3. Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
substância psicoativa (F10 a F19):
Este agrupamento compreende numerosos transtornos que diferem
entre si pela gravidade variável e por sintomatologia diversa, mas
que têm em comum o fato de serem todos atribuídos ao uso de uma
ou de várias substâncias psicoativas.
O terceiro caractere do código identifica a substância implicada e o
quarto caractere especifica o quadro clínico. Os códigos devem ser
usados, como determinado, para cada substância especificada, mas
deve-se notar que nem todos os códigos de quarto caractere podem
ser aplicados a todas as substâncias.
Inclui: intoxicação, dependência,
abstinência e quadros mentais causados
por várias substâncias: álcool, maconha,
cocaína, cafeína, alucinógenos, fumo,
“cola” etc.
4. Numerosos usuários de drogas consomem mais de um tipo de
substância psicoativa. O diagnóstico principal deverá ser
classificado, se possível, em função da substância tóxica ou da
categoria de substâncias tóxicas que é a maior responsável pelo
quadro clínico ou que lhe determina as características essenciais
5. Este agrupamento contém as seguintes categorias de três
caracteres:
F10 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
álcool
F11 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
opiáceos
F12 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
canabinóides
F13 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
sedativos e hipnóticos
F14 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso da
cocaína
F15 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
outros estimulantes, inclusive a cafeína
6. F16 Transtornos mentais e
comportamentais devidos ao uso de
alucinógenos
F17 Transtornos mentais e
comportamentais devidos ao uso de fumo
F18 Transtornos mentais e
comportamentais devidos ao uso de
solventes voláteis
F19 Transtornos mentais e
comportamentais devidos ao uso de
múltiplas drogas e ao uso de outras
substâncias psicoativas
7. As subdivisões seguintes de quarto caractere devem ser
usadas com as categorias F10-F19:
(F1x.0) Intoxicação aguda
(F1x.1) Uso nocivo para a saúde
(F1x.2) Síndrome de dependência
(F1x.3) Síndrome [estado] de abstinência
(F1x.4) Síndrome de abstinência com delirium
(F1x.5) Transtorno psicótico
(F1x.6) Síndrome amnésica
(F1x.7) Transtorno psicótico residual ou de instalação tardia
(F1x.8) Outros transtornos mentais ou comportamentais
(F1x.9) Transtorno mental ou comportamental não
especificado
8. Tabela de classificação das substâncias psicoativas:
As substâncias psicotrópicas agem no sistema nervoso central,
produzindo alterações de comportamento, humor e cognição.
De acordo com a ação destas no organismo, temos a seguinte
classificação tripla (proposta pelo pesquisador francês
Chaloult):
# Drogas estimulantes do sistema nervoso central;
# Drogas depressoras do sistema nervoso central;
# Drogas perturbadoras do sistema nervoso central;
9. Drogas estimulantes do sistema nervoso central:
• Estas substâncias aumentam a atividade cerebral, uma vez que
imitam ou cooperam com os neurotransmissores estimulantes
do organismo (como a epinefrina e dopamina). Assim, dão
sensação de alerta, força, autonomia, invulnerabilidade,
disposição e resistência, mas que, ao fim de seus efeitos,
conferem cansaço, indisposição e depressão, devido à
sobrecarga que o organismo se expôs;
• As drogas mais comuns deste grupo são:
nicotina
cafeína
anoxerígenas (diminuem a fome. Ex.: anfetamina)
cocaína (e seus derivados: merla, crack, pasta,
cloridrato)
10. Drogas depressoras do sistema nervoso central:
• Tais drogas apresentam uma diminuição das atividades
cerebrais de seu usuário, deixando-o mais devagar, desligado e
alheio; menos sensível aos estímulos externos e um tanto
quanto anestesiado face ao se passa em seu entorno ou em seus
pensamentos;
• As drogas mais comuns deste grupo são:
álcool
inalantes/solventes (colas, tintas,
removedores, tiners)
barbitúricos (soníferos)
ansiolíticos
antidepressivos
opiácios (heroína, morfina, ópio)
11. Drogas perturbadoras do sistema nervoso central:
• São aquelas drogas cujos efeitos são relativos à distorção das atividades
cerebrais, podendo causar perturbações quanto ao espaço e tempo;
distorções nos cinco sentidos e até mesmo alucinações. Grande parte
destas substâncias é proveniente de plantas, cujos efeitos foram
descobertos por culturas primitivas, associando as experiências
vivenciadas a um contato com o divino;
• As drogas mais comuns deste grupo são:
a) de origem vegetal: mescalina (do cacto
mexicano),
THC (da maconha)
haxixe
psilocibina (de certos cogumelos)
lírio (ou trombeteira, zabumba, saia branca)
b) de origem sintética:
LSD -25
ecstasy
anticolinérgicos
12. Fragmento clínico número 2:
José, 19 anos, sexo masculino, encontra-se internado em uma instituição destinada à recuperação de
toxicômanos. A entrevista foi realizada nesta instituição.
