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HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
Citando Noel Rosa, Aracy de Almeida dizia que Hermínio
Bello de Carvalho não resta a menor dúvida. Sou testemunha de
quanto se amavam, de quanto se conheciam e de quanto se con-
fessavam. Para se ter uma idéia, fosse Aracy de Almeida a sobrevi-
vente da dupla, ninguém teria mais do que ela autoridade para
escrever sobre Hermínio Bello de Carvalho, a quem chamava ca-
rinhosamente de Belo Hermínio.
Não é de hoje que Hermínio me pede para escrever uma biogra-
fia de Aracy. Não percebendo minha disposição de dar início à tarefa,
usou os mais variados artifícios. No tempo em que ele era bom bebe-
dor de uísque, enchia a cara e me telefonava, colocando em seguida o
telefone no alto falante do seu sistema de som, de onde saíam as
imortais interpretações de nossa inesquecível Araca. “Você não se
comove, não se emociona?”, perguntava ele. Eu dava uma desculpa
qualquer, menos a fundamental: “Antes de mim, quem tem de escre-
ver sobre ela é você”. Parece que, finalmente, entendeu a sua missão
e, às vésperas de completar 70 anos (“69 não é idade, é uma posição”,
disse Marcos Azambuja. Esta frase poderia ser também de Aracy de
Almeida), decidiu comemorar a data numa espécie de reencontro
consigo mesmo reencontrando-se com a cantora.
Ainda bem que não saí na frente. Conheci Aracy muito bem,
convivemos na boemia, trabalhamos juntos em várias oportunidades
e viajamos inúmeras vezes no mesmo trem noturno Rio-São Paulo
(“oaviãodoscovardes”,comoelaeCiroMonteirobatizaramotrem),
mas minha autoridade para escrever sobre ela não passa de 10% se
comparada à de Hermínio, embora ele faça questão de esclarecer que
sua obra não é uma biografia. Mesmo não sendo, não creio que outra
obra seja capaz de pintar um retrato tão completo e tão verdadeiro de
Aracy de Almeida.
Tudo aqui é verdade. E dou fé.
Um caso de amor
Sérgio Cabral
Prefácio
8
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
A Paixão Aracy de Almeida
segundo Hermínio Bello de Carvalho
Hermínio Bello de Carvalho e Aracy de Almeida, no Zicartola, 1964
9
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
QQuando me perguntam quem era e como vivia Aracy de
Almeida, corro o sério risco de passar por mentiroso e potoqueiro,
testemunha que fui de um naco pequeníssimo de sua grande
vida. Só a recordo como pessoa de fino trato, inteligência
incomum e, paradoxalmente, mulher de maus modos quando
exposta ao público. Aquele estereótipo que a televisão exacerba-
ra para consumo das massas, exposto cruelmente como um ser
humano intratável, desglamurizada e permanentemente de maus
bofes, na verdade guardava os contornos meio punks que ela já
rascunhara na década de 30, quando ia cantar nos bordéis do
Mangue, levada por Noel Rosa.
Também com ele ia sorver tonéis de cerveja Cascatinha na
legendária Taberna da Glória, onde cruzaria copos com Mário
de Andrade (“um matusquela”) e também com Saturnino, Zeca
Meia-Noite, Brancura, Miguelzinho da Lapa e os bookmakers e
batedores de carteira que gravitavam em sua volta. Com eles
dicionarizou o palavreado malandro, recheado de gírias, que
mereceria um glossário.
“Uns e outros aí já disseram que eu sou uma mulher sem
modos, que eu já morri e não-sei-quê, e se queixam até dos meus
palavrões. Acontece que eu não estou a fim de fazer média com
ninguém. O Hermínio Bello de Carvalho fica puto da vida quan-
do eu digo que agora eu sou mais comediante. Aí ele me escu-
lhamba dizendo que eu faço humor negro.”
Quem a visse na rua colhendo os frutos de jurada mais bem
paga da televisão, revidando desaforos ou contraditoriamente de-
10
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
volvendo o acarinhamento do povo que idolatrava seus
destemperos, talvez não suspeitasse que, sob aquele manto de
aparente azedume (“tenho os bofes azedos”), estava uma das maio-
res cantoras brasileiras de todos os tempos.
A casa onde vivia, no bairro do Encantado, era casa no mais
vasto sentido: ampla, com jardins ao fundo, janelas permanen-
temente abertas, ensolarada. E quadros de Di Cavalcanti, Clovis
Graciano, Antonio Bandeira, Walter Wendhausen, Heitor dos
Prazeres, Luis Canabrava, Aldemir Martins. Uma bela coleção
de opalinas, além de faianças, o relógio de ouro, o gramofone,
vasos raríssimos, badulaques espalhados pela casa – e um busto
seu, esculpido por Bruno Giorgi, sobre o étagère. Catar
antigüidades que um amigo leiloeiro lhe indicava (“Nada como
uma boa pechincha”) foi mania que por algum tempo me conta-
giou. Tapetes persas, lustres da Bohemia, biscuits raríssimos – e
a algaravia feita pelos seus companheiros ciumentos e inseparáveis:
Feijão, um poodle sem-vergonha, Gorda e Miudinha, duas pê-
los-de-arame, e mais Dona Micas e Amigas (dessas esqueci a raça).
Betina, a empregada, cuidava da casa. Feijão estava habituado às
boates, onde era servido à mesa e comia batatas fritas e bife com
cebolas. Na vitrola, Bach, Armstrong, Ella Fitzgerald. E os tangos
de Gardel, “divino, divino”. A rádio, permanentemente sintoni-
zada na Ministério da Educação, fizera dela consumidora de
óperas. “Ih! Adoro aquele berreiro. Hoje à tarde escutei uma de
Mozart”. Influência talvez de Heni, a quem apresenta como seu
Procurador. General aposentado de ascendência germânica, ma-
gro, silencioso, hábil no preparo de drinques, olhos profunda-
mente azuis, ouvinte fiel de Beethoven. Psiquiatra especialista
na cura de angústia por hipnose, desconhecem-se os resultados
domésticos de seu ofício. “Sou muito enjoada, sofro de vagotonia,
tenho o vago simpático afetado”, diz ela, confessando-se “muito
neurótica”. Desfia mais de trinta diferentes sintomas de angús-
tia. São nódoas arroxeadas que se instalam pelo corpo, e ela vai
desfiando toda uma terminologia médica que, é claro, aprendeu
com Heni – aliás, Henrique Pffeiferkorner. De quando em vez
11
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
ele recebe seus amigos para jogar um pôquer – enquanto Araca
vai cuidar das plantas ou sentar-se na varanda.
Em tempos mais prósperos, a casa tinha cozinheira, arruma-
deira, motorista e até governanta. Adelaide é portuguesa e “muito
ignorante” – observação que Araca faz amorosamente. Heni só se
refere a ela como “a portuguesa”, e a detesta, com absoluta reci-
procidade da desafeta. Mulher madura, sotaque carregadíssimo,
sofre destrambelhamentos atordoantes e sabe decididamente o
que quer. Depois, o general perdeu suas dragonas, enquanto a
dona da casa continuava lendo placidamente a Bíblia com que ele
a presenteou no Natal de 1956 – e hoje está em minha casa, um
dos muitos presentes que guardo de minha Araca: o abajur de
opalina, o último copo de um jogo de cristais tchecos que ela me
deu para beber conhaque, hábito que eu mantinha por pura atitu-
de – aquecendo-o à luz de vela, como ela me ensinou. Isaurinha
Garcia e Dalva de Oliveira me provariam depois que aquela era a
bebida do diabo, e hoje a esconjuro.
***
“Quero voltar para o Encantado”. E não adiantava insistir, fa-
lar dos compromissos assumidos. Era novembro. Deixava de lado
contratos fabulosos em boates e televisão, queria de novo vestir
seu traje caseiro (calça comprida, camisa amarrada na cintura,
pés descalços e braços nus, como no célebre poema de Casemiro
de Abreu). Confessava, enfim, que o Natal a pegava pelo pé.
Tinha um incrível bom gosto e uma habilidade manual
inacreditáveis para armar seus badulaques natalinos. Fitas ver-
melhas de crepom e cetim, bolas coloridas, papéis metalizados e
outros elementos decorativos iam desordenando a casa imensa,
enquanto tesoura, cola, fita gomada e muita imaginação com-
punham um ambiente caracteristicamente brasileiro – embora
lembre que inventaram agora uma neve artificial, imaginou?
Enquanto Heni testava as lâmpadas, ela armava o presépio. Co-
mentava que ainda ia expor aquela trecalhada na galeria Vila-
Rica, “com vernissage e tudo”. Talvez porque tenha ido à exposi-
12
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
ção do amigo Walter Wendhausen, que trabalhava com material
de sucata – e um desses trabalhos fazia parte de sua pinacoteca.
Walter, daqui a pouco, falarei sobre ele.
Agora vamos ajudar Araca a arrumar doces e frutas, nozes e
avelãs, as rabanadas cuja confecção ela mesma foi supervisionar.
Depois é abrir os portões para um monte de crianças pobres. Se
ela gosta de crianças? Aos fatos: certa vez foi abordada por uma
admiradora: “A Senhora não se lembra de mim?” – ela não se
lembrava. A mulher contou que era mãe de uma menina que
Araci adorava, pegava no colo – e a resposta fulmina fatidica-
mente a abordagem: “Ih, minha senhora, deve haver um engano.
Eu gosto mesmo é de cachorro. Detesto criança”. Enfim, o Natal era
uma festa. Com direito a presente envolvido numa caixa de pa-
pelão cru, revestido de papel ouro, laço de fita exuberante e
cartãozinho com delicadezas. Do meu jogo de copos de conha-
que, já contei.
Que se fale de Walter Wendhausen, de seu apartamento qua-
se vizinho ao de Di Cavalcanti e perto da vila onde morei, na rua
do Catete. Início da década de 50, eu já trabalhando num escri-
tório, estudando à noite no Amaro Cavalcanti e ainda tentando
colher as glórias como “foca” numa revistinha de rádio.
Wendhausen, pintor, trabalhava na Mesbla desenhando anúnci-
os (ainda não havia computador) e dividindo moradia com ou-
tro pintor, Luiz Canabrava. Ambos entrariam, década e meia
depois, como capistas de Elizeth Cardoso (“Elizeth Sobe o Mor-
ro” e “Muito Elizeth”). Por enquanto, fiquemos com Walter, que
reunia amigos para leituras de roteiros de filmes e peças. Eram
Eneida, Van Jafa, um ator que sempre declamava “O Corvo”, de
Poe, Lúcio Cardoso – e eu ouvindo jazz, aprendendo Drummond
e Pessoa, sendo apresentado a Chagall e Picasso em álbuns gi-
gantescos e, claro, desvendando Aracy de Almeida – a musa de
Walter. Um retrato autografado na parede testemunhava que se
conheciam. Foi até visitá-lo na Mesbla uma vez. Ele tinha todos
os seus 78 rpm, todos absolutamente arranhados. Já devia
conhecê-la dos corredores das rádios que freqüentava, por dever
13
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
do ofício. Mas conhecê-la a vero, ir ao auditório da (acho) Rádio
Clube para deslumbrar-me – a foto atesta que já estávamos no
início da década de 60. Porque eu publicara meu primeiro livro,
dedicando-lhe uma “Pavana para Aracy de Almeida”1
, que ela
olhou meio que medindo o ofertante, e acabou convidando-o
para ir ao seu castelo encantado.
Poderia dizer, desdizendo o que já contei sobre o início de
minha vida profissional, que meu primeiro roteiro eu o fiz para
Aracy de Almeida. Ela ia se apresentar na boate do Barão Stuckart,
a cujos olhares perigosos e insinuantes fui apresentado na casa
noturna que, lembro mal, ficava no Lido. A noite prometia: re-
cordo que Araca recebera vestido novo feito pelo Denner (ou
Maria Augusta? Não estou certo) e acomodara seus joanetes no
sapato feito por um japonês da Rua Augusta, que a atendia com
exclusividade . Mas quero me ater ao vestido, por um detalhe
importante: Araca vivia um momento de extrema feminilidade,
e aquelas saias superpostas de laise francesa definitivamente
descombinavam com o conteúdo. A estréia foi retumbante: ela
descalçou os sapatos altíssimos, e as marcas de talco dos seus pés
foram sendo impressas no carpete vermelho. Um detalhe: Araca
tinha voz volumosa, encorpada, que prescindia de microfone.
