1. GT 1 - Negros nas pesquisas em Ciências Humanas
Modalidade de apresentação: Artigo Científico
RACISMO E INFÂNCIA:
UMA ANÁLISE SOBRE O CORPO NEGRO NAS IMA(R)GENS DOS LIVROS
INFANTIS
Poliana Rezende Soares Rodrigues
Mirian de Albuquerque Aquino
Orientadora
RESUMO
Estudo analítico sobre a forma como a população negra tem sido apresentada ao
universo infantil, especificamente em livros paradidáticos, presentes no espaço e
currículo escolares. Embora a Literatura Infantil não tenha como objetivo principal
ensinar um conteúdo específico e pontual, como tem o livro didático, as mensagens
que por ela são veiculadas são absorvidas e internalizadas por seu público alvo e
pela sociedade de um modo geral, lembrando-se que antes de o Brasil possuir
pesquisadores e produção de conhecimento, as teorias raciais chegaram aqui por
meio da Literatura e não foram menos eficazes que as produções científicas. No
período pós-abolição, o racismo em livros de autores consagrados como Monteiro
Lobato, configurava-se natural e coerente com o contexto. Hoje, a partir da lei
10.639/03 que institui a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira no currículo
escolar, com o objetivo de reconhecimento e valorização da cultura afrodescendente
com vistas à erradicação do racismo, procuramos refletir sobre a persistência de
imagens humilhantes que circulam na nossa sociedade, especialmente na escola,
espaço que deve constituir-se em lócus principal para a construção de relações
respeitosas e, portanto, de combate às posturas racistas. Nesse contexto, a
Literatura Infantil pode ser uma importante aliada para a promoção de uma
educação inclusiva. Porém as imagens de negros em livros infantis parecem ter
servido mais a manutenção do racismo, mas também podem servir de brechas para
a formação de hegemonias de esquerda, promovendo uma ruptura com a distância
ontológica entre brancos e negros, possibilitando um ambiente de trocas e
interações que superem a isonomia e a tolerância, para favorecerem, de fato, uma
educação para a diversidade cultural. Com isso, esse artigo abordará de forma
panorâmica e geral os conceitos de infância e o surgimento do gênero literário
infantil, para então discutir sobre o racismo brasileiro e a forma como ele pode afetar
a criança negra no espaço escolar. Sabendo-se que a criança vivencia um processo
de estruturação de traços de sua personalidade, que o Outro é condição
fundamental para a construção do Eu e partindo da concepção de que a leitura é um
diálogo, esse artigo procura refletir as possibilidades de afirmação da identidade da
2. criança negra a partir da leitura, trazendo para a análise algumas obras infantis. A
pretensão desse artigo é chamar a atenção para a problemática do racismo na fase
infantil, suscitando outros estudos que venham complementar e contribuir na
erradicação das seqüelas dos 300 anos de escravização de africanos no Brasil.
Palavras-Chave: Racismo. Infância. Livros Infantis.
INTRODUÇÃO
Os debates sobre racismo têm ganhado espaço apenas recentemente no
Brasil, desconstruindo lentamente o mito da democracia racial, após a polêmica
reivindicação do Movimento Negro por cotas nas Universidades Públicas. O principal
argumento para os contrários a essa ação afirmativa é de que o problema deve ser
sanado pela raiz e que a luta do Movimento Negro e da população negra em geral
deveria ser por educação (de base) de qualidade. A referida crítica desconhece,
justamente pela falta de pensadores(as) negros(as) nas Universidades, que a
imprensa negra surgiu em 1915 e desde a sua primeira tiragem é clara a
preocupação e a reivindicação por educação para a população negra (ELLIOT,
2010).
