinente, “sendo a introdução de contrabando tão fácil no Algarve (…), como se explica que os incitadores não introduzissem armas e deixassem os seus sectários unicamente com pedras, cacos, nabiças, cidras, rabanetes e outras armas pouco ofensivas”32. Com um armamento tão pouco ofensivo torna-se interessante também questionar a desproporção da resposta utilizada pelos militares, ainda para mais quando os órgãos informativos referem algumas dezenas de pessoas revoltadas. Esta situação parece indiciar uso excessivo da força por parte dos oficiais da Companhia de Caçadores nº 4 ou alguma precipitação na tomada de decisões. 29 Teófilo Braga, História das Ideias Republicanas em Portugal, col. Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1983, p. 159-161. Sobre a evolução e transformação do positivismo em Portugal cf. Fernando Catroga, A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal 1865-1911, [tese de doutoramento, policopiada], Coimbra, 1988, p. 107 a 219. 30 Anónimo, “A propósito das desordens em Tavira”, Diário Popular, Lisboa, 14-12-1872, Ano 7, nº 2196, p. 1, col. 4. 31 Anónimo, “Segundo as folhas ministeriais …”, Diário Popular, Lisboa, 18-12-1872, Ano 7, nº 2200, p. 2, col. 3. 32 Idem, art. cit. 10
  • 11. Por seu lado, a Revolução de Setembro aborda o problema numa perspectiva mais analítica, procurando problematizar as situações e estabelecer as comparações entre países, especialmente a Espanha e Portugal e França e Bélgica. Num primeiro momento, lança acusações de aventureirismo e banditismo político aos participantes e incitadores na revolta popular. Por outro lado, defende a posição tomada pelos militares e afirma que o Governo deve agir “com energia” 33. Porém, esforça-se por lançar a dúvida sobre quem estava por detrás da revolta e afirmava que estes aventureiros “não chegam a constituir um partido novo com uma ideia nova, nunca actuaram sobre o país com uma propaganda que desse aos seus compatriotas uma ideia do seu programa e do seu fim, e são eles com tudo isso homens das revoluções” 34. Na mesma linha de raciocínio se desenvolveram os artigos publicados sobre este assunto noutro diário afecto ao Partido Regenerador, neste caso o Diário Ilustrado35. Pode dizer-se que os redactores e correspondentes locais do Diário Popular são mais factuais, narram os factos, colocam algumas questões importantes mas não se alongam em grandes análises dos acontecimentos. Por seu lado, os autores das colunas do diário Revolução de Setembro, procuram lançar a culpa dos acontecimentos para supostas intervenções estrangeiras ou para os revolucionários e perigosos republicanos. Também O Conimbricense dedicou quatro artigos à questão da revolta de Tavira. Três deles breves, fazendo relato das ocorrências, dando conta das movimentações militares que mostravam uma “certa efervescência no Algarve” 36 e os receios de que os problemas pudessem voltar-se a repetir. Por outro lado, fazia referência ao problema dos boatos que circulavam em Lisboa acerca da situação conturbada na região, mas assinalava a forte presença da força militar para consolidar a manutenção da ordem pública. No artigo publicado a 21 de Dezembro de 1872, o autor referia-se aos diversos tumultos que vinham a ocorrer em diversas regiões do país, “sem causa que os provoque nem motivo que os justifique”37. Estas desordens e tumultos que “um grupo de desordeiros e mal intencionados […] desejam promover a anarquia entre os povos”, 33 Anónimo, “Interior, Lisboa, 10 de Dezembro ”, Revolução de Setembro, Lisboa, 11-12-1872, Ano XXXIII, nº 9144, p. 1, col. 1 e 2. 34 Idem, art. cit. 35 Este jornal diário foi fundado em Lisboa, por Pedro Correia da Silva, em Junho de 1872 e prolongou a sua existência até 1910. Era impresso na Tipografia de Joaquim Germano de Sousa Neves e a redacção localizava-se na Travessa da Queimada, em Lisboa. Foram directores deste jornal Sérgio de Castro e mais tarde Agostinho de Campos. Eram colaboradores do Diário Ilustrado, entre outros: Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Carlos Lobo de Ávila, etc. 36 Anónimo, “Assuntos do Dia”, O Conimbricense, Coimbra, 17-12-1872, Ano XXVI, nº 2650, p. 3, col. 1. 37 Anónimo “Coimbra”, O Conimbricense, Coimbra, 21-12-1872, Ano XXVI, nº 2651, p. 1, col. 1 e 2. 11