Usava-o naquela noite um tanto atabalhoadamente – porque
cismou de cantar “com a Gorda a tiracolo”. Saias de laise, uísque
farto – para que roteiro para atrapalhar aquela farra? Defenestrou-
o, e fomos depois esticar no Vogue, onde reinava absoluta, e se
negou a cantar “porque quem canta de graça é galo”.
***
Se já contei da casa do Encantado, esqueci de mencionar os dotes
culinários de sua dona. Deles provei, naquela inaugural visita: um
frango temperado ao azeite português e talvez ao vinagre balsâmico,
com ervas afrodisíacas, mandadas comprar na Antuérpia, no
Afeganistão, além de pápricas trazidas da Etiópia – sei lá. À mesa,
1
O título do poema é “Pavana, se fosse possível, em tempo de samba, para Aracy de Almeida”, In.
Ária & Percussão, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1962.
14
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
magnífica, em cristais, rendas e louças belíssimas, sentei-me sozi-
nho, porque Araca foi fazer sei lá o quê – provavelmente enfas-
tiou-se com o convite. Não, claro que não. Mas que fiquei sozi-
nho fiquei – talvez na companhia da Gorda e do Feijão – para
quem comprava biscoitos numa loja finíssima que ficava no
Copacabana Palace. Quando acordei, levou-me sob mistérios até
a porta e repassou-me um presente embrulhado em papel jornal
(talvez para que Heni não se apercebesse). Era seu retrato, pintado
por Aldemir Martins.
Vale a pena rever uns rascunhos recém descobertos, que esta-
vam mofando no baú de memórias: “Aracy de Almeida é vidrada
no Velho Testamento. Evangelista por influência paterna, agora
converteu-se ao judaísmo.Toda essa contradição místico-religiosa
se conflita ainda no culto quase religioso a Noel Rosa, de quem é
a melhor intérprete. Herminio Bello de Carvalho situou esse con-
flito num pequeno espetáculo intitulado ‘A Paixão Noel Segundo
Aracy de Almeida’, que oTeresa Rachel apresentará nos dias 4, 5 e
6 de novembro, às 21 horas, para repetir o sucesso alcançado por
Gal Costa naquele teatro”. Guardo o roteiro rascunhado, e as flo-
res nele rabiscadas são, claro!, de Aracy, que tinha esse hábito de
ficar desenhando enquanto conversávamos. Não tenho a menor
lembrança desse espetáculo, duvidando mesmo que tenha sido
realizado.
Mas as outras anotações são menos obscuras. Eu iria fazer o
“Sermão do Profeta” num recital que minha enluarada Elizeth
Cardoso cantaria no Mosteiro de São Bento, acompanhada pela
Camerata Carioca, com trechos do Velho Testamento seleciona-
dos por Araca. Se não virei um especialista em Moisés, nem
decorei os salmos de David e sequer as profecias de Isaías, sobra-
ram-me alguns provérbios de Salomão – que iriam ser o prato-
de-resistência do recital. “Os ímpios circulam por toda parte,
quando os mais vis dos homens são exaltados” – e Araca chama-
va a atenção para o discurso de Rui Barbosa, aquele do “de tanto
ver triunfar a mediocridade...”, e piscava marota para esse outro:
“o que ajunta no verão é filho entendido, mas o que dorme na
15
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
sega é filho que envergonha”. E comentava: “Esse Salomão... não
resta a menor dúvida”. “O que trabalha com mão enganosa em-
pobrece, mas a mão dos diligentes enriquece”. E ilustra, triun-
fante, cantando : quanto a você que é da aristocracia/ que tem
dinheiro/ mas não compra alegria (Noel Rosa). “Não é do cacete,
Belo Hermínio?” – e o Belo Hermínio aqui tem a vaga lembrança
de que sua presença num altar, ao lado da Divina recitando
versículos selecionadas por Aracy de Almeida, provocou ruídos
estranhos na época (estávamos em 1979). Aos estudiosos, que
forneçam o desfecho do episódio. Dele sobrou-me, na parede,
um provérbio de Salomão (“... o lábio da verdade ficará para
sempre, mas a língua mentirosa dura um só momento”), tam-
bém ditado por Aracy. Reduzi-o para “A mentira é a verdade
provisória”, que acabou virando samba em parceria com Maurí-
cio Tapajós, jamais mostrado à minha divinal arruaceira.
E não eram arruaças simples, como as de jogar dinheiro para o
alto – como fez em São Paulo e, no que lhe perguntei, ela confirmou
a veracidade do desfrute com sorriso maroto.Tinha cúmplices fiéis, e
Tico era um deles. Roqueiro, filho de Míquel e Abrahão, donos da
Vigotex – uma indústria de tecidos finos, responsável pelos trajes que
elaadotaracomouniforme,desdequeabandonaraosvestidosdelaise
e brocados que seu protegido Denner confeccionava para ela. Con-
vém explicar que Araca era uma espécie de precursora natural dos
grandes transgressores que ditavam mudanças comportamentais que
alteravam a simetria do universo. Foi existencialista antes de Sartre e
Simone de Beauvoir, foi hippie bem antes dos abalos provocados por
Woodstock. Ela já se encapsulara numa trincheira particular – quan-
do Caetano, ao inaugurar oTropicalismo, delirantemente a homena-
geou – e a Paulinho da Viola – com o “Samba do Morto”, réplica
obtusa ao “A Voz do Morro”, de Zé Keti”. Se não foi seduzida pelo
movimento,provocouaentradadeCaetanoemseuroldepreferênci-
as, como atestam as anotações que fiz na época: “Se você fosse Jesus,
quaisosapóstolosdaMPBquevocêconvidariaparasentar-seàmesa?”.
Responde: “Denner, Caetano, Noel, Wilson Batista, Carlos Imperial e
José Fernandes”.
16
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
Já vivera o delírio do júri de Chacrinha e agora desfrutava de
uma enorme popularidade no de Sílvio Santos – e vivia quase que
nababescamente. Enrolando um baseado e guardando-o entre as
dobras da camisa, saía para desarrumar as noites paulistanas a bordo
do belo Mercedes guiado por Tico, no Cadillac de Denner, cuja
instalação do primeiro atelier ela patrocinou – e dela mesmo ouvi
essa declaração que nenhum jornal jamais estampou.
Em uma de nossas jornadas, contumaz, triunfante, ordenava
nossa partida para mais uma noite inesquecível. Que, por favor,
tivesse modos, ponderei. Ela responderia minha advertência numa
boate da moda com uma versão pessoal de um samba de Noel, em
que o meu vasto céu de anil2
ganhou uma rima impublicável. Terá
sido essa noite em que me fez usar uma de suas blusas e um colar
cheio de contas e badulaques de pratas? Não guardo lembranças. O
colar, depois o ofertei a Cristina Buarque3
.
***
A Velha Senhora vivia agora de lembranças, queixosa dos
amigos que perdera. Um dos últimos, Antonio Maria, transfor-
mara-se num pombo gordo que durante alguns dias se instalou
em sua varanda, até encantar-se e ir fazer companhia a outros
companheiros de copo que a abasteciam de afeto: Vinícius de
Moraes, Paulo Mendes Campos, Carlão Mesquita e Fernando
Lobo eram alguns deles. Lembro de uma viagem no “avião dos
covardes”, trem noturno que nos conduzia a São Paulo, ela divi-
dindo sua cabine comigo, ensinando-me os caminhos da salva-
ção através da Bíblia, lembrando à ovelha desgarrada que, na-
quela mesma cabine, Vinicius viajara com ela. Senti-me honrado.
Demimquasefaziagato-e-sapatocomseuafetoesmagador.Quan-
dobrigávamos,declaravapelosjornaisque“quemsabemaisdemimdo
2
Em seu livro Sessão Passatempo (Relume Dumará, 1995), Hermínio transcreve essa paródia: “O
ovário vem caindo, vai molhar o meu tetéu / E também vão surgindo mais estrelas lá no céu / Tenho
passado tão mal / Ando limpando minha bunda com jornal. / Meu cortinado é um vasto céu de anil
/ E o meu despertador é um guarda-civil / E vão prasputaqueospariu!”
3
Em seu disco Ganha-se Pouco mas é Divertido (2000), produzido por Hemínio, a sambista Cristina
Buarque usa este colar, feito pela artista plástica Charitas. O mesmo adereço é utilizado por Aracy em
apresentações, com destaque ao programa MPB Especial, da TV Cultura, direção de Fernando Faro.
17
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
que eu, quem mais conhece Aracy de Almeida, só mesmo ...”, e claro que
issomelisonjeava.Nessaépocaumamigodissequeme virano enter-
ro de Carlão Mesquita, um dos melhores e últimos grandes amigos
dela. Refutei que não, que nem conhecera o Carlão pessoalmente.
Replicou, dizendo que não só me vira, como eu estava com uma
garrafadeChivasdebaixodobraço,quenemoviolãodosambadeZé
Kéti. Retruquei que não, claro que não era eu, que jamais iria a um
enterro levando uma garrafa de uísque. Mas ele fulminou a narração
com o epílogo irrefutável: eu estava com Aracy. Claro, era verdade.
“Sabe aquela do Goethe e do Schopenhauer?” Lembrava-me vaga-
mente de alguma coisa, que ela reavivou. Que os dois estavam, assim
como nós naquele momento, vagabundeando pelas noites de Viena
(vamos transferir a cena para São Paulo ), quando pararam diante de
uma vitrine cheia de quinquilharias – feito aquela com a qual nos
defrontávamos.AracaandavaimpregnadadosprovérbiosdeSalomão
nos quais, segundo lhe informara Antonio Maria, se baseavam todos
os princípios do existencialismo. Goethe teria dito para o
Schopenhauer: “Olhaí quantos breguetes que nós não precisamos”.
Não me permitiria ser tão leso em ocultar que a história me deu um
nó, um nó górdio que transferi pelo telefone para Drummond de
Andrade desatar. Claro que o poeta quase surtou quando lhe contei
queAracyandavalendo“AsDoresdoMundo”eos“Aforismosparaa
Sabedoria daVida”, de Schopenhauer.Vamos às anotações da época :
“Aracymeditoupelotelefonequeumapessoadecaráterbondoso,equi-
librado e ameno, pode sentir-se satisfeita, mesmo em situação precária,
enquanto que uma outra, insaciável, invejosa e má, não será capaz de sê-
lo, com todas as riquezas. (....) Assim é que Horácio diz de si: ‘há os que
não têm pedras preciosas, mármores, marfim, quadros, pratarias ou veste
de púrpura. Há um que não cuida de tê-las. E Sócrates clamou, ao ver
objetos de luxo expostos à venda: quanta coisa há de que não preciso’ ”.
Não tendo obtido de Drummond resposta imediata à consulta, pedi
aoprofessorHiltonNobre,quemeassessoravanaFunarte,quefizesse
umapesquisasobretudoaquilo“ealgumacoisamaisquemepudesse
subsidiar na Pregação do Poeta que vou fazer dia 27, sobre a luxúria,
precedendo a apresentação de Elizeth e da Camerata”. Já não contei
18
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
essa história? Pois era assim que eu me enredava com minha adorada
Arquiduquesa do Encantado, levando de roldão meu querido e bo-
quiaberto poeta. Que Deus os guarde a Drummond, Goethe,
Schopenhauer e Aracy de Almeida.
“Rasga esta máscara ótima de seda / e atira-a à arca ancestral
dos palimpsestos” é a voz de Araca do outro lado da linha, recitan-
do para mim Augusto dos Anjos. Mude-se a cena para minha
casa, ela recitando de memória: “Toma um fósforo, acende teu
cigarro/ o beijo, amigo, é a véspera do escarro/ a mão que afaga é a
mesma que apedreja”. E, triunfante, completava: “Se a alguém
ainda pena a tua chaga/ apedreja essa mão vil que te afaga/ escarra
(e exclamava, silabando o ‘escarra’) nessa boca que te beija!”.
“Não é do caralho, Belo Hermínio?”
Com ela também reaprendi que o tal urubu que pousou na
nossa sorte pertencia também a Augusto dos Anjos, uma de suas
paixões que, por osmose e devoção, transferiu para mim.