Ele é usuário de múltiplas drogas. Nesta primeira entrevista, fala com certa vagarosidade, às vezes quase
cochicha para o psicólogo, como se contasse um segredo.
-Você brigou aqui ontem?
-Eu briguei pra defender aquele senhor que saiu agora, porque outro cara
queria roubar a carteira e os documentos dele. Aliás, ele não tem carteira, ele
tem passaporte. Não é nem passaporte, tem 2... chips... parecidos com
disquetes. Tem 2 disquetes. É mais fácil colocar a vida no disquete que em
ação, ou no papel. Eu tinha que ter saído ontem, por isto fiquei bravo.
-Por que tinha que sair ontem?
-Porque eu sou marido da Maria das Graças...
-Qual?
-A Xuxa, “rainha dos baixinhos”. Eu sinto isto, pode até ser ilusão, mas a gente
nunca teve relações... Sou muito poderoso. Trabalhei na ROTAM por 3 meses...
Só não sei voar ainda. O Diabo continua interno. Cálcio interno. Pasta de
dentes. A minha está acabando. (Tira a pasta do bolso e mostra) Se o senhor
pudesse me arrumar uns 5, 10 contos pra quebrar o galho...
-Pra quê?
-Meus documentos ficaram em casa: identidade, CPF, certidão de nascimento,
certidão de óbito. O que é atestado de óbito?
13. -Você já viu a Xuxa?
-Já, uma vez ela foi no meu barraco. A gente já conversou,
beijou...
(...)
-Só que eu tenho o sobrenome de Clark. Clark Kent. Muitos
me chamam de Clark. Já viu Superboy? Mas é bom aquele
programa...
[OBS.: fragmento de atendimento realizado 30 dias após o
primeiro acolhimento]:
-Falaram que você estava agressivo, em casa.
-Não, eu tenho uma coisa que ninguém tem.
-O quê?
-Você não sabe, não? Tá fazendo de bobo, por quê? Você não
escuta, não? Não escuta vozes, não?
-O que só você tem?
-Visão. Visão magnética. Não quero falar disso, não. Não vai
ficar nada anotado aqui, não.
14. -Como é isso?
-Se o senhor vai morrer o senhor vai. Ou acontecer
alguma coisa com sua família, ter uma dificuldade
financeira.
-Você falou que escuta vozes...
-Escuto. Televisão mesmo. Quando a gente fuma maconha
escuta rádio. Vou vender maconha quando sair daqui.
15. -E a Xuxa?
-Nós vamos casar. Vai ser a Princesa Diana, já ouviu falar
dela? Só que não vai ser Príncipe Charles, vai ser o
Príncipe Clark. Por que eu não saí este fim-de-semana?
-Não sei, estava autorizado. Sua família não apareceu?
-Eu quero trocar de psicólogo, você não está resolvendo
meu problema, eu quero ir embora e você não está
resolvendo! Quando eu vou embora?
(O paciente começa a se exaltar)
-Quando estiver melhor. (O entrevistador explica as razões da
manutenção da internação)
-E se eu mandar o senhor tomar conta de sua própria vida?
(Enfermeiro entra no consultório, o psicólogo encerra a entrevista e
solicita que o enfermeiro leve o paciente)
(Alguns segundos depois, o paciente retorna, dá um murro na mesa, e
se dirige em direção ao psicólogo. Enfermeiro entra e imobiliza o
paciente, que é contido e medicado. O paciente permanece
gritando)
- Me desamarra, vamos brigar!
16. Análise do fragmento clínico número 2 (José):
Sintomas:
* fraco controle dos impulsos (o paciente se envolvendo em
brigas), com baixa racionalização (oferece dois motivos diferentes
para a briga);
* associações frouxas do pensamento (carteira – passaporte;
passaporte – disquetes; interno – cálcio; cálcio –pasta de dentes;
certidão de nascimento - óbito);
* lentidão da fala (e provável lentidão do pensamento);
* ideação delirante erotomaníaca;
* ideação deliróide de grandeza;
* alucinações auditivas (?).
17. Comentários objetivando a elaboração de uma hipótese
diagnóstica:
• O paciente apresenta circunstâncias impulsivas, certos
componentes maníacos e traços de megalomania e erotomania
que podem, a princípio, sugerir um diagnóstico no campo das
psicoses. Soma-se a isto circunstâncias de uma provável
alucinação auditiva.
• Todavia, vale também lançar a nossa atenção no histórico de
abuso de drogas.
• Quando há abuso de drogas, junto da sintomatalogia observada,
sempre suge uma interrogação clínica de difícil resolução: ‘ele está
psicótico por causa das drogas ou ficaria mesmo se não usasse?’;
• O paciente mistura características de transtorno de humor e
transtorno psicótico. Porém, o que prevalece é a sintomatologia do
pensamento, pois está presente nas duas entrevistas;
18. • Um transtorno psicótico associado ao uso de drogas pode ser
esquizofreniforme (quando predominam delírios e alucinações);
delirante (apenas delírios); alucinatório (predomínio de
alucinações); ou polimórfico (quando alternam-se delírios,
alucinações, e discurso desconexo).