Eu ainda não era nascida quando Maria do Carmo Luiz, Maria Nazaré
Salvador e Henrique Cunha Junior publicaram o artigo intitulado “A criança (negra) e
a educação” no periódico Cadernos de Pesquisa, em 1979. Um texto que
denunciava o racismo que oprimia as crianças na escola, reivindicava mudanças no
currículo, inclusão da história do negro e de referenciais para que crianças negras
pudessem elevar sua auto-estima. Um desabafo que, após três décadas, traduz
exatamente minhas inquietações atuais. Esse dado revela o quanto as cotas são
necessárias e precisam ser instituídas e ampliadas para o mestrado, doutorado e
concurso para professores universitários, para que, daqui três décadas, estudantes
como eu, possam pesquisar sobre Pan-Africanismo ou a Escola de Dakar, possam
aprender sobre anemia falciforme ou sobre a história da imprensa negra no Brasil e
tantos outros estudos que estão silenciados por falta de interesse na temática de
quem pesquisa dentro das instituições de ensino superior.
3. O presente artigo pretende dar som ao grito ignorado de ativistas intelectuais
negros(as) que por décadas tem lutado por uma libertação (ainda que tardia) que
não veio no dia 13 de maio de 1808. Nesta direção, esse trabalho reitera o
questionamento do sistema educacional, que, apesar das efetivas conquistas em
torno da temática etnicorracial a exemplo da Lei 10.639/2003, continua a reproduzir
uma cultura dominante racista.
LITERATURA PARA CRIANÇAS: UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO
A Literatura Infantil nasceu conjuntamente com a Infância, no final do século
XVII. Antes dessa data, nada era produzido especificamente para essa faixa etária,
pois a infância era uma fase desprezada pela sociedade. O nascimento da infância
e, consequentemente da Literatura Infantil, deriva da ascensão da família burguesa,
configurada no Século das Luzes, substituindo a forma já decadente.
A criança no contexto de molde feudal participava da vida pública
normalmente com os adultos, na política, nas festas, nas guerras e nas execuções,
bem como não era coibida de testemunhar processos naturais de existência como o
nascimento, a doença e a morte (ZILBERMAN, 2003).
Já no modelo familiar burguês, a criança passa a ser separada do mundo dos
adultos e estes assumem a função de protegê-la e educá-la. Assim, a formação do
conceito de infância trouxe uma nova forma de tratamento para com os (as)
pequeninos (as), que começam a receber cuidados especiais e educação
diferenciada. O novo modelo de família, ao estreitar os laços de parentesco até
culminar numa modalidade familiar unicelular, reforça as ligações afetivas entre pais
e filhos.
Se por um lado a criança passou a ser enxergada pela sociedade, por outro
desenvolveu-se a partir de então “uma série de atributos, os quais revestiram a
qualificação dos pequenos e reproduziram ideologicamente sua diminuição social: a
menoridade, a fragilidade física e moral, a imaturidade intelectual e afetiva”
(ZILBERMAN, 2003, p. 20). Em decorrência, essa imagem de infância foi projetada e
propagada nas instituições de atendimento a esse público, como a educação e a
4. saúde.
Considerando essa história, no campo da educação, a leitura é concebida
como um exercício importante que possibilita mais autonomia ao sujeito para buscar
e construir conhecimento. Neste sentido, a Literatura Infantil muitas vezes é utilizada
no espaço escolar de forma meramente instrumental, como metodologia para a
formação de leitores e alfabetização. No meio acadêmico, essa redução do gênero
literário permanece sob a forma da marginalização das obras de Literatura Infantil
nas pesquisas. No entanto, de acordo com Zilberman, se
aproveitada em sala de aula em sua natureza ficcional, que aponta a um
conhecimento de mundo, e não como súdita do ensino bem comportado, ela
[a Literatura Infantil] se apresenta como o elemento propulsor que levará a
escola à ruptura com a educação contraditória e tradicional. (ZILBERMAN,
2003, p. 30)
Le Goff (1990), ao discutir a importância do documento literário e do
documento artístico, sobre os auspícios da História Nova, defende que
O progresso no sentido de uma história total [...] deve se realizar, antes de
mais nada, pela consideração de todos os documentos legados pelas
sociedades: o documento literário e o documento artístico, especialmente,
devem ser integrados em sua explicação, sem que a especificidade desses
documentos e dos desígnios humanos de que são produto seja
desconhecida. (LE GOFF, 1990, p. 55, grifos do autor)
Tomada como corpus de pesquisa, a Literatura Infantil propicia uma análise
da sociedade e da história, como já sugeriu Le Goff (1990), posto que as
personagens das tramas, infantis ou não, muitas vezes reproduzem os dramas e os
conflitos sociais de sua época. A entrada das teorias raciais no Brasil, no século XIX,
se deu através da Literatura, que refletia os modelos e teorias em voga na
sociedade, além de servirem para a construção de uma identidade nacional
(SCHWARCZ, 1993).
