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UM
Rebecca Chambers andava de bicicleta pelas ruas escuras e sinuosas
do distrito de Cider, enquanto a lua de fim de verão se dilatava no céu
noturno quente e ainda claro acima dela. Embora fosse relativamente
cedo, as ruas do subúrbio estavam desertas, pois o toque de recolher
imposto para toda a cidade ainda vigorava; ninguém menor de dezoito
anos devia ficar fora de casa após o crepúsculo até que os assassinos fos-
sem postos atrás das grades. Havia sido um verão tenso e silencioso em
Raccoon City, pelo menos na aparência...
Amoçaatravessoucasasquietas;obrilhovagodetelevisõesseespalhava
por gramas bem cuidadas, o zumbido distante de grilos e um eventual la-
tido eram os únicos sons que ela podia ouvir. Os cidadãos apreensivos de
Raccoon moravam atrás daquelas portas trancadas, esperando o anúncio
de que os assassinos haviam sido presos e a cidade estava a salvo.
“Se eles soubessem...”
Por um breve momento, Rebecca invejou a ignorância deles. Che-
gara à conclusão desanimadora nas últimas semanas de que conhecer
a verdade não era tão bom quanto devia ser — principalmente quando
ninguém acreditava nela.
Haviam se passado treze longos e impiedosos dias desde o pesa-
delo na propriedade de Spencer. Os S.T.A.R.S. sobreviventes tinham
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escapado de traição e morte só para se deparar com um muro de des-
crença desdenhosa quando tentaram contar sua história. Jill, Chris,
Barry e ela foram tachados de drogados e outras coisas piores nos jor-
nais locais, indubitavelmente com incentivo da Umbrella — e, depois
da suspensão, até o DPR se recusou a acreditar neles. Agora, com a
Umbrella assumindo as investigações do incêndio, sem dúvida se li-
vrariam da última prova... Não importava para onde os S.T.A.R.S. se
voltassem, sempre parecia que a Umbrella havia estado ali primeiro,
molhando a mão de uma pessoa e acobertando pistas, fazendo com
que fosse impossível alguém ouvir a versão deles.
“De qualquer forma, é inacreditável. Uma das maiores e mais res-
peitadas empresas farmacêuticas e de pesquisa médica do mundo —
sem considerar o fato de ser a principal fonte de renda em Raccoon
— conduzindo experiências com armas biológicas em um laboratório
secreto, criando monstros experimentais... Se eu não soubesse de tudo,
provavelmente também ia pensar que estava louca.”
Pelo menos o pior havia passado. Com o laboratório destruído, os
ataques em Raccoon pararam — e, apesar de os responsáveis ainda não
terem sido capturados, ela imaginou que isso fosse apenas uma questão
de tempo. A Umbrella estava mexendo com coisas perigosas e não seria
capaz de se esconder de uma investigação do S.T.A.R.S. Os demais e
ela teriam que tomar cuidado até que a central mandasse reforços.
“E por falar em — ai…”
O coldre estava machucando seu tórax. Rebecca o ajustou através do
algodão fino da camisa, esperando que depois daquela noite não tivesse
mais que carregar a arma — um revólver calibre trinta e oito de cano curto
da coleção de Barry. Não podia falar pelos outros, mas não tinha uma noite
de sono decente desde que haviam escapado da mansão de Spencer e não
se sentia segura tendo de andar por aí armada o tempo todo.
Suspirando, virou à esquerda na Foster e pedalou pelas sombras na
direção da casa de Barry, lembrando-se de que ele havia convocado
a reunião provavelmente porque devia ter recebido ordens da central.
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Dissera apenas que havia uma “novidade”, pedindo para ela aparecer o
quanto antes — e, embora tentasse controlar a imaginação a todo custo,
Rebecca não podia evitar a excitação pulsando firme e dando-lhe frio
no estômago desde que ele havia ligado.
“Talvez nos coloquem num avião para Nova York, para orientarmos
a equipe de investigação, ou mesmo para a Europa, para quando inva-
direm a sede da Umbrella...”
Aonde quer que fossem enviados, com certeza era melhor do que
ficar em Raccoon. O peso de se manter alerta o tempo todo estava
afetando os sobreviventes. Chris aparentemente acreditava que a Um-
brella estava esperando os olhares públicos saírem dos S.T.A.R.S. an-
tes de agir, porém era apenas uma teoria — e não era fácil adormecer
com isso na cabeça. O frangote do Vickers tinha fugido da cidade
depois de somente dois dias, incapaz de lidar com a pressão — e, em-
bora Jill, Chris e Barry tivessem condenado a covardia de Brad, Re-
becca começava a pensar se o piloto do Alpha não estava certo. Não
que ela quisesse que a Umbrella se safasse — não havia dúvida de que
os experimentos eram moralmente repreensíveis e certamente ilegais
—, mas, até que o S.T.A.R.S. mandasse ajuda, ficar em Raccoon City
era perigoso.
“Só até hoje à noite; só mais um pouquinho, e tudo vai acabar. Sem
mais armas, sem mais portas trancadas — sem mais preocupação com
o que a Umbrella vai fazer com a gente por saber a verdade.”
Assim que fizeram o relatório, os superiores em Nova York lhes disse-
ram para aguardar. O próprio diretor-assistente Kurtz havia prometido
investigar um pouco e dar um retorno — mas onze dias se passaram, e
ainda nenhuma palavra. Não tinha intenção de fugir como Brad havia
feito, mas passou a odiar a sensação daquele coldre, o peso do aço mor-
tal contra o corpo a cada passo. Ela era uma química, afinal de contas...
“E, assim que os reforços chegarem, pode ser que eles me transfiram
para um dos laboratórios e me deixem estudar o vírus. Tecnicamente,
ainda sou uma bravo; duvido que eles me queiram na linha de frente...”