  • 12. resultando que “os seus agentes devem sofrer todas as consequências de tão estranho e inqualificável procedimento”38. Conclui-se, portanto, da leitura deste semanário conimbricense, que a revolta de 8 de Dezembro de 1872 estaria ligada a um movimento de contestação mais alargado, que visava alterar a ordem pública e a força militar teria reagido para repor essa situação. Fazia-se a defesa do Estado autoritário, forte, cumpridor estrito das leis e da sua implementação, como tal não tinha sido possível em Tavira, tornou-se necessário utilizar os recursos de que dispunham para punir aqueles que “atentam contra os sagrados e invioláveis direitos da ordem pública”39. Outro órgão noticioso que também dedica alguma atenção aos assuntos da Revolta das Medidas foi o semanário coimbrão Correspondência de Coimbra40. Nas duas notícias que encontramos neste semanário, uma delas merece destaque porque faz a análise do problema numa perspectiva diferente. Num artigo não assinado, mas integrado na rubrica regular “Províncias”, faz-se uma análise dos acontecimentos. Primeiro lamenta o sucedido e aponta os responsáveis dos acontecimentos, que, na sua opinião, seriam “a ignorância e a péssima educação constitucional, que os políticos lhe têm dado [ao povo] há trinta anos a esta parte” 41. Por outro lado, critica a desorganização e a falta de interesse pela escola, o pouco empenho dos párocos em explicar a importância do Estado e, finalmente, os influentes políticos locais que exploram a ignorância, a mesquinhez e criam obstáculos ao progresso que era representado pela introdução do novo sistema de pesos e medidas. Segundo o autor do artigo na Correspondência de Coimbra havia duas causas essenciais que estiveram na origem da Revolta das Medidas: “primeira – a ignorância absoluta do sistema métrico decimal e das suas vantagens aplicadas aos pesos e medidas”, apontando a grande importância da escola e do ensino para ultrapassar esta situação. Concomitantemente, o outro problema era “a cobardia inacreditável com que os governos reconsideram na pronta execução das leis, que suspendem e vão adiando de ano para ano”42. O autor do texto defendia que a firmeza na aplicação do novo sistema 38 Idem, art. cit. 39 Idem, ibidem. 40 Jornal semanário que se publicou em Coimbra a partir de 1 de Janeiro de 1872, fundado por Joaquim Gualberto Soares e por Araújo Pinto. O redactor principal era o professor da Faculdade de Direito, Manuel Emídio Garcia (até 1874) e eram colaboradores deste jornal, entre outros: José Silvestre Ribeiro, Júlio de Vilhena, Luís Jardim (Conde de Valenças), José Cavalheiro, Oliveira Matos e Sousa Refoios. Terminou a sua publicação em 1908. Cf. A. Carneiro da Silva, Jornais e Revistas do Distrito de Coimbra, Edição da Biblioteca Municipal, Coimbra, 1947, p. 49-50. 41 Anónimo, “Províncias –Tavira”, Correspondência de Coimbra, Coimbra, 15-12-1872, Ano I, nº 51, p. 3, col. 2 e 3. 42 Anónimo, “Províncias – Tavira”, Correspondência de Coimbra, Coimbra, 15-12-1872, Ano I, nº 51, p. 3, col. 2 e 3. 12
  • 13. de pesos e medidas, por parte do poder executivo, não teria criado tantos obstáculos e não suscitaria tanta oposição à obediência das leis. Com a situação criada, de avanços e recuos na aplicação do sistema decimal, tornou-se necessário recorrer ao uso da força para conseguir fazer respeitar as leis. E) As impressões da revolta nas autoridades locais No Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Faro, publicado em Coimbra, por José de Beires, no ano seguinte aos acontecimentos, dedicou várias páginas a este assunto, no capítulo da “Ordem e Segurança”. O Governador Civil começa por lamentar o sucedido “com bem mágoa no meu coração” 43 e, destaca a gravidade dos factos ocorridos, porque “enlutou algumas famílias, arrastou muitas infelizes ao leito da dor e encheu de consternação os povos do Algarve” 44. O relato feito dos acontecimentos de Tavira, acrescenta alguns aspectos novos que não são descritos nos artigos da imprensa, como o facto dos indivíduos revoltosos terem entrado em diversos estabelecimentos comerciais de uma das mais frequentadas