Partindo da concepção de Literatura enquanto “mensagem de arte, beleza e
emoção”, e corroborando vários autores e autoras (ANDRADE, 1964; MEIRELES,
1979; MACHADO, 1981; LAJOLO, MORAES 1995 apud MACHENS, 2009) sobre a
categorização da obra literária como Literatura Infantil, entendemos que “literatura
infantil é, antes de tudo, literatura” (MARCHENS, 2009, p. 104). A época da ditadura
5. militar da década de 1964 configura-se em um exemplo pertinente para ilustrar como
a Literatura Infantil brasileira foi utilizada como uma das brechas abertas pela
cultura, para o estabelecimento de “hegemonias de esquerdas” (MARCHENS, 2009,
p. 37).
Diante dessas questões, este artigo vem reafirmar a importância de se olhar
para a literatura infantil de forma crítica e estabelecer sua relação com o racismo
com a pretensão de instigar outras pesquisas neste campo, contemplando esse
gênero como um legado da história e não apenas no sentido reducionista de
instrumento pedagógico, ao que muitas obras de fato se limitam.
RACISMO BRASILEIRO: UMA LIÇÃO ENSINADA ATRAVÉS DA LITERATURA
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua
origem, ou sua religião. Para odiar as pessoas precisam aprender e, se
podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar” (NELSON
MANDELA)
Corroborando a frase cérebre de Nelson Mandela é oportuno ressaltar que,
antes de possuirmos produção científica no Brasil, ou seja, até meados do século
XIX, as teorias que hierarquizavam os povos segundo a cor da pele nos chegavam
através da Literatura, como vemos no trecho a seguir:
[...] a moda cientificista entra no país por meio da literatura e não da ciência
mais diretamente. As personagens serão condicionadas pelas máximas
deterministas, os enredos terão seu conteúdo determinado pelos princípios
de Darwin e Spencer, ou pelas conclusões pessimistas das teorias
científicas raciais da época. [...] Com efeito, modelos e teorias ganhavam
larga divulgação por meio dos heróis e enredos dessa literatura, que
pareciam guardar mais respeito às máximas científicas evolutivas do que à
imaginação do autor (SCHWARCZ, 1993, p. 32).
Com isso, queremos ressaltar que o racismo ensinado não esteve nem está
explícito nas escolas e seus conteúdos curriculares ou em seus livros didáticos e
sim, nas formas mais sutis que possam ser introjetadas pela sociedade de forma
inconsciente e, portanto, mais eficaz. Nesse sentido, as imagens que representam a
população negra e a própria invisibilidade de sua história, cultura e religião, nos
livros infantis, podem ser tratadas como indícios de como atua esse aprendizado na
sociedade: desde a infância, num processo contínuo e longitudinal.
6. Para entendermos a relação entre racismo e literatura infantil, devemos
recorrer ao conceito de raça que foi utilizado para classificar os grupos que
possuíam diferenças visíveis em seus traços morfológicos. Tal conceito de raça,
empregado para caracterizar os seres humanos, emerge da necessidade suscitada
pelas grandes navegações de o homem entender a diversidade humana. O contato
com o outro, sobretudo um outro de costumes, língua e crenças diferentes, gerou a
necessidade de explicações forjadas a princípio pela Teologia e, posteriormente
pela Ciência.