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Não havia dúvida de que seria a melhor maneira de usar seus talen-
tos. Os outros eram soldados experientes, mas Rebecca estava com os
S.T.A.R.S. havia apenas cinco semanas. Sua primeira missão foi aquela
que liquidou metade da equipe na Floresta de Raccoon e trouxe pistas
sobre o segredo da Umbrella. Desde então, passou muito tempo estu-
dando de novo a arquitetura molecular de vírus para tentar determinar
a estratégia de reprodução do vírus T. O S.T.A.R.S. não precisava de
médicos de campo agora, precisava de cientistas... E, se tinha aprendido
alguma coisa com o desastre da propriedade de Spencer, era que seu
lugar era em um laboratório. Conseguira se virar naquela noite, mas
também sabia que trabalhar com o vírus T era a maior contribuição
que podia fazer para parar a Umbrella.
“E pode ir admitindo”, a mente suspirou, “que você é fascinada por
isso. A oportunidade de estudar um agente mutagênico emergente e não
classificado, descobrir o funcionamento dele — é isso que te instiga”.
Pois é, não era vergonhoso gostar do trabalho. Havia se juntado ao
S.T.A.R.S. na esperança de ter uma chance dessas — e, com um pouco
de sorte, depois da reunião de hoje Rebecca faria as malas e sairia de
Raccoon City para entrar em uma nova fase da vida como bioquímica
do S.T.A.R.S.
Parou no fim do quarteirão, na frente de um sobrado vitoriano
reformado e pintado de amarelo pálido, procurando ao redor algum
movimento suspeito antes de descer da bicicleta. Os Burton moravam
ao lado de um grande parque fora da cidade. Algumas semanas antes,
talvez ela mesma tivesse vagado pelo parque silencioso, aproveitando a
noite amena de verão, olhando as estrelas; agora era apenas mais um
lugar escuro em que alguém poderia se esconder. Tremendo de leve
apesar do ar quente e úmido, correu para a entrada da casa.
Arrastando a bicicleta pela varanda, limpou o suor da nuca e olhou
o relógio. Tinha feito um tempo excelente — só vinte minutos desde a
ligação de Barry. Rebecca apoiou a bicicleta no corrimão, rezando para
que ele tivesse boas notícias.
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17
Antes de ela bater, Barry abriu a porta, vestindo camiseta e jeans, o
corpo musculoso preenchendo a moldura da porta. Barry puxava ferro.
Como se buscasse vingança.
Sorriu, deu espaço para ela entrar e olhou a rua quieta antes de
segui-la para a sala da frente. Sua Colt Python estava enfiada no coldre,
o que lhe conferia uma aparência de caubói gigante.
— Viu alguém? — perguntou gentilmente.
Ela balançou a cabeça.
— Não. Vim pelas ruas de trás também.
Barry assentiu, e, embora ainda estivesse sorrindo um pouco, Re-
becca pôde ver o olhar apavorado nos olhos, o mesmo olhar que tinha
desde a fuga tensa. Queria poder dizer a ele que ninguém o culpava,
mas sabia que não faria diferença; Barry ainda se considerava respon-
sável por muito do que havia ocorrido na propriedade naquela noite.
Parecia também que estava emagrecendo, porém ela pensou que isso
tinha mais a ver com a saudade da esposa e das crianças; Barry as havia
tirado da cidade imediatamente após o incidente, temendo pela segu-
rança delas.
“Mais um jeito de a Umbrella arruinar a nossa vida...”
Ele a conduziu através do corredor espaçoso para além da escada,
as paredes enfeitadas com desenhos de giz de cera emoldurados, feitos
pelas filhas. A casa dos Burton era grande e confusa, cheia de móveis
arranhados e desgastados que remetiam à família.
— Logo mais o Chris e a Jill devem chegar. Aceita um café?
Parecia tenso, coçando de maneira nervosa a rala barba ruiva.
— Não, obrigada. Talvez água.
— Ah, claro. Vá em frente e se apresente, volto num minuto. — Cor-
reu para a cozinha antes que ela pudesse perguntar se havia algo errado.
“Me apresentar? O que está acontecendo?”
Passou pela abertura arqueada do hall até a sala de estar desarrumada
e confortável e parou um pouco assustada ao ver um homem estranho
sentado em uma das poltronas reclináveis. Ele se levantou sorrindo assim
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que ela se aproximou — mas, pelo modo como o olhar sombrio se estrei-
tou levemente, Rebecca pôde ver que ele a media.
Algumas semanas antes, o escrutínio cuidadoso teria despertado
nela uma terrível autoconsciência. Ela era o membro mais jovem do
S.T.A.R.S. a ser aceito em trabalho ativo e sabia que assim aparentava
— mas se houve algo positivo do incidente no laboratório da Um-
brella era que não se importava mais com coisas como vergonha em
público. Enfrentar uma casa abarrotada de monstros tendia a colocar
tudo nessa perspectiva. Além disso, ser encarada pelos outros tinha se
tornado rotina desde então.
Olhou de volta para ele de modo impassível, estudando-o por sua
vez. Jeans, uma bela camisa, tênis para corrida. Também tinha um col-
dre com uma Beretta nove milímetros, a arma-padrão do S.T.A.R.S.
Media talvez um metro e noventa — trinta centímetros mais que ela
— e tinha um porte de nadador. Parecia quase uma estrela de cinema:
testa elevada, desgastada, e traços finamente esculpidos, cabelo preto
curto e um olhar penetrante que transbordava inteligência.
— Você deve ser Rebecca Chambers — disse ele educadamente,
engolindo algumas sílabas com seu sotaque britânico. — Você é a bio-
química, não é mesmo?
Rebecca assentiu.
— Estou tentando. E você é...
Sorriu ainda mais, balançando a cabeça. — Por favor, perdoe os
meus modos. Eu não esperava... quer dizer, eu...
Contornou a mesa de centro de Barry e estendeu a mão, corando
um pouco.
— Sou David Trapp, da agência do S.T.A.R.S. sediada na cidade de
Exeter, no Maine — disse.
Rebecca sentiu um alívio revigorante percorrer o corpo; o S.T.A.R.S.
havia mandado ajuda em vez de ligar, por ela tudo bem. Cumprimentou-
-o, reprimindo um sorriso, sabendo que sua aparência o havia desconcer-
tado. Ninguém esperava uma cientista de dezoito anos, e, se por um lado
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estava acostumada com os olhares surpresos, por outro ainda possuía
uma espécie de prazer travesso ao pegar as pessoas desprevenidas.
— Então você é tipo o patrulheiro ou algo do gênero? — perguntou.