ruas de Tavira e destruído as novas medidas em diversas lojas. Outro elemento a considerar são os mortos resultantes da revolta que, na sua versão, foram cinco, enquanto os órgãos da imprensa periódica referiam somente três, quatro ou sete. Finalmente, refere-se também à repercussão da revolta na região e no país que provocou “grande sensação” e alimentou boatos de que haveriam, em preparação, novas tentativas de revolta. Porém, o Governador Civil, saúda o facto de que tal não tenha acontecido porque, “as medidas de prevenção adoptadas impusessem respeito aos mal intencionados” ou “porque no espírito naturalmente bondoso e pacífico daquela população, momentaneamente desvairada até à loucura, não podiam, depois da reflexão, caber ideias subversivas” 45. Concluía José de Beires que o processo da revolta estava a ser julgado pelos tribunais sendo necessário analisar legalmente os factos e “punir os verdadeiros criminosos”46. Um aspecto muito importante deste relato é o facto de não se apresentar a defesa de nenhuma das partes. José de Beires tem o cuidado de nunca referir nomes, nem identificar culpados de forma nominal. Relata a situação, como ele teve conhecimento, e porque teria acontecido, mas não tenta encontrar culpados. Mesmo sendo um nomeado 43 José de Beires, Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Faro (1873), Imprensa Literária, Coimbra, 1873, p. 26. 44 José de Beires, ob. cit., p. 26 45 Idem, ibidem, p. 27-28. 46 Idem, ibidem, p. 28. 13
  • 14. político, não procura encontrar nos adversários políticos as culpas dos acontecimentos como os jornais tinham procurado fazer. Nove anos mais tarde, em 1881, José Júlio de Oliveira Baptista, deputado eleito pelo círculo de Tavira, recorda, num longo discurso realizado perante a Câmara dos Deputados no dia 21 de Março, alguns aspectos menos conhecidos e as consequências daquela revolta. Um dos principais visados, pela sua visão critica dos acontecimentos, era o então Ministro da Justiça, Augusto César Barjona de Freitas, porque tomou posição em favor de uma das partes, tentou limitar a acção do procurador régio 47 e favorecer a sua própria situação política. Assim, Oliveira Baptista acusou-o de ser um dos responsáveis pela sua transferência para delegado do procurador régio na comarca da ilha de S. Jorge, porque ele tinha tomado a decisão de querelar sem sua anuência, o comandante do Batalhão de Caçadores nº 4. Esta decisão era uma consequência da análise legal dos factos, porque o coronel José António de Sousa Chagas teria “usurpado ilegalmente as atribuições”48 que, no ponto de vista de José Júlio de Oliveira Baptista, pertenceriam ao administrador substituto do concelho. Por outro lado, era bastante estranho que cerca de “cento e trinta homens, todos armados e mais ou menos disciplinados”49 que estariam no quartel de Tavira, não conseguissem fazer recuar quatro ou cinco dezenas de revoltosos. Finalmente, e talvez a questão de maior gravidade fosse o problema de se ter verificado “pelos exames, que muitos desses ferimentos eram nas costas”50, tendo o juiz legitimamente concluído que estes ferimentos tinham sido infligidos quando as pessoas já estavam em fuga, o que se tornaria um crime de homicídio. Perante todos estes acontecimentos, o então delegado do procurador régio, enviou um ofício para a Procuradoria Régia para solicitar apoio na tomada de decisões. Porém, na Procuradoria Régia, só estavam preocupados com as testemunhas parciais arroladas para relatar os factos, com a tentativa de comprometer a força armada e a situação em que estava o processo em face do depoimento prestado pelas testemunhas. José Júlio de Oliveira Baptista tomou então a responsabilidade de interpor querela “não só contra os tumultuosos, mas contra o comandante do Batalhão de Caçadores nº4, por ter excedido os limites da justa defesa; reconheci-lhe o direito de se defender a si, ao batalhão do seu comando e ao seu quartel, mas entendi, em face das provas dos autos, que ele tinha ido 47 Era Procurador-Geral da Coroa, João Baptista da Silva Ferrão Carvalho Martens (28-01-1824 a 15-11-1895), nomeado em 28 de Julho de 1868 e manteve-se nessas funções até cerca de 1885. 48 Diário da Câmara dos Senhores Deputados (1881), Imprensa Nacional, Lisboa, 1881, p. 1105. 49 Idem, ibidem. 50 Idem, ibidem. 14