A partir do século XVIII, a explicação do outro deixa de passar pela Teologia e
pela Escritura, e incorpora o conceito de raça já existente nas Ciências Naturais -
Botânica e Zoologia - no entendimento dos grupos humanos. Embora tenhamos no
século das luzes a principal fonte que desembocou no racismo.
As teorias pseudo-científicas não foram as primeiras a hierarquizar os grupos
biológica e fisicamente distintos, pois o racismo já estava presente quando as
explicações eram religiosas. O texto bíblico do capítulo nono de Gênese, em que
Noé amaldiçoa Cam, (ancestral da raça negra) como punição por um ato
desrespeitoso, profetizando que os descendentes de Cam seriam os últimos a
serem escravizados pelos filhos de seus irmãos Sem (ancestral da raça amarela) e
Jafé (ancestral da raça branca), fora utilizado para justificar e legitimar o racismo
anti-negro dos calvinistas (MUNANGA, 2004).
Entretanto, o grande problema do uso do conceito de raça na humanidade
não foi o de classificar os seres humanos em grupos de acordo com a cor da pele e
outros traços morfológicos. Segundo Munanga:
Se os naturalistas dos séculos XVIII – XIX tivessem limitado seus trabalhos
somente à classificação dos grupos humanos em função das características
físicas, eles não teriam certamente causado nenhuma problema à
humanidade. Suas classificações teriam sido mantidas ou rejeitadas como
sempre aconteceu na história do conhecimento científico. Infelizmente,
desde o início, eles se deram o direito de hierarquizar, isto é, de estabelecer
uma escala de valores entre as chamadas raças. O fizeram erigindo uma
relação intrínseca entre o biológico (cor da pele, traços morfológicos) e as
qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais. (MUNANGA, 2004,
p. 17).
Assim, podemos definir racismo como a crença de que as características
7. intelectuais e morais de um grupo são determinadas pelas características físicas e
biológicas. Embora a evolução da ciência não tenha conseguido provar que existe
essa relação intrínseca entre o biológico e o cultural, descartando, portanto, o
conceito de raça para classificar os grupos humanos, isso não foi suficiente para
aniquilar o racismo, pois a raça ainda é um conceito que habita o imaginário coletivo
da humanidade.
No Brasil, as teorias raciais que depreciavam a população negra e a
mestiçagem, tiveram de se adequar às condições reais em que a maioria da
população era afrodescendente. Assim, ao passo que a mestiçagem foi sendo
construída como uma característica positiva, como a essência do povo brasileiro, o
objetivo de branqueamento do Brasil foi se fortalecendo. Com a abolição da
escravatura, vieram os incentivos de imigração de povos brancos, o que condicionou
a exclusão dos afrodescendentes do trabalho livre. Essa desigualdade gerada nesse
contexto, nunca sem a crítica e reivindicação da população negra, tem perpetuado
na nossa sociedade. De acordo com Aquino (2007, p. 182) “as imagens de
desigualdades sociais que atingem negros (as) e aparecem em várias regiões do
País são recorrentes na saúde, habitação e educação, gerando situações adversas
para homens e mulheres da população negra, num quadro assustador”.
O racismo atinge também a mídia, quando percebemos que “o negro, a negra
e a criança negra [aparecem] nas novelas em papéis de pessoas subalternas [...] O
que caracteriza sempre o papel dado ao negro é que ele deve ser secundário”
(ARAÚJO, 2007, p. 64). Vale ressaltar que a telenovela brasileira destaca-se da
mexicana e de outros países latinos por possuir uma preocupação com a realidade,
dada a forte presença de atores de esquerda na expansão da mídia dos anos 70. No
caso específico das telenovelas brasileiras, foi cogitada uma política de cotas para
atores negros, a qual foi refutada por ferir a liberdade de criação. Porém, Araújo
(2007) percebeu que as cotas já existiam, porém, funcionavam de forma contrária,
ou seja, os atores negros, em telenovelas que não tivessem como pano de fundo a
escravidão, não ultrapassavam o percentual de 10%.