O sr. Trapp franziu o cenho.
— Como?
— Para a investigação. Já tem outras equipes aqui, ou você veio
antes pra dar uma olhada nas coisas, na sujeira da Umbrella...
A voz foi se perdendo à medida que ele balançou a cabeça lenta-
mente, quase triste, os olhos escuros brilhando com uma emoção que
Rebecca não podia interpretar.
O sentimento ficou claro na voz dele, pesada com um ódio frustrado,
e, assim que as palavras se fixaram, Rebecca sentiu os joelhos vacilar em
um temor súbito e ansioso.
— Desculpe ter que lhe dizer isso, senhorita Chambers. Tenho motivos
para acreditar que a Umbrella chegou a membros-chave do S.T.A.R.S.,
seja por suborno, seja por chantagem. Não há investigação nenhuma, e
ninguém mais virá.
Um olhar de pavor confuso passou pelos olhos castanho-claros da garota
e se foi tão rápido quanto veio. Inspirou profundamente e expirou.
— É isso mesmo? Digo, a Umbrella tentou te pegar ou… você
tem certeza?
David balançou a cabeça.
— Não tenho certeza absoluta. Mas eu não estaria aqui se não esti-
vesse... preocupado.
A situação era pior que isso, mas ele ainda não tinha superado o
choque de ver como ela era jovem e sentiu uma vontade quase instintiva
de não alarmá-la mais. Barry havia mencionado que ela era um tipo de
gênio precoce, porém David não esperava que fosse mesmo uma criança.
A bioquímica vestia tênis de cano alto e jeans cortado enrolado até o
joelho, além de uma camiseta preta folgada.
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“Supere isso; essa criança pode ser a única cientista que nos sobrou.”
O pensamento reacendeu a raiva que queimava as entranhas de
David nos últimos dias. A história que se desenrolava desde a ligação
de Barry não era bonita, era carregada de traições e mentiras, e o fato
de o S.T.A.R.S. — o S.T.A.R.S. dele — estar envolvido...
Barry entrou na sala com um copo d’água e Rebecca o pegou gen-
tilmente, engolindo metade em um gole.
Barry lançou um olhar para ele e então voltou a atenção para Re-
becca. — Ele te contou, né?
A garota assentiu.
— A Jill e o Chris sabem?
— Ainda não. Por isso liguei — disse Barry. — Olha, não vale a
pena falar duas vezes. A gente espera os dois chegarem antes de entrar
em detalhes.
— De acordo — disse David. Em geral achava que as primeiras im-
pressões é que contavam e, se fossem trabalhar juntos, queria ter uma
noção do caráter da garota.
Os três se sentaram, e Barry começou a relatar a Rebecca como ele
e David se conheceram no treinamento do S.T.A.R.S. quando ambos
eram muito mais novos. Barry contou uma história boa, mesmo que fosse
só para passar o tempo. David escutava sem muita atenção enquanto
Barry apresentava uma anedota sobre a noite de formatura, envolvendo
um sargento sem graça e várias cobras de borracha. A menina estava
relaxada e até gostava da história de travessuras infantis...
“...dezessete anos atrás. Ela devia estar comemorando o primeiro
aniversário.”
Ainda assim, ela havia segurado as perguntas por conta do pedido
de Barry, embora David soubesse que devia estar ansiosa sobre o que
tinha lhe contado. A habilidade de se conter tão rapidamente era um
traço admirável, que ele jamais havia dominado totalmente.
Conseguia pensar em pouca coisa desde que havia ligado para o di-
retor-assistente do S.T.A.R.S. A devoção de David à organização fazia
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da traição aparente algo muito amargo, como um gosto ruim na boca
que não ia embora. O S.T.A.R.S. tinha sido sua vida por quase vinte
anos e lhe dera todas as coisas que não teve quando cresceu — uma
ideia de valor próprio, de propósito e integridade...
“E, do nada, a vida de homens e mulheres dedicados, a minha vida e
o trabalho de uma vida inteira são simplesmente jogados de lado como
se não valessem um centavo. Quanto custou isso? Quanto a Umbrella
teve que pagar para comprar a honra do S.T.A.R.S.?”
David afastou a raiva, focando a atenção em Rebecca. Se tudo o
que tinha ouvido era verdade, o tempo era curto e os recursos agora es-
tavam severamente limitados. Suas motivações no momento não eram
tão importantes quanto as dela.
Podia notar, pela maneira como ela se mantinha, que não era do tipo
tímido ou submisso e era obviamente esperta; os olhos brilhavam vivos
e o comprovavam. Pelo que Barry lhe contara, a menina agira de modo
profissional durante a operação nas instalações de Spencer. O arquivo
dela indicava estar mais do que qualificada para trabalhar com um vírus
químico, presumindo que fosse tão boa quanto os relatórios diziam.
“E presumindo que deseje arriscar ainda mais a vida.”
Esse seria o ponto delicado. Não fazia muito tempo que estava no
S.T.A.R.S., e saber que eles haviam se vendido dificilmente a enche-
ria de confiança no trabalho à frente. Seria fácil para ela abandonar o
barco agora. Nesse caso, seria a escolha mais inteligente para todos eles.
Ouviu-se uma batida na porta, possivelmente os outros dois alphas.
A mão de David escorregou para o cabo da nove milímetros quando
Barry foi atender. Quando voltou tendo atrás de si os membros da
equipe S.T.A.R.S., David se tranquilizou e se levantou para ser apre-
sentado formalmente.
— Jill Valentine, Chris Redfield, este é o capitão David Trapp, estra-
tegista militar do S.T.A.R.S. de Exeter, Maine.
Se David se lembrava bem, Chris era o atirador, e Jill, algum tipo
de especialista em arrombamentos sorrateiros. Barry disse que o piloto,
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Brad Vickers, tinha saído da cidade pouco depois do incidente. Não
era uma perda grande, pelo que pôde averiguar; o cara não parecia
mesmo de confiança.
Cumprimentou os dois, e todos se sentaram. Barry fez um sinal na
direção dele.
— David é um velho amigo meu. A gente trabalhou junto na mesma
equipe alguns anos, logo depois do campo de treinamento de recrutas.