A voz “de timbração deliciosa, profundamente carioca, um
nasal bem quente, sensual”, observada por Mário de Andrade
em seus estudos, começara a declinar em fins dos anos 60 – quan-
do ainda embarca com pés tímidos na bossa-nova4
, que detesta-
va, para desembarcar-se por inteira, coberta de glórias, nos júris
de calouros que consagrariam sua irreverência, sua aparente fal-
ta de modos, seus destemperos (alguns ensaiados). Aos poucos,
foi-se matando a grande cantora, a mais visceral das intérpretes
brasileiras, de timbre inigualável. Posso até lembrar das tentati-
vas a que Sérgio Porto me induziu para fazê-la gravar um disco
só com músicas de Cartola. Aprendeu-as todas, fui testemunhar
a finalização da capa feita por seu amado Di Cavalcanti, mas a
ronda pelas gravadoras – apesar do prestígio de Sérgio – deu em
nada. Chegamos a pensar num outro repertório, fomos com
4
O autor se refere à aproximação da cantora com o movimento bossa-novista, que resultou no
disco Samba é de Aracy de Almeida (1966), acompanhada pelo conjunto de Roberto Menescal.
No repertório, peças de Noel, Assis Valente, Wilson Batista (além da destoante Batucada Surgiu,
de Marcos e Paulo Sérgio Valle) em roupagens que mesclavam samba e um acento jazzístico, co-
mum àquele movimento. Destaca-se o registro do samba “Não sou manivela”, de Ary Barroso,
que, segundo Hermínio, Aracy cantarolava constantemente, expondo sua admiração pelo autor e
pela referida composição.
19
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
Carlinhos Lyra à casa de Tom Jobim – e a presença de Noel, que
impressionante!, ainda esmagava toda e qualquer ten§ativa de se
construir um novo repertório.
Costumo dizer que Aracy de Almeida elevou o palavrão à
categoria de uma cantata de Bach. E como ser humano, esteve
bem mais próxima de Salomão do que eu mesmo suspeitava.
PAVANA, SE FOSSE POSSÍVEL, EMTEMPO DE SAMBA,
PARA ARACY DE ALMEIDA5
(1962)
A lágrima que ouvi escorrer de teu puro rosto
a encardida amargura de teu canto
as trago sigilosamente cravadas no peito
aflitamente expostas nas mãos abertas.
Que águas mordidas de medo!
Que rosas ardidas de susto!
Que olhares entornados nos telhados escuros
que sentimentos bifurcados e amores não chegados
se entrecortaram em teu canto;
(chuvas pressentidas muitas vezes escorregaram de
tua voz
e noites de silêncio foram pisadas no coração).
Vai neste poema todo meu sentimento
que sendo o melhor de mim, não é dos mais perfeitos
mas no entanto sincero na rude ternura.
Do operário ao poeta
estabeleces um elo de amor
porque te entendem melhor
todos aqueles que um dia tentaram lavar suas tristezas
nas fórmulas mais vagabundas já inventadas pela humanidade
(sentimentos catalogados em armários de ferro)
e, enfim, todos aqueles que são tristes (não
5
Íntegra do poema originalmente publicado em 1962, no livro Ária & Percussão, Rio de Janeiro,
Livraria São José.
20
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
a tristeza ostensiva dos que foram margeados da vida
por inépcia de viver, nem a tristeza inútil dos
indecifrados nem dos que não participam da grande batalha).
Mas dos que choram apenas o necessário, sem desespero
Os que sôfregos se agarram às tuas palavras
E que têm as mãos escalavradas pensas no muro,
o corpo para fora do edifício.
tens as justas palavras que roçam o chão
dos corações ardidos de ternura.
Vês esta canção desequilibrada, este verso desqualificado?
É também a plaina, o formão de uma espécie de operário
a prancha onde depõe seu jogo de ferramentas
o artífice do verso
macacão feito de espumas de muitas lágrimas retidas
por mero conformismo;
coração roto e amargurado, vontade muito grande
de ir caindo por aí, de beber qualquer vento, afundar-se no
abismo
e de lavar sua tristeza no esgoto de qualquer rua;
poeta e operário confumdem-se nos estribos do bonde
e no berro que a coletividade
oprime no peito, se punhal lhes atravessa.
Dirão que este é o sentimento comum do homem
ou
o sentimento do homem comum,
não importa.
Mas repare; ele se mergulha em qualquer dadivosa tristeza
afunda-se em qualquer cair da tarde (greve de alegria;
reivindicação de operário é o poente que lhe toca em parcela
sem haver contra-prestação de serviço, mas apenas constatação
da coisa em si)
21
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
Em qualquer dadivosa tristeza, dizia: a da tua voz, por exemplo
O fato assim acontece: o homem do povo está absoluta
mente sozinho
a mesa posta o sentimento tripartido o salário mínimo
a tristeza cuidadosamente disposta em cada coisa,
em cada objeto
o coração enorme pulando do peito.
Aí o rádio anuncia que vai cantar Aracy de Almeida.
A tua voz se esfrega no corpo do operário, nos resíduos de
óleo e graxa
(pago de seu ofício)
tua voz roça
o salário mínimo, a conta da Cooperativa, o trem de
ferro do operário
e o teu contato é como se fosse
a grande muralha se desfazendo
e o exposto lírio corporizando nos olhos
(e pende a lágrima)
Tua voz é
a grande praça pública do aflitivo encontro
de todos aqueles em que o coração nasceu definitivamente
torto
predispostos à lágrima e ao amor
(náufragos do amor)
a se baterem no muro comum dos problemas insolúveis.
22
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
Salmos, quase desfrutes
Hermínio e Aracy no Encantado. Ao fundo, o amigo Leonardo Castilho
23
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
DDesfrute, como está dicionarizado, é ato de desfrutar, apro-
veitar oportunidade ou vantagem, fruição, usufruto, exposição
ao ridículo, escárnio, zombaria, atitude deplorável.Tudo longe e
tudo próximo do conceito firmado por AracyTelles d’Almeida –
que dicionarizou, à sua forma, o ato de “dar um desfrute”. Um
pequeno exemplo. Perguntei que palhaçada tinha sido aquela de
jogar dinheiro pro alto no meio de uma boate em São Paulo,
comentário que corria solto entre bocas felpudas e farfalhantes.
– Nada, Belo Herminio. Foi apenas um desfrute.
24
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
B
“Belo Hermínio, temos que levar um violão” – ela ao telefone.
Esse temos, claro, já definia uma difícil missão para mim: desco-
lar, em cima da hora, um violonista para acompanhar Aracy,
numa reunião na casa da Maria Augusta. Estilista famosa na épo-
ca, que a cobria de finos tecidos, tarefa um tanto inglória para
quem já se acostumara à camisa emprestada de Heni, à calça
preta e ao sapato moldado à perfeição por um japonês que a
servia, e aos seus joanetes, há um bom tempo. Poderíamos usar a
velha piada: Araca não se vestia, se cobria. Mas, observando-se
bem, só com material de primeiríssima qualidade.
Nicanor Teixeira, além do virtuose e compositor de altíssimo
nível, morava num quarto e sala na Dois de Dezembro, quase
perto do Praia Bar – onde volta e meia eu via o terceiro integran-
te da célebre zaga Castilho-Píndaro-Pinheiro. Pinheiro era um
homão bonito, que não deve ter passado desapercebido aos olhos
de um compositor que morava na mesma rua, onde, à janela do
seu apartamento no andar térreo, costumava ficar o grande Assis
Valente – a quem, certa vez, estendi um papel para um autógra-
fo que, infelizmente, não guardei. Guardei, sim, seu olhar gulo-
so pra cima daquele menino de uns 17 anos que eu era, e que
por ali costumava passar para ir à casa da vedete Lidia Bastiani. E
eis-me fugindo do assunto, e é bom regressar ao apartamento de
Nicanor e ao seu espanto em ver-se diante da deusa Aracy.
Eu disse reunião? O que a Maria Augusta promovia era uma
recepção, dessas com exército de garçons, toldo se armando nos
jardins para abrigar da chuva que se avizinhava a grãfinada que
começaria a chegar – pois fomos os primeiros, e logo instalados
numa sala com garçom exclusivo e um Chivas imediatamente
colocado diante de nossas ávidas goelas secas. Ainda em bobs
cacheando os cabelos, Maria Augusta demonstrava permanente
adoração por Araca. Nosso modo simplório (melhor dizendo,
paupérrimo) de vestir foi atenuado com o empréstimo de um
blazer para mim e, se bem me lembro, de um cashmere pro Nica.
Araca era Araca, e mesmo se estivesse em trapos, ainda as-
sim seria a grande atração da noite. Cantou até não mais po-
25
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
der, e vinham séquitos prestar-lhe reverências, fazer
salamaleques. E pelo menos a um jovem industrial que viera
em avião próprio de São Paulo, retribuiu o afetuoso abraço
com pergunta desconcertante: “Quer dizer então que estás com
mina nova no pedaço!”, referência à belíssima, e muito mais
jovem, mulher a quem agora era apresentada. “Ah, Dona Aracy,
a senhora não imagina quanta honra é conhecê-la pessoalmen-
te. Como vai passando?”
– “Ah, minha filha, eu ando muito fodida!”
E transformando sua camisa numa espécie de sacolão de fei-
ra, foi recolhendo doces e salgados (“é pra minha cachorrada lá de
casa”) e, obedientes à sua ordem de retirada, lá fomos os três
completamente bêbados, ela saindo gloriosa sob estrondosa sal-
va de palmas.
26
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
E
“Ela usa cuecas!” – bradou a camareira, já convocando as
colegas para a constatação do fato que já era de meu conheci-
mento. Pouco chegada aos fricotes de calcinhas de seda ou ce-
tim com babadinhos de renda, Araca gostava mesmo é das cu-
ecas samba-canção que pegava emprestadas de Heni – e foi
assim, posta nos calçolões, que a flagrei papeando com Nara
Leão no camarim de uma estação de televisão onde fora cantar.
Eu, seu valete, escravo, subserviente aos seus mínimos desejos
e caprichos.
A cueca era apenas um detalhe. Desnecessário dizer que Nara
idolatrava Aracy, e acho que a recíproca não poderia afirmar como
verdadeira. Mas ali estava a Velha Senhora conversando com um
já consumado mito da música popular, que gozava de uma gran-
de popularidade – sobretudo depois do grande sucesso da “A
Banda” do Chico.
O que me enterneceu foram os cuidados de Araca: “Narinha,
você já fez seu pé de meia? Já comprou seu apartamentinho?” Como
se ela mesmo, a grande Araca, fosse um exemplo de como
amealhar grandes patrimônios – porque, além da casa do En-
cantado e de seus cachorros, o que ela tinha mesmo era uma
vasta disposição de fazer uma gastança desenfreada na catação de
mais badulaques para sua casa, com uma pinacoteca respeitável,
uma farta mesa com as melhores iguarias, e uma vagotonia infer-
nal que sempre baixava quando tinha um compromisso que odi-
ava cumprir. Como esse de gravar um programa de televisão, e
estar, como a revejo agora, diante de Nara, a maquiadora tentan-
do inutilmente passar uma maquilagem, um cabeleireiro pulve-
rizando alguma coisa para assentar seu cabelo – e ela, em segui-
da, passando um sabão na cara e desarmando o castelo que
erigiram no cocuruto – tudo sob o olhar respeitoso da outra
musa e também daquele bando de futriqueiras, convocadas para
vê-la em cuecas – por sinal brancas e com monograma bordado
a mão, talvez por ela mesma.
27
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
AA chegada de Sérgio Cabral, jornalista, pesquisador, compo-
sitor e belíssima figura humana é saudada diante da multidão
pela personagem principal da festa, Aracy. Sérgio desejou arden-
temente que um buraco se abrisse e engolisse os dois, ele e sua
jovem acompanhante Magali, que recém desposada, era mergu-
lhada num encabulamento que se evidenciou em sua face, que
ganhou o rubor mais rubro, vermelho, sangüíneo, encarnado de
peito de tié-sangue e dos vinhos ainda jovens, ao ouvir a pergun-
ta de Araca:
– “Como é, Sérgio Cabral? Tens copulado muito?”
28
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
A
A noite prometia. Denner ficara de nos apanhar no velho
Hotel Normandie, onde estávamos hospedados Linda Batista,
Clara Nunes, Araca e eu. Poderia citar outros hóspedes, como
Vicente Celestino, por exemplo. Mas ele não caberia nessa his-
tória, a não ser pela voz poderosa, igual à de Araca, que prescin-
dia de microfones. Microfones e gravadores houvessem naquele
dia e provavelmente teríamos o registro de um dos encontros
mais emocionantes que já presenciei em minha vida.