Porém, a questão racial ganhou visibilidade nacional quando ativistas do
Movimento Negro, após reivindicarem desde a década de 1970 direito à educação e
8. à saúde para a melhoria de qualidade da situação da população negra, que já se
constituía uma luta desde a chegada do primeiro africano no Brasil, passaram a lutar
por outro espaço – a universidade – ainda não ocupado de forma proporcional e
representativa da diversidade da população brasileira por afrodescendentes.
O papel do Movimento Negro foi crucial para as mudanças substanciais,
forjadas no presente para a educação, uma vez que insistiu na negação da história
oficial e contribuiu na “construção de uma nova interpretação da trajetória dos
negros no Brasil” (GOMES, 2007, p. 105).
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS: AINDA (NEM) UM CONTO
Em 2003 foi promulgada a Lei 10.639 que estabelece a obrigatoriedade da
inclusão da História e Cultura Africana e Afro Brasileira no currículo escolar, e em
2004 estabelecida as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações
Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
afirmando que
o sucesso das políticas públicas de Estado, institucionais e pedagógicas,
visando a reparações, reconhecimento e valorização da identidade, da
cultura e da história dos negros brasileiros depende necessariamente de
condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas favoráveis para o ensino
e para aprendizagens; em outras palavras, todos os alunos negros e não
negros, bem como seus professores, precisam sentir-se valorizados e
apoiados (BRASIL, 2004, p. 13).
Porém, a promulgação da Lei 10.639/2003 não gerou o impacto esperado na
questão racial, uma vez que ainda não conseguiu convencer as mentes mais
esclarecidas da sociedade brasileira de que os professores precisam ser preparados
para atuarem na educação de base e para isso é necessária a reformulação dos
programas de cursos de graduação.
A educação é vista como a responsável por mudanças significativas na
sociedade no que tange a questão do racismo, porém, contraditoriamente, um dos
programas de pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba mesmo tendo
uma reconhecida história de estudos sobre Educação Popular e Movimentos
Sociais, conta com apenas 2% de pesquisas voltadas às questões relacionadas com
9. a população negra (SILVA, 2009). Além disso, o conhecimento que circula os
espaços acadêmicos continua a ter um caráter monocultural.
Um dos problemas decorrentes do legado académico imperial no campo
das ciências sociais contemporâneas deriva do facto de muitos académicos
pensarem que, ao designar algo, estão implicitamente a compreendê-lo. [...]
A persistência da colonização epistémica, de um universalismo monista na
observação e interpretação do o mundo reafirma a necessidade de
continuar a lutar pela descolonização do saber e das representações
(MENESES, 2007, p. 72).
Outro dado importante é que o racismo ainda se faz presente no sistema de
ensino, de forma velada. Uma de suas formas de manifestação é na literatura em
que se constitui sob a negação da história da população negra. Apesar do aumento
de debates em torno da questão etnicorracial a partir da promulgação da Lei
10.639/2003, os livros didáticos mantêm-se conservadores das imagens de
humilhação da população negra, em que esta é “marcada pela estereotipia e
caricatura, identificadas pelas pesquisas realizadas nas duas últimas décadas”
(SILVA, 2005, p. 23).
Percebemos, então, uma reprodução da ideologia do branqueamento, uma
vez que, desde cedo na escola, as crianças estarão internalizando uma imagem
negativa do que é ser negro e, por outro lado, introjetando uma imagem positiva do
que é ser branco. Sendo assim, como garantir que todas as crianças negras sintam-
se valorizadas e apoiadas a construírem suas identidades, como sugere as
Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, se as condições materiais são
adversas a esse objetivo?
