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Bernardo Kliksberg




  FALÁCIAS E MITOS DO
DESENVOLVIMENTO SOCIAL
          Tradução:
  Sandra Trabucco Valenzuela
FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL
Bernardo Kliksberg


Capa: Edson Fogaça
Preparação de originais: Carmen Tereza da Costa
Revisão: Maria de Lourdes de Almeida
Composição: Dany Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales




ISBN: 85-249-0823-8
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do
autor e do editor.


© by Autor


Direitos para esta edição
CORTEZ EDITORA
Rua Bartira, 317 — Perdizes
05009-000 — São Paulo-SP
Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290
e-mail: cortez@cortezeditora.com.br
www.cortezeditora.com.br


Impresso no Brasil — novembro de 2001
SUMÁRIO

Prólogo de Jorge Werthein (Unesco) ..................................................                    7

Introdução .........................................................................................     9

CAPÍTULO 1
Dez falácias sobre os problemas sociais da América Latina ........... 13

CAPÍTULO 2
Confrontando as realidades da América Latina: pobreza,
desigualdade e deterioração da família............................................ 47

CAPÍTULO 3
Como reformar o Estado para enfrentar os desafios sociais do
século XXI? ....................................................................................... 69

CAPÍTULO 4
Capital social e cultura. Chaves esquecidas do desenvolvimento . 105

CAPÍTULO 5
Ética e economia. A relação esquecida ............................................ 149

CAPÍTULO 6
O crescimento da criminalidade na América Latina: um tema
urgente ............................................................................................... 157

Bibliografia ........................................................................................ 167
FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL                              7




                                                            PRÓLOGO

     Este é o quarto livro de Bernardo Kliksberg que a UNESCO edita
no Brasil, o que permite conferir-lhe crescente credibilidade e respei-
to. De fato, seus estudos, reflexões e propostas sobre políticas de de-
senvolvimento social em geral e, de forma mais específica, sobre a situa-
ção social da América Latina têm despertado o mais vivo interesse do
público e dos especialistas e estudiosos na área de políticas públicas.
     Esse êxito crescente se deve em grande parte à visão prospectiva
de suas idéias e à solidez de suas teses que se apóiam em bases teóricas
de qualidade inquestionável, em farta documentação e evidências re-
colhidas de inúmeras experiências em curso. Não apenas isso. Os estu-
dos de Kliksberg têm a vantagem de indicar caminhos e explorar possi-
bilidades e alternativas com vistas à redução dos índices de pobreza na
América Latina.
     Neste livro estão inseridos seis estudos recentes de Bernardo
Kliksberg – Dez Falácias sobre os Problemas Sociais da América Latina;
Confrontando as Realidades da América Latina: pobreza, desigualdade
e deterioração da família; Crescimento da Criminalidade na América
Latina; Capital Social e Cultura; Ética e Economia e Como Reformar o
Estado para Enfrentar os Desafios Sociais do Século XXI. Em todos eles,
sobressai o ethos da redução da pobreza que constitui um dos princi-
pais eixos norteadores da obra de Kliksberg. Daí a sua insistência em
desfazer mitos e equívocos e de alertar sobre as conseqüências de abor-
dagens ortodoxas do pensamento econômico.
     No primeiro estudo, sobre as falácias do desenvolvimento, Kliks-
berg, com rara clareza, desfaz mitos e equívocos da ortodoxia econômi-
ca, contrapondo argumentos e indicando alternativas; no segundo, apon-
8                                         FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


ta as conseqüências do modelo vigente no processo de deterioração da
família; em seguida, chama a atenção para o crescimento da criminali-
dade e da violência, mostrando a coincidência entre a evolução dos
índices de violência e a deterioração dos dados sociais básicos, em que
pese outros fatores que devem também ser considerados; no quarto
estudo, discute a importância do capital social e cultural das comuni-
dades como condição imprescindível para o sucesso de projetos de
desenvolvimento; no artigo seguinte, examina as relações entre ética e
economia, alertando como o problema da ética e da moral tem sido
negligenciado no planejamento das políticas econômicas da América
Latina; e no último, procura repensar o papel do Estado, de forma a
prepará-lo para enfrentar os desafios mais urgentes do desenvolvimen-
to social e econômico.
      São seis estudos indispensáveis para a redefinição das políticas
sociais públicas na América Latina. Se esta redefinição não se operar
nos próximos anos, seguramente a incerteza em relação ao futuro se
ampliará e colocará em risco aspirações e ideais de grande legitimida-
de popular.
      Como diz Kliksberg no início do artigo sobre as falácias do desen-
volvimento, “é hora de ouvir as pessoas”. Não se pode mais pensar em
políticas públicas sem considerar a dimensão subjetiva, sem a cons-
ciência de que todos devem e podem participar, pois a essência de uma
política de desenvolvimento é a melhoria da qualidade de vida.

                                                       Jorge Werthein
                                         Diretor da UNESCO no Brasil
INTRODUÇÃO                                                             9




                                                       INTRODUÇÃO

      As cifras obrigam a refletir. Aproximadamente um de cada dois la-
tino-americanos está abaixo da linha de pobreza. A situação das crian-
ças é ainda pior: seis de cada dez são pobres. Os jovens se encontram
numa situação difícil. A taxa de desemprego juvenil duplica a elevada
taxa de desemprego geral, superando em muitos países os 20%. Apenas
um de cada três jovens cursa o ensino médio (contra quatro de cada
cinco no sudeste asiático). Formou-se um vastíssimo contingente de jo-
vens que tiveram de abandonar seus estudos mas que também não têm
lugar no mercado de trabalho. Os problemas de saúde são delicados. Um
terço da população da região carece de água potável, condição preventi-
va básica. Também há sérios déficits quanto aos sistemas de esgoto. Cer-
ca de 18% dos partos são realizados sem assistência médica de qualquer
tipo. A taxa de mortalidade materna é cinco vezes a dos países desenvol-
vidos. Sob o embate da pobreza, as famílias entram em crise e muitas
vezes se desarticulam. A criminalidade cresce fortemente. É quase seis
vezes o que se considera internacionalmente uma criminalidade mo-
derada. Surge intensamente ligada a fatores como o aumento do de-
semprego juvenil, à baixa educação, e à deterioração da família. A tudo
isso soma-se a expansão rápida de um novo tipo de pobreza, amplos
setores das classes médias sofreram uma queda socioeconômica pro-
nunciada e constituem os chamados “novos pobres”. Assim, entre ou-
tros casos, na Argentina, que contava com uma grande classe média,
estima-se que sete milhões de pessoas dos estratos médios se transfor-
maram em pobres na década de 90 (por 38 milhões de habitantes), e
processos similares se observam em muitos outros países.
      Estes dados significam sofrimento humano em grandes propor-
ções. O documento base da Reunião de Bispos Católicos de todo o Con-
10                                        FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


tinente (XXVIII Assembléia do CELAM, maio de 2001) ressalta “a cres-
cente pauperização que está se abatendo sobre a maioria da população
em todos os povos em que nós vivemos”. Destaca entre suas causas “os
efeitos da globalização econômica descontrolada e o crescente
endividamento externo e interno, com cargas que em vários países su-
peram atualmente um terço de seu Produto Interno Bruto.
     O que está acontecendo? Por que não se cumpriram os prognósti-
cos feitos no início dos anos 80, que afirmavam que, seguindo certas
políticas, os resultados econômicos e sociais estavam assegurados? O
que fracassou? Por que um Continente com recursos naturais privile-
giados, com fontes de energia baratas e acessíveis em grande quantida-
de, com grandes capacidades de produção agropecuária, com uma óti-
ma localização geoeconômica, e que tinha um bom desenvolvimento
educativo há décadas atrás, tem indicadores sociais tão pobres? Por
que, ainda, uma dimensão que todas as análises coincidem em assina-
lar como grande entrave para o progresso da região, seus altos níveis de
desigualdade, em vez de melhorar, piorou, constituindo-se a América
Latina na zona mais polarizada do planeta?
     O pensamento convencional parece ter esgotado sua possibilida-
de de dar respostas a interrogações como as indicadas. Faz-se necessá-
rio recuperar o que foi uma das maiores tradições deste Continente, a
capacidade de pensar de forma criativa e por conta própria, aprenden-
do da realidade e buscando caminhos novos.
     Esta obra tenta estimular e contribuir para uma discussão desse
tipo. Se sairmos dos âmbitos de análise estáticos, que estão gerando
permanentemente políticas que “são mais do mesmo”, e que, por ex-
tensão, não resolvem os problemas, é possível que surjam vias renova-
doras.
     O livro apresentado percorre cinco momentos de análise diferen-
ciados. No primeiro, colocam-se em foco dez falácias que hoje impe-
dem um pensamento independente criativo em matéria de desenvolvi-
mento na América Latina e têm sérias conseqüências sobre as políticas
públicas. No segundo, examina-se um plano da difícil situação da po-
pulação: os impactos que a pobreza está tendo sobre a família. No ter-
ceiro e no quarto, examinam-se as possibilidades de respostas inova-
doras nos dois campos: a reforma do Estado e das políticas sociais, bem
como o papel que pode desempenhar a sociedade civil, se mobilizar o
grande capital social latente na região, e se potencializar sua cultura.
Finalmente, o último momento está dedicado à necessidade de tornar a
INTRODUÇÃO                                                            11


refletir sobre os vínculos entre ética e economia, que foram marginali-
zados nas últimas décadas.
      Trata-se, através destas abordagens, de mostrar a necessidade de
incorporar novas dimensões ao debate sobre o desenvolvimento para
melhorar sua qualidade e poder fazer emergir políticas muito mais efe-
tivas em termos da meta final de sociedades democráticas: a dignidade
e desenvolvimento de seus povos.
      Os erros cometidos em termos de âmbitos conceituais desmenti-
dos pela realidade, políticas baseadas neles que demonstraram ser in-
competentes para o bem-estar humano e para o crescimento econômi-
co sustentado, e um dogmatismo agudo que impediu o arrazoamento
autocrítico tiveram custos muito fortes para a população. É hora de
repensar coletivamente o desenvolvimento, de forma aberta, sem falá-
cias, mitos nem tabus. Isso é uma exigência que dia a dia, nas ruas, dos
múltiplos rostos da dura pobreza latino-americana: as crianças de rua,
as crianças que trabalham, as mães humildes que ficaram sozinhas à
frente do lar, os jovens sem oportunidades de trabalho, os indígenas e
populações afro-americanas discriminadas, os deficientes semi-aban-
donados, os idosos desprotegidos. Ouçamos seu clamor e vamos ten-
tar, todos juntos, o quanto antes, devolver-lhes a esperança.

                                                    Bernardo Kliksberg
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                13




                                                         Capítulo 1

                           DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS SOCIAIS
                                                 DA AMÉRICA LATINA

Hora de ouvir as pessoas

     O que os latino-americanos pensam sobre o que está acontecendo
na região? Ao serem questionados sobre algo tão concreto como se eles
acreditavam estar vivendo melhor ou pior que seus pais, apenas 17%
afirmaram que viviam melhor, pois a grande maioria sentia que sua
situação havia piorado (Latín Barómetro, 1999). Esta resposta eviden-
cia um profundo sentimento de descontentamento. A maioria tem muito
claro no continente quais são as causas de sua inconformidade. Encon-
tram-se bem conscientes delas. E distinguem perfeitamente causas apa-
rentes de outras mais profundas. Ao serem interrogados sobre se crêem
que a democracia é preferível a qualquer outro sistema de governo,
demonstram um apoio maciço ao sistema democrático e a seus ideais.
Dois terços preferem-no, e apenas 20% continuam exibindo inclina-
ções ao autoritarismo. No entanto, quando se aprofunda, expressam
que estão fortemente insatisfeitos com o modo como a democracia está
funcionando em seus países. Somente 35% estão satisfeitos com seu
funcionamento. Na União Européia, apenas para efeito de compara-
ção, a cifra é de 47%, na Dinamarca é de 84%. Os latino-americanos
escolheram a democracia como forma de vida e a respaldam de forma
consistente, porém “democraticamente” estão bastante descontentes
com seu desempenho concreto.
14                                         FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


      Entre as causas de insatisfação, algumas são políticas, mas as eco-
nômico-sociais têm um peso decisivo. A grande maioria considera que
os problemas vinculados com a pobreza vêm piorando. Referem-se a
carências em oportunidades de trabalho, acesso à saúde, à educação de
boa qualidade, incerteza trabalhista, baixos salários. Acrescentam a isso
temas como o agravamento da corrupção, a delinqüência e o tráfico de
drogas. Além disso, revelam que sentem ser esta uma região onde há
grandes desigualdades e se ressentem agudamente dessa situação.
      Os dois únicos países cujas médias de satisfação com o desempe-
nho do sistema democrático revelam-se maiores que as da União Euro-
péia são Costa Rica e Uruguai, onde mais de 60% da população mostra-
se satisfeita com seu funcionamento. Ambos os países se caracterizam
por possuir os mais baixos níveis de desigualdade de toda a região e
por terem desenvolvido alguns dos mais avançados sistemas de prote-
ção social da mesma.
      As pesquisas refletem que a população está clamando por mudan-
ças, através da democracia e não por outro meio, que permitam enfren-
tar os agudos problemas sociais.
      Os avanços nesse caminho parecem encontrar obstáculos formi-
dáveis na região, a julgar-se pelos limitados resultados alcançados.
      Alguns têm a ver com a existência de fortes interesses criados e de
privilégios que se beneficiam da manutenção da situação vigente. Ou-
tros, com dificuldades derivadas da inserção econômica da região na
nova economia internacional. Outros, ainda, com o funcionamento
defeituoso de instituições e organizações básicas. A estes e aos demais
que podem ser acrescentados, soma-se a circulação profusa de certas
falácias sobre os problemas sociais que levam à adoção de políticas
errôneas e a empreender caminhos que afastam a saída do longo túnel
ao qual se submete boa parte da população. Não são o único fator de
atraso, mas claramente seu peso muito forte em setores com muita in-
fluência na tomada de decisões obstrui seriamente a busca de alterna-
tivas renovadoras e a passagem para uma nova geração de políticas
econômicas e sociais.
      O objetivo deste trabalho é chamar a atenção sobre estas falácias,
para estimular a discussão ampla e aberta sobre as mesmas, visando a
sua superação.
      Apresentamos a seguir algumas das principais, ao mesmo tempo que
procedemos à análise de alguns de seus efeitos no desenho de políticas e
examinamos sua consistência. Trata-se, sobretudo, de buscar colocá-las
em foco e convidar à uma reflexão coletiva sobre elas.
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                                                                    15


1. Primeira falácia: a negação ou a minimização da pobreza

     Existe uma intensa discussão metodológica sobre como medir a
pobreza na região. Entretanto, apesar dos resultados diversos que sur-
gem de diferentes medições, os estudos tendem a coincidir em dois as-
pectos centrais: a) as cifras de população localizada sob a linha de po-
breza são muito elevadas; b) há uma tendência consistente ao cresci-
mento das referidas cifras nos últimos vinte anos. As cifras se deteriora-
ram severamente nos anos 1980, melhoraram discretamente em parte
dos ano 1990, porém nos anos finais da década aumentaram significa-
tivamente. Em seu conjunto, a pobreza é maior no ano 2000 do que a que
a região apresentava em 1980, tanto em termos de número de pobres,
como no percentual que representam os pobres sobre a população total.
     A Cepal estima, em seu Panorama Social de América Latina 2000,
que a população em situação de pobreza cresceu, de 1997 até início de
2000, de 204 milhões a não menos de 220 milhões. Analisando a estru-
tura da força de trabalho em oito países da região que compreendem
75% de sua população total (Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El
Salvador, México, Panamá e Venezuela), a Cepal constata que 75% da
população que possui ocupação “recebe uma renda média que na maio-
ria dos países não é suficiente por si só para tirar da pobreza uma famí-
lia de tamanho e composição típica”.
     A evolução da pobreza na América Latina foi a seguinte, confor-
me cita o BID (1998):


                                                            Gráfico 1
                                         Evolução da pobreza na América Latina 1970-1995
                     160
                     150
                     140
Milhões de pessoas




                     130
                     120
                     110
                     100
                      90
                      80
                      70
                           1970   1972    1974   1976   1978   1980   1982   1984   1986   1988   1990   1992   1994

Fonte: BID, Informe de progresso econômico e social, 1998.
Nota: Linha de pobreza de 2 (ppp ajustado) em dólares de 1985 per capita.
16                                          FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


     Como se pode observar, a partir dos anos 1980 se produz uma
firme elevação do número de pessoas que ganham menos de dois dóla-
res diários. Verrier (1999) assinala que em toda a América havia, entre
1970 e 1980, 50 milhões de pobres e indigentes, mas que em 1998 já
eram 192 milhões. A Comissão Latino-Americana e do Caribe para o
Desenvolvimento Social, presidida por Patricio Aylwin (1995), consi-
dera que se encontra em situação de pobreza “quase a metade dos habi-
tantes da América Latina e do Caribe”.
     Diversas medições nacionais assinalam com as diferenças próprias
de cada realidade a extensão e a profundidade da pobreza. Um informe
detalhado sobre a América Central (PNUD/União Européia, 1999) indi-
ca que são pobres: 65% dos guatemaltecos, 73% dos hondurenhos, 68%
dos nicaragüenses e 53% dos salvadorenhos. As cifras relativas à po-
pulação indígena são ainda piores. Na Guatemala, estão abaixo da li-
nha de pobreza 86% da população indígena frente a 54% dos não-indí-
genas. Na Venezuela, estimava-se a pobreza entre 70% e 80% da popu-
lação. No Equador, 62,5%. No Brasil, estima-se que 43,5% da popula-
ção ganha menos de dois dólares diários e que 40 milhões de pessoas
vivem na pobreza absoluta. Ainda em países onde tradicionalmente as
cifras de pobreza têm sido baixas, como na Argentina, o Banco Mun-
dial estimou que encontra-se na pobreza quase um terço da população
e 45% das crianças. Nas províncias mais pobres como as do nordeste, a
taxa é de 48,8%.
     Um dos tantos indicadores do grau de “rigidez” da pobreza latino-
americana é proporcionado pelas projeções sobre níveis de educação e
renda. A Cepal (2000), baseando-se base nelas, afirma que “dez anos de
escolaridade parecem constituir o umbral mínimo para que a educação
possa cumprir um papel significativo na redução da pobreza; com um
nível educativo inferior a dez anos de escolaridade e sem ativos produ-
tivos, são muito poucas as probabilidades de superar os níveis inferio-
res de renda ocupacional”. A média de escolaridade na região é estima-
da em 5,2 anos, virtualmente a metade do mínimo necessário para se
ter condições de emergir da pobreza.
     Diante dessas realidades, a alternativa lógica é partir delas e tratar
de encontrar vias inovadoras para enfrentá-las. Entretanto, no discurso
público latino-americano das duas últimas décadas, reiterou-se a ten-
dência de alguns setores a optar por outra via, a negação ou minimização
do problema. A falácia funciona através de diversos canais. Um deles é
a relativização da situação. “Pobres há em todos os lugares”, costuma
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                  17


afirmar um mandatário de um país latino-americano frente ao cresci-
mento das cifras de pobreza em seu país durante sua gestão governa-
mental. Em relação ao aspecto econômico-social, o conveniente é sem-
pre desagregar os dados e ter uma perspectiva comparada e histórica
para saber qual é a situação real. Os países desenvolvidos têm efetiva-
mente também percentuais de população situados abaixo da linha de
pobreza. Porém, há várias diferenças. Por um lado, as cifras diferem de
modo bastante acentuado. A população pobre nesses países é normal-
mente inferior a 15%. É muito diferente possuir entre um sexto e um
sétimo da população em situação de pobreza e ter quase a metade nes-
se estado. Não é apenas uma diferença quantitativa, é outra escala que
implica consideráveis diferenças qualitativas. Nos países desenvolvi-
dos fala-se de “ilhas de pobreza”, ou de “focos de pobreza”. Em vastas
áreas da América Latina é muito difícil refletir a realidade com essa
linguagem. A pobreza é extensa, diversificada, e tem atualmente inclu-
sive uma forte expressão nas classes médias, em que a deterioração de
suas bases econômicas gerou um estrato social em crescimento deno-
minado “os novos pobres”.
     Não há “focos de pobreza” a erradicar, mas um problema muito
mais amplo e generalizado que requer estratégias globais.
     Por outro lado, a comparação estrita poderia levar a identificar
que a brecha é ainda muito maior. As linhas de pobreza utilizadas nos
países desenvolvidos são muito mais altas que as empregadas normal-
mente na América Latina. Assim, a difundida tendência a medir a po-
breza considerando pobres aqueles que ganham menos de dois dólares
por dia é bem questionável. Em todos os países da região, a linha de
pobreza está muito acima dessa cifra.
     Outra passagem usual do discurso negador é a afirmação de “que
pobres existiram sempre”, portanto não se entende por que tanta ênfa-
se em relação à situação atual. Ali a falácia adquire o tom da histo-
ricidade. Um dos arrazoamentos mais utilizados quando se trata de
relativizar um problema grave é tirar-lhe a base histórica. A pobreza
existiu na América Latina desde a sua origem, mas o tema é: quais são
as tendências presentes? Em que direção apontam, estão diminuindo,
estancando ou aumentando? Nos últimos vinte anos parecem haver
suficientes evidências para preocupar-se. Os indicadores experimen-
taram uma deterioração; com altos e baixos e variações nacional, as
cifras cresceram. São muito poucos os casos em que houve reduções
consideráveis.
18                                           FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