  • 15. além desse direito e que por isso devia responder criminalmente” 51. Ao transmitir esta informação à Procuradoria Régia soube que, nesse mesmo dia, foi enviado um ofício daquela instituição ao conservador colocado em Tavira, com o objectivo de conseguir informações pessoais sobre o procurador. Dois dias depois era transferido para a comarca da ilha de S. Jorge. O processo de transferência contra o delegado do Procurador Régio de Tavira foi ainda marcado por uma tentativa feita pelo próprio de conseguir uma entrevista junto de Barjona de Freitas, que se realizou na Câmara dos Deputados. Nesse encontro, Barjona de Freitas teria dito que “o castigava com a transferência, porque não podia tolerar que um agente do Governo querelasse sem a sua anuência outro agente do mesmo Governo”52. A questão jurídica era encarada de formas diferentes por um governante e por executante no terreno das decisões vindas do ministério. Porque, no entendimento de Barjona de Freitas, o delegado do Procurador Régio deveria ter consultado primeiro o ministro para formular uma acusação, mas, mais grave ainda, era o facto de ter interposto um acção criminal contra o comandante do Batalhão de Caçadores nº 4 e não contra incertos. No seu longo discurso na Câmara dos Deputados, Oliveira Baptista reconhece que tentou encontrar apoiantes com alguma influência para tentar demover o Ministro da Justiça de conseguir realizar a transferência proposta. Porém, a resposta não lhe foi favorável e foi mesmo intimado a tomar posse. Porém, como estava impossibilitado de viajar, juntou ao seu processo um atestado médico comprovativo, mas nem essa situação conseguiu demover o ministro. Como resultado de não ter cumprido as ordens, que tinha recebido do Ministério da Justiça, para tomar posse na ilha de S. Jorge, acabou por ser demitido, tendo sido publicado um despacho no Diário do Governo. A principal conclusão que se retira da análise deste discurso é a necessidade de ajuste de contas entre Oliveira Baptista, Barjona de Freitas e o Barão de Rio Zêzere. As acusações mais graves eram feitas ao então Ministro da Justiça e ao barão. O ministro, porque tentou interferir nas decisões do delegado e, como não o conseguiu, acabou por criar um esquema que conduziu ao seu castigo. O Barão, porque manobrando sempre na sombra, conseguiu mover as suas influências pessoais para escapar ao cumprimento da lei e protegendo assim, o amigo e compadre, coronel José António de Sousa Chagas. 51 Idem, ibidem, p. 1106. 52 Idem, ibidem. 15
  • 16. Quanto à documentação oficial sobre a “Revolta das Medidas”, encontraram-se nove cartas e telegramas enviados sobre este assunto pelo Governador Civil ao Ministério do Reino. Dois telegramas datados de 8 de Dezembro, dia da revolta popular, dirigidos ao Ministério do Reino. No dia seguinte, outro telegrama dirigido ao mesmo ministério. No dia 10, encontramos um telegrama dirigido ao Governador Civil de Beja e um longo relato em forma de correspondência confidencial ao Ministério do Reino. No dia 11, novo telegrama confidencial ao referido ministério a alertar para a necessidade de tomar de novas medidas e outro telegrama a informar sobre a situação local. Três dias depois novo telegrama sobre o mesmo assunto ao ministério supra referido. No dia 16, José de Beires, envia nova carta pormenorizada sobre a revolta de Tavira. Que informações nos fornecem estes documentos oficiais? Como são feitos os relatos dos acontecimentos? Que medidas foram tomadas pelo Governador Civil? Os telegramas do dia da revolta mostram que o governador civil ainda dispunha de informações truncadas e parciais. O primeiro telegrama parece ter sido enviado ao início da tarde, não sendo ainda conhecidos os acontecimentos mais graves 53. No outro telegrama urgente, enviado nesse mesmo dia pelo Governador Civil, já se fazia menção às vítimas mortais “houve infelizmente a lamentar a morte de 3 paisanos, e ferimentos em 3 soldados e alguns paisanos”54. No dia 9 de Dezembro de 1872, o Governador Civil, José de Beires, esteve em Tavira, a acompanhar os