De forma geral, a África apresentada nos livros didáticos e paradidáticos
continua a ter uma história única, em que se reforçam as hierarquias sociais e se
recria a dicotomia eu/outro no imaginário social. Se, por um lado, com os tímidos
avanços em relação ao combate ao racismo, as imagens do (a) negro (a) nesses
livros deixam de representar o negro como indolente e preguiçoso, destituído de
civilidade, recorrendo aos saberes legitimados por cientistas do século passado, é
previsível que os professores por meio dos livros didáticos continuem a representar
a África na escola como um
10. [...] continente atrasado, necessitando de ajuda internacional económica e
científica do Ocidente para se afirmar no espaço mundo. Esta posição
procura explicar nos nossos dias a especificidade africana como distinta ou
exótica, fazendo com que as propostas de alternativas se tornem quase
irrealizáveis. O legado africano dissolve-se internamente, impossibilitando
que esta experiência tão rica possa ser absorvida por um corpus teórico
mais amplo, integrando África no mundo, em lugar de sistematicamente a
marginalizar e excluir (MENESES, 2007, p. 72, grifos da autora).
Relacionando a afirmação de Lajolo e Zilberman (1988, p. 19) de que “o tipo
de representação a que os livros procedem [...] deixam transparecer o modo como o
adulto quer que a criança veja o mundo”, com o resultado de pesquisas que
evidenciam que os livros infantis continuam veiculando conteúdos racistas
(ESCANFELLA, 2007), podemos constatar que as teorias raciais e o projeto de
branqueamento, forjado no século XIX, continuam a vigorar em nossa sociedade.
Recentemente, a questão do racismo na Literatura Infantil ganhou espaço de
discussão, através do parecer CNE/CEB 15/2010 relatado por Nilma Lino Gomes
que faz a denúncia à obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, a qual foi
selecionada para o Programa Nacional Biblioteca da Escola PNBE/2003 e distribuída
nas escolas públicas de ensino fundamental. Na capa da referida obra analisada e
denunciada por Antonio Gomes Costa Neto, consta indicação de que a obra se
encontra em acordo com as novas normas gramaticais e no interior dela constam
notas explicativas quanto aos avanços nos debates em relação à questão ambiental,
salientando que no contexto de sua produção os animais retratados na história ainda
não estavam ameaçados de extinção nem protegidos pelo Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente, tendo a obra inclusive adaptado o título do livro que a originou, A
caçada da onça.
Em seguida, vimos circular no ciberespaço a Carta Aberta ao Ziraldo escrita
por Ana Maria Gonçalves em que é feita uma crítica ao escritor de O menino
maluquinho e O menino Marrom, por ter defendido Monteiro Lobato contra a
acusação de que ele era racista. Neste documento, Ana Maria Gonçalves explicita
vários trechos de Lobato que normalmente não são divulgados (ou são mesmo
intencionalmente ocultados) para nossa sociedade, que acabou absorvendo apenas
a imagem do Lobato autor de Sítio do Pica Pau Amarelo. Nos referidos trechos, além
11. de ficar claro o pensamento racista de Lobato, a autora retrata como o autor tinha
consciência de que o literário pode ser um instrumento de se fazer eugenia de forma
sutil e que, no Brasil, esses processos indiretos funcionavam com maior eficiência
(LOBATO, 1955).
Embora o Mito da Democracia Racial tenha tentado colocar panos quentes na
história da escravidão no Brasil, a partir da ideologia de que negros e brancos
conviviam em plena harmonia, cada qual sabendo o “seu lugar”, é do conhecimento
de todos nós que o corpo negro foi objeto de violência física na época da
escravidão.