     A falácia de desconhecer ou relativizar a pobreza não é inócua.
Tem severas conseqüências em termos de políticas públicas. Se há
pobres em todos os lugares, e sempre existiram, por que dar ao tema
tão alta prioridade? Há que atenuar os impactos, mas não assustar-se.
Basta com políticas de contenção de rotina. A política social não é a
mais importante. É uma carga da qual não é possível desprender-se,
mas como se trata de enfrentar um problema que sempre existirá e
todos os países o têm, é preciso cuidado com superestimá-lo. O enfoque
conduz a políticas sociais de muito baixo perfil e a uma desierarquização
de toda a área social. Em algumas das expressões mais extremas da
falácia, procurou-se na década passada eliminar das agendas de reu-
niões importantes a “pobreza”, vendo-a, já em si, como demasiadamente
carregada de conotações.
     Além de conduzir a políticas absolutamente incapazes de enfren-
tar as realidades de pobreza, a falácia exposta entranha um importante
problema ético. Não só não oferece soluções aos pobres, o que leva à
perduração e acentuação de situações de exclusão humana antiéticas,
que vai ainda mais longe, através da minimização e relativização, está
questionando a própria existência do pobre.


2. Segunda falácia: a falácia da paciência

      Com freqüência, o arrazoamento explícito ou implícito que se de-
senvolve diante dos problemas sociais por parte de setores influentes
gira em torno da necessidade de uma certa “paciência histórica”. Trata-
se de etapas que devem suceder-se umas às outras. Haverá uma etapa
de “apertar os cintos”, mas logo virá a reativação e, posteriormente, ela
se “derramará” aos desfavorecidos e os retirará da pobreza. O social
deve esperar, e é preciso entender o processo e ter paciência enquanto
as etapas ocorrem. Independentemente do amplo questionamento que
há hoje, sobretudo esta visão do processo de desenvolvimento, quere-
mos enfatizar aqui um de seus elementos. A mensagem que está sendo
enviada é de fato que a pobreza pode esperar. Realmente pode esperar?
A realidade indica que a mensagem tem uma falha de fundo; em mui-
tos casos, os danos causados pela espera são simplesmente irreversíveis,
depois não haverá conserto possível.
      Vejamos: uma boa parte do peso da pobreza recai na América La-
tina sobre as crianças e adolescentes. Em 1997, segundo a Cepal (2000),
58% das crianças menores de cinco anos da região eram pobres, o mes-
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                     19


mo acontecia com 57% das crianças de seis a doze anos, e com 47%
dos adolescentes de 13 a 19 anos. Formando os menores de vinte anos,
em seu conjunto, 44% da população da região, representavam, por sua
vez, 54% de todos os pobres. As cifras verificam que efetivamente, como
foi sublinhado pelo Unicef, “na América Latina a maioria dos pobres
são crianças e a maioria das crianças são pobres”.
      Essa não é uma situação neutra. Como destaca Peter Tonwsed, “a
pobreza mata”. Cria fatores de risco que reduzem a expectativa de vida
e pioram sensivelmente a qualidade de vida. As crianças são os pobres
da América Latina, como se viu, e ao mesmo tempo, por natureza, as
mais vulneráveis. Sobre essas crianças pobres operam vários fatores
que são geradores, entre outros aspectos, do que se denomina “um alto
risco alimentar”, insuficiências no mais elementar a possibilidade de
que possam alimentar-se normalmente. Os resultados de déficits desta
ordem causam danos múltiplos. Estima-se que nos primeiros anos de
vida se desenvolvem boa parte das capacidades cerebrais. A falta de
uma nutrição adequada gera danos de caráter irreversível. Pesquisas
do Unicef (1995) sobre uma amostragem de crianças pobres determi-
naram que, aos cinco anos, metade das crianças dessa amostra apre-
sentava atrasos no desenvolvimento da linguagem; 30%, atrasos em
sua evolução visual e motora, e 40%, dificuldades em seu desenvolvi-
mento geral. A desnutrição causa ainda déficits no peso e estatura das
crianças e isso repercutirá acentuadamente em seu desenvolvimento.
Entre os fatores geradores de risco alimentar encontram-se: a falta de
recursos da família, o caráter monoparental da mesma e a baixa educa-
ção das mães.
      Existe uma forte correlação estatística entre estes fatores e a des-
nutrição infantil. Na América Latina atual, os três fatores têm significa-
tiva incidência. Como indicamos, numerosas famílias possuem renda
inferior ao imprescindível. Estima-se que cerca de 30% dos lares estão
sob a responsabilidade apenas da mãe; em sua grande maioria trata-se
de lares humildes e o nível educativo das mães pobres é muito baixo. A
pobreza do lar pode significar que muitas mães estarão, por sua vez,
desnutridas durante a gravidez. É provável então que o filho tenha ane-
mia, déficits de macronutrientes essenciais e peso baixo. Isso pode
ameaçar sua própria sobrevivência ou atentar contra seu desenvolvi-
mento futuro. Se, além disso, a mãe está sozinha à frente da família,
terá de lutar duramente para obter renda. Suas possibilidades de dedi-
cação à criança nas críticas etapas iniciais serão limitadas. O fator edu-
20                                         FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


cativo influirá ainda em aspectos muito concretos. Assim, as mães com
baixa escolaridade terão pouca informação sobre como atuar apropria-
damente com respeito ao aleitamento materno, como fazer uma dieta
adequada, como cuidar da higiene alimentar, como administrar ali-
mentos escassos. Em 1999, em dez de dezesseis países da região, 40% a
50% das crianças urbanas em idade pré-escolar faziam parte de lares
cujas mães não tinham completado o ensino fundamental (primário).
Nas zonas rurais, em seis de dez países analisados, o percentual era de
65% a 85%; nos quatro restantes, 30% a 40%. Ao verificar apenas as
crianças menores de dois anos de idade, em 1997, de 20% a 50% das
crianças da grande maioria dos países viviam em lares com renda por
morador inferior a 75% do valor da linha de pobreza e cuja mãe não
tinha completado o ensino fundamental (primário).
     A ação combinada destes e outros fatores leva ao sombrio panora-
ma captado pela Cepal (2000): “No ano 2000 estima-se que aproximada-
mente 36% do total de crianças menores de dois anos da América Latina
estão em situação de alto risco alimentar”. Os quadros nacionais são
alarmantes em diversos países. Na Nicarágua, estimativas do Ministério
da Saúde (1999) indicam que 59% das famílias cobrem menos de 70%
das necessidades de ferro requeridas pelo ser humano, 28% das crianças
com menos de cinco anos sofrem de anemia devido ao pouco ferro que
consomem, 66 crianças em cada cem apresentam problemas de saúde
por falta de vitamina A. 80% da população nicaragüense consome ape-
nas 1700 calorias diárias, quando a dieta normal deveria ser não inferior
a 2125 calorias. Na Venezuela, uma criança de sete anos dos estratos
altos pesa em média 24,3 kg e mede 1,219 m. Uma criança da mesma
idade dos setores pobres pesa somente 20 kg e mede 1,148 m. Embora
em países com tanto potencial alimentar, como é o caso da Argentina, as
estatísticas informam que na grande Buenos Aires, uma das principais
áreas populacionais, uma em cada cinco criança está desnutrida.
     Muitos dos países da região possuem importantes possibilidades
naturais de produção de alimentos. Contudo, como vimos, um terço
das crianças menores apresenta níveis de deficiência alimentar pro-
nunciada. Isso parece difícil de se entender. Influenciam fatores como
os identificados pela Organização Pan-americana da Saúde (OPS) e pela
Cepal em pesquisa conjunta (1998): “Observa-se em quase todos os
países da região um crescimento de doenças não transmissíveis crôni-
cas associadas com alimentação e nutrição. As medidas de ajuste
implementadas pelos países afetaram a disponibilidade nacional de
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                   21


alimentos e tiveram repercussões negativas sobre o poder de compra
dos grupos mais pobres ameaçando a segurança alimentar”.
     Assim como a falta de alimentação causa danos não-reparáveis
posteriormente, o mesmo ocorre com outras expressões da pobreza, como
os déficits que enfrentam os desfavorecidos na região em dois aspectos
básicos: a água potável e a existência de rede de saneamento e sistema
de esgoto. Ambos são elementos decisivos para a saúde. Amplos seto-
res da população pobre têm dificuldades muito grandes para obter água
potável ou têm de comprá-la a preços muito elevados. Ainda carecem
de instalações sanitárias adequadas, o que significará graves riscos de
contaminação através das galerias subterrâneas e de contaminação do
meio ambiente em que se localiza a moradia. Segundo os cálculos da
OPS, cerca de um terço da população da região carece de água potável
e/ou rede de esgoto; 30% das crianças menores de seis anos vivem em
moradias sem acesso à água potável; 40% das moradias não possuem
sistemas adequados de coleta de lixo e esgoto. Numa análise por paí-
ses, observam-se dados como os que seguem, que descrevem as per-
centagens de crianças menores de cinco anos de idade que viviam em
residências sem conexão com sistemas de evacuação de esgoto em 1998
(Cepal, 2000): Paraguai, 87%; Bolívia, 66%; Brasil, 59%; Honduras, 47%;
El Salvador, 45%; Venezuela, 26%; México, 24%. A ação desses fatores
gera mortalidade infantil e riscos graves de saúde, como os contágios e
infecções intestinais. Em onze países, a diarréia é uma das duas princi-
pais causas de morte em crianças com menos de um ano.
     Novamente trata-se de danos de caráter irreparável. A falácia da
paciência, com respeito à pobreza, nega de fato a análise da
irreversibilidade dos danos; leva a políticas em que, sob a idéia de que
as coisas se consertam depois, não se dá a prioridade que corresponderia
a questões elementares para a sobrevivência. Novamente, além das ine-
ficiências que significam essas políticas em qualquer visão a longo pra-
zo de uma sociedade, há uma falta de ética fundamental. Frente à po-
breza, deveria aplicar-se uma “ética da urgência”; não é possível espe-
rar diante de problemas tão vitais como os descritos. Esta falácia des-
conhece o caráter de urgência desta e de outras carências básicas.


3. Terceira falácia: com o crescimento econômico é suficiente

     O pensamento econômico ortodoxo de grande difusão na região
lança a mensagem básica de que todos os esforços devem ser voltados
22                                        FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


para o crescimento. Dirige os olhares aos prognósticos sobre o aumen-
to do produto bruto e o produto bruto per capita.
     Desperta as expectativas de que tudo está bem se eles crescerem
num bom ritmo. Propõe explicitamente, como se mencionou, que al-
cançando as metas importantes de crescimento, todo o restante se re-
solve. O mesmo fluirá para baixo, através do famoso efeito “derrame”,
e isso solucionará os “restos” que possam existir no campo social.
     O século XX ensinou muito duramente mais de uma vez que o
último juiz que decidirá se as teorias sobre o desenvolvimento são vá-
lidas ou não, não é seu grau de difusão, mas o que conta são os fatos.
Eles desmentiram fortemente que a realidade funcione como a ortodo-
xia supõe que deveria funcionar. As promessas feitas para a América
Latina, no início dos anos 1980, sobre o que ocorreria ao aplicar o mo-
delo convencional não foram cumpridas na prática. Descrevendo os
produtos concretos do que se chama a “forma de fazer economia”, que
a “América Latina escolheu nos anos recentes”, assinala Ricardo French
Davis (2000): “O resultado é uma forte instabilidade do emprego e da
produção, uma maior diferenciação entre ricos e pobres e um cresci-
mento médio modesto: apenas 3% neste decênio, e com uma profunda
desigualdade”. Efetivamente, os dados indicam que o crescimento foi
muito discreto, não se “derramou” automaticamente, a desigualdade
aumentou de modo significativo, a pobreza não se reduziu.
     Diante deste juízo da realidade, não caberia rever o arrazoamento
usual? Joseph Stiglitz (1998) sugere que chegou a hora de fazê-lo. Refe-
re-se à visão geral, de cujos componentes essenciais um é a idéia de
que o crescimento basta. Argumenta: “Muitos países aplicaram as re-
comendações intelectualmente claras, embora não raro difíceis no as-
pecto político, do Consenso de Washington. Os resultados não têm sido,
porém, totalmente satisfatórios. Isto apresenta várias explicações. Será
porque alguns não seguiram corretamente as receitas econômicas? Tal-
vez. Entretanto, eu argumentaria que a experiência latino-americana
sugere que deveríamos reexaminar, refazer e ampliar os conhecimen-
tos acerca da economia de desenvolvimento que são tomados como
verdade enquanto planejamos a próxima série de reformas”.
     A experiência da América Latina e de outras regiões do globo in-
dica que o crescimento econômico é imprescindível; é muito impor-
tante tratar de aumentar o produto total de uma sociedade. São funda-
mentais ainda o desenvolvimento das capacidades tecnológicas, da
competitividade e um clima de estabilidade econômica. No entanto,
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                  23


ensina também que é simplificar extremamente o tema do desenvolvi-
mento e de suas dimensões sociais aventurar que o crescimento econô-
mico sozinho produzirá os resultados necessários. O informe do Banco
Mundial sobre a pobreza no ano 2000, que expressa a política oficial
dessa instituição, propõe a necessidade de passar de uma vez a uma
visão mais ampla da problemática do desenvolvimento. Comentando
seu enfoque diferencial, aponta um influente meio, o jornal Washing-
ton Post (2000): “A publicação do Informe Mundial de Desenvolvimen-
to do Banco Mundial representa um significativo dissenso do consenso
sustentado entre economistas de que o melhor meio para aliviar a po-
breza é impulsionar o crescimento econômico e que a única via para
fazê-lo é através de mercados livres e abertos. O Informe destaca que
mesmo uma década após as economias planejadas da Europa Oriental
terem sido desmanteladas e o comércio e investimento global terem
alcançado níveis recordes, 24% da população mundial recebe renda
inferior a um dólar diário. A conclusão ineludível, de acordo com os
economistas e especialistas em desenvolvimento do Banco, é que en-
quanto o crescimento econômico possa ser um ingrediente necessário
para reduzir a pobreza, não poderá fazê-lo sozinho”.
     Outro informe posterior do Banco Mundial, A qualidade do cresci-
mento (2000), produzido por outras equipes do mesmo, propõe tam-
bém vigorosamente o mesmo tipo de argumento básico. Afirma Vinod
Thomas, diretor do Instituto do Banco (The Economist, 2000): “A expe-
riência dos países em desenvolvimento e também dos industrializados
mostra que não é meramente mais crescimento, e sim um melhor cres-
cimento o que determina em que medida aumenta o bem-estar, e o
bem-estar de quem. Países com renda e crescimento similares obtive-
ram nas últimas três décadas conquistas muito diferentes em educa-
ção, saúde e proteção do meio ambiente”. Sugere-se que é decisiva a
estrutura do crescimento, suas prioridades, vias de desenvolvimento,
setores beneficiados.
     A falácia de que o crescimento basta transmite a visão de que se
estaria avançando se o produto bruto per capita subir, e que os olhares
devem estar voltados para o mesmo. A ONU desenvolveu na última dé-
cada um corpo conceitual amplamente difundido no âmbito internacio-
nal, “o paradigma do desenvolvimento humano”, que ataca de modo
radical este arrazoamento. O crescimento só não basta, ele é necessário
mas não suficiente; assim, caberia iniciar uma discussão maior. Pergun-
tar-nos quando realmente uma sociedade avança e quando está retroce-
dendo. Os parâmetros definitivos, é a sugestão, devemos encontrá-los
24                                        FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


no que está acontecendo com as pessoas. Aumenta ou diminui a ex-
pectativa de vida? Melhora ou piora a qualidade de vida? A ONU apre-
sentou um índice de desenvolvimento humano que veio sendo aperfei-
çoado ano após ano, o qual inclui indicadores que refletem a situação
de todos os países do mundo em áreas tais como: expectativa de vida,
população com acesso a serviços de saúde, população com acesso a
água potável, população com acesso a serviços de coleta de esgoto e
detritos, escolaridade, mortalidade infantil, produto bruto per capita
ponderado pela distribuição de renda. Os ordenamentos dos países do
mundo segundo suas conquistas em desenvolvimento humano, que
vêm sendo publicados anualmente pela ONU, através do PNUD, reve-
lam um quadro que em diversos aspectos não coincide com o que de-
corre dos simples recordes de crescimento econômico.
      As conclusões resultantes enfatizam que quanto maior o cresci-
mento e mais recursos existirem, ampliam-se as possibilidades para a
sociedade, mas a vida das pessoas, que é a finalidade última, não pode
ser medida por algo que é um meio, deve ser medida por índices que
reflitam o que ocorre em âmbitos básicos da vida cotidiana.
      A falácia de que o crescimento basta está em definitivo transfor-
mando um meio fundamental, mas apenas um meio, em um fim últi-
mo. É preciso desmistificá-la e retomar um debate a fundo sobre o que
está ocorrendo com o cumprimento dos fins. Amartya Sen ilustra os
limites desta falácia, analisando várias situações reais. Realiza a com-
paração que se reflete no gráfico a seguir.
      Como se observa, os três primeiros países do gráfico — o Estado
de Kerala, na Índia (com 33 milhões de habitantes), China e Sri Lanka
— tinham um produto bruto per capita muito reduzido. Os outros três
— África do Sul, Brasil e Gabão — tinham um produto bruto cinco a
quinze vezes maior que o dos anteriores. Contudo, a população vivia
mais anos nos três países pobres: 71, 69 e 72 anos, contra 63, 66 e 54
anos.
      O crescimento econômico sozinho não era o fator determinante
num dos indicadores mais fundamentais para verificar se uma socie-
dade avança, no mais básico: a expectativa de vida. Que outras variá-
veis intervinham neste caso? Sen identifica aspectos como as políticas
públicas, que garantiam nos três primeiros países um acesso mais am-
plo a insumos fundamentais para a saúde, como a água potável, as
instalações sanitárias, a eletricidade e a assistência médica. Ainda as
melhores possibilidades em matéria de educação, por sua vez, inci-
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                                         25


                                                                      Gráfico 2
                                      Produto Nacional Bruto e Expectativa de vida em países selecionados (1992)
                                80                                                                                 5000

                                            71                         72                                  4450
                                70                         69                                                      4500
                                                                                              66
                                                                                  63
                                                                                                                   4000




                                                                                                                              PNB per capita (em dólares)
Expectativa de vida (anos)




                                60
                                                                                                            54     3500
                                50                                                           2770
                                                                                 2670                              3000

                                40                                                                                 2500

                                                                                                                   2000
                                30
                                                                                                                   1500
                                20
                                                                                                                   1000
                                                           470        540
                                10
                                           300                                                                     500

                                 0                                                                                 0
                                         Kerala          China     Sri Lanka    África       Brasil       Gabão
                                                                                do Sul

                                                          Expectativa de vida            PNB per capita


                             Fonte: Amartya Sen, “Mortality as indicator of economic success and failure”. The Economic
                             Journal, jan. 1998.