acontecimentos. O relato dos mesmos assume cada vez maior gravidade, aumentara o número de vítimas mortais e os dados são apresentados de forma clara. Os feridos, entre os populares, eram catorze, e entre os militares eram doze. A tropa, na expressão utilizada pelo Governador Civil, “só fez fogo na última extremidade, e depois de receber ferimentos e insultos graves no próprio quartel, que foi acometido à pedrada”55. No dia 10, é então enviada uma longa missiva, com carácter confidencial, onde o Governador Civil começa por se queixar que o administrador do concelho não lhe transmitiu totalmente os assuntos. Narra os acontecimentos com base nos testemunhos 53 José de Beires, “Telegrama – Ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25. Nota: o telegrama era acompanhado da nota urgente. 54 José de Beires, “Telegrama – Ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25 v. 55 José de Beires, “Telegrama – Ao mesmo”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25 v. 16
  • 17. que recolheu junto das “autoridades civis, militares, câmara municipal e principais cavalheiros da localidade”56. Desta missiva retiram-se alguns elementos interessantes e novos. Segundo José de Beires, a introdução do novo sistema de pesos e medidas, no distrito de Faro, tinha vindo a acontecer “a pouco e pouco e sem repugnâncias notáveis (…) tendo contribuído para isso a prudente direcção que este serviço têm dado as Câmaras e autoridades locais”57. Na opinião deste representante do poder central, em Tavira, a Câmara Municipal forçou a intervenção do administrador do concelho com o objectivo de “impedir o uso das medidas antigas nos mercados públicos”. Este optou por explicar, no dia 1 de Dezembro, aos vendedores e compradores no mercado, o funcionamento das novas medidas e avisou que no mercado seguinte era obrigatório utilizar o novo sistema. No dia 8 de Dezembro, o mercado começou por funcionar normalmente, com a utilização do novo sistema de pesos e medidas. Porém, cerca das dez horas da manhã, “três ou quatro indivíduos gritando contra as novas medidas, quebrando as primeiras que se lhe deparavam, e incitando o povo à destruição de todas. Foi instantâneo e geral o motim então no mercado”58. A revolta popular dirigiu-se contra os representantes do Estado presentes no mercado, destruindo as medidas, agredindo os representantes da autoridade, invadindo e destruindo estabelecimentos comerciais pela cidade de Tavira e apedrejando as forças militares presentes na cidade. No início, o administrador do concelho, com 40 praças, tentou restabelecer a calma sem utilizar meios violentos e acabou por conseguir terminar o tumulto na praça da cidade cerca das duas horas da tarde. Porém, ao mesmo tempo que isto acalmava num lado surgia noutro ponto da cidade. Um grupo de populares dirigiu-se ao quartel e apedrejou-o, provocando alguns feridos entre oficiais e praças, os ataques e agressões continuaram até que houve a tentativa de invasão do quartel. Face a esta ameaça, o relato afirma que “a força que se achava dentro do quartel se viu obrigada a fazer fogo e, ainda assim, dando os primeiros tiros para o ar”59. Apresenta-se o balanço mais actualizado dos mortos e feridos em consequência da revolta e termina por lançar a culpa pelos incidentes aos populares vindos das aldeias, embora reconheça que não foi orquestrado, ou preparado com antecedência, como alguma imprensa tentou fazer crer, porque reconhecia José de 56 José de Beires, “Telegrama – Ao mesmo”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25 v. Esta correspondência apresenta, marginalmente, o número 176. 57 Idem, ibidem. 58 Idem, ibidem, fl. 26. 59 Idem, ibidem, fl. 26 v. 17