De acordo com Chesnais (1981), violência física se caracteriza por agressões
irreparáveis contra a integridade da pessoa, colocando em ameaça a sua vida, sua
saúde e sua liberdade. Além do trabalho forçado que já caracteriza a violência, os
castigos, a aculturação e a proibição de crenças a que os negros foram submetidos
são histórias de violência que, de tão difundidas, acabaram se naturalizando. Assim,
nos livros didáticos, imagens de africanos escravizados recebendo chibatadas são
recorrentes, ao passo que a representação do negro limita-se a esse cenário.
Essa representação da violência física a que o corpo negro foi vítima na
época da escravidão, geralmente não vem acompanhada de uma problematização
sobre esses processos de exclusão e injustiça social. O fim da escravidão, por outro
lado, é associado apenas ao trabalho de abolicionistas brancos e à Lei Áurea
assinada pela princesa Isabel e esse tipo de mensagem é reproduzida em outros
suportes como a Literatura Infantil.
Significa dizer que a criança negra cresce incorporando essas mensagens
sobre o que é ser negro, as quais não oferecem possibilidades de uma afirmação da
identidade afrodescendente, pois mesmo que haja uma flutuação na significação, ela
não pode ser infinitamente conotativa, pois estará sempre associada a uma
significação preferencial e hegemônica (HALL, 2006), levando a criança a uma
situação conflituosa de negação do próprio corpo.
De forma não-explícita, a escola estabelece padrões eurocêntricos de ser e
estar no mundo:
Para estar dentro da escola é preciso apresentar-se fisicamente dentro de
12. um padrão, uniformizar-se. A exigência de cuidar da aparência é reiterada e
os argumentos para tal nem sempre apresentam um conteúdo racial
explícito. Muitas vezes esse conteúdo é mascarado pelo apelo às normas e
aos preceitos higienistas. Existe, no interior do espaço escolar, uma
determinada representação do que é ser negro, presente nos livros
didáticos, nos discursos, nas relações pedagógicas, nos cartazes afixados
nos murais da escola, nas relações professor/a e aluno/a e dos/as alunos/as
entre si (GOMES, 2002, p. 45).
O espaço escolar, ao contrário do que deveria ser, propicia o que Gonçalves
(1985) chamou de ritual pedagógico a favor da discriminação racial, manifestado
através da hostilidade que se faz presente diante dos processos discriminatórios
existentes em seu interior, diante dos estereótipos contidos nos materiais didáticos e
diante da invisibilidade da população negra nos livros infantis.
Remetendo ao conceito de violência escolar de Charlot, a violência simbólica
é compreendida como:
A falta de sentido de permanecer na escola por tantos anos; o ensino como
um desprazer, que obriga o jovem a aprender matéria e conteúdos alheios
aos seus interesses; as imposições de uma sociedade que não sabe
acolher os seus jovens no mercado de trabalho; a violência das relações de
poder entre professores e alunos. Também o é na negação da identidade e
satisfação profissional aos professores, a sua obrigação de suportar o
absenteísmo e a indiferença dos alunos (CHARLOT, 1997 apud
ABRAMOVAY; RUA, 2002, p. 69).
Sendo assim, crianças negras estão totalmente expostas a esse tipo de
violência simbólica, em que Eliane Cavalleiro, ao fazer uma analogia com o
divulgado caso em que o então Presidente da República Luíz Inácio Lula da Silva
ofereceu asilo a uma cidadã do Irã que estava condenada ao apedrejamento por
determinação das leis de seu país, denominou como apedrejamento moral
(CAVALLEIRO, 2010), contida nos materiais e discursos no interior da escola que é
naturalizada e menosprezada por seus profissionais.
CORPO NEGRO EM LIVROS INFANTIS: DAS MARGENS ÀS IMAGENS
Assim como a população negra é colocada às margens, quando não
esquecida, nos livros infantis, escritores e escritoras negras também sofrem com o
mesmo processo. Mesmo que em número inferior, o que não justificaria visto que
13. consumimos muitas obras clássicas importadas de outros países e por outro lado
não importamos Contos Africanos com a mesma intensidade, possuímos livros
infantis que trazem a população negra para protagonizarem histórias que não falam
de miséria e fome.