                             dente na saúde. Junto a isso, um aspecto central era a melhor distribui-
                             ção da renda nas três primeiras sociedades. Tudo isso levou a que os
                             países supostamente mais pobres em termos de renda fossem mais bem-
                             sucedidos na saúde e na expectativa de vida. Sen afirma: “Eles registra-
                             ram uma redução muito rápida das taxas de mortalidade e uma melho-
                             ra das condições de vida, sem um crescimento econômico notável”.


                             4. Quarta falácia: a desigualdade é um fato da natureza e não um obstáculo
                             para o desenvolvimento

                                  O pensamento econômico convencional tendeu a eludir uma dis-
                             cussão frontal a respeito da desigualdade e seus efeitos sobre a econo-
                             mia. Apoiou-se para isso com freqüência na sacralização do “U” inver-
                             tido de Kusnetz. De acordo com o mesmo, a desigualdade é simples-
26                                       FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


mente uma etapa inevitável da marcha para o desenvolvimento. Na
primeira fase do mesmo, produzem-se polarizações sociais, que depois
vão-se moderando e reduzindo. Alguns economistas convencionais mais
extremos chegam ainda mais longe, e propõem que essa acumulação
de recursos em poucas mãos favorecerá o desenvolvimento ao criar
maiores capacidades de investimento.
     Esta discussão tem particular transcendência para a América Lati-
na, porque é considerada por unanimidade a região mais desigual do
planeta. Se a tese dos ortodoxos mais inflexíveis estivesse correta, a
região deveria ter contado com taxas de investimento muito altas, da-
das as “acumulações em poucas mãos” que gerou. Isso não se observa.
Tampouco parece ser uma mera etapa do caminho ao desenvolvimen-
to. Na América Latina, a desigualdade instalou-se e não só não se mo-
derou, mas apresenta uma tendência consistente para o crescimento,
particularmente nas duas últimas décadas. O “U” invertido parece não
funcionar para a região.
     Na verdade, Kusnetz nunca pretendeu que fosse aplicável meca-
nicamente aos países não-desenvolvidos. Como tem ocorrido com fre-
qüência, alguns de seus supostos intérpretes fizeram claro abuso de
suas afirmações. Seus trabalhos referiam-se à observação dos Estados
Unidos, Inglaterra e Alemanha num período que compreendeu da pri-
meira metade do século XIX até o final da Primeira Guerra Mundial.
Adverte expressamente sobre o risco de generalizar as conclusões que
extraiu. Afirma (1970): “É perigoso utilizar simples analogias; não po-
demos afirmar que posto que a desigual distribuição da renda condu-
ziu no passado, na Europa Ocidental, à acumulação de economias ne-
cessárias para formar os primeiros capitais, para assegurar o mesmo
resultado nos países subdesenvolvidos é preciso, portanto, manter e
inclusive acentuar a desigualdade na distribuição da renda”. E enfatiza
em afirmação que na América Latina faz muito sentido hoje: “É muito
provável que os grupos que recebam rendas superiores em alguns dos
países hoje subdesenvolvidos apresentem uma propensão de consumo
muito maior e uma propensão à economia muito menor do que as que
apresentam os mesmos grupos de renda nos países hoje desenvolvidos
durante suas primeiras fases de crescimento”.
     Além de ter desvirtuado o pensamento real do próprio Kusnetz, a
falácia difundida com respeito à desigualdade choca-se fortemente com
os dados da realidade. A desigualdade latino-americana transformou-
se em nível internacional num caso quase de laboratório dos impactos
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                  27


regressivos da desigualdade. Diante da pergunta de por que um conti-
nente com tantas potencialidades econômicas e humanas gerou resul-
tados econômicos tão discretos e déficits sociais tão agudos, uma das
respostas com crescente consenso científico é que um dos fatores fun-
damentais em contrário tem sido o peso da desigualdade e seu cresci-
mento. Assim, apontam Birdsall, Ross e Sabot (1996) sobre a região, “a
associação entre um crescimento lento e uma elevada desigualdade
deve-se em parte ao fato de que essa elevada desigualdade pode consti-
tuir em si um obstáculo para o crescimento”.
      Operam ativamente na América Latina entre outros cinco tipos de
desigualdades, a saber: um é a iniqüidade na distribuição de renda. 5%
da população possui 25% da renda nacional; por outro lado, 30% da
população tem apenas 7,5% da renda nacional. É a maior brecha do
planeta. Medida com o coeficiente Gini de ineqüidade em renda, a
América Latina tem 0,57, quase três vezes o Gini dos países nórdicos.
Em média, a metade da renda nacional de cada país da região vai para
as mãos dos 15% mais ricos da população. No Brasil, os 10% mais ricos
possuem 46% da renda, enquanto os 50% mais pobres, apenas 14% da
mesma. Na Argentina, enquanto em 1975 os 10% mais ricos recebiam
oito vezes mais renda que os 10% mais pobres, em 1997 a relação tinha
mais que duplicado, era 22 vezes maior. Outra desigualdade acentua-
da é a que aparece em termos de acesso a ativos produtivos. A extrema-
mente ineqüitativa distribuição da terra em alguns dos maiores países
da região, como Brasil e México, é uma de suas expressões. Uma tercei-
ra desigualdade é a que rege no campo do acesso ao crédito, instru-
mento essencial para poder criar oportunidades reais de desenvolvi-
mento de pequenas e médias empresas. Há na América Latina 60 mi-
lhões de PYMES, que geram 150 milhões de empregos. No entanto,
apenas têm acesso a 5% do crédito. Uma quarta iniqüidade é a que
surge do sistema educativo. Os diferentes estratos socioeconômicos dos
países alcançam recordes muito diversos em anos de escolaridade. A
deserção e a repetência provocadas pelas condições socioeconômicas
do lar minam diariamente a possibilidade de que os setores pobres com-
pletem seus estudos. Segundo a Cepal (2000), no Brasil repetiam os
dois primeiros anos do ensino fundamental 41% das crianças perten-
centes aos 25% de menor renda da população, e por sua vez apenas
4,5% das crianças dos 25% com maior renda. Ainda, tinham completa-
do o ensino fundamental (de 1ª a 8ª série) aos vinte anos de idade ape-
nas 8% dos jovens pertencentes aos 25% de menor renda, contra 54%
dos 25% de maior renda. Tomando países da região (BID, 1998), surgia
28                                        FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


que os chefes de família dos 10% de renda mais elevada tinham 11,3
anos de educação, os dos 30% mais pobres, apenas 4,3 anos. Uma bre-
cha de sete anos. Enquanto na Europa a brecha de escolaridade entre
os 10% mais ricos e os 10% mais pobres é de dois a quatro anos, no
México é de dez anos. A desigualdade educativa será um fator muito
importante na iniqüidade na possibilidade de conseguir emprego e nos
salários a serem recebidos. Os setores desfavorecidos estarão em con-
dições muito desfavoráveis nesse item devido à sua frágil carga educa-
tiva. A força de trabalho ocupada da região apresenta uma marcante
estratificação. Segundo a Cepal (2000), há um nível superior que são
3% da população empregada que possui quinze anos de escolaridade,
um nível intermediário que são os 20% da força de trabalho que possui
entre nove e doze anos de escolaridade, e os 77% restantes que têm
apenas 5,5 a 7,3 anos de estudo nas cidades e 2,9 nas zonas rurais. Uma
quinta e nova cifra de desigualdade está surgindo das possibilidades
totalmente diferenciadas de acesso ao mundo da informática e Internet.
A grande maioria da população não tem meios nem a educação requerida
para conectar-se com esse mundo, fazendo parte assim de uma nova
categoria de analfabetismo, o analfabetismo cibernético”.
      Todas estas desigualdades geram múltiplos efeitos regressivos na
economia, na vida pessoal e familiar, e no desenvolvimento democrá-
tico. Entre outros, segundo demonstram numerosas pesquisas: redu-
zem a formação de poupança nacional, estreitam o mercado interno,
conspiram contra a saúde pública, impedem a formação em grande
escala de capital humano qualificado, deterioram a confiança nas ins-
tituições básicas das sociedades e na liderança política. O aumento da
desigualdade é, por outro lado, uma das causas centrais do aumento da
pobreza na região. Birdsall & Londoño (1998) estimaram econometrica-
mente que seu crescimento entre 1983 e 1995 duplicou a pobreza, que
a mesma teria sido a metade do que foi se a desigualdade tivesse conti-
nuado nos níveis anteriores, elevados porém menores.
      A desigualdade latino-americana não é um fato natural próprio do
caminho do desenvolvimento como pretende a falácia. É a conseqüên-
cia de estruturas regressivas e políticas erradas que a potencializaram.
Barbara Stallings (Cepal, 1999) considera que “as reformas econômicas
aplicadas nos últimos anos agravaram as desigualdades entre a popu-
lação” e sublinha que “é possível afirmar sem nenhuma dúvida que os
noventa são uma década perdida quanto à redução das já alarmantes
diferenças sociais existentes na região com mais desigualdade do mun-
do”. Altimir (1994), depois de analisar dez países, propõe que “há ba-
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                     29


ses para supor que a nova modalidade de funcionamento e as novas
regras de política pública destas economias possam implicar maiores
desigualdades de renda”. Albert Berry (1997) indica: “A maioria dos
países latino-americanos que introduziram reformas econômicas pró-
mercado, no curso das últimas duas décadas, sofreram também sérios
incrementos na desigualdade. Esta coincidência sistemática no tempo
dos dois eventos sugere que as reformas foram uma das causas da de-
gradação na distribuição”.
     Por sua vez, a outra dimensão da falácia também é desmentida
pela realidade. A desigualdade não se modera ou atenua sozinha. Pelo
contrário, a instalação de circuitos de desigualdade em áreas-chaves
possui uma tendência “contaminante”, propicia a geração de circuitos
similares em outras áreas. Entre outros casos, ilustra o fato a dificulda-
de, apesar de todos os esforços, em melhorar a situação educativa da
população pobre. As desigualdades em outras áreas como ocupação e
renda conspiram contra as reformas educativas. Ainda, as desigualda-
des em educação reforçam, como já se viu, as brechas no mercado de
trabalho. Os circuitos perversos de desigualdade mostram além disso
uma enorme capacidade reprodutora. Eles se automultiplicam. Sem
ações em contrário, as polarizações tendem a crescer e ampliar-se. Isso
é mostrado pela conformação crescente em numerosas sociedades de
uma dualidade central: incluídos e excluídos.


5. Quinta falácia: a desvalorização da política social

      Um renomado ministro da Economia da América Latina, ao ser
questionado sobre a política social em seu país, respondeu: “A única
política social é a política econômica”. Estava refletindo toda uma ati-
tude quanto à política social que teve conseqüências profundas no con-
tinente. Há uma tendência a vê-la como um complemento menor de
outras políticas maiores, como as que têm a ver diretamente com o
desenvolvimento produtivo, os equilíbrios monetários, o crescimento
tecnológico, a privatização etc. Caberia a ela atenuar os impactos tran-
sitórios que as anteriores produzem na sociedade. Deveria atacar
focalizadamente os desajustes sociais mais irritáveis para reduzi-los.
No fundo, a partir deste arrazoamento, ela é percebida como uma “con-
cessão” à política. Como a pobreza gera forte inquietude política, a po-
lítica social faria o trabalho de “acalmar os ânimos” e mostrar que estão
se fazendo coisas nesse fronte, mas o corolário conseqüente é: quanto
30                                         FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


menos concessões, melhor. Os recursos destinados ao social deveriam
ser muito limitados e destinados a fins muito específicos.
      Albert Hirschman, em certa oportunidade, chamou esta forma de
abordar o tema de “políticas pobres para pobres”. Dá lugar a reduzir o
social a metas muito estreitas, a constituir uma institucionalidade so-
cial frágil em recursos, e pessoal, afastada dos altos níveis de decisão.
Por outro lado, é também altamente vulnerável. Diante de reduções
orçamentárias, mostra escassa capacidade para defender sua situação
e normalmente é candidata preferida para os cortes. Esta visão, ainda
sob outro aspecto, supõe em si um questionamento implícito da legiti-
midade da política social. É desviar recursos de destinos mais impor-
tantes, por “pressão política”.
      Refletindo a situação, uma experiente ministra da área social de
um país latino-americano narrou a respeito para uma platéia interna-
cional: “Não éramos convidados ao gabinete onde eram tomadas as
decisões econômicas mais importantes. Depois de muitos esforços, con-
seguimos ser convidados. Claro que apenas com direito a voz, não a
voto”.
      Considerar a política social nestes termos: de uma categoria infe-
rior, concessão à política, uso subotimizante de recursos, conforma uma
falácia que está afetando seriamente a região.
      Em primeiro lugar, como se pode relegar o social num contexto
como o latino-americano, em que praticamente uma a cada duas pes-
soas está abaixo da linha de pobreza e expressa diariamente de mil
maneiras seu descontentamento e seu protesto por essa realidade? Aten-
der ao social não é uma concessão, é em numa democracia tratar de
fazer com que os direitos fundamentais de seus membros sejam respei-
tados. O que está em jogo, no fundo, como defende a ONU, é uma ques-
tão de direitos humanos violados. Como ressalta o Informe de Desen-
volvimento Humano 2000, do PNUD: “A erradicação da pobreza cons-
titui uma tarefa importante dos direitos humanos no século XXI. Um
nível decente de vida, nutrição suficiente, assistência médica, educa-
ção, trabalho digno e proteção contra as calamidades não são simples-
mente metas do desenvolvimento, são também direitos humanos”. As
políticas sociais são essenciais para a população na região e estratégias
para a estabilidade do próprio sistema democrático. Ao consultar-se a
população, ela não pede que se reduzam, estreitem ou eliminem, mas,
ao contrário, exige maciçamente que se reforcem, ampliem e se incor-
porem novas políticas.
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                   31


     Em segundo lugar, é difícil sustentar no início deste novo século
que se trata de uma destinação de recursos de pouca eficiência. Desti-
nar recursos para assegurar-se de que todas as crianças concluam o
primeiro ciclo do ensino fundamental (antigo primário), para elevar a
taxa de término do ensino fundamental (de 1ª a 8ª série), para desen-
volver o sistema de educação superior, é ineficiente? As medições
econométricas dão resultados muito diferentes. A taxa de retorno em
educação é uma das mais altas possíveis para uma sociedade. Hoje, a
competitividade dos países está fortemente ligada ao nível de
capacitação de sua população. Alguns dos países mais bem-sucedidos
do planeta nos mercados internacionais estão exportando basicamente
produtos como “high tech” totalmente baseados no capital educativo
que souberam desenvolver. A absorção de novas tecnologias, a inova-
ção local a partir delas, a pesquisa e desenvolvimento, o progresso tec-
nológico dependem todos dos níveis de educação alcançados. Os cál-
culos demonstram, assim, entre outros casos, que um dos investimen-
tos macroeconomicamente mais rentáveis que um país pode fazer é
investir na educação de meninas. Acrescentar anos de escolaridade às
meninas desfavorecidas aumentará seu capital educativo e, através dele,
reduzirá as taxas de gravidez na adolescência, de mortalidade mater-
na, de mortalidade infantil e morbidade. Todas elas estão correlacio-
nadas estatisticamente com os anos de escolaridade da mãe.
     Nas condições latino-americanas, estender a possibilidade de aces-
so à água potável a toda a população é um investimento deficiente? O
retorno ao fazê-lo será significativo em termos de saúde pública, o que
logo repercutirá na produtividade da economia.
     Na verdade, toda a terminologia utilizada está equivocada e nova-
mente vemos um erro semântico não casual. Assim como existiam aque-
les que não queriam ouvir falar da palavra pobreza, na falácia que des-
valoriza a política social, chegou-se a que toda a discussão a respeito
seja feita em termos de “gasto social”. Na realidade, não há tal gasto.
Bem gerenciados, os recursos para o social constituem, na grande maio-
ria dos casos, investimento de um alto retorno.
     Hoje é difícil discutir as evidências de que o investimento social
gera capital humano e que o mesmo se transforma em produtividade,
progresso tecnológico e é decisivo para a competitividade. Na verdade,
a política social bem delineada e eficientemente executada é um pode-
roso instrumento de desenvolvimento produtivo. Como sugere Touraine
(1997): “Em vez de compensar os efeitos da lógica econômica, a políti-
32                                            FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


ca social deve ser concebida como condição indispensável do desen-
volvimento econômico”.
      Em terceiro lugar, discutiu-se a gravidade do tema da desigualda-
de na América Latina. Superada a falácia que a nega ou minimiza, como
se pode reduzi-la? Uma das vias fundamentais possíveis numa demo-
cracia é uma agressiva política social que amplie fortemente as oportu-
nidades para os pobres em setores cruciais. Deverá estar integrada, entre
outras, por políticas que universalizem possibilidades de controle de
fatores de risco-chaves em saúde na região, como a água, o saneamen-
to, a eletricidade, o acesso à assistência médica; que atuem sobre os
fatores que excluem parte da população do sistema educativo; que as-
segurem serviços públicos de boa qualidade para todos. A política so-
cial pode ser uma chave para a ação contra a desigualdade, provendo
uma base mínima de bens e serviços indispensáveis e contribuindo,
assim, para abrir as oportunidades e romper círculos perversos.
      Em vez de uma política social “borralheira”, como propõe a falácia,
o que a América Latina precisa é de uma nova geração de políticas so-
ciais com letra maiúscula. Isso implica dar prioridade efetiva às metas
sociais no desenho das políticas públicas; procurar articular estreitamente
as políticas econômicas e as sociais; montar uma institucionalidade so-
cial moderna e eficiente; destinar recursos apropriados; formar recursos
humanos qualificados no social; fortalecer as capacidades de gerência
social, e hierarquizar em geral esta área de atividade pública.
      A metáfora que se ouve em toda a região descreve bem a situação.
Afirma que a política social é atualmente a “assistência pública” que
recolhe os mortos e feridos deixados pela política econômica. A falácia
examinada cultiva e racionaliza esta situação inaceitável. É preciso uma
política social que potencialize o capital humano, base essencial de
um desenvolvimento econômico sustentado. É um tema ético, político
e, ao mesmo tempo, de lucidez histórica. Como aponta Birdsall (1998):
“é provável que as taxas de crescimento da América Latina não sejam
superiores a 3% ou 4%, muito distantes das necessárias, enquanto não
se contar com a participação e a contribuição da metade da população
que está compreendida nos percentuais mais baixos de renda”.


