O documento discute a malária fora da Amazônia no Brasil, destacando que surtos ocorrem em áreas de Mata Atlântica devido a portadores assintomáticos. A doença também é introduzida por casos importados de outras regiões endêmicas e a desinformação dificulta o diagnóstico. Investir em informação pública sobre a doença e em diagnósticos precoces é essencial para o controle da malária fora da Amazônia.
1. A malária
brasileira fora da
Amazônia.
Dr. Wanir José Barroso, sanitarista da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária e especialista em epidemiologia e controle
de endemias/Fiocruz.
2. A malária como doença parasitária de evolução rápida continua sendo um grave
problema de saúde pública no Brasil e em outras 111 áreas endêmicas de cerca de
mais de 100 países. A malária humana também detém a identidade de ser a
antroponose de maior prevalência no planeta, isto é, nenhuma outra doença do
homem transmitida ao próprio homem, através de alguns mosquitos do gênero
Anopheles, atinge e mata um número tão grande de pessoas.
Há vários anos no planeta, são estimados cerca de 300 a 500 milhões de casos que
ocasionam de 3 a 5 milhões de óbitos anuais, sendo em sua maioria crianças com
menos de 5 anos de idade, além de colocar sob o risco de contrair a doença cerca de
40% da população mundial residente em sua área tropical. No Brasil, a autoctonia de
casos, situação em que os três elementos do ciclo evolutivo da doença (o homem, o
mosquito e o Plasmodium) são ou estão na mesma região, está concentrada em
todos os estados da Amazônia Legal mais o oeste do estado do Maranhão, em
regiões de Mata Atlântica de diversos estados do sudeste, além de regiões do Vale
do Rio Paraná.
Os Estados do sudeste brasileiro além de todo restante da região extra-amazônica, a
partir das décadas de 60 e 70, tiveram suas áreas maláricas transformadas em
regiões de transmissão interrompida. Houve nessa época o tratamento maciço de
casos, mas não houve a eliminação do mosquito transmissor, o que torna essas
regiões vulneráveis à ocorrência de episódios de reintrodução da doença.
3. Os principais mosquitos transmissores de malária nos Estados da região extra-
amazônica são o Anopheles aquasalis, no litoral, o Anopheles cruzii, em regiões de
Mata Atlântica e o Anopheles darlingi, em outras regiões. Seus principais criadouros
são respectivamente: as áreas alagadas com água salobra ou do mar no entorno do
litoral, as plantas que acumulam água em suas folhas, como as bromélias que são
abundantes em toda região de Mata Atlântica e as áreas alagadas e sombreadas do
Vale do Rio Paraná, entre outras.
A malária de Mata Atlântica nos estados do sudeste como RJ, SP, ES e SC têm como
características: a ocorrência de casos isolados entre visitantes e moradores da região
que necessariamente entraram em contato com a mata ou estiveram próximos a ela,
o registro de casos em vários municípios possuidores de Mata Atlântica, a presença
preponderante do Anopheles cruzii como transmissor, o diagnóstico de malária por
Plasmodium vivax com baixa parasitemia e a existência de uma representativa
população de assintomáticos e oligossintomáticos da doença detectada em torno de
alguns casos estudados, através de inquéritos sorológicos para Plasmodium vivax e
pesquisa de Plasmodium em esfregaços sanguíneos.
O comportamento epidemiológico da doença após a ocorrência de múltiplos e
discretos surtos ao longo destes últimos anos nas regiões de Mata Atlântica no Brasil
nos sugere que a malária de Mata Atlântica ainda esteja enfrentando a fase de
transposição da barreira imunológica dos reservatórios, isto é, enquanto os anticorpos
específicos dos pacientes assintomáticos estiverem contendo a multiplicação do
protozoário mantendo baixa a parasitemia nesses pacientes, estarão baixas a
circulação de gametócitos e a infectividade nos mosquitos transmissores.