Analisando as imagens da Coleção Baobá da Editora Grafset de autoria de
Roberto Benjamin, entendendo como imagem não somente as figuras, mas às
palavras que criam imagem (WALTY, FONSECA, CURY, 2001), percebemos um
avanço significativo se comparado aos papéis dados a personagens negras nas
consagradas obras lobatianas. A Rainha Ginga, conta a história de uma mulher que
liderou, de forma corajosa, honrosa e inédita, os povos ambundos-jagas que
habitavam Dongo e Matamba, da atual Angola. Em A Serpente de Sete Línguas, da
mesma coleção, um príncipe negro salva a filha do rei, de uma cidade vizinha, das
garras de uma lendária serpente e casa-se com a jovem. Em ambas histórias, as
personagens estão bem vestidas, estão envolvidas em cenários de prestígio como
reinados, tronos, usam apetrechos simbólicos como coroas e jóias.
Livros semelhantes a esse, que possuam personagens negras
desempenhando papéis de prestígio ou destaque na sociedade não fazem parte do
acervo do Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PAIVA, 2008).
Se a escola é o espaço por excelência para se mudar questões de ordem
cultural, como é o caso do racismo, temos como prioridade as mudanças dos
imaginários racistas construídos e alimentados pelas imagens dos materiais
utilizados na escola desde o ensino infantil, fundamental e médio até o nível
superior, sendo a literatura, inclusive a infantil, um desses materiais, uma vez que
está presente em todos os níveis de ensino.
Apenas a promulgação da lei 10.639/2003 não garante que essa mudança irá
acontecer de forma satisfatória, é preciso, corroborando as proposições de Arroyo
[...] avançar mais na criação de normas compulsórias sobre a eliminação de
todo preconceito racial no material escolar e nas condutas dos alunos e
profissionais das escolas. Desenvolver políticas mais coerentes de
produção de novos materiais. Incorporar representantes do movimento
negro, pesquisadores, intelectuais e educadores na formulação dessas
políticas. Políticas mais focadas de formação inicial de professores a
administradores para o trato da diversidade e da pedagogia multirracial.
Obrigar os centros de formação a incorporar nos currículos de pedagogia e
14. licenciatura o conhecimento da nossa realidade multirracial (ARROYO,
2007, p. 114).
Infelizmente essas mudanças tem sido conquistadas a base de muita
polêmica e resistência, a exemplo do Parecer CNE Nº 15/2010 que chama a atenção
para a presença de estereótipos e mensagens racistas em livros infantis que
continuam a ser distribuídos às escolas. Por se tratar de um livro de um autor
clássico e importante para a história da literatura infantil no Brasil, Monteiro Lobato,
houve resistência em aceitar que obras de autores consagrados como esse devam
ser criticadas, exceto aquelas obras que poderiam comprometer a imagem desses
autores, como o livro O Presidente Negro (LOBATO, 1979) que é pouco divulgado
nos sistemas de ensino, talvez por trazer idéias muito semelhantes com a
condenada ideologia de Hitler.
Se a invisibilidade da população negra nos livros infantis já pode ser
considerada prejudicial para a construção da identidade de crianças negras, o que
dizer da presença de mensagens racistas e violentas que ainda podem ser
encontradas em algumas obras?
Mesmo que, assumindo o conceito de Hall (2006), a identidade não seja um
processo irreversível e conclusivo, podendo, assim, ser constantemente reconstruída
e reelaborada, é preciso garantir condições adequadas na infância por ela mesma,
sem se preocupar apenas com o futuro dessas identidades. As crianças negras
precisam construir suas identidades de forma positiva para serem felizes agora, e
não apenas ao se tornarem adultas.
REFERÊNCIAS
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