6. Sexta falácia: a maniqueização do Estado

    No pensamento econômico convencional circulante, tem-se feito
um esforço sistemático de vastas proporções para deslegitimar a ação
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                   33


do Estado. Associou-se a idéia de Estado com corrupção, com incapa-
cidade para cumprir eficientemente as mínimas funções, com grandes
burocracias, com desperdício de recursos. A visão apóia-se em graves
defeitos existentes no funcionamento das administrações públicas em
numerosos países da América Latina, mas foi muito mais além disso e
“maniqueizou” o Estado em seu conjunto. Projetou a imagem de que
toda ação tratada no terreno público seria negativa para a sociedade, e,
por sua vez, a redução ao mínimo das políticas públicas e a entrega de
suas funções ao mercado a levaria a um reino da eficiência e à solução
dos principais problemas econômico-sociais existentes. Além disso,
criou a concepção de que existia uma oposição de fundo entre Estado e
sociedade civil e havia que escolher entre ambos.
      Como em outros campos, hoje é possível manter uma discussão
sobre o tema para além das ideologias. O instrumental metodológico
das ciências sociais atuais traz evidências muito concretas que permi-
tem estabelecer como funciona a realidade. A visão demonstrou ser
errada. O Estado sozinho não pode fazer o desenvolvimento, e na Amé-
rica Latina a ação estatal tem apresentado agudos problemas de
burocratização, ineficiência e corrupção. Entretanto, o processo de eli-
minação de numerosas funções do Estado, de redução a níveis míni-
mos em muitos casos de suas capacidades de ação, como ocorreu com
freqüência nas áreas sociais, o enfraquecimento em geral do papel das
políticas públicas, e a entrega de suas funções ao mercado, não levou
ao reino ideal suposto. Os problemas estruturais das sociedades latino-
americanas e de outras do mundo em desenvolvimento continuaram
se agravando, a corrupção acompanhou também com freqüência os
processos de privatização. Identificou-se como uma lei operante que
sempre que houver um corrupto no Estado, haverá, por sua vez, um
corruptor no setor privado, ou seja, o tema excede qualquer simplifica-
ção. O funcionamento sem regulação do mercado levou ao aprofunda-
mento das brechas, particularmente das de iniqüidade. Deu-se uma
forte tendência, sob as novas regras de jogo, à constituição de monopó-
lios que significaram, na prática, a imposição de cargas muito pesadas
aos consumidores e às pequenas e médias empresas, liquidando com
estas últimas.
      A impressão é que as duas polarizações conduziram a becos sem
saída. O Estado sozinho não pode resolver os problemas, mas sua
minimização agrava-os. Essa é a conclusão, entre muitas outras vozes,
do Banco Mundial no final desta década. Em seu informe especial dedi-
cado ao papel do Estado (1998), ressalta como idéia fundamental que
34                                         FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


sem um Estado eficiente o desenvolvimento não é viável, e propõe uma
série de diretrizes orientadas a “reconstruir a capacidade de ação do Es-
tado”. Por seu lado, autores como Stiglitz e outros chamaram a atenção
para as “falhas do mercado”, sua tendência a gerar desigualdades e à
cartelização para maximizar lucros e seus desvios especulativos quando
não há eficientes controles regulatórios, como ocorre em Estados tão
fragilizados pelas reformas das últimas décadas como os da região. Caus-
ticamente, afirma uma autoridade mundial em como gerenciar com efi-
ciência, Henry Mintzberg (1996), com respeito à concepção de que se
poderia prescindir do Estado e a visão de que tudo o que se faz no Estado
é ineficiente e no setor privado, eficiente: “o modelo representa a grande
experiência dos economistas que nunca tiveram de gerenciar nada”.
      Hoje há um ativo retorno à busca de uma visão mais equilibrada no
debate internacional de ponta sobre o tema do desenvolvimento e do
papel do Estado. Impossível desconhecer a importância das políticas
públicas num contexto histórico em que a segunda economia do mun-
do, o Japão, está colocando em marcha, uma após a outra, sucessivas
iniciativas de intervenção ativa do Estado para dinamizar a economia, a
mais recente (outubro de 2000) injetando 100 bilhões de dólares para tal
efeito. Amartya Sen (1998) ressalta sobretudo o papel decisivo que tem
exercido a política pública no campo social em algumas das economias
de melhor desempenho a longo prazo do mundo. Sublinha: “De fato,
muitos países da Europa Ocidental conseguiram assegurar uma ampla
cobertura de assistência social com a assistência à saúde e educação
pública de maneiras até então desconhecidas no mundo; o Japão e a
região do Leste da Ásia tiveram um alto grau de liderança governamen-
tal na transformação tanto de suas economias como de suas sociedades;
o papel da educação e da assistência médica pública foi o eixo funda-
mental para contribuir para a mudança social e econômica no mundo
inteiro (e de forma bastante espetacular no Leste e Sudeste asiáticos)”.
      Uma área totalmente decisiva para a economia e para a sociedade
é a da saúde. Toda sociedade democrática tem a obrigação de garantir a
seus membros o direito à assistência médica, é o direito mais básico.
Além disso, melhorar os níveis de saúde da população exerce toda or-
dem de impactos favoráveis sobre a economia, entre muitos outros as-
pectos em redução de horas de trabalho perdidas por doença, aumento
da produtividade no trabalho, queda nos custos ligados a doenças etc.
O recente informe sobre a saúde mundial 2000 da Organização Mun-
dial da Saúde (OMS, 2000) estabelece o primeiro ranking dos países do
mundo, segundo o desempenho de seus sistemas de saúde. Entre ou-
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                  35


tros, constrói um índice muito significativo para essas medições: os
anos que, em média, uma pessoa vive com boa saúde, sem doenças. No
topo da lista encontram-se países como Japão (74,5 anos), Suécia (73
anos), Canadá (72 anos) e Noruega (71,7 anos). Em todos esses países, o
Estado tem uma participação fundamental, tendo construído uma am-
pla rede de proteção. No Japão, o gasto público é de 80,2% do gasto
total em saúde; na Suécia é de 78%; na Noruega, de 82%, e no Canadá,
de 72%. O gasto público per capita em saúde ultrapassa em todos eles
os 1300 dólares anuais. O contraste com a atual situação em diversos
países latino-americanos é marcante. O gasto público per capita em
saúde no Brasil é de 208 dólares; no México, de 172, no Peru, de 98. Os
anos de vida saudável chegam em média a apenas 59 anos no Brasil,
embora o país seja uma das maiores potências industriais do mundo.
Por sua vez, ao procurá-lo na lista de desempenho dos sistemas de saú-
de da OMS, o Brasil aparece em 125º lugar.
      O caráter crucial da ação estatal em campos-chaves como saúde e
educação, pressupondo uma ação bem gerenciada e transparente, sur-
ge com toda a força de uma pesquisa recente (Financial Times, 2000),
que mostra o que ocorre quando se fixam como política alfandegária os
serviços em áreas de população pobre, sob a idéia de “compartilhar
custos” e de “financiamento comunitário”, reduzindo assim as respon-
sabilidades do Estado. Na Tanzânia, seguindo as condições do Banco
Mundial, foram introduzidas tarifas para o ensino primário. O resulta-
do, segundo indica a Igreja Evangélica Luterana da Tanzânia, foi um
imediato descenso na assistência às escolas e a redução do orçamento
total para as mesmas à metade do previsto. Em Zimbábue, a condicio-
nalidade centrou-se em que deveriam cobrar taxas nos serviços de saú-
de, mas que os pobres estariam isentos disso. Uma avaliação do pró-
prio Banco Mundial concluiu que apenas 20% dos pobres puderam
conseguir as licenças para isenção necessárias. Em Gana, ao impor ta-
xas na escola, 77% das crianças da rua de Accra, que assistiam às au-
las, abandonaram as escolas.
      A falácia da maniqueização do Estado leva a conseqüências muito
concretas: ao deslegitimar sua ação deixa aberto o terreno para sua de-
bilitação indiscriminada e para o desaparecimento paulatino de políti-
cas públicas firmes em campos cruciais como os sociais. Causa, assim,
danos irreparáveis a vastos setores de famílias, aumentando a pobreza
e a desigualdade e limitando as possibilidades de um crescimento sus-
tentado. Os dados da realidade sugerem que há outro caminho. Em
alguns dos países mais bem-sucedidos econômica e socialmente, um
36                                               FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


dos pilares de suas economias é um Estado ativo de alta eficiência.
Uma de suas características principais contradiz um dos eixos da falá-
cia. É um Estado coordenado estritamente com a sociedade civil. A
falsa oposição Estado — Sociedade Civil, que preconiza a falácia como
um fato, é neles desmentida. Os laços de cooperação são múltiplos e
surge uma ação integrada. Também na América Latina algumas das
sociedades com melhores cifras de eqüidade, menores índices de po-
breza e melhores taxas de desenvolvimento tiveram como base dessas
conquistas Estados bem organizados, com burocracias consideradas
eficientes, como Costa Rica, Uruguai e o Chile democrático. É impres-
cindível reformar e melhorar a eficiência estatal e erradicar a corrupção.
Porém, para isso, é necessário avançar em outra direção totalmente
diferente à da falácia. Não satanizar o Estado, mas ir construindo ad-
ministrações públicas descentralizadas, transparentes, abertas à parti-
cipação comunitária, bem gerenciadas, com carreiras administrativas
estáveis, fundadas no mérito.


7. Sétima falácia: a incredulidade sobre as possibilidades de contribuição por
parte da sociedade civil

      O pensamento econômico circulante envia às vezes explicitamen-
te, e com freqüência implicitamente, uma profunda mensagem de des-
valorização do possível papel que pode desempenhar a sociedade civil
nos processos de desenvolvimento e na resolução dos problemas so-
ciais. Sua ênfase está totalmente voltada para o mercado, a força dos
incentivos econômicos, a gerência de negócios, a maximização de uti-
lidades como motor do desenvolvimento, os sinais que podem atrair
ou afastar o mercado. O mundo da sociedade civil é percebido como
um mundo secundário, de segunda linha com respeito ao que ocorre
no “mundo importante” conformado pelos mercados. Desse enfoque
surgirão políticas públicas de apoio muito limitado, quase “simbólico”
e por “cortesia” às organizações da sociedade civil, e uma desconfiança
forte em depositar nelas responsabilidades realmente importantes.
      A falácia arrazoa em termos de uma dualidade básica: Estado versus
mercado. Nos fatos, a situação é muito mais matizada. Existe um sem-
número de organizações que não são nem uma coisa nem outra. Foram
criadas com finalidades diferentes, os atores sociais que se encontram
por trás delas são outros, e as metodologias que utilizam não são de Esta-
do nem de mercado. Este mundo compreende, entre outras: as organiza-
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                      37


ções não-governamentais em contínuo crescimento na América Latina
que foram denominadas com freqüência de terceiro setor e que realizam
múltiplas contribuições no campo social; os espaços de interesse públi-
co, que são fórmulas especiais muito usadas nos países desenvolvidos
onde numerosas Universidades e hospitais foram fundados por eles —
trata-se de empreendimentos a longo prazo animados por numerosos
atores públicos e privados, modelos econômicos que não são de merca-
dos típicos como as cooperativas, que têm alta presença em diversos
campos, e o amplo movimento de luta contra a pobreza desenvolvido
em toda a região pelas organizações religiosas, cristãs, protestantes e ju-
daicas que estão na primeira linha da ação social. A realidade não é só o
Estado e o mercado como pretende a falácia. Inclusive alguns dos mode-
los de organização e gestão social e geral mais efetivos de nosso tempo
foram desenvolvidos nesta vasta área diferente de ambos.
      Todas estas organizações possuem um grande peso e uma forte par-
ticipação na ação social no mundo desenvolvido. Arrecadam recursos
consideráveis, a elas são delegadas funções crescentes por parte do Esta-
do, estão inter-relacionadas com a ação pública de múltiplas formas.
Estão baseadas fortemente em trabalho voluntário. Mobilizam milhares
e milhares de pessoas que dedicam anonimamente consideráveis horas
para levar adiante seus programas. Trazem importantes contribuições
ao Produto Bruto Nacional com trabalho não-remunerado em países como
Canadá, Holanda, Suécia, Noruega, Dinamarca, Espanha, Israel e ou-
tros. Assim, em Israel, que aparece entre os primeiros do mundo nesta
matéria, uma em quatro pessoas faz trabalhos voluntários semanalmen-
te, produzindo bens e serviços de caráter social, constituindo parte do
pessoal paramédico nos hospitais, auxiliando pessoas inválidas, idosos,
famílias desfavorecidas e outros setores com dificuldades. Também au-
mentou no mundo desenvolvido a participação empresarial no apoio à
ação social da sociedade civil. As contribuições e iniciativas empresa-
riais de solidariedade foram incrementadas e o crescimento de sua res-
ponsabilidade social passou a fazer parte cada vez maior da legitimidade
da própria empresa. A afirmação feita há anos por Milton Friedman, o
guru da Escola de Chicago, de que a única responsabilidade da empresa
privada é produzir utilidades para seus acionistas, tem sido refutada
constantemente por empresários proeminentes e é hoje rejeitada maci-
çamente pela opinião pública dos países desenvolvidos.
      Na América Latina, a situação tende a ser muito diferente. Existe
um imenso potencial de trabalho voluntário que caso fosse adequada-
mente convocado e se se criassem condições propícias, poderia cum-
38                                                    FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


prir papéis bastante significativos. Esforçadamente, setores da socie-
dade civil estão tentando mobilizá-lo e é constante o surgimento de
múltiplas iniciativas. Porém, tudo isso é, apesar das desconfianças e da
incredulidade que surgem do arrazoamento desvalorizador, que ali-
menta, por sua vez, erros grosseiros nas políticas. Não há, assim, entre
outros aspectos, apoios públicos firmes às iniciativas da sociedade ci-
vil de ação social e os incentivos fiscais são muito reduzidos. Além
disso, o movimento de responsabilidade social empresarial é fraco e as
contribuições muito reduzidas comparativamente. A proporção dos
lucros empresariais dedicados a fins de interesse público é muito me-
nor em relação à dos países avançados. É notável o trabalho que, mes-
mo com todas estas limitações, levam adiante numerosas organizações,
entre elas as de fé já mencionadas, para conseguir auxiliar nas dificul-
dades de sobrevivência de extensos setores da população.
      No fundo, o que o pensamento econômico convencional está fa-
zendo através de sua desvalorização das possibilidades da sociedade
civil é fechar a passagem para o próprio ingresso do conceito de capital
social. Diversas pesquisas de anos recentes, desde os primeiros estu-
dos de Putnam e Coleman, até os efetuados em diversas realidades na-
cionais de todo o planeta, revelam que há fatores cruciais para o desen-
volvimento que não tinham lugar no pensamento econômico ortodo-
xo, como os agrupados na idéia de “capital social”. São eles: o clima de
confiança entre as pessoas de uma sociedade e com respeito a suas
instituições e líderes, o grau de associatividade, ou seja, a capacidade
de criar esforços associativos de todo tipo e o nível de consciência cívi-
ca, a atitude quanto aos problemas coletivos, desde cuidar da limpeza
dos lugares públicos até pagar os impostos. Estudos do Banco Mundial
atribuem ao capital social e ao capital humano dois terços do cresci-
mento econômico dos países e diversas pesquisas dão conta dos signi-
ficativos impactos do capital social sobre a performance macroeco-
nômica, a produtividade microeconômica, a governabilidade democrá-
tica, a saúde pública e outras dimensões1.
      Desenvolver o capital social significa fortalecer a sociedade civil
através de políticas que melhorem a confiança, que, segundo dizem os
mesmos estudos, em sociedades polarizadas é muito fortemente erodida
pela desigualdade. Também implica propiciar o crescimento da

     1. Pode-se encontrar a apresentação de uma série de pesquisas recentes sobre o capital
social e seus impactos em: Kliksberg, B. El capital social e la cultura. Claves olvidadas del
desarrollo. Buenos Aires, Instituto de Integración Latinoamericana/Intal/BID, 2000.
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                                             39


associatividade e contribuir para fazer amadurecer a consciência cívica.
O arrazoamento econômico convencional tem estado amarrado a idéias
muito estreitas sobre os fatores que contam, que não consideram estes
elementos, ou que os relegam. Por trás da falácia da incredulidade sobre
a sociedade civil, encontra-se uma rejeição mais ampla da idéia de que
há outros capitais que se deve ter em conta, como o social. Um fechado
“reducionismo economicista” obstrui a passagem para ampliar a visão
do desenvolvimento com sua incorporação e para extrair as conseqüên-
cias conseguintes em termos de políticas de apoio ao fortalecimento e
potencialização das capacidades latentes na sociedade civil.


8. Oitava falácia: a participação sim, mas não!

      A participação da comunidade de forma cada vez mais ativa na
gestão dos assuntos públicos surge nesta época como uma exigência
crescente das grandes maiorias da sociedade na América Latina e ou-
tras regiões. Os avanços da democratização, produto de longas lutas
históricas dos povos, criaram condições de livre organização e expres-
são, que dispararam esta “sede” por participação. Por outro lado, existe
hoje uma convalidação mundial crescente da superioridade em termos
de efetividade da participação comunitária sobre as formas organizativas
tradicionais de corte vertical ou burocrático. No campo social, isso é
muito visível. Os programas sociais fazem melhor uso dos recursos,
conseguem ser bem-sucedidos no alcance de suas metas e criam auto-
sustentabilidade, se as comunidades pobres às quais se deseja favore-
cer participam desde o início e ao longo de todo o seu desenvolvimen-
to e compartilham do planejamento, da gestão, do controle e da avalia-
ção. Assinala a respeito Stern, o economista-chefe do Banco Mundial,
resumindo múltiplos estudos da instituição (2000): “Ao longo do mun-
do, a participação funciona: as escolas operam melhor se os pais parti-
cipam, os programas de irrigação são melhores se os camponeses parti-
cipam, o crédito trabalha melhor se os solicitantes participam. As re-
formas dos países são muito mais efetivas se forem geradas no país e
dirigidas pelo país. A participação é prática e poderosa”2.