Fui dar um beijo em minha Linda e, claro!, tomar um
uisquinho, tarefa dolorosa para a qual exigi a presença de Clari-
nha e Araca. A sorveção do nectar escocês provocou baixa nas
reservas dos tonéis da Escócia, mas elevou a pressão emotiva de
Linda e Araca – que começaram a terçar tangos de Gardel, boleros
de Augustin Lara – nada, enfim, que pudessem as palavras des-
crever com eficiência a emoção que naqueles poucos metros qua-
drados transbordou.
A portaria avisou que o luxuoso Cadillac de Denner já estava
à porta, e Clara, sem ser convidada, resolve aderir ao grupo. Lin-
da, prostrada, derreara. Araca possuía um arsenal de armas letais
para essas horas, quando assumia o trono de seu império, ali
ameaçado pela figura jovem, bonita, de cabeleira farta – Clara
tinha uma exuberância natural, a tal luz que não é fornecida pela
Light. Já à porta do carro, a frase fatal: “Clarinha, meu amor, vê
se dá uma desbastada nessa juba ou bota uma peruquinha pra sair
com a gente”, algo assim. O dardo untado de curare atingiu em
cheio o alvo. Clara jamais consultou o “Dictionaire des injures”
e não sabia manipular palavras de baixo calão com a mesma des-
treza de Araca, que as tinha armazenadas sob a língua. Gaguejante,
puta da vida, soltou sua meia porção :
– Aracy, vai tomar no seu... no seu... no seu... botão!
Deu meia volta-volver, talvez sem escutar aquele “Eu adoro a
Clarinha”, e fomos pra nossa esbórnia – onde Araca, é obvio,
aprontaria outras poucas e boas.
29
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
PPandorga, papagaio, pipa – elas me chegavam às mãos em
quantidades, sempre trazidas por amigos que sabiam de meu
gosto em pendurá-las na parede. Bolas de gude, monte delas.
Cataventos, sempre. Infância mal vivida, talvez. Araca percebeu
isso quando foi lá em casa pela primeira vez, ainda no Beco do
Rio, que desembocava, finzinho dele, logo onde?, na boca voraz
daTaberna da Glória, a dos gloriosos filés que ela descreveu num
de meus programas da TVE, com a boca salivando. Mãe Quelé
trouxe, no colo, uma belíssima Cora (instrumento africano de
cordas), com a qual me presenteou quando veio de Dakar. De
uma distância menor, São Paulo-Rio, me trouxera Araca uma
linda pandorga (ou papagaio, ou pipa, como queiram) em papel
de seda japonês, que durante largo tempo ornamentou minha
sala, até esgarçar-se, de tanto eu empiná-la em meu coração.
30
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
E
Era a rua do Catete, 222. Eu morando numa vila logo ali
adiante, na casa 13 do 214, vizinho ao inenarrável Cine Azteca,
que ostentava uma fachada dantesca e tinha uma imperdível grade
de programação de filmes mexicanos. (Ah, que saudades de
Libertad Lamarque!). Era uma mistureba greco-romano-etrusco-
medieval-mexicano-barroco, um pot-pourri de estilos
arquitetônicos impossível de ser descrito. Um monumento ao
que hoje se convencionou chamar de kitsch. Era, enfim, um car-
naval de estátuas, colunas, arabescos, frisos dourados. Deveria
ter sido tombado pelo patrimônio nacional como um monu-
mento, paralelo, em grandiosidade, ao prédio do Elixir de No-
gueira, alguns quarteirões adiante, já na Glória, com suas gigan-
tescas figuras fundidas em bronze, depois esquartejadas numa
demolição criminosa, objeto de repulsa de Pedro Nava, lavrada
em seu “Galo das Trevas”. Enfim: e nós dois, Di e eu, quase
vizinhos de Walter Wendhausen e Luis Canabrava, que mora-
vam numa rua que desembocava quase na porta do Lamas.
O pianeiro e crítico musical Mário Cabral, grande amigo de
Araca-Elizeth-Di Cavalcanti, certa vez escreveu uma bela crôni-
ca1
sobre esse vértice amoroso. E cá estou eu agora, em 1964,
debruçado na prancheta de Di, enquanto ele termina o belo de-
senho2
que iria ilustrar a capa do disco que nos encomendara o
Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), o de Aracy cantando Car-
tola. Pensava nosso amigo em produzir um outro disco, o da
mulata Aizita Nascimento interpretando o repertório de outra
Araci, a endiabrada Côrtes. Esses projetos, já contei, jamais fo-
ram realizados. Esse quadro, num dia de muito aperto de Araca
e de alguma folga financeira em meu orçamento, veio parar em
minhas paredes, de onde saiu numa crise semelhante à que vive-
ra minha amiga. Por uma ninharia, diga-se de passagem.
Os quadros de Di, sem que soubesse (ou sabia?) sempre en-
travam utilmente nas situações de aperto de seus amigos. Fora
assim em São Paulo. Silvio Caldas e Araca estavam sem cacife
para comprar a traquitana milagrosa que os levaria ao Nirvana, e
resolveram vender a um Matarazzo (ou foi para um Martinelli?)
31
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
um belíssimo óleo, um dos muitos que Di ofertara a ela. Acho
que Di, soubesse dessa transação ordinária, teria reposto a perda
com outro óleo, com uma daquelas mulatas iguais à Marina
Montini (hoje no Retiro dos Artistas), que ele eternizou com
seus pincéis calibradíssimos de sensualidade. Chegou a pintar
metade de um quadro, deixando para Clóvis Graciano comple-
tar a outra metade. Não se sabe o destino dessa rara obra. Cló-
vis era também um contumaz presenteador, amigo querido de
Araca. Presumo ter visto, na casa da Almeida Bastos, no Encan-
tado, uma marina de Pancetti – por sinal, tio de Isaurinha Garcia.
Fazia fundo, acho, ao busto de Araca, moldado por Bruno Giorgi
– que fizera, quase na mesma época, a placa que marcara a pre-
sença de Mário de Andrade ali no vértice Glória-Catete, na rua
Santo Amaro, 5.
1
“Meu roteiro sentimental do Catete é formado por um triângulo isósceles, tendo no vértice o
apartamento do pintor (Di) e nos catetos o apartamento do poeta Hermínio, entre ladeiras da Glória
de um lado e de outro o Café Lamas, no Largo do Machado. Quem mora em Copacabana não pode
imaginar a doçura que é, por exemplo, conversar com Di Cavalcanti à tardinha, remexendo livros,
gravuras sobre Proust, Leautaud, Coletto; e depois ir à casa de Hermínio (que cita orgulhosamente o
nome da rua onde mora, a Mendes Campos, onde ouvi o violão de Turíbio Santos no pungente
Prelúdio Nº 11, de Villa-Lobos) e ainda, ‘traçar’ uns ovos mexidos no Lamas. O catete é outra
civilização!”.
2
Anos mais tarde, em 1995, esta gravura ilustraria o CD Cantoria, de Hermínio Bello de Carvalho,
lançado não comercialmente.
32
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
H
Haviam, as duas, baixado sensivelmente as reservas dos bar-
ris da Escócia. Mais pra lá do que pra cá, chegam à recepção
onde eram, digamos, convidadas de honra. Recebidas com pom-
pas e glórias pelo mordomo, querem saber, antes de tudo, onde
é o banheiro. O dedo, apontando a direção consideravelmente
distante, fez com que as duas, Araca e Maysa, ali mesmo resol-
vessem se desafogar. E um imenso vaso de plantas que ornava a
entrada do saguão, tornou-se o providencial receptor de um vas-
to xixi oloroso, impregnado do nectar escocês, depositado sob o
frio olhar do discreto mordomo com ares de lorde inglês. E, glo-
riosas, entraram na suntuosa gandaia.
A
A fonte é Sérgio Cabral, e a história lhe foi passada pelo Sér-
gio Porto, testemunhada também por Ciro Monteiro, e tem como
cenário a portaria do Hotel Normandie, em São Paulo, à frente
do qual instalaram uma banca vendendo exemplares do Novo e
Velho Testamento. Presumo eu que o bando de amigos deve ter
passado por uma boa rodada de uísques e chopes. Araca, abrin-
do a bolsa, pródiga como sempre, resolve salvar aquelas ímpias
almas:
– Agora, vou pagar uma rodada de Bíblias!
Contritos, agradeceram o gesto caridoso.
33
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
E
Estamos na casa de Tom Jobim, em busca de repertório. Ano
do golpe militar, 1964. Tom saúda Araca com o “Tenha a pena
de mim”, ao piano – dramatizando a frase “Não saio do miserê!”
– e logo os contracantos de Carlinhos Lyra cruzam com “O Morro
NãoTem Vez”, cantado pelo anfitrião, que mostra uma primeira
audição de “Inútil Paisagem”, música que já está prometida para
não sei quem.
É a vez de Araca, que faz um esplêndido “Filosofia”, acompa-
nhada pelo violão de meu parceiro Antônio Carlos Ribeiro
Brandão. A conversa gira em torno da pré-bossa nova, o que dá
chance para Araca engatar um Valzinho (“Tudo Foi Surpresa”) a
capella, cujas complexas harmonias são objeto de comentários
de todos os presentes. E desanda a falar. Conta que há um certo
tempo escreveu para um jornal: escrevia à mão e datilografavam
depois o texto lá na Rádio Record – e isso me fez lembrar de um
certo dia em que sofreu uma travada geral ao autografar um dis-
co: “Xi, acho que não sei mais escrever, belo Hermínio”.
E o assunto envereda pelo Carlos Lacerda. “O Lacerda tem
feitiço” – e a ele, feitiço, confessa que às vezes não fica imune.
Conta dos tempos em que o contratava por “cinco mil cru-
zeiros” para uns trabalhos, e ele mandava tirar umas fotos
dela com o Feijão, “esse cachorro que está aí”. Depois, vira-
ram inimigos. “Inimigos, inimigos” – tenta explicitar, dizendo
que “você sabe, eu sou do partido comunista”. Não, ninguém
sabia. Mas diz que, ultimamente, anda com umas minhocas
na cabeça, que não tira o Carlos Lacerda do pensamento, che-
gou a pensar em votar escondido nele, mas sem dizer nada
pra ninguém, e até em mandar-lhe um telegrama, porque “ele
gosta dessas papagaiadas”. E lembra que uma vez reclamou
do calçamento da rua, e em dois meses, ele mandou consertar
tudo. Mas acaba confessando que não vai fazer nada do que
pensou. Que “essas merdas, assim como entram na cabeça, elas
também saem”.
Araca: comunista, judia e protestante. Mais anárquica, im-
possível.
34
ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO
T
Tentei, há uns cinco anos, revisitar a casa de Aracy. Ninguém
atendia. O abandono era visível na falta de pintura, no descuido do
jardimquevislumbreidoportãofechadoacadeado.Estavainabitada,
me disse uma vizinha. Seria vendida, soube-se depois. Há poucos
dias, a confirmação: mudou de dono. E o que terá conservado? Sa-
berá quem nela morou? Revisitar uma casa tem, para mim, o mes-
mosentidodeumversomeu,quePaulinhodaViolamusicou:“Vol-
tar quase sempre é partir/ para um outro lugar”.
Deu-se o mesmo quando tentei voltar à casa 19 da
Hermenegildo de Barros. Alimentei, durante anos, o sonho de
comprá-la.Teria sido um erro desses irreparáveis. Esquartejaram-
na, foi a constatação quando ela adentrei. Não consegui
reconstituir a infância do menino que fui. Intacta, apenas, sua
arquitetura externa descrita por Pedro Nava1
.
Tenho muitas casas em minha lembrança: a do pequeno bar-
raco da Rua Acau 41, de Clementina; as de Carlos Cachaça e
Menininha, Cartola e Nelson Sargento, na Mangueira; as de dona
Otília, porque lá eu exercitei o hábito de ler poemas; e a de Jacob,
em Jacarepaguá.
As visitas de Araca à minha casa (primeiro ao já-vi-tudo da Beco
do Rio, depois ao aparamento da Benjamin Constant e, mais tarde,
à minha morada no Edifício Pixinguinha) constituíam quase sem-
pre uma grande festa, sobretudo para Francisco Lano Bello de Car-
valho, um llasa-apsus irritadiço que, ao contrário dos demais visi-
tantes a quem assustava com seus latidos e investidas, jogava-se ao
colodeAracacomoumvelhoamigo.EeraSerginhopracá,Lucinha
pra lá, e já na última fase trocara o uísque por uma carga de remédi-
os para toda sorte de mazelas. Lembro-me dela uma vez aqui em
casa: “Tens algum bagulho aí pro meu vago-simpático?”.2
1
NAVA, Pedro. Galo das Trevas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1981. Fragmento: “Consola a visão
dos 17 e 19, casas datadas de 1896, dominando pela sua autenticidade. São de platibanda, dois
andares e térreo habitável. A porta que sai do rés da rua tem a altura do térreo até a linha superior das
janelas. Lembram certos sobradões da Bahia.”