  • 18. Beires, “se apresentaram desarmados servindo-se unicamente de pedras” 60. Finalizava a carta “lastimando as deploráveis consequências da desordem” e elogiando “o modo prudente por que, tanto a autoridade, como a força pública se houveram”61. Face aos rumores que circulavam, às notícias que os jornais publicavam e à efervescência que se vivia na região, provocada pelos acontecimentos em Tavira, o Governador Civil decide, no dia 11 de Dezembro, tomar algumas medidas preventivas. Assim, comunica ao Ministério do Reino, por novo telegrama confidencial, que seria “arriscado deixar Loulé completamente desguarnecido de força, principalmente no domingo, dia de mercado, sem dúvida o mais concorrido do Algarve” 62. Esta situação da deslocação de tropas terá provocado alguma preocupação, porque existem indícios de fortes concentrações militares em Tavira nos dias que se seguem à revolta. Existem mesmo notícias de destacamentos vindos de longe que se vieram juntar nesta cidade63, procurando impedir novas revoltas. Havia receio que surgissem situações semelhantes em outros lugares onde houvesse grande concentração de pessoas, neste caso, eram particularmente acompanhados os mercados e feiras, que se realizavam periodicamente pelo País e pela região. Os boatos que circulavam levaram as autoridades a tomar medidas para prevenir situações que podiam ser bastante desagradáveis. Assim, José de Beires, em telegrama datado de dia 11 de Dezembro, dava conta das preocupações existentes de se “preparar para domingo uma agressão armada à força militar de Tavira e às repartições públicas”64. Anunciava a sua intenção de acompanhar pessoalmente a situação no local e, entretanto, procurava estabelecer contactos para impedir que se dessem “tais desvarios”. Não podemos comprovar se houve de facto contactos entre o Governador Civil e os grupos de descontentes, mas o certo é que não voltou a haver problemas como se chegou a pensar. 60 Idem, ibidem. 61 Idem, ibidem. 62 José de Beires, “Telegrama confidencial urgente ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 27. 63 Anónimo, “Caçadores 6”, Diário Ilustrado, Lisboa, 13-12-1872, Ano I, nº 166, p. 1, col. 2 e 3. Cf. também Anónimo, “Províncias – Tavira”, Correspondência de Coimbra, Coimbra, 15.12-1872, Ano I, nº 51, p. 3, col. 4. Cf ainda Anónimo, “Assuntos do Dia – Continua a reinar…”, O Conimbricence, Coimbra, 17-12-1872, Ano XXVI, nº 2650, p. 3, col. 1. Estes jornais fazem menção aos regimentos de infantaria nº 15, de caçadores nº 6 e infantaria nº 17.Como cada regimento era composto por cerca de cem homens segundo informavam as nossas fontes, significa que a cidade de Tavira ficou em estado de sítio com quase meio milhar de militares a patrulhar o perímetro urbano. 64 José de Beires, “Telegrama ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 27 e 27 v. 18
  • 19. No dia 14 de Dezembro, José de Beires, parte de Faro para Tavira, mas as informações de que dispunha eram já animadoras, antevendo que não houvesse os problemas que se temiam. Dois dias depois envia nova longa correspondência para o Ministério do Reino, dando conta dos receios que tinham existido de uma revolta devido à “excitação de ânimos que nos primeiros dias se observava na classe artística e marítima da cidade, em consequência de pertencerem a estas classes dois dos indivíduos falecidos em virtude daquele conflito”65. Os boatos que circularam indicavam que teria estado a ser preparada, entre as populações rurais, uma força para atacar os quartéis militares e as repartições públicas. Porém, as medidas de prevenção tomadas impediram novas tentativas de revolta, como assinalava, habilmente, o Governador Civil. A requisição de forças militares em grande número, para estarem presentes nos mercados dominicais de Tavira e Loulé, mostraram estar dispostas a “empregar todos os meios de prevenção para obstar e reprimir, sendo necessário, qualquer tentativa” 66 e impedir novas aventuras revolucionárias. As medidas que a autoridade administrativa mais importante na região tomou são enumeradas e explicadas pelo próprio. O envolvimento pessoal na questão é destacado nos textos que envia ao Ministério do Reino. Esforça-se por conseguir o reconhecimento da sua acção pós conflito, e esta parece ser preponderante, pois afirma nessa missiva “recomendei à autoridade local e a algumas pessoas ali preponderantes que, por interesse próprio, fizessem por acalmar os ânimos e interviessem com os párocos e pessoas mais influentes das freguesias rurais para desviarem os povos de qualquer tentativa criminosa fazendo-lhes ver o mal inevitável que os esperava”67. Note- se o reconhecimento do papel dos influentes locais e dos párocos, que conseguiam moldar os comportamentos das populações nos meios rurais, sendo eles os intervenientes preferenciais a utilizar para acalmar a agitação que se fazia sentir. Por outro lado, é de salientar o facto de o nomeado político nunca assumir, em qualquer das suas missivas qualquer acusação contra quem quer que fosse. Observa-se o cuidado que tem em não apontar críticas aos militares, tenta mesmo defender a sua acção e utiliza-os para intimidar e impor a autoridade e a ordem legal do Estado, mas procura persuadir de forma pacífica as populações revoltadas. 