     2. Apontam-se diversos dados e pesquisas sobre a superioridade gerencial da participação
em: Kliksberg, B. “Seis tesis no convencionales sobre participación en instituciones y desarrollo”.
Revista do Instituto Internacional de Gobernabilidad, n. 2, Barcelona, dez. 1998.
40                                                        FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


      Dois recentes trabalhos: Superando a pobreza humana, do PNUD
(2000), e The voices of the poor, do Banco Mundial (2000), baseado
numa gigantesca pesquisa com 60 mil pobres de 60 países, chegam a
similar conclusão em termos de políticas: é preciso dar prioridade para
investir e fortalecer as organizações dos próprios pobres. Eles carecem
de “voz e voto” real na sociedade. Fortalecer suas organizações lhes
permitirá participar de modo muito mais ativo e recuperar terreno em
ambas as dimensões. Propõe-se, entre outros aspectos: facilitar sua cons-
tituição, apoiá-las, dar possibilidades de capacitação a seus líderes, for-
talecer suas capacidades de gestão.
      Na América Latina, o discurso político tende cada vez mais a reco-
nhecer a participação. Seria claramente antipopular enfrentar a pres-
são pró-participação tão forte na sociedade, e com argumentos tão con-
tundentes a seu favor. Entretanto, os avanços reais quanto à imple-
mentação efetiva de programas com altos níveis de participação comu-
nitária são muito reduzidos. Continuam predominando os programas
“chave na mão” e impostos verticalmente, onde quem tem poder de
decisão ou os que desenham são aqueles que sabem e a comunidade
desfavorecida deve acatar suas diretivas e ser sujeito passivo deste.
Também são comuns os programas em que se fazem fortes apelos quan-
do se trata de programas participativos, quando na verdade há um mí-
nimo conteúdo real de intervenção da comunidade na tomada de deci-
sões. O discurso diz “sim” à participação na região, mas os fatos com
freqüência dizem “não”.
      Os custos desta falácia são muito fortes. Por um lado, está sendo
desperdiçada uma enorme energia latente nas comunidades pobres.
Ao serem mobilizadas, como ocorreu em experiências latino-america-
nas reconhecidas — como o caso de Villa El Salvador, no Peru, as esco-
las Educo, em El Salvador, ou o orçamento municipal participativo,
em Porto Alegre3 —, os resultados são surpreendentes. A comunidade
multiplica os recursos escassos, somando a eles incontáveis horas de
trabalho, e é geradora de contínuas iniciativas inovadoras. Além disso,
a presença da comunidade é um dos poucos meios que previne efetiva-


     3. O caso de Villa El Salvador é analisado com detalhes por Carlos Franco em seu trabalho “La
experiencia de Villa El Salvador: del arenal a un modelo social de avanzada”. In: Kliksberg, B.
Pobreza, un tema impostergable. Nuevas respuestas a nivel mundial. 4. ed. Buenos Aires/Caracas,
Fondo de Cultura Económica, 1997. Sobre o caso do orçamento municipal participativo em Porto
Alegre, ver o texto de Zander Navarro, “La democracia afirmativa y el desarrollo redistributivo: el
caso del presupuesto participativo em Porto Alegre, Brasil”. In: Jarquin, E. & Caldera, A. (comp.).
Programas sociales, pobreza y participación ciudadana. Washington, BID, 2000.
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                    41


mente contra a corrupção. O controle social da mesma sobre a gestão é
uma grande garantia a respeito que se perde ao impedir a participação.
Por outro lado, o divórcio entre o discurso e a realidade é claramente
percebido pelos pobres e eles se ressentem disso com descontentamen-
to e frustração. Limitam-se, assim, as possibilidades de programas em
que se ofereça a participação genuína, porque as comunidades estão
“escaldadas” pelas falsas promessas.
      O “sim”, mas “não” está baseado em resistências profundas a que
definitivamente as comunidades pobres participem, que se disfarcem
diante de sua ilegitimidade conceitual, política e ética. Chegou a hora
na região de colocá-las em foco e enfrentá-las.


9. Nona falácia: a esquivança ética

     A análise econômica convencional sobre os problemas da Améri-
ca Latina extrapola normalmente a discussão sobre as implicações éti-
cas dos diferentes cursos de ação possíveis. Pareceria tratar-se de um
tema técnico, mas de caráter neutro, em que apenas devem predomi-
nar arrazoamentos custo — benefício para resolvê-lo. A situação, po-
rém, é muito diferente. O tema tem a ver com a vida das pessoas e as
considerações éticas deveriam estar, por extensão, absolutamente pre-
sentes. Do contrário, estar-se-ia incorrendo no grande risco sobre o qual
previne um dos maiores filósofos da nossa época, Charles Taylor. Taylor
(1992) afirma que há uma declarada tendência a que a racionalidade
técnica, a discussão sobre os meios, substitua a discussão sobre os fins.
A tecnologia é um meio para alcançar fins, que, por sua vez, devem ser
objeto de outra ordem de discussão. Se a discussão sobre os fins desa-
parecer, como pode estar ocorrendo, previne Taylor, e a racionalidade
tecnológica predomina sobre a racionalidade ética, os resultados po-
dem ser muito regressivos para a sociedade. Na mesma direção assina-
lou recentemente outro destacado pensador, Vaclav Havel, presidente
da República Tcheca (2000): “é necessário reestruturar o sistema de
valores no qual nossa civilização descansa”, e advertiu que os países
ricos, por ele chamados de “euro-americanos”, devem examinar sua
consciência. Segundo ele, estes países impuseram as orientações atuais
da civilização global e são responsáveis por suas conseqüências.
     Estas vozes proeminentes sugerem um debate a fundo sobre os te-
mas éticos do desenvolvimento. O chamado tem raízes em realidades
intoleráveis. A ONU (2000) chama a atenção para a imprescindibilidade
42                                         FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL


de um debate desta ordem num mundo onde perecem diariamente 30
mil crianças por causas evitáveis, imputáveis à pobreza. Afirma que se
reage indignamente, e isso é correto, diante de um único caso de tortura,
mas se passa por alto diariamente ante essa aniquilação em grande esca-
la. O Fundo de População Mundial (2000) ressalta que morrem todo ano
500 mil mães durante a gravidez, mortes também em sua grande maioria
evitáveis e ligadas à falta de assistência médica. Noventa e nove por cen-
to delas ocorrem nos chamados países em desenvolvimento.
      Na América Latina, é imprescindível debater, entre outros temas:
o que acontece com as conseqüências éticas das políticas; qual é a
“eticidade” dos meios empregados, se é eticamente lícito sacrificar ge-
rações; por que os mais fracos, como as crianças e os idosos, são os
mais afetados pelas políticas aplicadas em muitos países; a destruição
de famílias está gerando a pobreza, e outras questões similares. É uma
região onde, como se tem visto, a maioria das crianças é pobre, onde
milhares de crianças vivem nas ruas, marginalizadas pela sociedade e
onde, enquanto a taxa de mortalidade de crianças menores de cinco
anos, em 1997, era no Canadá de 6.9 em cada 1000, atingia na Bolívia
82.8, no Equador 57.7, no Brasil 45.9 e no México 36.4 (Organização
Panamericana da Saúde, 2000). Na América Latina, 17% dos partos são
realizados sem qualquer tipo de assistência médica e com os conse-
qüentes resultados em termos de mortalidade materna, que é cinco vezes
maior em relação à dos países desenvolvidos; ressalte-se que possuem
cobertura apenas 25% das pessoas maiores de idade.
      Surgem de tudo isso problemas éticos básicos: o que é mais im-
portante? Como destinar recursos? Não deveriam ser reestudadas as
prioridades? Não há políticas que deveriam ser descartadas por seu
efeito “letal” em termos sociais?
      Ao denunciar-se a fraqueza da falácia que esquiva a discussão éti-
ca, ela toma com freqüência o rosto do “pragmatismo”. Argumenta-se
que é impossível discutir ética quando não há recursos. Entretanto,
mais do que nunca, quando os recursos são escassos deveria debater-
se a fundo sobre as prioridades. Nos países em que esse debate ocorre,
os resultados costumam ser muito diferentes em termos de prioridades
e de resultados sociais daqueles onde o assunto é evitado. Quanto mais
recursos existirem, melhor, e se deve fazer o possível para aumentá-
los, mas pode haver mais e continuar destinados sob os padrões de alta
desigualdade próprios da América Latina. A discussão sobre as priori-
dades finais é a única que garante um uso socialmente racional dos
recursos. A Comissão Latino-Americana e do Caribe, presidida por
DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ...                                   43


Patricio Aylwin (1995), realizou uma análise sistemática para a Cúpula
social mundial de Copenhague sobre que recursos faziam falta para
resolver as brechas sociais mais importantes da região. Concluo que
não são tão quantitativos como se supõe imaginariamente e que uma
parte importante deles pode ser obtida reordenando prioridades, forta-
lecendo um sistema fiscal progressivo e eficiente, e gerando pactos so-
ciais para aumentar os recursos para áreas críticas.
     Num artigo do jornal New York Times, o renomado filósofo Peter
Singer (1999) sustenta que não é possível que os estratos prósperos das
sociedades ricas se livrem do peso de consciência que significa a con-
vivência com realidades maciças de abjeta pobreza e sofrimento no
mundo, e que devem encarar de frente sua situação moral. Sua suges-
tão é totalmente extensiva aos estratos similares da América Latina.


10. Décima falácia: não há outra alternativa

     Uma argumentação preferida no discurso econômico ortodoxo é a
alegação de que as medidas que se adotam são as únicas possíveis, que
não haveria outro curso de ação alternativo. Portanto, os graves proble-
mas sociais que criam são inevitáveis. A longa experiência do século
XX é plena em fracassos históricos de modelos de pensamento que se
auto-apresentaram como o “pensamento único”. Parece demasiadamen-
te complexo o desenvolvimento, para que se acredite que só existe um
único caminho. Por outro lado, em diferentes regiões do globo os fatos
não favoreceram o “pensamento único”. Resumindo a situação, afirma
William Pfaff (International Herald Tribune, 2000): “O consenso inte-
lectual sobre as políticas econômicas globais foi rompido”. Na mesma
direção, refletindo a necessidade de buscar novas vias, opina Felix
Rohatyn (Financial Times, 2000), atual embaixador dos Estados Uni-
dos na França: “Para sustentar os benefícios (do atual sistema econô-
mico) nos Estados Unidos e globalmente, temos de transformar os
perdedores em ganhadores. Se não o fizermos, provavelmente todos nós
nos transformaremos também em perdedores”. Amartya Sen (2000), por
sua vez, destaca: “Tem havido demonstrações recentes não só frente às
reuniões financeiras internacionais, mas também na forma de protestos
menos organizados, mas intensos em diferentes capitais, desde Jacarta e
Bangcoc até Abidjã e México. As dúvidas acerca das relações econômi-
cas globais continuam vindo de diferentes confins do planeta e há sufi-
ciente razão para ver estas dúvidas sobre a globalização como um fenô-
meno global; são dúvidas globais, não uma oposição localizada”.
Falacias e mitos do desenvolvimento social
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Falacias e mitos do desenvolvimento social