2
Numa matéria de jornal, a repórter lista os vidrinhos de remédios enfileirados no canto da janela da
varanda da casa de Aracy: Hepaxofril, Levedo de Cerveja, Complexo B, Plasil, Enzinotrox, Fomergin
Spray, Litrison, Unicap T.
35
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO
Aracy de Almeida exibe um dos enfeites de Natal confeccionados por ela

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Retrato de Aracy de Almeida segundo Hermínio Bello de Carvalho

  • 1. 7 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO Citando Noel Rosa, Aracy de Almeida dizia que Hermínio Bello de Carvalho não resta a menor dúvida. Sou testemunha de quanto se amavam, de quanto se conheciam e de quanto se con- fessavam. Para se ter uma idéia, fosse Aracy de Almeida a sobrevi- vente da dupla, ninguém teria mais do que ela autoridade para escrever sobre Hermínio Bello de Carvalho, a quem chamava ca- rinhosamente de Belo Hermínio. Não é de hoje que Hermínio me pede para escrever uma biogra- fia de Aracy. Não percebendo minha disposição de dar início à tarefa, usou os mais variados artifícios. No tempo em que ele era bom bebe- dor de uísque, enchia a cara e me telefonava, colocando em seguida o telefone no alto falante do seu sistema de som, de onde saíam as imortais interpretações de nossa inesquecível Araca. “Você não se comove, não se emociona?”, perguntava ele. Eu dava uma desculpa qualquer, menos a fundamental: “Antes de mim, quem tem de escre- ver sobre ela é você”. Parece que, finalmente, entendeu a sua missão e, às vésperas de completar 70 anos (“69 não é idade, é uma posição”, disse Marcos Azambuja. Esta frase poderia ser também de Aracy de Almeida), decidiu comemorar a data numa espécie de reencontro consigo mesmo reencontrando-se com a cantora. Ainda bem que não saí na frente. Conheci Aracy muito bem, convivemos na boemia, trabalhamos juntos em várias oportunidades e viajamos inúmeras vezes no mesmo trem noturno Rio-São Paulo (“oaviãodoscovardes”,comoelaeCiroMonteirobatizaramotrem), mas minha autoridade para escrever sobre ela não passa de 10% se comparada à de Hermínio, embora ele faça questão de esclarecer que sua obra não é uma biografia. Mesmo não sendo, não creio que outra obra seja capaz de pintar um retrato tão completo e tão verdadeiro de Aracy de Almeida. Tudo aqui é verdade. E dou fé. Um caso de amor Sérgio Cabral Prefácio
  • 2. 8 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO A Paixão Aracy de Almeida segundo Hermínio Bello de Carvalho Hermínio Bello de Carvalho e Aracy de Almeida, no Zicartola, 1964
  • 3. 9 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO QQuando me perguntam quem era e como vivia Aracy de Almeida, corro o sério risco de passar por mentiroso e potoqueiro, testemunha que fui de um naco pequeníssimo de sua grande vida. Só a recordo como pessoa de fino trato, inteligência incomum e, paradoxalmente, mulher de maus modos quando exposta ao público. Aquele estereótipo que a televisão exacerba- ra para consumo das massas, exposto cruelmente como um ser humano intratável, desglamurizada e permanentemente de maus bofes, na verdade guardava os contornos meio punks que ela já rascunhara na década de 30, quando ia cantar nos bordéis do Mangue, levada por Noel Rosa. Também com ele ia sorver tonéis de cerveja Cascatinha na legendária Taberna da Glória, onde cruzaria copos com Mário de Andrade (“um matusquela”) e também com Saturnino, Zeca Meia-Noite, Brancura, Miguelzinho da Lapa e os bookmakers e batedores de carteira que gravitavam em sua volta. Com eles dicionarizou o palavreado malandro, recheado de gírias, que mereceria um glossário. “Uns e outros aí já disseram que eu sou uma mulher sem modos, que eu já morri e não-sei-quê, e se queixam até dos meus palavrões. Acontece que eu não estou a fim de fazer média com ninguém. O Hermínio Bello de Carvalho fica puto da vida quan- do eu digo que agora eu sou mais comediante. Aí ele me escu- lhamba dizendo que eu faço humor negro.” Quem a visse na rua colhendo os frutos de jurada mais bem paga da televisão, revidando desaforos ou contraditoriamente de-
  • 4. 10 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO volvendo o acarinhamento do povo que idolatrava seus destemperos, talvez não suspeitasse que, sob aquele manto de aparente azedume (“tenho os bofes azedos”), estava uma das maio- res cantoras brasileiras de todos os tempos. A casa onde vivia, no bairro do Encantado, era casa no mais vasto sentido: ampla, com jardins ao fundo, janelas permanen- temente abertas, ensolarada. E quadros de Di Cavalcanti, Clovis Graciano, Antonio Bandeira, Walter Wendhausen, Heitor dos Prazeres, Luis Canabrava, Aldemir Martins. Uma bela coleção de opalinas, além de faianças, o relógio de ouro, o gramofone, vasos raríssimos, badulaques espalhados pela casa – e um busto seu, esculpido por Bruno Giorgi, sobre o étagère. Catar antigüidades que um amigo leiloeiro lhe indicava (“Nada como uma boa pechincha”) foi mania que por algum tempo me conta- giou. Tapetes persas, lustres da Bohemia, biscuits raríssimos – e a algaravia feita pelos seus companheiros ciumentos e inseparáveis: Feijão, um poodle sem-vergonha, Gorda e Miudinha, duas pê- los-de-arame, e mais Dona Micas e Amigas (dessas esqueci a raça). Betina, a empregada, cuidava da casa. Feijão estava habituado às boates, onde era servido à mesa e comia batatas fritas e bife com cebolas. Na vitrola, Bach, Armstrong, Ella Fitzgerald. E os tangos de Gardel, “divino, divino”. A rádio, permanentemente sintoni- zada na Ministério da Educação, fizera dela consumidora de óperas. “Ih! Adoro aquele berreiro. Hoje à tarde escutei uma de Mozart”. Influência talvez de Heni, a quem apresenta como seu Procurador. General aposentado de ascendência germânica, ma- gro, silencioso, hábil no preparo de drinques, olhos profunda- mente azuis, ouvinte fiel de Beethoven. Psiquiatra especialista na cura de angústia por hipnose, desconhecem-se os resultados domésticos de seu ofício. “Sou muito enjoada, sofro de vagotonia, tenho o vago simpático afetado”, diz ela, confessando-se “muito neurótica”. Desfia mais de trinta diferentes sintomas de angús- tia. São nódoas arroxeadas que se instalam pelo corpo, e ela vai desfiando toda uma terminologia médica que, é claro, aprendeu com Heni – aliás, Henrique Pffeiferkorner. De quando em vez
  • 5. 11 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO ele recebe seus amigos para jogar um pôquer – enquanto Araca vai cuidar das plantas ou sentar-se na varanda. Em tempos mais prósperos, a casa tinha cozinheira, arruma- deira, motorista e até governanta. Adelaide é portuguesa e “muito ignorante” – observação que Araca faz amorosamente. Heni só se refere a ela como “a portuguesa”, e a detesta, com absoluta reci- procidade da desafeta. Mulher madura, sotaque carregadíssimo, sofre destrambelhamentos atordoantes e sabe decididamente o que quer. Depois, o general perdeu suas dragonas, enquanto a dona da casa continuava lendo placidamente a Bíblia com que ele a presenteou no Natal de 1956 – e hoje está em minha casa, um dos muitos presentes que guardo de minha Araca: o abajur de opalina, o último copo de um jogo de cristais tchecos que ela me deu para beber conhaque, hábito que eu mantinha por pura atitu- de – aquecendo-o à luz de vela, como ela me ensinou. Isaurinha Garcia e Dalva de Oliveira me provariam depois que aquela era a bebida do diabo, e hoje a esconjuro. *** “Quero voltar para o Encantado”. E não adiantava insistir, fa- lar dos compromissos assumidos. Era novembro. Deixava de lado contratos fabulosos em boates e televisão, queria de novo vestir seu traje caseiro (calça comprida, camisa amarrada na cintura, pés descalços e braços nus, como no célebre poema de Casemiro de Abreu). Confessava, enfim, que o Natal a pegava pelo pé. Tinha um incrível bom gosto e uma habilidade manual inacreditáveis para armar seus badulaques natalinos. Fitas ver- melhas de crepom e cetim, bolas coloridas, papéis metalizados e outros elementos decorativos iam desordenando a casa imensa, enquanto tesoura, cola, fita gomada e muita imaginação com- punham um ambiente caracteristicamente brasileiro – embora lembre que inventaram agora uma neve artificial, imaginou? Enquanto Heni testava as lâmpadas, ela armava o presépio. Co- mentava que ainda ia expor aquela trecalhada na galeria Vila- Rica, “com vernissage e tudo”. Talvez porque tenha ido à exposi-
  • 6. 12 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO ção do amigo Walter Wendhausen, que trabalhava com material de sucata – e um desses trabalhos fazia parte de sua pinacoteca. Walter, daqui a pouco, falarei sobre ele. Agora vamos ajudar Araca a arrumar doces e frutas, nozes e avelãs, as rabanadas cuja confecção ela mesma foi supervisionar. Depois é abrir os portões para um monte de crianças pobres. Se ela gosta de crianças? Aos fatos: certa vez foi abordada por uma admiradora: “A Senhora não se lembra de mim?” – ela não se lembrava. A mulher contou que era mãe de uma menina que Araci adorava, pegava no colo – e a resposta fulmina fatidica- mente a abordagem: “Ih, minha senhora, deve haver um engano. Eu gosto mesmo é de cachorro. Detesto criança”. Enfim, o Natal era uma festa. Com direito a presente envolvido numa caixa de pa- pelão cru, revestido de papel ouro, laço de fita exuberante e cartãozinho com delicadezas. Do meu jogo de copos de conha- que, já contei. Que se fale de Walter Wendhausen, de seu apartamento qua- se vizinho ao de Di Cavalcanti e perto da vila onde morei, na rua do Catete. Início da década de 50, eu já trabalhando num escri- tório, estudando à noite no Amaro Cavalcanti e ainda tentando colher as glórias como “foca” numa revistinha de rádio. Wendhausen, pintor, trabalhava na Mesbla desenhando anúnci- os (ainda não havia computador) e dividindo moradia com ou- tro pintor, Luiz Canabrava. Ambos entrariam, década e meia depois, como capistas de Elizeth Cardoso (“Elizeth Sobe o Mor- ro” e “Muito Elizeth”). Por enquanto, fiquemos com Walter, que reunia amigos para leituras de roteiros de filmes e peças. Eram Eneida, Van Jafa, um ator que sempre declamava “O Corvo”, de Poe, Lúcio Cardoso – e eu ouvindo jazz, aprendendo Drummond e Pessoa, sendo apresentado a Chagall e Picasso em álbuns gi- gantescos e, claro, desvendando Aracy de Almeida – a musa de Walter. Um retrato autografado na parede testemunhava que se conheciam. Foi até visitá-lo na Mesbla uma vez. Ele tinha todos os seus 78 rpm, todos absolutamente arranhados. Já devia conhecê-la dos corredores das rádios que freqüentava, por dever
  • 7. 13 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO do ofício. Mas conhecê-la a vero, ir ao auditório da (acho) Rádio Clube para deslumbrar-me – a foto atesta que já estávamos no início da década de 60. Porque eu publicara meu primeiro livro, dedicando-lhe uma “Pavana para Aracy de Almeida”1 , que ela olhou meio que medindo o ofertante, e acabou convidando-o para ir ao seu castelo encantado. Poderia dizer, desdizendo o que já contei sobre o início de minha vida profissional, que meu primeiro roteiro eu o fiz para Aracy de Almeida. Ela ia se apresentar na boate do Barão Stuckart, a cujos olhares perigosos e insinuantes fui apresentado na casa noturna que, lembro mal, ficava no Lido. A noite prometia: re- cordo que Araca recebera vestido novo feito pelo Denner (ou Maria Augusta? Não estou certo) e acomodara seus joanetes no sapato feito por um japonês da Rua Augusta, que a atendia com exclusividade . Mas quero me ater ao vestido, por um detalhe importante: Araca vivia um momento de extrema feminilidade, e aquelas saias superpostas de laise francesa definitivamente descombinavam com o conteúdo. A estréia foi retumbante: ela descalçou os sapatos altíssimos, e as marcas de talco dos seus pés foram sendo impressas no carpete vermelho. Um detalhe: Araca tinha voz volumosa, encorpada, que prescindia de microfone. Usava-o naquela noite um tanto atabalhoadamente – porque cismou de cantar “com a Gorda a tiracolo”. Saias de laise, uísque farto – para que roteiro para atrapalhar aquela farra? Defenestrou- o, e fomos depois esticar no Vogue, onde reinava absoluta, e se negou a cantar “porque quem canta de graça é galo”. *** Se já contei da casa do Encantado, esqueci de mencionar os dotes culinários de sua dona. Deles provei, naquela inaugural visita: um frango temperado ao azeite português e talvez ao vinagre balsâmico, com ervas afrodisíacas, mandadas comprar na Antuérpia, no Afeganistão, além de pápricas trazidas da Etiópia – sei lá. À mesa, 1 O título do poema é “Pavana, se fosse possível, em tempo de samba, para Aracy de Almeida”, In. Ária & Percussão, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1962.