• Hipótese diagnóstica: transtorno psicótico polimórfico por uso
de múltiplas drogas (F 19.53).
19. Recomendações sobre os primeiros contatos com um paciente na
situação de entrevista/acolhimento:
Pensemos que o diagnóstico de um paciente
pode vir a ser definido, de maneira bem
ampla, a partir de três grandes situações:
quadros com organicidade evidente em suas
causalidades, neuroses ou psicoses.
a) A primeira pergunta que nos
devemos fazer é: este paciente
apresenta ou não alterações de
memória e/ou de nível de
consciência, derivadas de um quadro
orgânico – seja neurológico, tóxico,
infeccioso, etc?
Em caso afirmativo, o paciente apresenta
um quadro orgânico.
20. Em caso negativo – ou seja, os sintomas
psíquicos se instalam sobre um fundo de
preservação da memória e do nível de
consciência, nem há doença orgânica que
possa determinar os sintomas psíquicos –
o paciente se inclui num dos outros
grupos: ou o das psicoses, ou o das
neuroses.
21. Estando eliminada a evidência de uma organicidade que explicaria
o quadro clínico do paciente:
Surge uma segunda perspectiva de investigação
fundamental no diagnóstico: ele apresenta
vivências bizarras? (ex.: acredita-se teleguiado
pela Internet? Afirma que lêem ou adivinham
seus pensamentos? Escuta vozes que comentam
seu comportamento? Apresenta uma exaltação
ou uma inibição psicomotora muito intensa, e de
matiz peculiar? ).
Neste caso, tenderemos a situar o paciente no
grupo das psicoses, – que costuma apresentar-se
classicamente sob uma das três formas
(esquizofrenias, paranóias, transtornos severos
do humor), ou sob formas mistas entre estas.
22. Enfim, há uma terceira possibilidade: o paciente não
apresenta estas vivências de forma anômala
exemplificadas no slide anterior, mas encontra-se
intensamente ansioso, ou deprimido?
Ou traz uma série de queixas físicas vagas e
incaracterísticas como forma de expressar um mal estar
ou insatisfação de ordem psíquica?
Ou fica uma boa parte do tempo ruminando idéias
obsessivas e executando rituais para livrar-se delas? Se
este tipo de sintomas apresenta-se com intensidade e
freqüência suficientes para prejudicar seriamente a vida
do paciente, começamos a pensar, então, no amplo
quadro das neuroses.
23. Fragmento clínico número 3:
Senhor M., 46 anos, sexo masculino
Seu quadro clínico iniciou-se há cerca de 2 anos. Faz uso abusivo de álcool há 30 anos (já
chegou, em certas épocas, a beber mais de 2 garrafas de aguardente por dia).
Na entrevista, mostrou-se calmo, sem a manifestação de nenhum sofrimento evidente. Foi
levado pela filha a um serviço de saúde pública.
O paciente respondeu corretamente a todos os dados de identificação;
- Sabe que dia é hoje?
- Estamos em abril? (...) 2005, né? [OBS.: data da entrevista junho de 2005]. O
dia do mês não sei, não... Não sei nem como tô vivendo ainda, é por Deus! Eu
passei 3 noites olhando pro telhado, o coração disparado, esperando a
morte. Não tinha recurso, nem minha mãe, ela quer a morte pra mim, sendo
que eu nunca judiei dela, nunca bati nela.
- Por que você diz que sua mãe quer sua morte?
- Minha família fica aqui rodeando a clínica, não dão sossego nem na hora de
comer, ficam me xingando.
- De quê?
- Tudo quanto é nome, “viado”, “estuprador”, “tarado”...
- Mais alguém escuta?
- Escuta, agora mesmo eles estão falando que eu tenho que morrer.
24. - Eles estão aqui em volta da clínica, então?
- Estão.
- Eles não vão embora?
- Não, eles acamparam aí!
25. Análise do fragmento clínico número 3 (Sr. M.):
• Sintomas:
# idéias delirantes de conteúdo persecutório, causando
insônia e angústia;
# alucinações auditivas, com interpretação delirante das
mesmas (como escuta freqüentemente, acredita que a família
acampou em volta da clínica);
26. Comentários objetivando a elaboração de uma hipótese
diagnóstica:
• Se não fosse a história do uso intenso de álcool, facilmente, e
com razão, tenderíamos a diagnosticar este paciente como
esquizofrênico (ou, ao menos, dentro da família F20 a F29);
• Entretanto, a presença de um longo (e intenso) uso de álcool nos
conduz a uma atitude mais cautelosa;
• Hipótese diagnóstica: transtorno psicótico esquizofreniforme
decorrente do uso de álcool (F 10.50).
27. Prosseguiremos na próxima aula!
Prof. Alexandre Simões
Contatos:
alexandresimoes@terra.com.br
http://www.alexandresimoes.com.br