  • 1. Bernardo Kliksberg FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL Tradução: Sandra Trabucco Valenzuela
  • 2. FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL Bernardo Kliksberg Capa: Edson Fogaça Preparação de originais: Carmen Tereza da Costa Revisão: Maria de Lourdes de Almeida Composição: Dany Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales ISBN: 85-249-0823-8 Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do autor e do editor. © by Autor Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 — Perdizes 05009-000 — São Paulo-SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 e-mail: cortez@cortezeditora.com.br www.cortezeditora.com.br Impresso no Brasil — novembro de 2001
  • 3. SUMÁRIO Prólogo de Jorge Werthein (Unesco) .................................................. 7 Introdução ......................................................................................... 9 CAPÍTULO 1 Dez falácias sobre os problemas sociais da América Latina ........... 13 CAPÍTULO 2 Confrontando as realidades da América Latina: pobreza, desigualdade e deterioração da família............................................ 47 CAPÍTULO 3 Como reformar o Estado para enfrentar os desafios sociais do século XXI? ....................................................................................... 69 CAPÍTULO 4 Capital social e cultura. Chaves esquecidas do desenvolvimento . 105 CAPÍTULO 5 Ética e economia. A relação esquecida ............................................ 149 CAPÍTULO 6 O crescimento da criminalidade na América Latina: um tema urgente ............................................................................................... 157 Bibliografia ........................................................................................ 167
  • 4. FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL 7 PRÓLOGO Este é o quarto livro de Bernardo Kliksberg que a UNESCO edita no Brasil, o que permite conferir-lhe crescente credibilidade e respei- to. De fato, seus estudos, reflexões e propostas sobre políticas de de- senvolvimento social em geral e, de forma mais específica, sobre a situa- ção social da América Latina têm despertado o mais vivo interesse do público e dos especialistas e estudiosos na área de políticas públicas. Esse êxito crescente se deve em grande parte à visão prospectiva de suas idéias e à solidez de suas teses que se apóiam em bases teóricas de qualidade inquestionável, em farta documentação e evidências re- colhidas de inúmeras experiências em curso. Não apenas isso. Os estu- dos de Kliksberg têm a vantagem de indicar caminhos e explorar possi- bilidades e alternativas com vistas à redução dos índices de pobreza na América Latina. Neste livro estão inseridos seis estudos recentes de Bernardo Kliksberg – Dez Falácias sobre os Problemas Sociais da América Latina; Confrontando as Realidades da América Latina: pobreza, desigualdade e deterioração da família; Crescimento da Criminalidade na América Latina; Capital Social e Cultura; Ética e Economia e Como Reformar o Estado para Enfrentar os Desafios Sociais do Século XXI. Em todos eles, sobressai o ethos da redução da pobreza que constitui um dos princi- pais eixos norteadores da obra de Kliksberg. Daí a sua insistência em desfazer mitos e equívocos e de alertar sobre as conseqüências de abor- dagens ortodoxas do pensamento econômico. No primeiro estudo, sobre as falácias do desenvolvimento, Kliks- berg, com rara clareza, desfaz mitos e equívocos da ortodoxia econômi- ca, contrapondo argumentos e indicando alternativas; no segundo, apon-
  • 5. 8 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL ta as conseqüências do modelo vigente no processo de deterioração da família; em seguida, chama a atenção para o crescimento da criminali- dade e da violência, mostrando a coincidência entre a evolução dos índices de violência e a deterioração dos dados sociais básicos, em que pese outros fatores que devem também ser considerados; no quarto estudo, discute a importância do capital social e cultural das comuni- dades como condição imprescindível para o sucesso de projetos de desenvolvimento; no artigo seguinte, examina as relações entre ética e economia, alertando como o problema da ética e da moral tem sido negligenciado no planejamento das políticas econômicas da América Latina; e no último, procura repensar o papel do Estado, de forma a prepará-lo para enfrentar os desafios mais urgentes do desenvolvimen- to social e econômico. São seis estudos indispensáveis para a redefinição das políticas sociais públicas na América Latina. Se esta redefinição não se operar nos próximos anos, seguramente a incerteza em relação ao futuro se ampliará e colocará em risco aspirações e ideais de grande legitimida- de popular. Como diz Kliksberg no início do artigo sobre as falácias do desen- volvimento, “é hora de ouvir as pessoas”. Não se pode mais pensar em políticas públicas sem considerar a dimensão subjetiva, sem a cons- ciência de que todos devem e podem participar, pois a essência de uma política de desenvolvimento é a melhoria da qualidade de vida. Jorge Werthein Diretor da UNESCO no Brasil
  • 6. INTRODUÇÃO 9 INTRODUÇÃO As cifras obrigam a refletir. Aproximadamente um de cada dois la- tino-americanos está abaixo da linha de pobreza. A situação das crian- ças é ainda pior: seis de cada dez são pobres. Os jovens se encontram numa situação difícil. A taxa de desemprego juvenil duplica a elevada taxa de desemprego geral, superando em muitos países os 20%. Apenas um de cada três jovens cursa o ensino médio (contra quatro de cada cinco no sudeste asiático). Formou-se um vastíssimo contingente de jo- vens que tiveram de abandonar seus estudos mas que também não têm lugar no mercado de trabalho. Os problemas de saúde são delicados. Um terço da população da região carece de água potável, condição preventi- va básica. Também há sérios déficits quanto aos sistemas de esgoto. Cer- ca de 18% dos partos são realizados sem assistência médica de qualquer tipo. A taxa de mortalidade materna é cinco vezes a dos países desenvol- vidos. Sob o embate da pobreza, as famílias entram em crise e muitas vezes se desarticulam. A criminalidade cresce fortemente. É quase seis vezes o que se considera internacionalmente uma criminalidade mo- derada. Surge intensamente ligada a fatores como o aumento do de- semprego juvenil, à baixa educação, e à deterioração da família. A tudo isso soma-se a expansão rápida de um novo tipo de pobreza, amplos setores das classes médias sofreram uma queda socioeconômica pro- nunciada e constituem os chamados “novos pobres”. Assim, entre ou- tros casos, na Argentina, que contava com uma grande classe média, estima-se que sete milhões de pessoas dos estratos médios se transfor- maram em pobres na década de 90 (por 38 milhões de habitantes), e processos similares se observam em muitos outros países. Estes dados significam sofrimento humano em grandes propor- ções. O documento base da Reunião de Bispos Católicos de todo o Con-
  • 7. 10 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL tinente (XXVIII Assembléia do CELAM, maio de 2001) ressalta “a cres- cente pauperização que está se abatendo sobre a maioria da população em todos os povos em que nós vivemos”. Destaca entre suas causas “os efeitos da globalização econômica descontrolada e o crescente endividamento externo e interno, com cargas que em vários países su- peram atualmente um terço de seu Produto Interno Bruto. O que está acontecendo? Por que não se cumpriram os prognósti- cos feitos no início dos anos 80, que afirmavam que, seguindo certas políticas, os resultados econômicos e sociais estavam assegurados? O que fracassou? Por que um Continente com recursos naturais privile- giados, com fontes de energia baratas e acessíveis em grande quantida- de, com grandes capacidades de produção agropecuária, com uma óti- ma localização geoeconômica, e que tinha um bom desenvolvimento educativo há décadas atrás, tem indicadores sociais tão pobres? Por que, ainda, uma dimensão que todas as análises coincidem em assina- lar como grande entrave para o progresso da região, seus altos níveis de desigualdade, em vez de melhorar, piorou, constituindo-se a América Latina na zona mais polarizada do planeta? O pensamento convencional parece ter esgotado sua possibilida- de de dar respostas a interrogações como as indicadas. Faz-se necessá- rio recuperar o que foi uma das maiores tradições deste Continente, a capacidade de pensar de forma criativa e por conta própria, aprenden- do da realidade e buscando caminhos novos. Esta obra tenta estimular e contribuir para uma discussão desse tipo. Se sairmos dos âmbitos de análise estáticos, que estão gerando permanentemente políticas que “são mais do mesmo”, e que, por ex- tensão, não resolvem os problemas, é possível que surjam vias renova- doras. O livro apresentado percorre cinco momentos de análise diferen- ciados. No primeiro, colocam-se em foco dez falácias que hoje impe- dem um pensamento independente criativo em matéria de desenvolvi- mento na América Latina e têm sérias conseqüências sobre as políticas públicas. No segundo, examina-se um plano da difícil situação da po- pulação: os impactos que a pobreza está tendo sobre a família. No ter- ceiro e no quarto, examinam-se as possibilidades de respostas inova- doras nos dois campos: a reforma do Estado e das políticas sociais, bem como o papel que pode desempenhar a sociedade civil, se mobilizar o grande capital social latente na região, e se potencializar sua cultura. Finalmente, o último momento está dedicado à necessidade de tornar a
  • 8. INTRODUÇÃO 11 refletir sobre os vínculos entre ética e economia, que foram marginali- zados nas últimas décadas. Trata-se, através destas abordagens, de mostrar a necessidade de incorporar novas dimensões ao debate sobre o desenvolvimento para melhorar sua qualidade e poder fazer emergir políticas muito mais efe- tivas em termos da meta final de sociedades democráticas: a dignidade e desenvolvimento de seus povos. Os erros cometidos em termos de âmbitos conceituais desmenti- dos pela realidade, políticas baseadas neles que demonstraram ser in- competentes para o bem-estar humano e para o crescimento econômi- co sustentado, e um dogmatismo agudo que impediu o arrazoamento autocrítico tiveram custos muito fortes para a população. É hora de repensar coletivamente o desenvolvimento, de forma aberta, sem falá- cias, mitos nem tabus. Isso é uma exigência que dia a dia, nas ruas, dos múltiplos rostos da dura pobreza latino-americana: as crianças de rua, as crianças que trabalham, as mães humildes que ficaram sozinhas à frente do lar, os jovens sem oportunidades de trabalho, os indígenas e populações afro-americanas discriminadas, os deficientes semi-aban- donados, os idosos desprotegidos. Ouçamos seu clamor e vamos ten- tar, todos juntos, o quanto antes, devolver-lhes a esperança. Bernardo Kliksberg
  • 9. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 13 Capítulo 1 DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS SOCIAIS DA AMÉRICA LATINA Hora de ouvir as pessoas O que os latino-americanos pensam sobre o que está acontecendo na região? Ao serem questionados sobre algo tão concreto como se eles acreditavam estar vivendo melhor ou pior que seus pais, apenas 17% afirmaram que viviam melhor, pois a grande maioria sentia que sua situação havia piorado (Latín Barómetro, 1999). Esta resposta eviden- cia um profundo sentimento de descontentamento. A maioria tem muito claro no continente quais são as causas de sua inconformidade. Encon- tram-se bem conscientes delas. E distinguem perfeitamente causas apa- rentes de outras mais profundas. Ao serem interrogados sobre se crêem que a democracia é preferível a qualquer outro sistema de governo, demonstram um apoio maciço ao sistema democrático e a seus ideais. Dois terços preferem-no, e apenas 20% continuam exibindo inclina- ções ao autoritarismo. No entanto, quando se aprofunda, expressam que estão fortemente insatisfeitos com o modo como a democracia está funcionando em seus países. Somente 35% estão satisfeitos com seu funcionamento. Na União Européia, apenas para efeito de compara- ção, a cifra é de 47%, na Dinamarca é de 84%. Os latino-americanos escolheram a democracia como forma de vida e a respaldam de forma consistente, porém “democraticamente” estão bastante descontentes com seu desempenho concreto.
  • 10. 14 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL Entre as causas de insatisfação, algumas são políticas, mas as eco- nômico-sociais têm um peso decisivo. A grande maioria considera que os problemas vinculados com a pobreza vêm piorando. Referem-se a carências em oportunidades de trabalho, acesso à saúde, à educação de boa qualidade, incerteza trabalhista, baixos salários. Acrescentam a isso temas como o agravamento da corrupção, a delinqüência e o tráfico de drogas. Além disso, revelam que sentem ser esta uma região onde há grandes desigualdades e se ressentem agudamente dessa situação. Os dois únicos países cujas médias de satisfação com o desempe- nho do sistema democrático revelam-se maiores que as da União Euro- péia são Costa Rica e Uruguai, onde mais de 60% da população mostra- se satisfeita com seu funcionamento. Ambos os países se caracterizam por possuir os mais baixos níveis de desigualdade de toda a região e por terem desenvolvido alguns dos mais avançados sistemas de prote- ção social da mesma. As pesquisas refletem que a população está clamando por mudan- ças, através da democracia e não por outro meio, que permitam enfren- tar os agudos problemas sociais. Os avanços nesse caminho parecem encontrar obstáculos formi- dáveis na região, a julgar-se pelos limitados resultados alcançados. Alguns têm a ver com a existência de fortes interesses criados e de privilégios que se beneficiam da manutenção da situação vigente. Ou- tros, com dificuldades derivadas da inserção econômica da região na nova economia internacional. Outros, ainda, com o funcionamento defeituoso de instituições e organizações básicas. A estes e aos demais que podem ser acrescentados, soma-se a circulação profusa de certas falácias sobre os problemas sociais que levam à adoção de políticas errôneas e a empreender caminhos que afastam a saída do longo túnel ao qual se submete boa parte da população. Não são o único fator de atraso, mas claramente seu peso muito forte em setores com muita in- fluência na tomada de decisões obstrui seriamente a busca de alterna- tivas renovadoras e a passagem para uma nova geração de políticas econômicas e sociais. O objetivo deste trabalho é chamar a atenção sobre estas falácias, para estimular a discussão ampla e aberta sobre as mesmas, visando a sua superação. Apresentamos a seguir algumas das principais, ao mesmo tempo que procedemos à análise de alguns de seus efeitos no desenho de políticas e examinamos sua consistência. Trata-se, sobretudo, de buscar colocá-las em foco e convidar à uma reflexão coletiva sobre elas.
  • 11. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 15 1. Primeira falácia: a negação ou a minimização da pobreza Existe uma intensa discussão metodológica sobre como medir a pobreza na região. Entretanto, apesar dos resultados diversos que sur- gem de diferentes medições, os estudos tendem a coincidir em dois as- pectos centrais: a) as cifras de população localizada sob a linha de po- breza são muito elevadas; b) há uma tendência consistente ao cresci- mento das referidas cifras nos últimos vinte anos. As cifras se deteriora- ram severamente nos anos 1980, melhoraram discretamente em parte dos ano 1990, porém nos anos finais da década aumentaram significa- tivamente. Em seu conjunto, a pobreza é maior no ano 2000 do que a que a região apresentava em 1980, tanto em termos de número de pobres, como no percentual que representam os pobres sobre a população total. A Cepal estima, em seu Panorama Social de América Latina 2000, que a população em situação de pobreza cresceu, de 1997 até início de 2000, de 204 milhões a não menos de 220 milhões. Analisando a estru- tura da força de trabalho em oito países da região que compreendem 75% de sua população total (Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, México, Panamá e Venezuela), a Cepal constata que 75% da população que possui ocupação “recebe uma renda média que na maio- ria dos países não é suficiente por si só para tirar da pobreza uma famí- lia de tamanho e composição típica”. A evolução da pobreza na América Latina foi a seguinte, confor- me cita o BID (1998): Gráfico 1 Evolução da pobreza na América Latina 1970-1995 160 150 140 Milhões de pessoas 130 120 110 100 90 80 70 1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 Fonte: BID, Informe de progresso econômico e social, 1998. Nota: Linha de pobreza de 2 (ppp ajustado) em dólares de 1985 per capita.
  • 12. 16 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL Como se pode observar, a partir dos anos 1980 se produz uma firme elevação do número de pessoas que ganham menos de dois dóla- res diários. Verrier (1999) assinala que em toda a América havia, entre 1970 e 1980, 50 milhões de pobres e indigentes, mas que em 1998 já eram 192 milhões. A Comissão Latino-Americana e do Caribe para o Desenvolvimento Social, presidida por Patricio Aylwin (1995), consi- dera que se encontra em situação de pobreza “quase a metade dos habi- tantes da América Latina e do Caribe”. Diversas medições nacionais assinalam com as diferenças próprias de cada realidade a extensão e a profundidade da pobreza. Um informe detalhado sobre a América Central (PNUD/União Européia, 1999) indi- ca que são pobres: 65% dos guatemaltecos, 73% dos hondurenhos, 68% dos nicaragüenses e 53% dos salvadorenhos. As cifras relativas à po- pulação indígena são ainda piores. Na Guatemala, estão abaixo da li- nha de pobreza 86% da população indígena frente a 54% dos não-indí- genas. Na Venezuela, estimava-se a pobreza entre 70% e 80% da popu- lação. No Equador, 62,5%. No Brasil, estima-se que 43,5% da popula- ção ganha menos de dois dólares diários e que 40 milhões de pessoas vivem na pobreza absoluta. Ainda em países onde tradicionalmente as cifras de pobreza têm sido baixas, como na Argentina, o Banco Mun- dial estimou que encontra-se na pobreza quase um terço da população e 45% das crianças. Nas províncias mais pobres como as do nordeste, a taxa é de 48,8%. Um dos tantos indicadores do grau de “rigidez” da pobreza latino- americana é proporcionado pelas projeções sobre níveis de educação e renda. A Cepal (2000), baseando-se base nelas, afirma que “dez anos de escolaridade parecem constituir o umbral mínimo para que a educação possa cumprir um papel significativo na redução da pobreza; com um nível educativo inferior a dez anos de escolaridade e sem ativos produ- tivos, são muito poucas as probabilidades de superar os níveis inferio- res de renda ocupacional”. A média de escolaridade na região é estima- da em 5,2 anos, virtualmente a metade do mínimo necessário para se ter condições de emergir da pobreza. Diante dessas realidades, a alternativa lógica é partir delas e tratar de encontrar vias inovadoras para enfrentá-las. Entretanto, no discurso público latino-americano das duas últimas décadas, reiterou-se a ten- dência de alguns setores a optar por outra via, a negação ou minimização do problema. A falácia funciona através de diversos canais. Um deles é a relativização da situação. “Pobres há em todos os lugares”, costuma
  • 13. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 17 afirmar um mandatário de um país latino-americano frente ao cresci- mento das cifras de pobreza em seu país durante sua gestão governa- mental. Em relação ao aspecto econômico-social, o conveniente é sem- pre desagregar os dados e ter uma perspectiva comparada e histórica para saber qual é a situação real. Os países desenvolvidos têm efetiva- mente também percentuais de população situados abaixo da linha de pobreza. Porém, há várias diferenças. Por um lado, as cifras diferem de modo bastante acentuado. A população pobre nesses países é normal- mente inferior a 15%. É muito diferente possuir entre um sexto e um sétimo da população em situação de pobreza e ter quase a metade nes- se estado. Não é apenas uma diferença quantitativa, é outra escala que implica consideráveis diferenças qualitativas. Nos países desenvolvi- dos fala-se de “ilhas de pobreza”, ou de “focos de pobreza”. Em vastas áreas da América Latina é muito difícil refletir a realidade com essa linguagem. A pobreza é extensa, diversificada, e tem atualmente inclu- sive uma forte expressão nas classes médias, em que a deterioração de suas bases econômicas gerou um estrato social em crescimento deno- minado “os novos pobres”. Não há “focos de pobreza” a erradicar, mas um problema muito mais amplo e generalizado que requer estratégias globais. Por outro lado, a comparação estrita poderia levar a identificar que a brecha é ainda muito maior. As linhas de pobreza utilizadas nos países desenvolvidos são muito mais altas que as empregadas normal- mente na América Latina. Assim, a difundida tendência a medir a po- breza considerando pobres aqueles que ganham menos de dois dólares por dia é bem questionável. Em todos os países da região, a linha de pobreza está muito acima dessa cifra. Outra passagem usual do discurso negador é a afirmação de “que pobres existiram sempre”, portanto não se entende por que tanta ênfa- se em relação à situação atual. Ali a falácia adquire o tom da histo- ricidade. Um dos arrazoamentos mais utilizados quando se trata de relativizar um problema grave é tirar-lhe a base histórica. A pobreza existiu na América Latina desde a sua origem, mas o tema é: quais são as tendências presentes? Em que direção apontam, estão diminuindo, estancando ou aumentando? Nos últimos vinte anos parecem haver suficientes evidências para preocupar-se. Os indicadores experimen- taram uma deterioração; com altos e baixos e variações nacional, as cifras cresceram. São muito poucos os casos em que houve reduções consideráveis.
  • 14. 18 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL A falácia de desconhecer ou relativizar a pobreza não é inócua. Tem severas conseqüências em termos de políticas públicas. Se há pobres em todos os lugares, e sempre existiram, por que dar ao tema tão alta prioridade? Há que atenuar os impactos, mas não assustar-se. Basta com políticas de contenção de rotina. A política social não é a mais importante. É uma carga da qual não é possível desprender-se, mas como se trata de enfrentar um problema que sempre existirá e todos os países o têm, é preciso cuidado com superestimá-lo. O enfoque conduz a políticas sociais de muito baixo perfil e a uma desierarquização de toda a área social. Em algumas das expressões mais extremas da falácia, procurou-se na década passada eliminar das agendas de reu- niões importantes a “pobreza”, vendo-a, já em si, como demasiadamente carregada de conotações. Além de conduzir a políticas absolutamente incapazes de enfren- tar as realidades de pobreza, a falácia exposta entranha um importante problema ético. Não só não oferece soluções aos pobres, o que leva à perduração e acentuação de situações de exclusão humana antiéticas, que vai ainda mais longe, através da minimização e relativização, está questionando a própria existência do pobre. 2. Segunda falácia: a falácia da paciência Com freqüência, o arrazoamento explícito ou implícito que se de- senvolve diante dos problemas sociais por parte de setores influentes gira em torno da necessidade de uma certa “paciência histórica”. Trata- se de etapas que devem suceder-se umas às outras. Haverá uma etapa de “apertar os cintos”, mas logo virá a reativação e, posteriormente, ela se “derramará” aos desfavorecidos e os retirará da pobreza. O social deve esperar, e é preciso entender o processo e ter paciência enquanto as etapas ocorrem. Independentemente do amplo questionamento que há hoje, sobretudo esta visão do processo de desenvolvimento, quere- mos enfatizar aqui um de seus elementos. A mensagem que está sendo enviada é de fato que a pobreza pode esperar. Realmente pode esperar? A realidade indica que a mensagem tem uma falha de fundo; em mui- tos casos, os danos causados pela espera são simplesmente irreversíveis, depois não haverá conserto possível. Vejamos: uma boa parte do peso da pobreza recai na América La- tina sobre as crianças e adolescentes. Em 1997, segundo a Cepal (2000), 58% das crianças menores de cinco anos da região eram pobres, o mes-