  • 8. 14 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO magnífica, em cristais, rendas e louças belíssimas, sentei-me sozi- nho, porque Araca foi fazer sei lá o quê – provavelmente enfas- tiou-se com o convite. Não, claro que não. Mas que fiquei sozi- nho fiquei – talvez na companhia da Gorda e do Feijão – para quem comprava biscoitos numa loja finíssima que ficava no Copacabana Palace. Quando acordei, levou-me sob mistérios até a porta e repassou-me um presente embrulhado em papel jornal (talvez para que Heni não se apercebesse). Era seu retrato, pintado por Aldemir Martins. Vale a pena rever uns rascunhos recém descobertos, que esta- vam mofando no baú de memórias: “Aracy de Almeida é vidrada no Velho Testamento. Evangelista por influência paterna, agora converteu-se ao judaísmo.Toda essa contradição místico-religiosa se conflita ainda no culto quase religioso a Noel Rosa, de quem é a melhor intérprete. Herminio Bello de Carvalho situou esse con- flito num pequeno espetáculo intitulado ‘A Paixão Noel Segundo Aracy de Almeida’, que oTeresa Rachel apresentará nos dias 4, 5 e 6 de novembro, às 21 horas, para repetir o sucesso alcançado por Gal Costa naquele teatro”. Guardo o roteiro rascunhado, e as flo- res nele rabiscadas são, claro!, de Aracy, que tinha esse hábito de ficar desenhando enquanto conversávamos. Não tenho a menor lembrança desse espetáculo, duvidando mesmo que tenha sido realizado. Mas as outras anotações são menos obscuras. Eu iria fazer o “Sermão do Profeta” num recital que minha enluarada Elizeth Cardoso cantaria no Mosteiro de São Bento, acompanhada pela Camerata Carioca, com trechos do Velho Testamento seleciona- dos por Araca. Se não virei um especialista em Moisés, nem decorei os salmos de David e sequer as profecias de Isaías, sobra- ram-me alguns provérbios de Salomão – que iriam ser o prato- de-resistência do recital. “Os ímpios circulam por toda parte, quando os mais vis dos homens são exaltados” – e Araca chama- va a atenção para o discurso de Rui Barbosa, aquele do “de tanto ver triunfar a mediocridade...”, e piscava marota para esse outro: “o que ajunta no verão é filho entendido, mas o que dorme na
  • 9. 15 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO sega é filho que envergonha”. E comentava: “Esse Salomão... não resta a menor dúvida”. “O que trabalha com mão enganosa em- pobrece, mas a mão dos diligentes enriquece”. E ilustra, triun- fante, cantando : quanto a você que é da aristocracia/ que tem dinheiro/ mas não compra alegria (Noel Rosa). “Não é do cacete, Belo Hermínio?” – e o Belo Hermínio aqui tem a vaga lembrança de que sua presença num altar, ao lado da Divina recitando versículos selecionadas por Aracy de Almeida, provocou ruídos estranhos na época (estávamos em 1979). Aos estudiosos, que forneçam o desfecho do episódio. Dele sobrou-me, na parede, um provérbio de Salomão (“... o lábio da verdade ficará para sempre, mas a língua mentirosa dura um só momento”), tam- bém ditado por Aracy. Reduzi-o para “A mentira é a verdade provisória”, que acabou virando samba em parceria com Maurí- cio Tapajós, jamais mostrado à minha divinal arruaceira. E não eram arruaças simples, como as de jogar dinheiro para o alto – como fez em São Paulo e, no que lhe perguntei, ela confirmou a veracidade do desfrute com sorriso maroto.Tinha cúmplices fiéis, e Tico era um deles. Roqueiro, filho de Míquel e Abrahão, donos da Vigotex – uma indústria de tecidos finos, responsável pelos trajes que elaadotaracomouniforme,desdequeabandonaraosvestidosdelaise e brocados que seu protegido Denner confeccionava para ela. Con- vém explicar que Araca era uma espécie de precursora natural dos grandes transgressores que ditavam mudanças comportamentais que alteravam a simetria do universo. Foi existencialista antes de Sartre e Simone de Beauvoir, foi hippie bem antes dos abalos provocados por Woodstock. Ela já se encapsulara numa trincheira particular – quan- do Caetano, ao inaugurar oTropicalismo, delirantemente a homena- geou – e a Paulinho da Viola – com o “Samba do Morto”, réplica obtusa ao “A Voz do Morro”, de Zé Keti”. Se não foi seduzida pelo movimento,provocouaentradadeCaetanoemseuroldepreferênci- as, como atestam as anotações que fiz na época: “Se você fosse Jesus, quaisosapóstolosdaMPBquevocêconvidariaparasentar-seàmesa?”. Responde: “Denner, Caetano, Noel, Wilson Batista, Carlos Imperial e José Fernandes”.
  • 10. 16 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO Já vivera o delírio do júri de Chacrinha e agora desfrutava de uma enorme popularidade no de Sílvio Santos – e vivia quase que nababescamente. Enrolando um baseado e guardando-o entre as dobras da camisa, saía para desarrumar as noites paulistanas a bordo do belo Mercedes guiado por Tico, no Cadillac de Denner, cuja instalação do primeiro atelier ela patrocinou – e dela mesmo ouvi essa declaração que nenhum jornal jamais estampou. Em uma de nossas jornadas, contumaz, triunfante, ordenava nossa partida para mais uma noite inesquecível. Que, por favor, tivesse modos, ponderei. Ela responderia minha advertência numa boate da moda com uma versão pessoal de um samba de Noel, em que o meu vasto céu de anil2 ganhou uma rima impublicável. Terá sido essa noite em que me fez usar uma de suas blusas e um colar cheio de contas e badulaques de pratas? Não guardo lembranças. O colar, depois o ofertei a Cristina Buarque3 . *** A Velha Senhora vivia agora de lembranças, queixosa dos amigos que perdera. Um dos últimos, Antonio Maria, transfor- mara-se num pombo gordo que durante alguns dias se instalou em sua varanda, até encantar-se e ir fazer companhia a outros companheiros de copo que a abasteciam de afeto: Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Carlão Mesquita e Fernando Lobo eram alguns deles. Lembro de uma viagem no “avião dos covardes”, trem noturno que nos conduzia a São Paulo, ela divi- dindo sua cabine comigo, ensinando-me os caminhos da salva- ção através da Bíblia, lembrando à ovelha desgarrada que, na- quela mesma cabine, Vinicius viajara com ela. Senti-me honrado. Demimquasefaziagato-e-sapatocomseuafetoesmagador.Quan- dobrigávamos,declaravapelosjornaisque“quemsabemaisdemimdo 2 Em seu livro Sessão Passatempo (Relume Dumará, 1995), Hermínio transcreve essa paródia: “O ovário vem caindo, vai molhar o meu tetéu / E também vão surgindo mais estrelas lá no céu / Tenho passado tão mal / Ando limpando minha bunda com jornal. / Meu cortinado é um vasto céu de anil / E o meu despertador é um guarda-civil / E vão prasputaqueospariu!” 3 Em seu disco Ganha-se Pouco mas é Divertido (2000), produzido por Hemínio, a sambista Cristina Buarque usa este colar, feito pela artista plástica Charitas. O mesmo adereço é utilizado por Aracy em apresentações, com destaque ao programa MPB Especial, da TV Cultura, direção de Fernando Faro.
  • 11. 17 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO que eu, quem mais conhece Aracy de Almeida, só mesmo ...”, e claro que issomelisonjeava.Nessaépocaumamigodissequeme virano enter- ro de Carlão Mesquita, um dos melhores e últimos grandes amigos dela. Refutei que não, que nem conhecera o Carlão pessoalmente. Replicou, dizendo que não só me vira, como eu estava com uma garrafadeChivasdebaixodobraço,quenemoviolãodosambadeZé Kéti. Retruquei que não, claro que não era eu, que jamais iria a um enterro levando uma garrafa de uísque. Mas ele fulminou a narração com o epílogo irrefutável: eu estava com Aracy. Claro, era verdade. “Sabe aquela do Goethe e do Schopenhauer?” Lembrava-me vaga- mente de alguma coisa, que ela reavivou. Que os dois estavam, assim como nós naquele momento, vagabundeando pelas noites de Viena (vamos transferir a cena para São Paulo ), quando pararam diante de uma vitrine cheia de quinquilharias – feito aquela com a qual nos defrontávamos.AracaandavaimpregnadadosprovérbiosdeSalomão nos quais, segundo lhe informara Antonio Maria, se baseavam todos os princípios do existencialismo. Goethe teria dito para o Schopenhauer: “Olhaí quantos breguetes que nós não precisamos”. Não me permitiria ser tão leso em ocultar que a história me deu um nó, um nó górdio que transferi pelo telefone para Drummond de Andrade desatar. Claro que o poeta quase surtou quando lhe contei queAracyandavalendo“AsDoresdoMundo”eos“Aforismosparaa Sabedoria daVida”, de Schopenhauer.Vamos às anotações da época : “Aracymeditoupelotelefonequeumapessoadecaráterbondoso,equi- librado e ameno, pode sentir-se satisfeita, mesmo em situação precária, enquanto que uma outra, insaciável, invejosa e má, não será capaz de sê- lo, com todas as riquezas. (....) Assim é que Horácio diz de si: ‘há os que não têm pedras preciosas, mármores, marfim, quadros, pratarias ou veste de púrpura. Há um que não cuida de tê-las. E Sócrates clamou, ao ver objetos de luxo expostos à venda: quanta coisa há de que não preciso’ ”. Não tendo obtido de Drummond resposta imediata à consulta, pedi aoprofessorHiltonNobre,quemeassessoravanaFunarte,quefizesse umapesquisasobretudoaquilo“ealgumacoisamaisquemepudesse subsidiar na Pregação do Poeta que vou fazer dia 27, sobre a luxúria, precedendo a apresentação de Elizeth e da Camerata”. Já não contei
  • 12. 18 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO essa história? Pois era assim que eu me enredava com minha adorada Arquiduquesa do Encantado, levando de roldão meu querido e bo- quiaberto poeta. Que Deus os guarde a Drummond, Goethe, Schopenhauer e Aracy de Almeida. “Rasga esta máscara ótima de seda / e atira-a à arca ancestral dos palimpsestos” é a voz de Araca do outro lado da linha, recitan- do para mim Augusto dos Anjos. Mude-se a cena para minha casa, ela recitando de memória: “Toma um fósforo, acende teu cigarro/ o beijo, amigo, é a véspera do escarro/ a mão que afaga é a mesma que apedreja”. E, triunfante, completava: “Se a alguém ainda pena a tua chaga/ apedreja essa mão vil que te afaga/ escarra (e exclamava, silabando o ‘escarra’) nessa boca que te beija!”. “Não é do caralho, Belo Hermínio?” Com ela também reaprendi que o tal urubu que pousou na nossa sorte pertencia também a Augusto dos Anjos, uma de suas paixões que, por osmose e devoção, transferiu para mim. A voz “de timbração deliciosa, profundamente carioca, um nasal bem quente, sensual”, observada por Mário de Andrade em seus estudos, começara a declinar em fins dos anos 60 – quan- do ainda embarca com pés tímidos na bossa-nova4 , que detesta- va, para desembarcar-se por inteira, coberta de glórias, nos júris de calouros que consagrariam sua irreverência, sua aparente fal- ta de modos, seus destemperos (alguns ensaiados). Aos poucos, foi-se matando a grande cantora, a mais visceral das intérpretes brasileiras, de timbre inigualável. Posso até lembrar das tentati- vas a que Sérgio Porto me induziu para fazê-la gravar um disco só com músicas de Cartola. Aprendeu-as todas, fui testemunhar a finalização da capa feita por seu amado Di Cavalcanti, mas a ronda pelas gravadoras – apesar do prestígio de Sérgio – deu em nada. Chegamos a pensar num outro repertório, fomos com 4 O autor se refere à aproximação da cantora com o movimento bossa-novista, que resultou no disco Samba é de Aracy de Almeida (1966), acompanhada pelo conjunto de Roberto Menescal. No repertório, peças de Noel, Assis Valente, Wilson Batista (além da destoante Batucada Surgiu, de Marcos e Paulo Sérgio Valle) em roupagens que mesclavam samba e um acento jazzístico, co- mum àquele movimento. Destaca-se o registro do samba “Não sou manivela”, de Ary Barroso, que, segundo Hermínio, Aracy cantarolava constantemente, expondo sua admiração pelo autor e pela referida composição.