Ele apareceu na minha porta há uma hora com algumas notícias, e não
achei que dava pra esperar. David?
David limpou a garganta, tentando se ater aos fatos relevantes. Após
uma pausa, começou pelo começo.
— Como vocês já sabem, seis dias atrás Barry ligou para várias se-
des do S.T.A.R.S. para ver se havia alguma orientação da central sobre
a tragédia que aconteceu aqui. Eu recebi uma dessas ligações. Era a
primeira vez que escutava algo a respeito, e desde então descobri que
o escritório de Nova York não entrou em contato com ninguém sobre
a descoberta de vocês. Nenhum aviso ou recado. Não foi dito nada ao
S.T.A.R.S. sobre a Corporação Umbrella.
Chris e Jill trocaram olhares de preocupação.
— Talvez eles ainda não tenham terminado de investigar — disse
Chris lentamente.
David balançou a cabeça.
— Eu mesmo conversei com o diretor-assistente um dia depois da
ligação do Barry. Não comentei sobre o contato, só disse que tinha ou-
vido um boato sobre um problema em Raccoon e queria saber se havia
alguma verdade nisso...
Olhou para o grupo reunido e suspirou interiormente, sentindo que
já tinha discorrido sobre o assunto milhares de vezes.
“Só na minha cabeça, procurando outra resposta... e não tem
nenhuma.”
— O diretor não me dizia nada com sinceridade — continuou — e me
mandou ficar quieto até que houvesse uma declaração oficial. Disse apenas
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que houve uma queda de helicóptero em Raccoon City e insinuou que os
S.T.A.R.S. sobreviventes estavam tentando pôr a culpa na Umbrella, já
que estavam irritados devido a algum tipo de disputa de financiamento.
— Mas isso não é verdade! — exclamou Jill. — A gente estava inves-
tigando os assassinatos e descobriu...
— Sim, o Barry me disse — interrompeu David. — Vocês desco-
briram que os assassinatos foram resultado de um acidente de labora-
tório. A Umbrella estava fazendo experimentos com o vírus T, que de
algum modo foi liberado e transformou os pesquisadores em assassinos
enlouquecidos.
— Foi exatamente o que aconteceu — disse Chris. — Sei que parece
loucura, mas a gente estava lá, a gente viu.
David assentiu.
— Acredito em vocês. Tenho que admitir, estava cético depois de
falar com Barry. Como você disse, parece loucura. Mas a minha ligação
para Nova York e o que tem acontecido desde então mudaram tudo.
Conheço Barry há muito tempo e sei que ele não tentaria colocar a
culpa de um incidente tão infeliz na Umbrella se ela não fosse, de fato,
responsável. Ele até me contou sobre o envolvimento contra a vontade
na tentativa de acobertamento.
— Mas se o Tom Kurtz disse que não tinha nenhuma conspiração...
— disse Chris.
David suspirou.
— Sim. A gente tem que presumir que ou a nossa própria organiza-
ção está enganada ou membros do S.T.A.R.S. estão trabalhando para a
Umbrella agora, assim como o seu capitão Wesker.
Houve um momento de silêncio perplexo enquanto absorviam a in-
formação, e David pôde ver raiva e confusão deslizando no rosto deles.
Sabia como se sentiam. Isso queria dizer que os diretores do S.T.A.R.S.
ou haviam sido manipulados pela Umbrella ou corrompidos por ela
— de todo modo, os sobreviventes da equipe de Raccoon tinham sido
deixados à deriva, vulneráveis ao que a Umbrella poderia fazer.
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“MeuDeus,seaomenoseupudesseacreditarquefoitudoumengano...”
— Três dias atrás, segui umas pessoas a caminho do trabalho —
disse David com calma. — Não consegui alcançar, mas estou achando
que era gente da Umbrella e que a minha ligação para Nova York foi
responsável por isso.
— Você tentou entrar em contato com Palmieri? — perguntou Jill.
David assentiu. O comandante nacional do S.T.A.R.S. era o único
homem acima de suborno que ele conhecia; Marco Palmieri estava no
S.T.A.R.S. desde os primórdios.
— Fui informado pelo secretário dele de que Palmieri está lide-
rando uma operação confidencial no Oriente Médio e não vai estar
disponível por meses. E dizem por aí que estão fazendo preparativos
para a aposentadoria dele enquanto está fora.
— Você acha que a Umbrella está por trás disso? — perguntou Chris.
David encolheu os ombros.
— A Umbrella tem feito doações generosas para o S.T.A.R.S. ao longo
dos anos, o que significa que eles têm contatos. Se estiverem tentando
afastar o S.T.A.R.S. da investigação, seria certamente vantajoso se livrar
de Palmieri.
David lançou um olhar ao redor da sala, tentando avaliar quanto es-
tavam prontos para ouvir o resto. Os punhos de Barry estavam tensos, e
ele os encarava como se nunca os tivesse visto. Tanto Jill como Rebecca
pareciam perdidas em pensamento, embora pudesse ver que haviam
aceitado sua história como verdadeira. Pelo menos poupariam tempo...
Chris se levantou e começou a caminhar, a face jovem vermelha
de raiva.
— Então basicamente a gente não tem credibilidade com as auto-
ridades locais, nenhum reforço virá, e fomos tachados de mentirosos
pela nossa própria gente. A investigação da Umbrella morreu e estamos
ferrados; é esse o resumo da ópera?
David via que a raiva não era direcionada a ele, assim como a raiva
que sentia não era do jovem alpha. Saber o que a Umbrella tinha feito
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e no que o S.T.A.R.S. estava metido — isso o deixava enfurecido, com
sentimentos de desamparo que não experimentava desde a infância.
“Para de pensar em você. Conta o resto pra eles.”
David se levantou e olhou para Chris, embora se dirigisse a todos
eles. Ainda não tinha tido tempo de contar a Barry.
— Na verdade, tem mais. Parece que tem outra instalação da Um-
brella na costa do Maine, conduzindo experimentos com o vírus deles.
E, assim como aconteceu aqui, eles perderam o controle.
David se virou para Rebecca, assimilando o olhar apavorado e arre-
galado da garota enquanto concluía:
— Vou levar uma equipe para lá sem a autorização do S.T.A.R.S. e
quero que você venha comigo.