65 José de Beires, “Ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 28. 66 Idem, ibidem. 67 Idem, ibidem, fl. 28 v. 19
  • 20. No fim desta carta, datada de 16 de Dezembro de 1872, o Governador Civil, reconhecia que os boatos que indicavam a existência de manobras por parte de opositores políticos ou agitadores estrangeiros, eram completamente infundadas, mas curiosamente era esse o teor dos artigos escritos nos jornais nessa altura. As autoridades políticas já tinham conhecimento que estes boatos não faziam qualquer sentido, mas o debate na imprensa prolongou-se por mais alguns dias. Era importante manter a população letrada entretida a debater assuntos que os políticos já tinham resolvido, como acontece tantas vezes nos nossos dias. G) Conclusões A Revolta das Medidas, em Tavira, foi um acontecimento de âmbito nacional, o que se nota pela imprensa, que se desencadeou de forma espontânea entre os populares presentes no mercado, quando suspeitaram que estavam a ser enganados e começaram a destruir as novas medidas e os estabelecimentos comerciais. A reacção dos militares parece ter sido algo desproporcionada face ao perigo que representavam realmente os revoltosos, mas entende-se quando o próprio quartel foi atacado. O debate sobre a revolta na imprensa é muito politizado. Os jornais regeneradores defenderam a posição de força do exército, porque defendiam a manutenção da lei e da ordem, mas procuram lançar boatos na opinião pública de que as oposições políticas, no caso, os republicanos federais, poderiam estar na origem do conflito. Por outro lado, os acontecimentos na vizinha Espanha, em particular na Andaluzia, podiam estar também na base de uma tentativa de criação de uma República Federada na Península Ibérica. As perspectivas sobre a revolta na imprensa levantam no entanto alguns problemas muito interessantes, como a questão do analfabetismo ser um factor impeditivo para a compreensão do novo sistema de pesos e medidas. Outra situação que a imprensa levanta é o problema do atraso face aos restantes países europeus, que era necessário ultrapassar, e a introdução do novo sistema de pesos e medidas facilitaria o desenvolvimento comercial e funcionaria como um sinal de modernidade. Alguns jornais adoptam uma atitude mais descritiva dos acontecimentos, enquanto outros procuram analisar a questão sob perspectivas novas e diferentes. Os jornais oposicionistas procuram salientar essencialmente a acção militar e os mortos e feridos provocados. Lançam dúvidas sobre a necessidade daquele tipo de intervenção e realçam o atraso económico do país. 20
  • 21. Os relatos oficiais são mais narrativos e autojustificativos. Lamentando sempre os acontecimentos, o Governador Civil, o delegado do Procurador-Geral da Coroa e as correspondências oficiais são disso um espelho. Verifica-se ainda a utilização de estratégias de salvaguarda pessoal, de intermediação, de influência e protecção de carreiras públicas que ficavam inevitavelmente marcadas por estes acontecimentos. Algumas questões ficam ainda por responder, esperemos que outros trabalhos deste género ou mais aprofundados as possam clarificar. Por exemplo: - Quem seriam os correspondentes locais da imprensa lisboeta? - Que ligações efectivas haveria antes dos acontecimentos entre o delegado da Procuradoria Régia, o juiz e o comandante de Caçadores nº 4? - Quem teria sido contactado pelo Governador Civil para colaborar no processo de apaziguamento dos acontecimentos? - Haverá em Tavira ainda descendentes dos intervenientes na revolta com alguma documentação por revelar, em particular, cartas e telegramas trocados por ocasião ou