  • 13. 19 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO Carlinhos Lyra à casa de Tom Jobim – e a presença de Noel, que impressionante!, ainda esmagava toda e qualquer ten§ativa de se construir um novo repertório. Costumo dizer que Aracy de Almeida elevou o palavrão à categoria de uma cantata de Bach. E como ser humano, esteve bem mais próxima de Salomão do que eu mesmo suspeitava. PAVANA, SE FOSSE POSSÍVEL, EMTEMPO DE SAMBA, PARA ARACY DE ALMEIDA5 (1962) A lágrima que ouvi escorrer de teu puro rosto a encardida amargura de teu canto as trago sigilosamente cravadas no peito aflitamente expostas nas mãos abertas. Que águas mordidas de medo! Que rosas ardidas de susto! Que olhares entornados nos telhados escuros que sentimentos bifurcados e amores não chegados se entrecortaram em teu canto; (chuvas pressentidas muitas vezes escorregaram de tua voz e noites de silêncio foram pisadas no coração). Vai neste poema todo meu sentimento que sendo o melhor de mim, não é dos mais perfeitos mas no entanto sincero na rude ternura. Do operário ao poeta estabeleces um elo de amor porque te entendem melhor todos aqueles que um dia tentaram lavar suas tristezas nas fórmulas mais vagabundas já inventadas pela humanidade (sentimentos catalogados em armários de ferro) e, enfim, todos aqueles que são tristes (não 5 Íntegra do poema originalmente publicado em 1962, no livro Ária & Percussão, Rio de Janeiro, Livraria São José.
  • 14. 20 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO a tristeza ostensiva dos que foram margeados da vida por inépcia de viver, nem a tristeza inútil dos indecifrados nem dos que não participam da grande batalha). Mas dos que choram apenas o necessário, sem desespero Os que sôfregos se agarram às tuas palavras E que têm as mãos escalavradas pensas no muro, o corpo para fora do edifício. tens as justas palavras que roçam o chão dos corações ardidos de ternura. Vês esta canção desequilibrada, este verso desqualificado? É também a plaina, o formão de uma espécie de operário a prancha onde depõe seu jogo de ferramentas o artífice do verso macacão feito de espumas de muitas lágrimas retidas por mero conformismo; coração roto e amargurado, vontade muito grande de ir caindo por aí, de beber qualquer vento, afundar-se no abismo e de lavar sua tristeza no esgoto de qualquer rua; poeta e operário confumdem-se nos estribos do bonde e no berro que a coletividade oprime no peito, se punhal lhes atravessa. Dirão que este é o sentimento comum do homem ou o sentimento do homem comum, não importa. Mas repare; ele se mergulha em qualquer dadivosa tristeza afunda-se em qualquer cair da tarde (greve de alegria; reivindicação de operário é o poente que lhe toca em parcela sem haver contra-prestação de serviço, mas apenas constatação da coisa em si)
  • 15. 21 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO Em qualquer dadivosa tristeza, dizia: a da tua voz, por exemplo O fato assim acontece: o homem do povo está absoluta mente sozinho a mesa posta o sentimento tripartido o salário mínimo a tristeza cuidadosamente disposta em cada coisa, em cada objeto o coração enorme pulando do peito. Aí o rádio anuncia que vai cantar Aracy de Almeida. A tua voz se esfrega no corpo do operário, nos resíduos de óleo e graxa (pago de seu ofício) tua voz roça o salário mínimo, a conta da Cooperativa, o trem de ferro do operário e o teu contato é como se fosse a grande muralha se desfazendo e o exposto lírio corporizando nos olhos (e pende a lágrima) Tua voz é a grande praça pública do aflitivo encontro de todos aqueles em que o coração nasceu definitivamente torto predispostos à lágrima e ao amor (náufragos do amor) a se baterem no muro comum dos problemas insolúveis.
  • 16. 22 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO Salmos, quase desfrutes Hermínio e Aracy no Encantado. Ao fundo, o amigo Leonardo Castilho
  • 17. 23 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO DDesfrute, como está dicionarizado, é ato de desfrutar, apro- veitar oportunidade ou vantagem, fruição, usufruto, exposição ao ridículo, escárnio, zombaria, atitude deplorável.Tudo longe e tudo próximo do conceito firmado por AracyTelles d’Almeida – que dicionarizou, à sua forma, o ato de “dar um desfrute”. Um pequeno exemplo. Perguntei que palhaçada tinha sido aquela de jogar dinheiro pro alto no meio de uma boate em São Paulo, comentário que corria solto entre bocas felpudas e farfalhantes. – Nada, Belo Herminio. Foi apenas um desfrute.
  • 18. 24 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO B “Belo Hermínio, temos que levar um violão” – ela ao telefone. Esse temos, claro, já definia uma difícil missão para mim: desco- lar, em cima da hora, um violonista para acompanhar Aracy, numa reunião na casa da Maria Augusta. Estilista famosa na épo- ca, que a cobria de finos tecidos, tarefa um tanto inglória para quem já se acostumara à camisa emprestada de Heni, à calça preta e ao sapato moldado à perfeição por um japonês que a servia, e aos seus joanetes, há um bom tempo. Poderíamos usar a velha piada: Araca não se vestia, se cobria. Mas, observando-se bem, só com material de primeiríssima qualidade. Nicanor Teixeira, além do virtuose e compositor de altíssimo nível, morava num quarto e sala na Dois de Dezembro, quase perto do Praia Bar – onde volta e meia eu via o terceiro integran- te da célebre zaga Castilho-Píndaro-Pinheiro. Pinheiro era um homão bonito, que não deve ter passado desapercebido aos olhos de um compositor que morava na mesma rua, onde, à janela do seu apartamento no andar térreo, costumava ficar o grande Assis Valente – a quem, certa vez, estendi um papel para um autógra- fo que, infelizmente, não guardei. Guardei, sim, seu olhar gulo- so pra cima daquele menino de uns 17 anos que eu era, e que por ali costumava passar para ir à casa da vedete Lidia Bastiani. E eis-me fugindo do assunto, e é bom regressar ao apartamento de Nicanor e ao seu espanto em ver-se diante da deusa Aracy. Eu disse reunião? O que a Maria Augusta promovia era uma recepção, dessas com exército de garçons, toldo se armando nos jardins para abrigar da chuva que se avizinhava a grãfinada que começaria a chegar – pois fomos os primeiros, e logo instalados numa sala com garçom exclusivo e um Chivas imediatamente colocado diante de nossas ávidas goelas secas. Ainda em bobs cacheando os cabelos, Maria Augusta demonstrava permanente adoração por Araca. Nosso modo simplório (melhor dizendo, paupérrimo) de vestir foi atenuado com o empréstimo de um blazer para mim e, se bem me lembro, de um cashmere pro Nica. Araca era Araca, e mesmo se estivesse em trapos, ainda as- sim seria a grande atração da noite. Cantou até não mais po-
  • 19. 25 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO der, e vinham séquitos prestar-lhe reverências, fazer salamaleques. E pelo menos a um jovem industrial que viera em avião próprio de São Paulo, retribuiu o afetuoso abraço com pergunta desconcertante: “Quer dizer então que estás com mina nova no pedaço!”, referência à belíssima, e muito mais jovem, mulher a quem agora era apresentada. “Ah, Dona Aracy, a senhora não imagina quanta honra é conhecê-la pessoalmen- te. Como vai passando?” – “Ah, minha filha, eu ando muito fodida!” E transformando sua camisa numa espécie de sacolão de fei- ra, foi recolhendo doces e salgados (“é pra minha cachorrada lá de casa”) e, obedientes à sua ordem de retirada, lá fomos os três completamente bêbados, ela saindo gloriosa sob estrondosa sal- va de palmas.
  • 20. 26 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO E “Ela usa cuecas!” – bradou a camareira, já convocando as colegas para a constatação do fato que já era de meu conheci- mento. Pouco chegada aos fricotes de calcinhas de seda ou ce- tim com babadinhos de renda, Araca gostava mesmo é das cu- ecas samba-canção que pegava emprestadas de Heni – e foi assim, posta nos calçolões, que a flagrei papeando com Nara Leão no camarim de uma estação de televisão onde fora cantar. Eu, seu valete, escravo, subserviente aos seus mínimos desejos e caprichos. A cueca era apenas um detalhe. Desnecessário dizer que Nara idolatrava Aracy, e acho que a recíproca não poderia afirmar como verdadeira. Mas ali estava a Velha Senhora conversando com um já consumado mito da música popular, que gozava de uma gran- de popularidade – sobretudo depois do grande sucesso da “A Banda” do Chico. O que me enterneceu foram os cuidados de Araca: “Narinha, você já fez seu pé de meia? Já comprou seu apartamentinho?” Como se ela mesmo, a grande Araca, fosse um exemplo de como amealhar grandes patrimônios – porque, além da casa do En- cantado e de seus cachorros, o que ela tinha mesmo era uma vasta disposição de fazer uma gastança desenfreada na catação de mais badulaques para sua casa, com uma pinacoteca respeitável, uma farta mesa com as melhores iguarias, e uma vagotonia infer- nal que sempre baixava quando tinha um compromisso que odi- ava cumprir. Como esse de gravar um programa de televisão, e estar, como a revejo agora, diante de Nara, a maquiadora tentan- do inutilmente passar uma maquilagem, um cabeleireiro pulve- rizando alguma coisa para assentar seu cabelo – e ela, em segui- da, passando um sabão na cara e desarmando o castelo que erigiram no cocuruto – tudo sob o olhar respeitoso da outra musa e também daquele bando de futriqueiras, convocadas para vê-la em cuecas – por sinal brancas e com monograma bordado a mão, talvez por ela mesma.
  • 21. 27 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO AA chegada de Sérgio Cabral, jornalista, pesquisador, compo- sitor e belíssima figura humana é saudada diante da multidão pela personagem principal da festa, Aracy. Sérgio desejou arden- temente que um buraco se abrisse e engolisse os dois, ele e sua jovem acompanhante Magali, que recém desposada, era mergu- lhada num encabulamento que se evidenciou em sua face, que ganhou o rubor mais rubro, vermelho, sangüíneo, encarnado de peito de tié-sangue e dos vinhos ainda jovens, ao ouvir a pergun- ta de Araca: – “Como é, Sérgio Cabral? Tens copulado muito?”
  • 22. 28 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO A A noite prometia. Denner ficara de nos apanhar no velho Hotel Normandie, onde estávamos hospedados Linda Batista, Clara Nunes, Araca e eu. Poderia citar outros hóspedes, como Vicente Celestino, por exemplo. Mas ele não caberia nessa his- tória, a não ser pela voz poderosa, igual à de Araca, que prescin- dia de microfones. Microfones e gravadores houvessem naquele dia e provavelmente teríamos o registro de um dos encontros mais emocionantes que já presenciei em minha vida. Fui dar um beijo em minha Linda e, claro!, tomar um uisquinho, tarefa dolorosa para a qual exigi a presença de Clari- nha e Araca. A sorveção do nectar escocês provocou baixa nas reservas dos tonéis da Escócia, mas elevou a pressão emotiva de Linda e Araca – que começaram a terçar tangos de Gardel, boleros de Augustin Lara – nada, enfim, que pudessem as palavras des- crever com eficiência a emoção que naqueles poucos metros qua- drados transbordou. A portaria avisou que o luxuoso Cadillac de Denner já estava à porta, e Clara, sem ser convidada, resolve aderir ao grupo. Lin- da, prostrada, derreara. Araca possuía um arsenal de armas letais para essas horas, quando assumia o trono de seu império, ali ameaçado pela figura jovem, bonita, de cabeleira farta – Clara tinha uma exuberância natural, a tal luz que não é fornecida pela Light. Já à porta do carro, a frase fatal: “Clarinha, meu amor, vê se dá uma desbastada nessa juba ou bota uma peruquinha pra sair com a gente”, algo assim. O dardo untado de curare atingiu em cheio o alvo. Clara jamais consultou o “Dictionaire des injures” e não sabia manipular palavras de baixo calão com a mesma des- treza de Araca, que as tinha armazenadas sob a língua. Gaguejante, puta da vida, soltou sua meia porção : – Aracy, vai tomar no seu... no seu... no seu... botão! Deu meia volta-volver, talvez sem escutar aquele “Eu adoro a Clarinha”, e fomos pra nossa esbórnia – onde Araca, é obvio, aprontaria outras poucas e boas.