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Residentevil acidente de calibancove cap 1

  • 2. UM Rebecca Chambers andava de bicicleta pelas ruas escuras e sinuosas do distrito de Cider, enquanto a lua de fim de verão se dilatava no céu noturno quente e ainda claro acima dela. Embora fosse relativamente cedo, as ruas do subúrbio estavam desertas, pois o toque de recolher imposto para toda a cidade ainda vigorava; ninguém menor de dezoito anos devia ficar fora de casa após o crepúsculo até que os assassinos fos- sem postos atrás das grades. Havia sido um verão tenso e silencioso em Raccoon City, pelo menos na aparência... Amoçaatravessoucasasquietas;obrilhovagodetelevisõesseespalhava por gramas bem cuidadas, o zumbido distante de grilos e um eventual la- tido eram os únicos sons que ela podia ouvir. Os cidadãos apreensivos de Raccoon moravam atrás daquelas portas trancadas, esperando o anúncio de que os assassinos haviam sido presos e a cidade estava a salvo. “Se eles soubessem...” Por um breve momento, Rebecca invejou a ignorância deles. Che- gara à conclusão desanimadora nas últimas semanas de que conhecer a verdade não era tão bom quanto devia ser — principalmente quando ninguém acreditava nela. Haviam se passado treze longos e impiedosos dias desde o pesa- delo na propriedade de Spencer. Os S.T.A.R.S. sobreviventes tinham resident_evil2.indd 13 20/01/14 11:50
  • 3. escapado de traição e morte só para se deparar com um muro de des- crença desdenhosa quando tentaram contar sua história. Jill, Chris, Barry e ela foram tachados de drogados e outras coisas piores nos jor- nais locais, indubitavelmente com incentivo da Umbrella — e, depois da suspensão, até o DPR se recusou a acreditar neles. Agora, com a Umbrella assumindo as investigações do incêndio, sem dúvida se li- vrariam da última prova... Não importava para onde os S.T.A.R.S. se voltassem, sempre parecia que a Umbrella havia estado ali primeiro, molhando a mão de uma pessoa e acobertando pistas, fazendo com que fosse impossível alguém ouvir a versão deles. “De qualquer forma, é inacreditável. Uma das maiores e mais res- peitadas empresas farmacêuticas e de pesquisa médica do mundo — sem considerar o fato de ser a principal fonte de renda em Raccoon — conduzindo experiências com armas biológicas em um laboratório secreto, criando monstros experimentais... Se eu não soubesse de tudo, provavelmente também ia pensar que estava louca.” Pelo menos o pior havia passado. Com o laboratório destruído, os ataques em Raccoon pararam — e, apesar de os responsáveis ainda não terem sido capturados, ela imaginou que isso fosse apenas uma questão de tempo. A Umbrella estava mexendo com coisas perigosas e não seria capaz de se esconder de uma investigação do S.T.A.R.S. Os demais e ela teriam que tomar cuidado até que a central mandasse reforços. “E por falar em — ai…” O coldre estava machucando seu tórax. Rebecca o ajustou através do algodão fino da camisa, esperando que depois daquela noite não tivesse mais que carregar a arma — um revólver calibre trinta e oito de cano curto da coleção de Barry. Não podia falar pelos outros, mas não tinha uma noite de sono decente desde que haviam escapado da mansão de Spencer e não se sentia segura tendo de andar por aí armada o tempo todo. Suspirando, virou à esquerda na Foster e pedalou pelas sombras na direção da casa de Barry, lembrando-se de que ele havia convocado a reunião provavelmente porque devia ter recebido ordens da central. resident_evil2.indd 14 20/01/14 11:50
  • 4. Dissera apenas que havia uma “novidade”, pedindo para ela aparecer o quanto antes — e, embora tentasse controlar a imaginação a todo custo, Rebecca não podia evitar a excitação pulsando firme e dando-lhe frio no estômago desde que ele havia ligado. “Talvez nos coloquem num avião para Nova York, para orientarmos a equipe de investigação, ou mesmo para a Europa, para quando inva- direm a sede da Umbrella...” Aonde quer que fossem enviados, com certeza era melhor do que ficar em Raccoon. O peso de se manter alerta o tempo todo estava afetando os sobreviventes. Chris aparentemente acreditava que a Um- brella estava esperando os olhares públicos saírem dos S.T.A.R.S. an- tes de agir, porém era apenas uma teoria — e não era fácil adormecer com isso na cabeça. O frangote do Vickers tinha fugido da cidade depois de somente dois dias, incapaz de lidar com a pressão — e, em- bora Jill, Chris e Barry tivessem condenado a covardia de Brad, Re- becca começava a pensar se o piloto do Alpha não estava certo. Não que ela quisesse que a Umbrella se safasse — não havia dúvida de que os experimentos eram moralmente repreensíveis e certamente ilegais —, mas, até que o S.T.A.R.S. mandasse ajuda, ficar em Raccoon City era perigoso. “Só até hoje à noite; só mais um pouquinho, e tudo vai acabar. Sem mais armas, sem mais portas trancadas — sem mais preocupação com o que a Umbrella vai fazer com a gente por saber a verdade.” Assim que fizeram o relatório, os superiores em Nova York lhes disse- ram para aguardar. O próprio diretor-assistente Kurtz havia prometido investigar um pouco e dar um retorno — mas onze dias se passaram, e ainda nenhuma palavra. Não tinha intenção de fugir como Brad havia feito, mas passou a odiar a sensação daquele coldre, o peso do aço mor- tal contra o corpo a cada passo. Ela era uma química, afinal de contas... “E, assim que os reforços chegarem, pode ser que eles me transfiram para um dos laboratórios e me deixem estudar o vírus. Tecnicamente, ainda sou uma bravo; duvido que eles me queiram na linha de frente...” resident_evil2.indd 15 20/01/14 11:50