4. Neste período de constantes e discretos surtos ou microepidemias, enquanto não se
observa o registro de níveis endêmicos mais expressivos da doença, o esperado é que
continuem a ocorrer novos e esporádicos casos de malária entre visitantes e moradores
não imunes nessas regiões, pela existência da população de assintomáticos ao redor de
cada caso. O fato de haver poucos registros de casos não quer dizer que a doença esteja
sob controle, pois os infectados sintomáticos com retardo de diagnóstico e os
assintomáticos sem diagnóstico e sem tratamento oferecem a possibilidade de continuar
mantendo o Plasmodium em circulação na região, infectando mosquitos e produzindo
casos.
A realização de novos inquéritos sorológicos para Plasmodium vivax nas diversas regiões
de transmissão da malária de Mata Atlântica permitirá a identificação e o tratamento dos
portadores da doença, além de permitir avaliar a extensão do problema. A principal
estratégia de controle da malária de Mata Atlântica ainda é o pronto diagnóstico e
tratamento dos sintomáticos e assintomáticos, como se sintomáticos fossem, sob pena
dela continuar sendo por desinformação confundida com outras doenças e tratada
muitas vezes apenas como febre de origem obscura.
A reintrodução de malária por Plasmodium vivax nestas regiões, através de casos
importados oriundos de áreas endêmicas como a Amazônia, pode interferir na
infectividade do mosquito, difundir novas cepas, acelerar a ocorrência de novos surtos,
além de oferecer a possibilidade de descaracterizar do ponto de vista epidemiológico e
terapêutico à evolução da doença enquanto malária de Mata Atlântica. Desequilíbrios
ambientais podem reduzir a população de predadores da larva de anofelinos, mosquitos
transmissores de malária, e consequentemente favorecer a possibilidade de manutenção
e expansão da doença.
5. Situações de equilíbrio ambiental mantêm estes insetos na cadeia alimentar de seus
principais predadores e praticamente incapazes de se envolverem em surtos ou epidemias
pela baixa densidade de suas formas adultas. Pensar em malária diante de um paciente
febril sem outros diagnósticos conclusivos em qualquer região do país, não se constitui em
nenhum absurdo do ponto de vista clínico ou epidemiológico, principalmente se o paciente
é oriundo de área endêmica, frequentou regiões de Mata Atlântica no sudeste brasileiro,
tem história de malárias anteriores ou de transfusões sanguíneas em área endêmica.
Considerando-se estes fatos o diagnóstico de malária fora de área endêmica como a
Amazônia, por exemplo, deixa de ser clínico-laboratorial para ser epidemiológico-
laboratorial. O Brasil é um país endêmico de malária, e esta possibilidade de diagnóstico
deve ser encarada sempre como possível em qualquer parte de seu território,
principalmente pela ocorrência de casos importados que possam ser detectados em
qualquer região.
Investir e disponibilizar informações para quem se dirige ou chega de área de transmissão da
doença representa estratégia que dificulta a reintrodução de casos, possibilita o tratamento
no início da doença, evita a evolução para suas formas graves e o óbito desnecessário pelo
retardo de diagnóstico e de tratamento. Informações sobre o que é a doença, suas formas
de transmissão, seus sintomas, os grupos de risco que podem desenvolver formas graves, o
uso de quimioprofiláticos, as principais medidas de proteção individual e coletiva e
principalmente onde buscar por socorro médico em qualquer região do país representam
informações importantes como estratégia de controle da endemia.
6. Além da autoctonia de casos de malária de Mata Atlântica, a região sudeste e outras
regiões da extra-amazônia brasileira convivem com outras situações de casos de
malária. Dentre essas estão alguns casos que evoluem para o óbito, tendo como
principal causa a desinformação sobre a doença não só por quem contrai a doença,
mas, sobretudo por desinformação da rede assistencial particular e uma grande parte
da rede assistencial pública, considerando-se a ausência da cultura da malária nessas
regiões por deixarem de serem áreas endêmicas há cerca de pouco mais de quatro
décadas.