  • 15. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 19 mo acontecia com 57% das crianças de seis a doze anos, e com 47% dos adolescentes de 13 a 19 anos. Formando os menores de vinte anos, em seu conjunto, 44% da população da região, representavam, por sua vez, 54% de todos os pobres. As cifras verificam que efetivamente, como foi sublinhado pelo Unicef, “na América Latina a maioria dos pobres são crianças e a maioria das crianças são pobres”. Essa não é uma situação neutra. Como destaca Peter Tonwsed, “a pobreza mata”. Cria fatores de risco que reduzem a expectativa de vida e pioram sensivelmente a qualidade de vida. As crianças são os pobres da América Latina, como se viu, e ao mesmo tempo, por natureza, as mais vulneráveis. Sobre essas crianças pobres operam vários fatores que são geradores, entre outros aspectos, do que se denomina “um alto risco alimentar”, insuficiências no mais elementar a possibilidade de que possam alimentar-se normalmente. Os resultados de déficits desta ordem causam danos múltiplos. Estima-se que nos primeiros anos de vida se desenvolvem boa parte das capacidades cerebrais. A falta de uma nutrição adequada gera danos de caráter irreversível. Pesquisas do Unicef (1995) sobre uma amostragem de crianças pobres determi- naram que, aos cinco anos, metade das crianças dessa amostra apre- sentava atrasos no desenvolvimento da linguagem; 30%, atrasos em sua evolução visual e motora, e 40%, dificuldades em seu desenvolvi- mento geral. A desnutrição causa ainda déficits no peso e estatura das crianças e isso repercutirá acentuadamente em seu desenvolvimento. Entre os fatores geradores de risco alimentar encontram-se: a falta de recursos da família, o caráter monoparental da mesma e a baixa educa- ção das mães. Existe uma forte correlação estatística entre estes fatores e a des- nutrição infantil. Na América Latina atual, os três fatores têm significa- tiva incidência. Como indicamos, numerosas famílias possuem renda inferior ao imprescindível. Estima-se que cerca de 30% dos lares estão sob a responsabilidade apenas da mãe; em sua grande maioria trata-se de lares humildes e o nível educativo das mães pobres é muito baixo. A pobreza do lar pode significar que muitas mães estarão, por sua vez, desnutridas durante a gravidez. É provável então que o filho tenha ane- mia, déficits de macronutrientes essenciais e peso baixo. Isso pode ameaçar sua própria sobrevivência ou atentar contra seu desenvolvi- mento futuro. Se, além disso, a mãe está sozinha à frente da família, terá de lutar duramente para obter renda. Suas possibilidades de dedi- cação à criança nas críticas etapas iniciais serão limitadas. O fator edu-
  • 16. 20 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL cativo influirá ainda em aspectos muito concretos. Assim, as mães com baixa escolaridade terão pouca informação sobre como atuar apropria- damente com respeito ao aleitamento materno, como fazer uma dieta adequada, como cuidar da higiene alimentar, como administrar ali- mentos escassos. Em 1999, em dez de dezesseis países da região, 40% a 50% das crianças urbanas em idade pré-escolar faziam parte de lares cujas mães não tinham completado o ensino fundamental (primário). Nas zonas rurais, em seis de dez países analisados, o percentual era de 65% a 85%; nos quatro restantes, 30% a 40%. Ao verificar apenas as crianças menores de dois anos de idade, em 1997, de 20% a 50% das crianças da grande maioria dos países viviam em lares com renda por morador inferior a 75% do valor da linha de pobreza e cuja mãe não tinha completado o ensino fundamental (primário). A ação combinada destes e outros fatores leva ao sombrio panora- ma captado pela Cepal (2000): “No ano 2000 estima-se que aproximada- mente 36% do total de crianças menores de dois anos da América Latina estão em situação de alto risco alimentar”. Os quadros nacionais são alarmantes em diversos países. Na Nicarágua, estimativas do Ministério da Saúde (1999) indicam que 59% das famílias cobrem menos de 70% das necessidades de ferro requeridas pelo ser humano, 28% das crianças com menos de cinco anos sofrem de anemia devido ao pouco ferro que consomem, 66 crianças em cada cem apresentam problemas de saúde por falta de vitamina A. 80% da população nicaragüense consome ape- nas 1700 calorias diárias, quando a dieta normal deveria ser não inferior a 2125 calorias. Na Venezuela, uma criança de sete anos dos estratos altos pesa em média 24,3 kg e mede 1,219 m. Uma criança da mesma idade dos setores pobres pesa somente 20 kg e mede 1,148 m. Embora em países com tanto potencial alimentar, como é o caso da Argentina, as estatísticas informam que na grande Buenos Aires, uma das principais áreas populacionais, uma em cada cinco criança está desnutrida. Muitos dos países da região possuem importantes possibilidades naturais de produção de alimentos. Contudo, como vimos, um terço das crianças menores apresenta níveis de deficiência alimentar pro- nunciada. Isso parece difícil de se entender. Influenciam fatores como os identificados pela Organização Pan-americana da Saúde (OPS) e pela Cepal em pesquisa conjunta (1998): “Observa-se em quase todos os países da região um crescimento de doenças não transmissíveis crôni- cas associadas com alimentação e nutrição. As medidas de ajuste implementadas pelos países afetaram a disponibilidade nacional de
  • 17. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 21 alimentos e tiveram repercussões negativas sobre o poder de compra dos grupos mais pobres ameaçando a segurança alimentar”. Assim como a falta de alimentação causa danos não-reparáveis posteriormente, o mesmo ocorre com outras expressões da pobreza, como os déficits que enfrentam os desfavorecidos na região em dois aspectos básicos: a água potável e a existência de rede de saneamento e sistema de esgoto. Ambos são elementos decisivos para a saúde. Amplos seto- res da população pobre têm dificuldades muito grandes para obter água potável ou têm de comprá-la a preços muito elevados. Ainda carecem de instalações sanitárias adequadas, o que significará graves riscos de contaminação através das galerias subterrâneas e de contaminação do meio ambiente em que se localiza a moradia. Segundo os cálculos da OPS, cerca de um terço da população da região carece de água potável e/ou rede de esgoto; 30% das crianças menores de seis anos vivem em moradias sem acesso à água potável; 40% das moradias não possuem sistemas adequados de coleta de lixo e esgoto. Numa análise por paí- ses, observam-se dados como os que seguem, que descrevem as per- centagens de crianças menores de cinco anos de idade que viviam em residências sem conexão com sistemas de evacuação de esgoto em 1998 (Cepal, 2000): Paraguai, 87%; Bolívia, 66%; Brasil, 59%; Honduras, 47%; El Salvador, 45%; Venezuela, 26%; México, 24%. A ação desses fatores gera mortalidade infantil e riscos graves de saúde, como os contágios e infecções intestinais. Em onze países, a diarréia é uma das duas princi- pais causas de morte em crianças com menos de um ano. Novamente trata-se de danos de caráter irreparável. A falácia da paciência, com respeito à pobreza, nega de fato a análise da irreversibilidade dos danos; leva a políticas em que, sob a idéia de que as coisas se consertam depois, não se dá a prioridade que corresponderia a questões elementares para a sobrevivência. Novamente, além das ine- ficiências que significam essas políticas em qualquer visão a longo pra- zo de uma sociedade, há uma falta de ética fundamental. Frente à po- breza, deveria aplicar-se uma “ética da urgência”; não é possível espe- rar diante de problemas tão vitais como os descritos. Esta falácia des- conhece o caráter de urgência desta e de outras carências básicas. 3. Terceira falácia: com o crescimento econômico é suficiente O pensamento econômico ortodoxo de grande difusão na região lança a mensagem básica de que todos os esforços devem ser voltados
  • 18. 22 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL para o crescimento. Dirige os olhares aos prognósticos sobre o aumen- to do produto bruto e o produto bruto per capita. Desperta as expectativas de que tudo está bem se eles crescerem num bom ritmo. Propõe explicitamente, como se mencionou, que al- cançando as metas importantes de crescimento, todo o restante se re- solve. O mesmo fluirá para baixo, através do famoso efeito “derrame”, e isso solucionará os “restos” que possam existir no campo social. O século XX ensinou muito duramente mais de uma vez que o último juiz que decidirá se as teorias sobre o desenvolvimento são vá- lidas ou não, não é seu grau de difusão, mas o que conta são os fatos. Eles desmentiram fortemente que a realidade funcione como a ortodo- xia supõe que deveria funcionar. As promessas feitas para a América Latina, no início dos anos 1980, sobre o que ocorreria ao aplicar o mo- delo convencional não foram cumpridas na prática. Descrevendo os produtos concretos do que se chama a “forma de fazer economia”, que a “América Latina escolheu nos anos recentes”, assinala Ricardo French Davis (2000): “O resultado é uma forte instabilidade do emprego e da produção, uma maior diferenciação entre ricos e pobres e um cresci- mento médio modesto: apenas 3% neste decênio, e com uma profunda desigualdade”. Efetivamente, os dados indicam que o crescimento foi muito discreto, não se “derramou” automaticamente, a desigualdade aumentou de modo significativo, a pobreza não se reduziu. Diante deste juízo da realidade, não caberia rever o arrazoamento usual? Joseph Stiglitz (1998) sugere que chegou a hora de fazê-lo. Refe- re-se à visão geral, de cujos componentes essenciais um é a idéia de que o crescimento basta. Argumenta: “Muitos países aplicaram as re- comendações intelectualmente claras, embora não raro difíceis no as- pecto político, do Consenso de Washington. Os resultados não têm sido, porém, totalmente satisfatórios. Isto apresenta várias explicações. Será porque alguns não seguiram corretamente as receitas econômicas? Tal- vez. Entretanto, eu argumentaria que a experiência latino-americana sugere que deveríamos reexaminar, refazer e ampliar os conhecimen- tos acerca da economia de desenvolvimento que são tomados como verdade enquanto planejamos a próxima série de reformas”. A experiência da América Latina e de outras regiões do globo in- dica que o crescimento econômico é imprescindível; é muito impor- tante tratar de aumentar o produto total de uma sociedade. São funda- mentais ainda o desenvolvimento das capacidades tecnológicas, da competitividade e um clima de estabilidade econômica. No entanto,
  • 19. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 23 ensina também que é simplificar extremamente o tema do desenvolvi- mento e de suas dimensões sociais aventurar que o crescimento econô- mico sozinho produzirá os resultados necessários. O informe do Banco Mundial sobre a pobreza no ano 2000, que expressa a política oficial dessa instituição, propõe a necessidade de passar de uma vez a uma visão mais ampla da problemática do desenvolvimento. Comentando seu enfoque diferencial, aponta um influente meio, o jornal Washing- ton Post (2000): “A publicação do Informe Mundial de Desenvolvimen- to do Banco Mundial representa um significativo dissenso do consenso sustentado entre economistas de que o melhor meio para aliviar a po- breza é impulsionar o crescimento econômico e que a única via para fazê-lo é através de mercados livres e abertos. O Informe destaca que mesmo uma década após as economias planejadas da Europa Oriental terem sido desmanteladas e o comércio e investimento global terem alcançado níveis recordes, 24% da população mundial recebe renda inferior a um dólar diário. A conclusão ineludível, de acordo com os economistas e especialistas em desenvolvimento do Banco, é que en- quanto o crescimento econômico possa ser um ingrediente necessário para reduzir a pobreza, não poderá fazê-lo sozinho”. Outro informe posterior do Banco Mundial, A qualidade do cresci- mento (2000), produzido por outras equipes do mesmo, propõe tam- bém vigorosamente o mesmo tipo de argumento básico. Afirma Vinod Thomas, diretor do Instituto do Banco (The Economist, 2000): “A expe- riência dos países em desenvolvimento e também dos industrializados mostra que não é meramente mais crescimento, e sim um melhor cres- cimento o que determina em que medida aumenta o bem-estar, e o bem-estar de quem. Países com renda e crescimento similares obtive- ram nas últimas três décadas conquistas muito diferentes em educa- ção, saúde e proteção do meio ambiente”. Sugere-se que é decisiva a estrutura do crescimento, suas prioridades, vias de desenvolvimento, setores beneficiados. A falácia de que o crescimento basta transmite a visão de que se estaria avançando se o produto bruto per capita subir, e que os olhares devem estar voltados para o mesmo. A ONU desenvolveu na última dé- cada um corpo conceitual amplamente difundido no âmbito internacio- nal, “o paradigma do desenvolvimento humano”, que ataca de modo radical este arrazoamento. O crescimento só não basta, ele é necessário mas não suficiente; assim, caberia iniciar uma discussão maior. Pergun- tar-nos quando realmente uma sociedade avança e quando está retroce- dendo. Os parâmetros definitivos, é a sugestão, devemos encontrá-los
  • 20. 24 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL no que está acontecendo com as pessoas. Aumenta ou diminui a ex- pectativa de vida? Melhora ou piora a qualidade de vida? A ONU apre- sentou um índice de desenvolvimento humano que veio sendo aperfei- çoado ano após ano, o qual inclui indicadores que refletem a situação de todos os países do mundo em áreas tais como: expectativa de vida, população com acesso a serviços de saúde, população com acesso a água potável, população com acesso a serviços de coleta de esgoto e detritos, escolaridade, mortalidade infantil, produto bruto per capita ponderado pela distribuição de renda. Os ordenamentos dos países do mundo segundo suas conquistas em desenvolvimento humano, que vêm sendo publicados anualmente pela ONU, através do PNUD, reve- lam um quadro que em diversos aspectos não coincide com o que de- corre dos simples recordes de crescimento econômico. As conclusões resultantes enfatizam que quanto maior o cresci- mento e mais recursos existirem, ampliam-se as possibilidades para a sociedade, mas a vida das pessoas, que é a finalidade última, não pode ser medida por algo que é um meio, deve ser medida por índices que reflitam o que ocorre em âmbitos básicos da vida cotidiana. A falácia de que o crescimento basta está em definitivo transfor- mando um meio fundamental, mas apenas um meio, em um fim últi- mo. É preciso desmistificá-la e retomar um debate a fundo sobre o que está ocorrendo com o cumprimento dos fins. Amartya Sen ilustra os limites desta falácia, analisando várias situações reais. Realiza a com- paração que se reflete no gráfico a seguir. Como se observa, os três primeiros países do gráfico — o Estado de Kerala, na Índia (com 33 milhões de habitantes), China e Sri Lanka — tinham um produto bruto per capita muito reduzido. Os outros três — África do Sul, Brasil e Gabão — tinham um produto bruto cinco a quinze vezes maior que o dos anteriores. Contudo, a população vivia mais anos nos três países pobres: 71, 69 e 72 anos, contra 63, 66 e 54 anos. O crescimento econômico sozinho não era o fator determinante num dos indicadores mais fundamentais para verificar se uma socie- dade avança, no mais básico: a expectativa de vida. Que outras variá- veis intervinham neste caso? Sen identifica aspectos como as políticas públicas, que garantiam nos três primeiros países um acesso mais am- plo a insumos fundamentais para a saúde, como a água potável, as instalações sanitárias, a eletricidade e a assistência médica. Ainda as melhores possibilidades em matéria de educação, por sua vez, inci-
  • 21. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 25 Gráfico 2 Produto Nacional Bruto e Expectativa de vida em países selecionados (1992) 80 5000 71 72 4450 70 69 4500 66 63 4000 PNB per capita (em dólares) Expectativa de vida (anos) 60 54 3500 50 2770 2670 3000 40 2500 2000 30 1500 20 1000 470 540 10 300 500 0 0 Kerala China Sri Lanka África Brasil Gabão do Sul Expectativa de vida PNB per capita Fonte: Amartya Sen, “Mortality as indicator of economic success and failure”. The Economic Journal, jan. 1998. dente na saúde. Junto a isso, um aspecto central era a melhor distribui- ção da renda nas três primeiras sociedades. Tudo isso levou a que os países supostamente mais pobres em termos de renda fossem mais bem- sucedidos na saúde e na expectativa de vida. Sen afirma: “Eles registra- ram uma redução muito rápida das taxas de mortalidade e uma melho- ra das condições de vida, sem um crescimento econômico notável”. 4. Quarta falácia: a desigualdade é um fato da natureza e não um obstáculo para o desenvolvimento O pensamento econômico convencional tendeu a eludir uma dis- cussão frontal a respeito da desigualdade e seus efeitos sobre a econo- mia. Apoiou-se para isso com freqüência na sacralização do “U” inver- tido de Kusnetz. De acordo com o mesmo, a desigualdade é simples-
  • 22. 26 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL mente uma etapa inevitável da marcha para o desenvolvimento. Na primeira fase do mesmo, produzem-se polarizações sociais, que depois vão-se moderando e reduzindo. Alguns economistas convencionais mais extremos chegam ainda mais longe, e propõem que essa acumulação de recursos em poucas mãos favorecerá o desenvolvimento ao criar maiores capacidades de investimento. Esta discussão tem particular transcendência para a América Lati- na, porque é considerada por unanimidade a região mais desigual do planeta. Se a tese dos ortodoxos mais inflexíveis estivesse correta, a região deveria ter contado com taxas de investimento muito altas, da- das as “acumulações em poucas mãos” que gerou. Isso não se observa. Tampouco parece ser uma mera etapa do caminho ao desenvolvimen- to. Na América Latina, a desigualdade instalou-se e não só não se mo- derou, mas apresenta uma tendência consistente para o crescimento, particularmente nas duas últimas décadas. O “U” invertido parece não funcionar para a região. Na verdade, Kusnetz nunca pretendeu que fosse aplicável meca- nicamente aos países não-desenvolvidos. Como tem ocorrido com fre- qüência, alguns de seus supostos intérpretes fizeram claro abuso de suas afirmações. Seus trabalhos referiam-se à observação dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha num período que compreendeu da pri- meira metade do século XIX até o final da Primeira Guerra Mundial. Adverte expressamente sobre o risco de generalizar as conclusões que extraiu. Afirma (1970): “É perigoso utilizar simples analogias; não po- demos afirmar que posto que a desigual distribuição da renda condu- ziu no passado, na Europa Ocidental, à acumulação de economias ne- cessárias para formar os primeiros capitais, para assegurar o mesmo resultado nos países subdesenvolvidos é preciso, portanto, manter e inclusive acentuar a desigualdade na distribuição da renda”. E enfatiza em afirmação que na América Latina faz muito sentido hoje: “É muito provável que os grupos que recebam rendas superiores em alguns dos países hoje subdesenvolvidos apresentem uma propensão de consumo muito maior e uma propensão à economia muito menor do que as que apresentam os mesmos grupos de renda nos países hoje desenvolvidos durante suas primeiras fases de crescimento”. Além de ter desvirtuado o pensamento real do próprio Kusnetz, a falácia difundida com respeito à desigualdade choca-se fortemente com os dados da realidade. A desigualdade latino-americana transformou- se em nível internacional num caso quase de laboratório dos impactos
  • 23. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 27 regressivos da desigualdade. Diante da pergunta de por que um conti- nente com tantas potencialidades econômicas e humanas gerou resul- tados econômicos tão discretos e déficits sociais tão agudos, uma das respostas com crescente consenso científico é que um dos fatores fun- damentais em contrário tem sido o peso da desigualdade e seu cresci- mento. Assim, apontam Birdsall, Ross e Sabot (1996) sobre a região, “a associação entre um crescimento lento e uma elevada desigualdade deve-se em parte ao fato de que essa elevada desigualdade pode consti- tuir em si um obstáculo para o crescimento”. Operam ativamente na América Latina entre outros cinco tipos de desigualdades, a saber: um é a iniqüidade na distribuição de renda. 5% da população possui 25% da renda nacional; por outro lado, 30% da população tem apenas 7,5% da renda nacional. É a maior brecha do planeta. Medida com o coeficiente Gini de ineqüidade em renda, a América Latina tem 0,57, quase três vezes o Gini dos países nórdicos. Em média, a metade da renda nacional de cada país da região vai para as mãos dos 15% mais ricos da população. No Brasil, os 10% mais ricos possuem 46% da renda, enquanto os 50% mais pobres, apenas 14% da mesma. Na Argentina, enquanto em 1975 os 10% mais ricos recebiam oito vezes mais renda que os 10% mais pobres, em 1997 a relação tinha mais que duplicado, era 22 vezes maior. Outra desigualdade acentua- da é a que aparece em termos de acesso a ativos produtivos. A extrema- mente ineqüitativa distribuição da terra em alguns dos maiores países da região, como Brasil e México, é uma de suas expressões. Uma tercei- ra desigualdade é a que rege no campo do acesso ao crédito, instru- mento essencial para poder criar oportunidades reais de desenvolvi- mento de pequenas e médias empresas. Há na América Latina 60 mi- lhões de PYMES, que geram 150 milhões de empregos. No entanto, apenas têm acesso a 5% do crédito. Uma quarta iniqüidade é a que surge do sistema educativo. Os diferentes estratos socioeconômicos dos países alcançam recordes muito diversos em anos de escolaridade. A deserção e a repetência provocadas pelas condições socioeconômicas do lar minam diariamente a possibilidade de que os setores pobres com- pletem seus estudos. Segundo a Cepal (2000), no Brasil repetiam os dois primeiros anos do ensino fundamental 41% das crianças perten- centes aos 25% de menor renda da população, e por sua vez apenas 4,5% das crianças dos 25% com maior renda. Ainda, tinham completa- do o ensino fundamental (de 1ª a 8ª série) aos vinte anos de idade ape- nas 8% dos jovens pertencentes aos 25% de menor renda, contra 54% dos 25% de maior renda. Tomando países da região (BID, 1998), surgia
  • 24. 28 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL que os chefes de família dos 10% de renda mais elevada tinham 11,3 anos de educação, os dos 30% mais pobres, apenas 4,3 anos. Uma bre- cha de sete anos. Enquanto na Europa a brecha de escolaridade entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres é de dois a quatro anos, no México é de dez anos. A desigualdade educativa será um fator muito importante na iniqüidade na possibilidade de conseguir emprego e nos salários a serem recebidos. Os setores desfavorecidos estarão em con- dições muito desfavoráveis nesse item devido à sua frágil carga educa- tiva. A força de trabalho ocupada da região apresenta uma marcante estratificação. Segundo a Cepal (2000), há um nível superior que são 3% da população empregada que possui quinze anos de escolaridade, um nível intermediário que são os 20% da força de trabalho que possui entre nove e doze anos de escolaridade, e os 77% restantes que têm apenas 5,5 a 7,3 anos de estudo nas cidades e 2,9 nas zonas rurais. Uma quinta e nova cifra de desigualdade está surgindo das possibilidades totalmente diferenciadas de acesso ao mundo da informática e Internet. A grande maioria da população não tem meios nem a educação requerida para conectar-se com esse mundo, fazendo parte assim de uma nova categoria de analfabetismo, o analfabetismo cibernético”. Todas estas desigualdades geram múltiplos efeitos regressivos na economia, na vida pessoal e familiar, e no desenvolvimento democrá- tico. Entre outros, segundo demonstram numerosas pesquisas: redu- zem a formação de poupança nacional, estreitam o mercado interno, conspiram contra a saúde pública, impedem a formação em grande escala de capital humano qualificado, deterioram a confiança nas ins- tituições básicas das sociedades e na liderança política. O aumento da desigualdade é, por outro lado, uma das causas centrais do aumento da pobreza na região. Birdsall & Londoño (1998) estimaram econometrica- mente que seu crescimento entre 1983 e 1995 duplicou a pobreza, que a mesma teria sido a metade do que foi se a desigualdade tivesse conti- nuado nos níveis anteriores, elevados porém menores. A desigualdade latino-americana não é um fato natural próprio do caminho do desenvolvimento como pretende a falácia. É a conseqüên- cia de estruturas regressivas e políticas erradas que a potencializaram. Barbara Stallings (Cepal, 1999) considera que “as reformas econômicas aplicadas nos últimos anos agravaram as desigualdades entre a popu- lação” e sublinha que “é possível afirmar sem nenhuma dúvida que os noventa são uma década perdida quanto à redução das já alarmantes diferenças sociais existentes na região com mais desigualdade do mun- do”. Altimir (1994), depois de analisar dez países, propõe que “há ba-