  • 5. Não havia dúvida de que seria a melhor maneira de usar seus talen- tos. Os outros eram soldados experientes, mas Rebecca estava com os S.T.A.R.S. havia apenas cinco semanas. Sua primeira missão foi aquela que liquidou metade da equipe na Floresta de Raccoon e trouxe pistas sobre o segredo da Umbrella. Desde então, passou muito tempo estu- dando de novo a arquitetura molecular de vírus para tentar determinar a estratégia de reprodução do vírus T. O S.T.A.R.S. não precisava de médicos de campo agora, precisava de cientistas... E, se tinha aprendido alguma coisa com o desastre da propriedade de Spencer, era que seu lugar era em um laboratório. Conseguira se virar naquela noite, mas também sabia que trabalhar com o vírus T era a maior contribuição que podia fazer para parar a Umbrella. “E pode ir admitindo”, a mente suspirou, “que você é fascinada por isso. A oportunidade de estudar um agente mutagênico emergente e não classificado, descobrir o funcionamento dele — é isso que te instiga”. Pois é, não era vergonhoso gostar do trabalho. Havia se juntado ao S.T.A.R.S. na esperança de ter uma chance dessas — e, com um pouco de sorte, depois da reunião de hoje Rebecca faria as malas e sairia de Raccoon City para entrar em uma nova fase da vida como bioquímica do S.T.A.R.S. Parou no fim do quarteirão, na frente de um sobrado vitoriano reformado e pintado de amarelo pálido, procurando ao redor algum movimento suspeito antes de descer da bicicleta. Os Burton moravam ao lado de um grande parque fora da cidade. Algumas semanas antes, talvez ela mesma tivesse vagado pelo parque silencioso, aproveitando a noite amena de verão, olhando as estrelas; agora era apenas mais um lugar escuro em que alguém poderia se esconder. Tremendo de leve apesar do ar quente e úmido, correu para a entrada da casa. Arrastando a bicicleta pela varanda, limpou o suor da nuca e olhou o relógio. Tinha feito um tempo excelente — só vinte minutos desde a ligação de Barry. Rebecca apoiou a bicicleta no corrimão, rezando para que ele tivesse boas notícias. resident_evil2.indd 16 20/01/14 11:50
  • 6. 17 Antes de ela bater, Barry abriu a porta, vestindo camiseta e jeans, o corpo musculoso preenchendo a moldura da porta. Barry puxava ferro. Como se buscasse vingança. Sorriu, deu espaço para ela entrar e olhou a rua quieta antes de segui-la para a sala da frente. Sua Colt Python estava enfiada no coldre, o que lhe conferia uma aparência de caubói gigante. — Viu alguém? — perguntou gentilmente. Ela balançou a cabeça. — Não. Vim pelas ruas de trás também. Barry assentiu, e, embora ainda estivesse sorrindo um pouco, Re- becca pôde ver o olhar apavorado nos olhos, o mesmo olhar que tinha desde a fuga tensa. Queria poder dizer a ele que ninguém o culpava, mas sabia que não faria diferença; Barry ainda se considerava respon- sável por muito do que havia ocorrido na propriedade naquela noite. Parecia também que estava emagrecendo, porém ela pensou que isso tinha mais a ver com a saudade da esposa e das crianças; Barry as havia tirado da cidade imediatamente após o incidente, temendo pela segu- rança delas. “Mais um jeito de a Umbrella arruinar a nossa vida...” Ele a conduziu através do corredor espaçoso para além da escada, as paredes enfeitadas com desenhos de giz de cera emoldurados, feitos pelas filhas. A casa dos Burton era grande e confusa, cheia de móveis arranhados e desgastados que remetiam à família. — Logo mais o Chris e a Jill devem chegar. Aceita um café? Parecia tenso, coçando de maneira nervosa a rala barba ruiva. — Não, obrigada. Talvez água. — Ah, claro. Vá em frente e se apresente, volto num minuto. — Cor- reu para a cozinha antes que ela pudesse perguntar se havia algo errado. “Me apresentar? O que está acontecendo?” Passou pela abertura arqueada do hall até a sala de estar desarrumada e confortável e parou um pouco assustada ao ver um homem estranho sentado em uma das poltronas reclináveis. Ele se levantou sorrindo assim resident_evil2.indd 17 20/01/14 11:50
  • 7. que ela se aproximou — mas, pelo modo como o olhar sombrio se estrei- tou levemente, Rebecca pôde ver que ele a media. Algumas semanas antes, o escrutínio cuidadoso teria despertado nela uma terrível autoconsciência. Ela era o membro mais jovem do S.T.A.R.S. a ser aceito em trabalho ativo e sabia que assim aparentava — mas se houve algo positivo do incidente no laboratório da Um- brella era que não se importava mais com coisas como vergonha em público. Enfrentar uma casa abarrotada de monstros tendia a colocar tudo nessa perspectiva. Além disso, ser encarada pelos outros tinha se tornado rotina desde então. Olhou de volta para ele de modo impassível, estudando-o por sua vez. Jeans, uma bela camisa, tênis para corrida. Também tinha um col- dre com uma Beretta nove milímetros, a arma-padrão do S.T.A.R.S. Media talvez um metro e noventa — trinta centímetros mais que ela — e tinha um porte de nadador. Parecia quase uma estrela de cinema: testa elevada, desgastada, e traços finamente esculpidos, cabelo preto curto e um olhar penetrante que transbordava inteligência. — Você deve ser Rebecca Chambers — disse ele educadamente, engolindo algumas sílabas com seu sotaque britânico. — Você é a bio- química, não é mesmo? Rebecca assentiu. — Estou tentando. E você é... Sorriu ainda mais, balançando a cabeça. — Por favor, perdoe os meus modos. Eu não esperava... quer dizer, eu... Contornou a mesa de centro de Barry e estendeu a mão, corando um pouco. — Sou David Trapp, da agência do S.T.A.R.S. sediada na cidade de Exeter, no Maine — disse. Rebecca sentiu um alívio revigorante percorrer o corpo; o S.T.A.R.S. havia mandado ajuda em vez de ligar, por ela tudo bem. Cumprimentou- -o, reprimindo um sorriso, sabendo que sua aparência o havia desconcer- tado. Ninguém esperava uma cientista de dezoito anos, e, se por um lado resident_evil2.indd 18 20/01/14 11:50