  • 23. 29 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO PPandorga, papagaio, pipa – elas me chegavam às mãos em quantidades, sempre trazidas por amigos que sabiam de meu gosto em pendurá-las na parede. Bolas de gude, monte delas. Cataventos, sempre. Infância mal vivida, talvez. Araca percebeu isso quando foi lá em casa pela primeira vez, ainda no Beco do Rio, que desembocava, finzinho dele, logo onde?, na boca voraz daTaberna da Glória, a dos gloriosos filés que ela descreveu num de meus programas da TVE, com a boca salivando. Mãe Quelé trouxe, no colo, uma belíssima Cora (instrumento africano de cordas), com a qual me presenteou quando veio de Dakar. De uma distância menor, São Paulo-Rio, me trouxera Araca uma linda pandorga (ou papagaio, ou pipa, como queiram) em papel de seda japonês, que durante largo tempo ornamentou minha sala, até esgarçar-se, de tanto eu empiná-la em meu coração.
  • 24. 30 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO E Era a rua do Catete, 222. Eu morando numa vila logo ali adiante, na casa 13 do 214, vizinho ao inenarrável Cine Azteca, que ostentava uma fachada dantesca e tinha uma imperdível grade de programação de filmes mexicanos. (Ah, que saudades de Libertad Lamarque!). Era uma mistureba greco-romano-etrusco- medieval-mexicano-barroco, um pot-pourri de estilos arquitetônicos impossível de ser descrito. Um monumento ao que hoje se convencionou chamar de kitsch. Era, enfim, um car- naval de estátuas, colunas, arabescos, frisos dourados. Deveria ter sido tombado pelo patrimônio nacional como um monu- mento, paralelo, em grandiosidade, ao prédio do Elixir de No- gueira, alguns quarteirões adiante, já na Glória, com suas gigan- tescas figuras fundidas em bronze, depois esquartejadas numa demolição criminosa, objeto de repulsa de Pedro Nava, lavrada em seu “Galo das Trevas”. Enfim: e nós dois, Di e eu, quase vizinhos de Walter Wendhausen e Luis Canabrava, que mora- vam numa rua que desembocava quase na porta do Lamas. O pianeiro e crítico musical Mário Cabral, grande amigo de Araca-Elizeth-Di Cavalcanti, certa vez escreveu uma bela crôni- ca1 sobre esse vértice amoroso. E cá estou eu agora, em 1964, debruçado na prancheta de Di, enquanto ele termina o belo de- senho2 que iria ilustrar a capa do disco que nos encomendara o Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), o de Aracy cantando Car- tola. Pensava nosso amigo em produzir um outro disco, o da mulata Aizita Nascimento interpretando o repertório de outra Araci, a endiabrada Côrtes. Esses projetos, já contei, jamais fo- ram realizados. Esse quadro, num dia de muito aperto de Araca e de alguma folga financeira em meu orçamento, veio parar em minhas paredes, de onde saiu numa crise semelhante à que vive- ra minha amiga. Por uma ninharia, diga-se de passagem. Os quadros de Di, sem que soubesse (ou sabia?) sempre en- travam utilmente nas situações de aperto de seus amigos. Fora assim em São Paulo. Silvio Caldas e Araca estavam sem cacife para comprar a traquitana milagrosa que os levaria ao Nirvana, e resolveram vender a um Matarazzo (ou foi para um Martinelli?)
  • 25. 31 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO um belíssimo óleo, um dos muitos que Di ofertara a ela. Acho que Di, soubesse dessa transação ordinária, teria reposto a perda com outro óleo, com uma daquelas mulatas iguais à Marina Montini (hoje no Retiro dos Artistas), que ele eternizou com seus pincéis calibradíssimos de sensualidade. Chegou a pintar metade de um quadro, deixando para Clóvis Graciano comple- tar a outra metade. Não se sabe o destino dessa rara obra. Cló- vis era também um contumaz presenteador, amigo querido de Araca. Presumo ter visto, na casa da Almeida Bastos, no Encan- tado, uma marina de Pancetti – por sinal, tio de Isaurinha Garcia. Fazia fundo, acho, ao busto de Araca, moldado por Bruno Giorgi – que fizera, quase na mesma época, a placa que marcara a pre- sença de Mário de Andrade ali no vértice Glória-Catete, na rua Santo Amaro, 5. 1 “Meu roteiro sentimental do Catete é formado por um triângulo isósceles, tendo no vértice o apartamento do pintor (Di) e nos catetos o apartamento do poeta Hermínio, entre ladeiras da Glória de um lado e de outro o Café Lamas, no Largo do Machado. Quem mora em Copacabana não pode imaginar a doçura que é, por exemplo, conversar com Di Cavalcanti à tardinha, remexendo livros, gravuras sobre Proust, Leautaud, Coletto; e depois ir à casa de Hermínio (que cita orgulhosamente o nome da rua onde mora, a Mendes Campos, onde ouvi o violão de Turíbio Santos no pungente Prelúdio Nº 11, de Villa-Lobos) e ainda, ‘traçar’ uns ovos mexidos no Lamas. O catete é outra civilização!”. 2 Anos mais tarde, em 1995, esta gravura ilustraria o CD Cantoria, de Hermínio Bello de Carvalho, lançado não comercialmente.
  • 26. 32 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO H Haviam, as duas, baixado sensivelmente as reservas dos bar- ris da Escócia. Mais pra lá do que pra cá, chegam à recepção onde eram, digamos, convidadas de honra. Recebidas com pom- pas e glórias pelo mordomo, querem saber, antes de tudo, onde é o banheiro. O dedo, apontando a direção consideravelmente distante, fez com que as duas, Araca e Maysa, ali mesmo resol- vessem se desafogar. E um imenso vaso de plantas que ornava a entrada do saguão, tornou-se o providencial receptor de um vas- to xixi oloroso, impregnado do nectar escocês, depositado sob o frio olhar do discreto mordomo com ares de lorde inglês. E, glo- riosas, entraram na suntuosa gandaia. A A fonte é Sérgio Cabral, e a história lhe foi passada pelo Sér- gio Porto, testemunhada também por Ciro Monteiro, e tem como cenário a portaria do Hotel Normandie, em São Paulo, à frente do qual instalaram uma banca vendendo exemplares do Novo e Velho Testamento. Presumo eu que o bando de amigos deve ter passado por uma boa rodada de uísques e chopes. Araca, abrin- do a bolsa, pródiga como sempre, resolve salvar aquelas ímpias almas: – Agora, vou pagar uma rodada de Bíblias! Contritos, agradeceram o gesto caridoso.
  • 27. 33 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO E Estamos na casa de Tom Jobim, em busca de repertório. Ano do golpe militar, 1964. Tom saúda Araca com o “Tenha a pena de mim”, ao piano – dramatizando a frase “Não saio do miserê!” – e logo os contracantos de Carlinhos Lyra cruzam com “O Morro NãoTem Vez”, cantado pelo anfitrião, que mostra uma primeira audição de “Inútil Paisagem”, música que já está prometida para não sei quem. É a vez de Araca, que faz um esplêndido “Filosofia”, acompa- nhada pelo violão de meu parceiro Antônio Carlos Ribeiro Brandão. A conversa gira em torno da pré-bossa nova, o que dá chance para Araca engatar um Valzinho (“Tudo Foi Surpresa”) a capella, cujas complexas harmonias são objeto de comentários de todos os presentes. E desanda a falar. Conta que há um certo tempo escreveu para um jornal: escrevia à mão e datilografavam depois o texto lá na Rádio Record – e isso me fez lembrar de um certo dia em que sofreu uma travada geral ao autografar um dis- co: “Xi, acho que não sei mais escrever, belo Hermínio”. E o assunto envereda pelo Carlos Lacerda. “O Lacerda tem feitiço” – e a ele, feitiço, confessa que às vezes não fica imune. Conta dos tempos em que o contratava por “cinco mil cru- zeiros” para uns trabalhos, e ele mandava tirar umas fotos dela com o Feijão, “esse cachorro que está aí”. Depois, vira- ram inimigos. “Inimigos, inimigos” – tenta explicitar, dizendo que “você sabe, eu sou do partido comunista”. Não, ninguém sabia. Mas diz que, ultimamente, anda com umas minhocas na cabeça, que não tira o Carlos Lacerda do pensamento, che- gou a pensar em votar escondido nele, mas sem dizer nada pra ninguém, e até em mandar-lhe um telegrama, porque “ele gosta dessas papagaiadas”. E lembra que uma vez reclamou do calçamento da rua, e em dois meses, ele mandou consertar tudo. Mas acaba confessando que não vai fazer nada do que pensou. Que “essas merdas, assim como entram na cabeça, elas também saem”. Araca: comunista, judia e protestante. Mais anárquica, im- possível.
  • 28. 34 ARACA - ARQUIDUQUESA DO ENCANTADO T Tentei, há uns cinco anos, revisitar a casa de Aracy. Ninguém atendia. O abandono era visível na falta de pintura, no descuido do jardimquevislumbreidoportãofechadoacadeado.Estavainabitada, me disse uma vizinha. Seria vendida, soube-se depois. Há poucos dias, a confirmação: mudou de dono. E o que terá conservado? Sa- berá quem nela morou? Revisitar uma casa tem, para mim, o mes- mosentidodeumversomeu,quePaulinhodaViolamusicou:“Vol- tar quase sempre é partir/ para um outro lugar”. Deu-se o mesmo quando tentei voltar à casa 19 da Hermenegildo de Barros. Alimentei, durante anos, o sonho de comprá-la.Teria sido um erro desses irreparáveis. Esquartejaram- na, foi a constatação quando ela adentrei. Não consegui reconstituir a infância do menino que fui. Intacta, apenas, sua arquitetura externa descrita por Pedro Nava1 . Tenho muitas casas em minha lembrança: a do pequeno bar- raco da Rua Acau 41, de Clementina; as de Carlos Cachaça e Menininha, Cartola e Nelson Sargento, na Mangueira; as de dona Otília, porque lá eu exercitei o hábito de ler poemas; e a de Jacob, em Jacarepaguá. As visitas de Araca à minha casa (primeiro ao já-vi-tudo da Beco do Rio, depois ao aparamento da Benjamin Constant e, mais tarde, à minha morada no Edifício Pixinguinha) constituíam quase sem- pre uma grande festa, sobretudo para Francisco Lano Bello de Car- valho, um llasa-apsus irritadiço que, ao contrário dos demais visi- tantes a quem assustava com seus latidos e investidas, jogava-se ao colodeAracacomoumvelhoamigo.EeraSerginhopracá,Lucinha pra lá, e já na última fase trocara o uísque por uma carga de remédi- os para toda sorte de mazelas. Lembro-me dela uma vez aqui em casa: “Tens algum bagulho aí pro meu vago-simpático?”.2 1 NAVA, Pedro. Galo das Trevas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1981. Fragmento: “Consola a visão dos 17 e 19, casas datadas de 1896, dominando pela sua autenticidade. São de platibanda, dois andares e térreo habitável. A porta que sai do rés da rua tem a altura do térreo até a linha superior das janelas. Lembram certos sobradões da Bahia.” 2 Numa matéria de jornal, a repórter lista os vidrinhos de remédios enfileirados no canto da janela da varanda da casa de Aracy: Hepaxofril, Levedo de Cerveja, Complexo B, Plasil, Enzinotrox, Fomergin Spray, Litrison, Unicap T.
  • 29. 35 HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO Aracy de Almeida exibe um dos enfeites de Natal confeccionados por ela