O século XIX – Contextualização
No fim do século XIX expressam-se inquietações na arte e na literatura. Coexistem várias
correntes estéticas e anunciam-se outras que se imiscuem no Romantismo ou no Realismo, ou
até se apresentam como contraditórias. Todavia, o Realismo/Naturalismo e o Modernismo (na
base do qual está o Parnasianismo e o Simbolismo) recusam o Romantismo.
Prolifera a produção literária e surgem nomes sonantes em todos os modos literários, pela
Europa. Em Portugal, destacam-se Cesário Verde (parnasiano), Eugénio de Castro e Camilo
Pessanha (simbolista).
O impressionismo ressalta na arte e distancia-se do Realismo ao revelar-se mais pessoal.
Esfuma-se a fronteira entre o objetivo e o subjetivo com Manet, abrindo caminho aos
impressionistas Monet, Renoir, Sisley, entre outros.
O Impressionismo captado do real
A poesia do quotidiano despoetiza o ato poético, refletindo a impressão que o exterior deixa
no interior do poeta. Daí que se estabeleçam conexões entre esta poesia e a pintura
impressionista: o artista pretende captar as impressões que as coisas lhe deixam, tal como
Cesário Verde faz.
Numa atitude anti literária, Cesário Verde projeta no exterior o seu interior, nascendo, assim,
a poesia do real, que permite ao poeta rever-se nas coisas, de modo a atingir o equilíbrio. É esta
atitude que leva Cesário Verde a situar-se próximo do Impressionismo.
Lirismo ou versos prosaicos
Se o lirismo se associa à expressão que o «eu» faz do seu mundo íntimo, a prosa surge
voltada para o mundo exterior, usando um vocabulário mais correto, mais objetivo.
Mas são vários os poemas de Cesário Verde onde o vocabulário objetivo é utilizado, onde a
realidade exterior é descrita, mas também, e frequentemente no mesmo poema, essa realidade
objetiva é revestida de formas poéticas, designando-se, por isso, de versos prosaicos.
A expressão da realidade objetiva, tal como aparece em Cesário Verde, é profundamente
conotativa e, mesmo que o discurso não fosse entrecortado por frases exclamativas, ricas de
subjetivismo, não seria difícil descobrir-se uma outra linguagem a relatar as impressões íntimas
das realidades objetivas e observadas.
Em Cesário Verde assiste-se constantemente à passagem do objetivo para o subjetivo.
Logo, pode afirmar-se que se a sua poesia é a expressão do mundo real, exterior, também o é d
um mundo psíquico, interior, e daí poder afirmar-se que na poesia de Cesário Verde, tal como na
de outros parnasianos, não há lirismo puro, há preferencialmente versos prosaicos, isto é, prosa
Professor António Fernandes
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em forma de verso.
O repórter do quotidiano
É na captação da outra face da realidade lisboeta que Cesário Verde se inspira (a dos
trabalhadores que denunciam a sua origem campesina), contrariamente ao que faz Eça de
Queirós.
Ao vaguear (o célebre deambular), o «eu» denuncia o lado oposto ao da grandeza, focando
os lugares pobres e nauseabundos, os humildes que sustentam a cidade. Ironicamente foca as
figuras intermédias, como o “criado” de “Num bairro moderno”, ou os “caixeiros” de “O Sentimento
dum Ocidental”. Transfigurando o que vê, capta ainda aquelas personagens dúbias, como a
“actrizita” de “Cristalizações”, que, tal como a cidade, tentam esconder a sua condição. Para
Cesário Verde, ver é perceber o que se esconde e, por isso, perceciona a cidade
minuciosamente, através dos sentidos.
Em Cesário Verde raramente os interiores são retratados, porque o «eu» está em
movimento, numa cidade cheia de homens autênticos, e a sua consciência acompanha essa
evolução do espaço.
A poesia de Cesário Verde
Esta suposta supremacia da cidade em relação ao campo leva Cesário Verde a tratar estes
dois espaços em termos dicotómicos.
E se a poesia do autor reflete o binómio cidade/campo, tal deve-se à dupla vivência que este
“poeta-pintor” teve. Com efeito, o «eu» passou a sua infância no campo, e esse contacto
determinou a visão que dele dá.
O curioso é constatar-se que o campo apresentado não tem o aspeto idílico, paradisíaco que
tinha para os poetas anteriores. Note-se que este espaço não aparece associado ao bucolismo
ou ao devaneio poético, mas é um espaço real, aquele onde se podem observar os camponeses
na sua lide diária, onde as alegrias se manifestam face aos prazeres da vida, e onde as tristezas
ocorrem quando os acontecimentos não seguem um curso normal. É o dia-a-dia concreto,
autêntico e real, aquele com que Cesário Verde contacta e do qual dá conta de uma forma
realista, mas onde também se presencia a sua subjetividade, percetível na preferência que
manifesta por este local.
Cesário Verde associa o campo à vida, à fertilidade, à vitalidade, ao rejuvenescimento,
porque nele não há a miséria constrangedora, o sofrimento, a poluição aterradora, os cheiros
nauseabundos, os seres humanos dúbios, os exploradores, os ricos pretensiosos que desprezam
os humildes. Estes seres, estranhos ao campo, pode o «eu» encontra-los na cidade.
Ao contrário da libertação que o campo lhe oferece, o espaço citadino empareda-o,
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incomoda-o, do mesmo modo que incomodavam os pobres trabalhadores que, na cidade, se
depararam com as mais acentuadas injustiças, com a subserviência, eles, os que não tinham
medo do trabalho, os que enfrentavam as lutas quotidianas com determinação e força, com
atitudes corajosas que os faziam ricos aos olhos de Cesário Verde, um dos poucos que sabia
que, sem eles, os cosmopolitas teriam poucas hipóteses de sobrevivência.
A arte de Cesário Verde é única, autêntica, reveladora de uma preocupação social sentida,
que chega a comover o leitor pela sua veracidade e pormenor descritivo, transportando-o para o
mundo que foi o dele, com as suas imperfeições e as suas virtudes. E a força inspiradora de
Cesário Verde é a terra-mãe; nela, Cesário Verde encontra os seus temas e o estímulo para
escrever e, por isso, associa-se o poeta ao mito de Anteu, porque também este ia buscar a sua
força à terra, sua mãe, para derrotar os que da costa Líbia se aproximassem.
Linguagem e estilo
A poesia de Cesário Verde distingue-se pela exatidão do vocabulário, pelas imagens
extremamente visuais, ao ponto de se considerar este poeta um pintor, e ele próprio afirmar “pinto
quadros por letras, por sinais” – “Nós”. À semelhança de Eça de Queirós, Cesário Verde mistura o
físico e o moral, combina sensações, usa sinestesias, apresenta primeiro a sensação e só depois
se refere ao objeto (“Amareladamente, os cães parecem lobos”), emprega dois ou mais adjetivos
associados ao mesmo nome. Mas a linguagem de Cesário Verde é ainda mais pitoresca e realista
que a de Eça de Queirós, usando mesmo termos desprovidos de conteúdo poético, pertencentes
a um nível familiar ou técnico, como, por exemplo, martelo, batatal, quintalório, navalhas de volta.
É notória a predileção do poeta pelas quadras, em versos decassilábicos ou alexandrinos,
usando frequentemente o transporte ou enjambement.
Se o rigor da forma aproxima Cesário Verde dos parnasianos, já a subjetividade de que
aparecem eivados muitos dos seus poemas o afasta desta e do lirismo tradicional.
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