  • 8. estava acostumada com os olhares surpresos, por outro ainda possuía uma espécie de prazer travesso ao pegar as pessoas desprevenidas. — Então você é tipo o patrulheiro ou algo do gênero? — perguntou. O sr. Trapp franziu o cenho. — Como? — Para a investigação. Já tem outras equipes aqui, ou você veio antes pra dar uma olhada nas coisas, na sujeira da Umbrella... A voz foi se perdendo à medida que ele balançou a cabeça lenta- mente, quase triste, os olhos escuros brilhando com uma emoção que Rebecca não podia interpretar. O sentimento ficou claro na voz dele, pesada com um ódio frustrado, e, assim que as palavras se fixaram, Rebecca sentiu os joelhos vacilar em um temor súbito e ansioso. — Desculpe ter que lhe dizer isso, senhorita Chambers. Tenho motivos para acreditar que a Umbrella chegou a membros-chave do S.T.A.R.S., seja por suborno, seja por chantagem. Não há investigação nenhuma, e ninguém mais virá. Um olhar de pavor confuso passou pelos olhos castanho-claros da garota e se foi tão rápido quanto veio. Inspirou profundamente e expirou. — É isso mesmo? Digo, a Umbrella tentou te pegar ou… você tem certeza? David balançou a cabeça. — Não tenho certeza absoluta. Mas eu não estaria aqui se não esti- vesse... preocupado. A situação era pior que isso, mas ele ainda não tinha superado o choque de ver como ela era jovem e sentiu uma vontade quase instintiva de não alarmá-la mais. Barry havia mencionado que ela era um tipo de gênio precoce, porém David não esperava que fosse mesmo uma criança. A bioquímica vestia tênis de cano alto e jeans cortado enrolado até o joelho, além de uma camiseta preta folgada. resident_evil2.indd 19 20/01/14 11:50
  • 9. “Supere isso; essa criança pode ser a única cientista que nos sobrou.” O pensamento reacendeu a raiva que queimava as entranhas de David nos últimos dias. A história que se desenrolava desde a ligação de Barry não era bonita, era carregada de traições e mentiras, e o fato de o S.T.A.R.S. — o S.T.A.R.S. dele — estar envolvido... Barry entrou na sala com um copo d’água e Rebecca o pegou gen- tilmente, engolindo metade em um gole. Barry lançou um olhar para ele e então voltou a atenção para Re- becca. — Ele te contou, né? A garota assentiu. — A Jill e o Chris sabem? — Ainda não. Por isso liguei — disse Barry. — Olha, não vale a pena falar duas vezes. A gente espera os dois chegarem antes de entrar em detalhes. — De acordo — disse David. Em geral achava que as primeiras im- pressões é que contavam e, se fossem trabalhar juntos, queria ter uma noção do caráter da garota. Os três se sentaram, e Barry começou a relatar a Rebecca como ele e David se conheceram no treinamento do S.T.A.R.S. quando ambos eram muito mais novos. Barry contou uma história boa, mesmo que fosse só para passar o tempo. David escutava sem muita atenção enquanto Barry apresentava uma anedota sobre a noite de formatura, envolvendo um sargento sem graça e várias cobras de borracha. A menina estava relaxada e até gostava da história de travessuras infantis... “...dezessete anos atrás. Ela devia estar comemorando o primeiro aniversário.” Ainda assim, ela havia segurado as perguntas por conta do pedido de Barry, embora David soubesse que devia estar ansiosa sobre o que tinha lhe contado. A habilidade de se conter tão rapidamente era um traço admirável, que ele jamais havia dominado totalmente. Conseguia pensar em pouca coisa desde que havia ligado para o di- retor-assistente do S.T.A.R.S. A devoção de David à organização fazia resident_evil2.indd 20 20/01/14 11:50
  • 10. da traição aparente algo muito amargo, como um gosto ruim na boca que não ia embora. O S.T.A.R.S. tinha sido sua vida por quase vinte anos e lhe dera todas as coisas que não teve quando cresceu — uma ideia de valor próprio, de propósito e integridade... “E, do nada, a vida de homens e mulheres dedicados, a minha vida e o trabalho de uma vida inteira são simplesmente jogados de lado como se não valessem um centavo. Quanto custou isso? Quanto a Umbrella teve que pagar para comprar a honra do S.T.A.R.S.?” David afastou a raiva, focando a atenção em Rebecca. Se tudo o que tinha ouvido era verdade, o tempo era curto e os recursos agora es- tavam severamente limitados. Suas motivações no momento não eram tão importantes quanto as dela. Podia notar, pela maneira como ela se mantinha, que não era do tipo tímido ou submisso e era obviamente esperta; os olhos brilhavam vivos e o comprovavam. Pelo que Barry lhe contara, a menina agira de modo profissional durante a operação nas instalações de Spencer. O arquivo dela indicava estar mais do que qualificada para trabalhar com um vírus químico, presumindo que fosse tão boa quanto os relatórios diziam. “E presumindo que deseje arriscar ainda mais a vida.” Esse seria o ponto delicado. Não fazia muito tempo que estava no S.T.A.R.S., e saber que eles haviam se vendido dificilmente a enche- ria de confiança no trabalho à frente. Seria fácil para ela abandonar o barco agora. Nesse caso, seria a escolha mais inteligente para todos eles. Ouviu-se uma batida na porta, possivelmente os outros dois alphas. A mão de David escorregou para o cabo da nove milímetros quando Barry foi atender. Quando voltou tendo atrás de si os membros da equipe S.T.A.R.S., David se tranquilizou e se levantou para ser apre- sentado formalmente. — Jill Valentine, Chris Redfield, este é o capitão David Trapp, estra- tegista militar do S.T.A.R.S. de Exeter, Maine. Se David se lembrava bem, Chris era o atirador, e Jill, algum tipo de especialista em arrombamentos sorrateiros. Barry disse que o piloto, resident_evil2.indd 21 20/01/14 11:50