Existe ainda no Brasil uma enorme lacuna sobre a prevenção de doenças através da
informação, principalmente para viajantes. Outra situação se refere aos casos
importados tanto da Amazônia como da África ou outra área endêmica que são maioria
no sudeste e em toda região extra-amazônica brasileira. Esses casos cumprem o
período de incubação intrínseco, que corresponde à fase hepática da doença, e vem
apresentar os sintomas fora da área endêmica ou de transmissão, ou até mesmo em
outra área de transmissão onde são diagnosticados e tratados. A malária também migra
na Amazônia pela importação de casos.
Esse período de incubação pode durar de 8 a mais de 30 dias e varia segundo a espécie
parasitária, a carga parasitária ou número de protozoários injetados no momento da
picada, o uso de medicamentos como quimiprofiláticos e as condições imunológicas do
paciente. O período de incubação da malária por P. vivax gira em torno de 12 dias, na
malária por P. falciparum um pouco menos e na malária por P. malariae cerca de 30
dias.
7. Uma quarta situação da malária fora da Amazônia se refere a casos introduzidos, que
são aqueles casos oriundos de episódios de reintrodução da doença. Alguém chega
com malária em região de transmissão interrompida, como o Rio de Janeiro, por
exemplo, permanece sem diagnóstico e tratamento, são picados por mosquitos
transmissores da doença, estes se infectam e transmitem a doença em tantos
quantos picarem após cumprir o período de incubação extrínseco, que ocorre no
mosquito-fêmea e que dura cerca de 10 a 12 dias.
Dois episódios importantes ocorreram no RJ, um em 1997, em Itaipuaçu-Maricá e
outro em 2002, em Paraty. O risco de se conviver com episódios de reintrodução de
malária no Rio de Janeiro ou em qualquer área de transmissão interrompida da
região extra-amazônica são permanentes, porque permanentes são: a existência de
mosquitos transmissores de malária em algumas regiões não urbanas ou pouco
urbanizadas e a chegada de viajantes doentes com malária nessas regiões.
A desinformação sobre a doença, a ausência da cultura da malária, a não preservação
ou o manejo ambiental predatório e a automedicação na área endêmica são fatores
relacionados com os episódios de reintrodução da doença no Rio de Janeiro. Poucos
casos induzidos e importados, ou por transfusão sanguínea ou por uso de drogas
ilícitas injetáveis, também fazem parte dessa realidade em alguns Estados do sudeste.
O que ocorre no sudeste, em termos epidemiológicos, ocorre na maioria das regiões
da extra-amazônia brasileira.
8. Investir em informação sobre a doença e investir no diagnóstico precoce são
estratégias que reduzem a endemicidade da doença e fazem com que os mosquitos
transmissores passem a ter importância secundária em regiões de transmissão
interrompida ou em regiões onde o diagnóstico e o tratamento são feitos antes da
aparição de gametócitos no paciente. Quanto mais veloz o diagnóstico e o tratamento,
menores as chances de novos mosquitos se infectarem e de ocorrerem novos surtos
ou epidemias.
A implantação de medidas de impacto epidemiológico como o aumento da
informação sobre a doença, o aumento da precocidade no diagnóstico e tratamento
dos infectados e doentes, a detecção e tratamento de assintomáticos, o controle
possível do mosquito transmissor e o aumento de parcerias comunitárias,
institucionais e científicas são estratégias que influenciam na redução e controle da
endemicidade da malária no planeta. Na Amazônia, a mudança de perspectiva de sua
população com relação ao controle da doença representa ainda apenas uma das
barreiras a serem vencidas com vistas ao controle e redução da endemicidade dessa
antroponose no Brasil. Todas essas estratégias de controle da doença no planeta têm
ainda como desafios entrelaçados encaminhamentos políticos e múltiplas soluções de
determinantes epidemiológicas, ecológicas, socioculturais e econômicas, todas de
dimensões continentais.
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