sobre os acontecimentos? Tentou-se dar um pequeno contributo para conhecer melhor este episódio algo esquecido, mas revelador do lento caminho que, em Portugal, por vezes é necessário trilhar para alcançar aquilo que designa por modernidade. Porque as mudanças encontram sempre obstáculos e, sobretudo se as pessoas que são confrontadas com as transformações, não estão preparadas para as ultrapassar, não têm as suas dúvidas esclarecidas e não as compreendem, a mudança pode significar instabilidade, insegurança e revolta. A Revolta das Medidas, de Tavira, insere-se neste processo de mudança que se assistia nos finais do século XIX em Portugal, com o fim dos anos dourados do progresso fontista, das falências que se avizinhavam, com o desenvolvimento das novas ideias republicanas e socialistas e o aumento da instabilidade política que se acentua neste último trecho de oitocentos. H) Fontes e Bibliografia - Fontes Manuscritas Arquivo da Universidade de Coimbra: Livro de Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXVII Livro de Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXX 21
  • 22. Arquivo Distrital de Faro: Fundo do Governo Civil, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, cota: Livro 348 A - Fontes Impressas: Periódicos: Almanach do Exercito ou Lista Geral de Antiguidades dos Officiaes e Empregados Civis do Exército, Lisboa, Imprensa Nacional, 1873 Conimbricense, O, Coimbra, Dez. 1872 Correspondência de Coimbra, Coimbra, Dez. 1872 Diário da Câmara dos Senhores Deputados (1881), Imprensa Nacional, Lisboa, 1881. Diário do Governo, Lisboa, 14-01-1853 Diário do Governo, Lisboa, 22-12-1852 Diário Ilustrado, Lisboa, Dez. 1872 Diário Popular, Lisboa, Dez. 1872 Lestalgarve, Tavira, 10-06-1985 Novidades, Lisboa, 24-03-1889 Povo Algarvio, Tavira, 02-12-1967 Revolução de Setembro, A, Lisboa, Dez. 1872 Bibliografia consultada: ANICA, Arnaldo Casimiro Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 1993. ANICA, Arnaldo Casimiro, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, vol. II, Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 2001. BEIRES, José de Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Faro (1873), Imprensa Literária, Coimbra, 1873. BRAGA, Teófilo, História das Ideias Republicanas em Portugal, col. Documenta Histórica, Veja, Lisboa, 1983. CATROGA, Fernando, A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal 1865-1911, [tese de doutoramento, policopiada], Coimbra, 1988. CAYOLLA, Lourenço, Revivendo o Passado, Imprensa Limitada, Lisboa, 1928. 22
  • 23. CHAGAS, Ofir Tavira. Memórias de uma Cidade, Edição do Autor, Tavira, 2004. CRATO, Nuno, “Da Mão-Travessa ao Metro”, in http://www.instituto- camoes.pt/CVC/ciencia/e36.html. FERNANDES, Paulo Jorge “Baptista, José Júlio de Oliveira”, Dicionário Biográfico-Parlamentar 1834-1910, vol. I (A –C), coord. Maria Filomena Mónica, Col. Parlamento, ICS/Assembleia da República, 2004. JUSTINO, David, A Formação do Espaço Económico Nacional. Portugal 1810- 1913, vol. II, col. Documenta Histórica, Vega, Lisboa, s.d. MARQUES, A. H. Oliveira “Pesos e Medidas”, Dicionário de História de Portugal, vol. V, dir. Joel Serrão, Livraria Figueirinhas, Porto, 1992. MARTINS, Rocha, Pequena História da Imprensa Portuguesa, col. Cadernos Culturais, Editorial Inquérito, Lisboa, 1942. PINTO, Silva, Pela Vida Fora (1870-1900), Livraria Editora Guimarães e Libânio, Lisboa, 1900. RODRIGUES, Ernesto, http://culturaport.blogs.sapo.pt/arquivo/841621.html. SILVA, A. Carneiro da, Jornais e Revistas do Distrito de Coimbra, Edição da Biblioteca Municipal, Coimbra, 1947. TENGARRINHA, José, História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2ª ed., Caminho, Lisboa, 1989. TRIGOSO, Sebastião Francisco Mendes, “Memória sobre os pesos e medidas portuguesas, e sobre a introdução do sistema metro-decimal”, Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo V, 253-305, 1 mapa, Lisboa, 1815 [reed. Banco de Portugal, 1991] ZUIN, Elenice de Souza Lodron, “O sistema métrico decimal em Portugal nos Liceus do século XIX: considerações sobre o Tratado Elementar de Arithmethica de Luiz Porfírio da Motta Pegado”, http://fordis.ese.ips.pt/docs/siem/texto25.doc. 23