  • 11. Brad Vickers, tinha saído da cidade pouco depois do incidente. Não era uma perda grande, pelo que pôde averiguar; o cara não parecia mesmo de confiança. Cumprimentou os dois, e todos se sentaram. Barry fez um sinal na direção dele. — David é um velho amigo meu. A gente trabalhou junto na mesma equipe alguns anos, logo depois do campo de treinamento de recrutas. Ele apareceu na minha porta há uma hora com algumas notícias, e não achei que dava pra esperar. David? David limpou a garganta, tentando se ater aos fatos relevantes. Após uma pausa, começou pelo começo. — Como vocês já sabem, seis dias atrás Barry ligou para várias se- des do S.T.A.R.S. para ver se havia alguma orientação da central sobre a tragédia que aconteceu aqui. Eu recebi uma dessas ligações. Era a primeira vez que escutava algo a respeito, e desde então descobri que o escritório de Nova York não entrou em contato com ninguém sobre a descoberta de vocês. Nenhum aviso ou recado. Não foi dito nada ao S.T.A.R.S. sobre a Corporação Umbrella. Chris e Jill trocaram olhares de preocupação. — Talvez eles ainda não tenham terminado de investigar — disse Chris lentamente. David balançou a cabeça. — Eu mesmo conversei com o diretor-assistente um dia depois da ligação do Barry. Não comentei sobre o contato, só disse que tinha ou- vido um boato sobre um problema em Raccoon e queria saber se havia alguma verdade nisso... Olhou para o grupo reunido e suspirou interiormente, sentindo que já tinha discorrido sobre o assunto milhares de vezes. “Só na minha cabeça, procurando outra resposta... e não tem nenhuma.” — O diretor não me dizia nada com sinceridade — continuou — e me mandou ficar quieto até que houvesse uma declaração oficial. Disse apenas resident_evil2.indd 22 20/01/14 11:50
  • 12. que houve uma queda de helicóptero em Raccoon City e insinuou que os S.T.A.R.S. sobreviventes estavam tentando pôr a culpa na Umbrella, já que estavam irritados devido a algum tipo de disputa de financiamento. — Mas isso não é verdade! — exclamou Jill. — A gente estava inves- tigando os assassinatos e descobriu... — Sim, o Barry me disse — interrompeu David. — Vocês desco- briram que os assassinatos foram resultado de um acidente de labora- tório. A Umbrella estava fazendo experimentos com o vírus T, que de algum modo foi liberado e transformou os pesquisadores em assassinos enlouquecidos. — Foi exatamente o que aconteceu — disse Chris. — Sei que parece loucura, mas a gente estava lá, a gente viu. David assentiu. — Acredito em vocês. Tenho que admitir, estava cético depois de falar com Barry. Como você disse, parece loucura. Mas a minha ligação para Nova York e o que tem acontecido desde então mudaram tudo. Conheço Barry há muito tempo e sei que ele não tentaria colocar a culpa de um incidente tão infeliz na Umbrella se ela não fosse, de fato, responsável. Ele até me contou sobre o envolvimento contra a vontade na tentativa de acobertamento. — Mas se o Tom Kurtz disse que não tinha nenhuma conspiração... — disse Chris. David suspirou. — Sim. A gente tem que presumir que ou a nossa própria organiza- ção está enganada ou membros do S.T.A.R.S. estão trabalhando para a Umbrella agora, assim como o seu capitão Wesker. Houve um momento de silêncio perplexo enquanto absorviam a in- formação, e David pôde ver raiva e confusão deslizando no rosto deles. Sabia como se sentiam. Isso queria dizer que os diretores do S.T.A.R.S. ou haviam sido manipulados pela Umbrella ou corrompidos por ela — de todo modo, os sobreviventes da equipe de Raccoon tinham sido deixados à deriva, vulneráveis ao que a Umbrella poderia fazer. resident_evil2.indd 23 20/01/14 11:50
  • 13. “MeuDeus,seaomenoseupudesseacreditarquefoitudoumengano...” — Três dias atrás, segui umas pessoas a caminho do trabalho — disse David com calma. — Não consegui alcançar, mas estou achando que era gente da Umbrella e que a minha ligação para Nova York foi responsável por isso. — Você tentou entrar em contato com Palmieri? — perguntou Jill. David assentiu. O comandante nacional do S.T.A.R.S. era o único homem acima de suborno que ele conhecia; Marco Palmieri estava no S.T.A.R.S. desde os primórdios. — Fui informado pelo secretário dele de que Palmieri está lide- rando uma operação confidencial no Oriente Médio e não vai estar disponível por meses. E dizem por aí que estão fazendo preparativos para a aposentadoria dele enquanto está fora. — Você acha que a Umbrella está por trás disso? — perguntou Chris. David encolheu os ombros. — A Umbrella tem feito doações generosas para o S.T.A.R.S. ao longo dos anos, o que significa que eles têm contatos. Se estiverem tentando afastar o S.T.A.R.S. da investigação, seria certamente vantajoso se livrar de Palmieri. David lançou um olhar ao redor da sala, tentando avaliar quanto es- tavam prontos para ouvir o resto. Os punhos de Barry estavam tensos, e ele os encarava como se nunca os tivesse visto. Tanto Jill como Rebecca pareciam perdidas em pensamento, embora pudesse ver que haviam aceitado sua história como verdadeira. Pelo menos poupariam tempo... Chris se levantou e começou a caminhar, a face jovem vermelha de raiva. — Então basicamente a gente não tem credibilidade com as auto- ridades locais, nenhum reforço virá, e fomos tachados de mentirosos pela nossa própria gente. A investigação da Umbrella morreu e estamos ferrados; é esse o resumo da ópera? David via que a raiva não era direcionada a ele, assim como a raiva que sentia não era do jovem alpha. Saber o que a Umbrella tinha feito resident_evil2.indd 24 20/01/14 11:50
  • 14. e no que o S.T.A.R.S. estava metido — isso o deixava enfurecido, com sentimentos de desamparo que não experimentava desde a infância. “Para de pensar em você. Conta o resto pra eles.” David se levantou e olhou para Chris, embora se dirigisse a todos eles. Ainda não tinha tido tempo de contar a Barry. — Na verdade, tem mais. Parece que tem outra instalação da Um- brella na costa do Maine, conduzindo experimentos com o vírus deles. E, assim como aconteceu aqui, eles perderam o controle. David se virou para Rebecca, assimilando o olhar apavorado e arre- galado da garota enquanto concluía: — Vou levar uma equipe para lá sem a autorização do S.T.A.R.S. e quero que você venha comigo. resident_evil2.indd 25 20/01/14 11:50