  • 25. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 29 ses para supor que a nova modalidade de funcionamento e as novas regras de política pública destas economias possam implicar maiores desigualdades de renda”. Albert Berry (1997) indica: “A maioria dos países latino-americanos que introduziram reformas econômicas pró- mercado, no curso das últimas duas décadas, sofreram também sérios incrementos na desigualdade. Esta coincidência sistemática no tempo dos dois eventos sugere que as reformas foram uma das causas da de- gradação na distribuição”. Por sua vez, a outra dimensão da falácia também é desmentida pela realidade. A desigualdade não se modera ou atenua sozinha. Pelo contrário, a instalação de circuitos de desigualdade em áreas-chaves possui uma tendência “contaminante”, propicia a geração de circuitos similares em outras áreas. Entre outros casos, ilustra o fato a dificulda- de, apesar de todos os esforços, em melhorar a situação educativa da população pobre. As desigualdades em outras áreas como ocupação e renda conspiram contra as reformas educativas. Ainda, as desigualda- des em educação reforçam, como já se viu, as brechas no mercado de trabalho. Os circuitos perversos de desigualdade mostram além disso uma enorme capacidade reprodutora. Eles se automultiplicam. Sem ações em contrário, as polarizações tendem a crescer e ampliar-se. Isso é mostrado pela conformação crescente em numerosas sociedades de uma dualidade central: incluídos e excluídos. 5. Quinta falácia: a desvalorização da política social Um renomado ministro da Economia da América Latina, ao ser questionado sobre a política social em seu país, respondeu: “A única política social é a política econômica”. Estava refletindo toda uma ati- tude quanto à política social que teve conseqüências profundas no con- tinente. Há uma tendência a vê-la como um complemento menor de outras políticas maiores, como as que têm a ver diretamente com o desenvolvimento produtivo, os equilíbrios monetários, o crescimento tecnológico, a privatização etc. Caberia a ela atenuar os impactos tran- sitórios que as anteriores produzem na sociedade. Deveria atacar focalizadamente os desajustes sociais mais irritáveis para reduzi-los. No fundo, a partir deste arrazoamento, ela é percebida como uma “con- cessão” à política. Como a pobreza gera forte inquietude política, a po- lítica social faria o trabalho de “acalmar os ânimos” e mostrar que estão se fazendo coisas nesse fronte, mas o corolário conseqüente é: quanto
  • 26. 30 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL menos concessões, melhor. Os recursos destinados ao social deveriam ser muito limitados e destinados a fins muito específicos. Albert Hirschman, em certa oportunidade, chamou esta forma de abordar o tema de “políticas pobres para pobres”. Dá lugar a reduzir o social a metas muito estreitas, a constituir uma institucionalidade so- cial frágil em recursos, e pessoal, afastada dos altos níveis de decisão. Por outro lado, é também altamente vulnerável. Diante de reduções orçamentárias, mostra escassa capacidade para defender sua situação e normalmente é candidata preferida para os cortes. Esta visão, ainda sob outro aspecto, supõe em si um questionamento implícito da legiti- midade da política social. É desviar recursos de destinos mais impor- tantes, por “pressão política”. Refletindo a situação, uma experiente ministra da área social de um país latino-americano narrou a respeito para uma platéia interna- cional: “Não éramos convidados ao gabinete onde eram tomadas as decisões econômicas mais importantes. Depois de muitos esforços, con- seguimos ser convidados. Claro que apenas com direito a voz, não a voto”. Considerar a política social nestes termos: de uma categoria infe- rior, concessão à política, uso subotimizante de recursos, conforma uma falácia que está afetando seriamente a região. Em primeiro lugar, como se pode relegar o social num contexto como o latino-americano, em que praticamente uma a cada duas pes- soas está abaixo da linha de pobreza e expressa diariamente de mil maneiras seu descontentamento e seu protesto por essa realidade? Aten- der ao social não é uma concessão, é em numa democracia tratar de fazer com que os direitos fundamentais de seus membros sejam respei- tados. O que está em jogo, no fundo, como defende a ONU, é uma ques- tão de direitos humanos violados. Como ressalta o Informe de Desen- volvimento Humano 2000, do PNUD: “A erradicação da pobreza cons- titui uma tarefa importante dos direitos humanos no século XXI. Um nível decente de vida, nutrição suficiente, assistência médica, educa- ção, trabalho digno e proteção contra as calamidades não são simples- mente metas do desenvolvimento, são também direitos humanos”. As políticas sociais são essenciais para a população na região e estratégias para a estabilidade do próprio sistema democrático. Ao consultar-se a população, ela não pede que se reduzam, estreitem ou eliminem, mas, ao contrário, exige maciçamente que se reforcem, ampliem e se incor- porem novas políticas.
  • 27. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 31 Em segundo lugar, é difícil sustentar no início deste novo século que se trata de uma destinação de recursos de pouca eficiência. Desti- nar recursos para assegurar-se de que todas as crianças concluam o primeiro ciclo do ensino fundamental (antigo primário), para elevar a taxa de término do ensino fundamental (de 1ª a 8ª série), para desen- volver o sistema de educação superior, é ineficiente? As medições econométricas dão resultados muito diferentes. A taxa de retorno em educação é uma das mais altas possíveis para uma sociedade. Hoje, a competitividade dos países está fortemente ligada ao nível de capacitação de sua população. Alguns dos países mais bem-sucedidos do planeta nos mercados internacionais estão exportando basicamente produtos como “high tech” totalmente baseados no capital educativo que souberam desenvolver. A absorção de novas tecnologias, a inova- ção local a partir delas, a pesquisa e desenvolvimento, o progresso tec- nológico dependem todos dos níveis de educação alcançados. Os cál- culos demonstram, assim, entre outros casos, que um dos investimen- tos macroeconomicamente mais rentáveis que um país pode fazer é investir na educação de meninas. Acrescentar anos de escolaridade às meninas desfavorecidas aumentará seu capital educativo e, através dele, reduzirá as taxas de gravidez na adolescência, de mortalidade mater- na, de mortalidade infantil e morbidade. Todas elas estão correlacio- nadas estatisticamente com os anos de escolaridade da mãe. Nas condições latino-americanas, estender a possibilidade de aces- so à água potável a toda a população é um investimento deficiente? O retorno ao fazê-lo será significativo em termos de saúde pública, o que logo repercutirá na produtividade da economia. Na verdade, toda a terminologia utilizada está equivocada e nova- mente vemos um erro semântico não casual. Assim como existiam aque- les que não queriam ouvir falar da palavra pobreza, na falácia que des- valoriza a política social, chegou-se a que toda a discussão a respeito seja feita em termos de “gasto social”. Na realidade, não há tal gasto. Bem gerenciados, os recursos para o social constituem, na grande maio- ria dos casos, investimento de um alto retorno. Hoje é difícil discutir as evidências de que o investimento social gera capital humano e que o mesmo se transforma em produtividade, progresso tecnológico e é decisivo para a competitividade. Na verdade, a política social bem delineada e eficientemente executada é um pode- roso instrumento de desenvolvimento produtivo. Como sugere Touraine (1997): “Em vez de compensar os efeitos da lógica econômica, a políti-
  • 28. 32 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL ca social deve ser concebida como condição indispensável do desen- volvimento econômico”. Em terceiro lugar, discutiu-se a gravidade do tema da desigualda- de na América Latina. Superada a falácia que a nega ou minimiza, como se pode reduzi-la? Uma das vias fundamentais possíveis numa demo- cracia é uma agressiva política social que amplie fortemente as oportu- nidades para os pobres em setores cruciais. Deverá estar integrada, entre outras, por políticas que universalizem possibilidades de controle de fatores de risco-chaves em saúde na região, como a água, o saneamen- to, a eletricidade, o acesso à assistência médica; que atuem sobre os fatores que excluem parte da população do sistema educativo; que as- segurem serviços públicos de boa qualidade para todos. A política so- cial pode ser uma chave para a ação contra a desigualdade, provendo uma base mínima de bens e serviços indispensáveis e contribuindo, assim, para abrir as oportunidades e romper círculos perversos. Em vez de uma política social “borralheira”, como propõe a falácia, o que a América Latina precisa é de uma nova geração de políticas so- ciais com letra maiúscula. Isso implica dar prioridade efetiva às metas sociais no desenho das políticas públicas; procurar articular estreitamente as políticas econômicas e as sociais; montar uma institucionalidade so- cial moderna e eficiente; destinar recursos apropriados; formar recursos humanos qualificados no social; fortalecer as capacidades de gerência social, e hierarquizar em geral esta área de atividade pública. A metáfora que se ouve em toda a região descreve bem a situação. Afirma que a política social é atualmente a “assistência pública” que recolhe os mortos e feridos deixados pela política econômica. A falácia examinada cultiva e racionaliza esta situação inaceitável. É preciso uma política social que potencialize o capital humano, base essencial de um desenvolvimento econômico sustentado. É um tema ético, político e, ao mesmo tempo, de lucidez histórica. Como aponta Birdsall (1998): “é provável que as taxas de crescimento da América Latina não sejam superiores a 3% ou 4%, muito distantes das necessárias, enquanto não se contar com a participação e a contribuição da metade da população que está compreendida nos percentuais mais baixos de renda”. 6. Sexta falácia: a maniqueização do Estado No pensamento econômico convencional circulante, tem-se feito um esforço sistemático de vastas proporções para deslegitimar a ação
  • 29. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 33 do Estado. Associou-se a idéia de Estado com corrupção, com incapa- cidade para cumprir eficientemente as mínimas funções, com grandes burocracias, com desperdício de recursos. A visão apóia-se em graves defeitos existentes no funcionamento das administrações públicas em numerosos países da América Latina, mas foi muito mais além disso e “maniqueizou” o Estado em seu conjunto. Projetou a imagem de que toda ação tratada no terreno público seria negativa para a sociedade, e, por sua vez, a redução ao mínimo das políticas públicas e a entrega de suas funções ao mercado a levaria a um reino da eficiência e à solução dos principais problemas econômico-sociais existentes. Além disso, criou a concepção de que existia uma oposição de fundo entre Estado e sociedade civil e havia que escolher entre ambos. Como em outros campos, hoje é possível manter uma discussão sobre o tema para além das ideologias. O instrumental metodológico das ciências sociais atuais traz evidências muito concretas que permi- tem estabelecer como funciona a realidade. A visão demonstrou ser errada. O Estado sozinho não pode fazer o desenvolvimento, e na Amé- rica Latina a ação estatal tem apresentado agudos problemas de burocratização, ineficiência e corrupção. Entretanto, o processo de eli- minação de numerosas funções do Estado, de redução a níveis míni- mos em muitos casos de suas capacidades de ação, como ocorreu com freqüência nas áreas sociais, o enfraquecimento em geral do papel das políticas públicas, e a entrega de suas funções ao mercado, não levou ao reino ideal suposto. Os problemas estruturais das sociedades latino- americanas e de outras do mundo em desenvolvimento continuaram se agravando, a corrupção acompanhou também com freqüência os processos de privatização. Identificou-se como uma lei operante que sempre que houver um corrupto no Estado, haverá, por sua vez, um corruptor no setor privado, ou seja, o tema excede qualquer simplifica- ção. O funcionamento sem regulação do mercado levou ao aprofunda- mento das brechas, particularmente das de iniqüidade. Deu-se uma forte tendência, sob as novas regras de jogo, à constituição de monopó- lios que significaram, na prática, a imposição de cargas muito pesadas aos consumidores e às pequenas e médias empresas, liquidando com estas últimas. A impressão é que as duas polarizações conduziram a becos sem saída. O Estado sozinho não pode resolver os problemas, mas sua minimização agrava-os. Essa é a conclusão, entre muitas outras vozes, do Banco Mundial no final desta década. Em seu informe especial dedi- cado ao papel do Estado (1998), ressalta como idéia fundamental que
  • 30. 34 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL sem um Estado eficiente o desenvolvimento não é viável, e propõe uma série de diretrizes orientadas a “reconstruir a capacidade de ação do Es- tado”. Por seu lado, autores como Stiglitz e outros chamaram a atenção para as “falhas do mercado”, sua tendência a gerar desigualdades e à cartelização para maximizar lucros e seus desvios especulativos quando não há eficientes controles regulatórios, como ocorre em Estados tão fragilizados pelas reformas das últimas décadas como os da região. Caus- ticamente, afirma uma autoridade mundial em como gerenciar com efi- ciência, Henry Mintzberg (1996), com respeito à concepção de que se poderia prescindir do Estado e a visão de que tudo o que se faz no Estado é ineficiente e no setor privado, eficiente: “o modelo representa a grande experiência dos economistas que nunca tiveram de gerenciar nada”. Hoje há um ativo retorno à busca de uma visão mais equilibrada no debate internacional de ponta sobre o tema do desenvolvimento e do papel do Estado. Impossível desconhecer a importância das políticas públicas num contexto histórico em que a segunda economia do mun- do, o Japão, está colocando em marcha, uma após a outra, sucessivas iniciativas de intervenção ativa do Estado para dinamizar a economia, a mais recente (outubro de 2000) injetando 100 bilhões de dólares para tal efeito. Amartya Sen (1998) ressalta sobretudo o papel decisivo que tem exercido a política pública no campo social em algumas das economias de melhor desempenho a longo prazo do mundo. Sublinha: “De fato, muitos países da Europa Ocidental conseguiram assegurar uma ampla cobertura de assistência social com a assistência à saúde e educação pública de maneiras até então desconhecidas no mundo; o Japão e a região do Leste da Ásia tiveram um alto grau de liderança governamen- tal na transformação tanto de suas economias como de suas sociedades; o papel da educação e da assistência médica pública foi o eixo funda- mental para contribuir para a mudança social e econômica no mundo inteiro (e de forma bastante espetacular no Leste e Sudeste asiáticos)”. Uma área totalmente decisiva para a economia e para a sociedade é a da saúde. Toda sociedade democrática tem a obrigação de garantir a seus membros o direito à assistência médica, é o direito mais básico. Além disso, melhorar os níveis de saúde da população exerce toda or- dem de impactos favoráveis sobre a economia, entre muitos outros as- pectos em redução de horas de trabalho perdidas por doença, aumento da produtividade no trabalho, queda nos custos ligados a doenças etc. O recente informe sobre a saúde mundial 2000 da Organização Mun- dial da Saúde (OMS, 2000) estabelece o primeiro ranking dos países do mundo, segundo o desempenho de seus sistemas de saúde. Entre ou-
  • 31. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 35 tros, constrói um índice muito significativo para essas medições: os anos que, em média, uma pessoa vive com boa saúde, sem doenças. No topo da lista encontram-se países como Japão (74,5 anos), Suécia (73 anos), Canadá (72 anos) e Noruega (71,7 anos). Em todos esses países, o Estado tem uma participação fundamental, tendo construído uma am- pla rede de proteção. No Japão, o gasto público é de 80,2% do gasto total em saúde; na Suécia é de 78%; na Noruega, de 82%, e no Canadá, de 72%. O gasto público per capita em saúde ultrapassa em todos eles os 1300 dólares anuais. O contraste com a atual situação em diversos países latino-americanos é marcante. O gasto público per capita em saúde no Brasil é de 208 dólares; no México, de 172, no Peru, de 98. Os anos de vida saudável chegam em média a apenas 59 anos no Brasil, embora o país seja uma das maiores potências industriais do mundo. Por sua vez, ao procurá-lo na lista de desempenho dos sistemas de saú- de da OMS, o Brasil aparece em 125º lugar. O caráter crucial da ação estatal em campos-chaves como saúde e educação, pressupondo uma ação bem gerenciada e transparente, sur- ge com toda a força de uma pesquisa recente (Financial Times, 2000), que mostra o que ocorre quando se fixam como política alfandegária os serviços em áreas de população pobre, sob a idéia de “compartilhar custos” e de “financiamento comunitário”, reduzindo assim as respon- sabilidades do Estado. Na Tanzânia, seguindo as condições do Banco Mundial, foram introduzidas tarifas para o ensino primário. O resulta- do, segundo indica a Igreja Evangélica Luterana da Tanzânia, foi um imediato descenso na assistência às escolas e a redução do orçamento total para as mesmas à metade do previsto. Em Zimbábue, a condicio- nalidade centrou-se em que deveriam cobrar taxas nos serviços de saú- de, mas que os pobres estariam isentos disso. Uma avaliação do pró- prio Banco Mundial concluiu que apenas 20% dos pobres puderam conseguir as licenças para isenção necessárias. Em Gana, ao impor ta- xas na escola, 77% das crianças da rua de Accra, que assistiam às au- las, abandonaram as escolas. A falácia da maniqueização do Estado leva a conseqüências muito concretas: ao deslegitimar sua ação deixa aberto o terreno para sua de- bilitação indiscriminada e para o desaparecimento paulatino de políti- cas públicas firmes em campos cruciais como os sociais. Causa, assim, danos irreparáveis a vastos setores de famílias, aumentando a pobreza e a desigualdade e limitando as possibilidades de um crescimento sus- tentado. Os dados da realidade sugerem que há outro caminho. Em alguns dos países mais bem-sucedidos econômica e socialmente, um
  • 32. 36 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL dos pilares de suas economias é um Estado ativo de alta eficiência. Uma de suas características principais contradiz um dos eixos da falá- cia. É um Estado coordenado estritamente com a sociedade civil. A falsa oposição Estado — Sociedade Civil, que preconiza a falácia como um fato, é neles desmentida. Os laços de cooperação são múltiplos e surge uma ação integrada. Também na América Latina algumas das sociedades com melhores cifras de eqüidade, menores índices de po- breza e melhores taxas de desenvolvimento tiveram como base dessas conquistas Estados bem organizados, com burocracias consideradas eficientes, como Costa Rica, Uruguai e o Chile democrático. É impres- cindível reformar e melhorar a eficiência estatal e erradicar a corrupção. Porém, para isso, é necessário avançar em outra direção totalmente diferente à da falácia. Não satanizar o Estado, mas ir construindo ad- ministrações públicas descentralizadas, transparentes, abertas à parti- cipação comunitária, bem gerenciadas, com carreiras administrativas estáveis, fundadas no mérito. 7. Sétima falácia: a incredulidade sobre as possibilidades de contribuição por parte da sociedade civil O pensamento econômico circulante envia às vezes explicitamen- te, e com freqüência implicitamente, uma profunda mensagem de des- valorização do possível papel que pode desempenhar a sociedade civil nos processos de desenvolvimento e na resolução dos problemas so- ciais. Sua ênfase está totalmente voltada para o mercado, a força dos incentivos econômicos, a gerência de negócios, a maximização de uti- lidades como motor do desenvolvimento, os sinais que podem atrair ou afastar o mercado. O mundo da sociedade civil é percebido como um mundo secundário, de segunda linha com respeito ao que ocorre no “mundo importante” conformado pelos mercados. Desse enfoque surgirão políticas públicas de apoio muito limitado, quase “simbólico” e por “cortesia” às organizações da sociedade civil, e uma desconfiança forte em depositar nelas responsabilidades realmente importantes. A falácia arrazoa em termos de uma dualidade básica: Estado versus mercado. Nos fatos, a situação é muito mais matizada. Existe um sem- número de organizações que não são nem uma coisa nem outra. Foram criadas com finalidades diferentes, os atores sociais que se encontram por trás delas são outros, e as metodologias que utilizam não são de Esta- do nem de mercado. Este mundo compreende, entre outras: as organiza-
  • 33. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 37 ções não-governamentais em contínuo crescimento na América Latina que foram denominadas com freqüência de terceiro setor e que realizam múltiplas contribuições no campo social; os espaços de interesse públi- co, que são fórmulas especiais muito usadas nos países desenvolvidos onde numerosas Universidades e hospitais foram fundados por eles — trata-se de empreendimentos a longo prazo animados por numerosos atores públicos e privados, modelos econômicos que não são de merca- dos típicos como as cooperativas, que têm alta presença em diversos campos, e o amplo movimento de luta contra a pobreza desenvolvido em toda a região pelas organizações religiosas, cristãs, protestantes e ju- daicas que estão na primeira linha da ação social. A realidade não é só o Estado e o mercado como pretende a falácia. Inclusive alguns dos mode- los de organização e gestão social e geral mais efetivos de nosso tempo foram desenvolvidos nesta vasta área diferente de ambos. Todas estas organizações possuem um grande peso e uma forte par- ticipação na ação social no mundo desenvolvido. Arrecadam recursos consideráveis, a elas são delegadas funções crescentes por parte do Esta- do, estão inter-relacionadas com a ação pública de múltiplas formas. Estão baseadas fortemente em trabalho voluntário. Mobilizam milhares e milhares de pessoas que dedicam anonimamente consideráveis horas para levar adiante seus programas. Trazem importantes contribuições ao Produto Bruto Nacional com trabalho não-remunerado em países como Canadá, Holanda, Suécia, Noruega, Dinamarca, Espanha, Israel e ou- tros. Assim, em Israel, que aparece entre os primeiros do mundo nesta matéria, uma em quatro pessoas faz trabalhos voluntários semanalmen- te, produzindo bens e serviços de caráter social, constituindo parte do pessoal paramédico nos hospitais, auxiliando pessoas inválidas, idosos, famílias desfavorecidas e outros setores com dificuldades. Também au- mentou no mundo desenvolvido a participação empresarial no apoio à ação social da sociedade civil. As contribuições e iniciativas empresa- riais de solidariedade foram incrementadas e o crescimento de sua res- ponsabilidade social passou a fazer parte cada vez maior da legitimidade da própria empresa. A afirmação feita há anos por Milton Friedman, o guru da Escola de Chicago, de que a única responsabilidade da empresa privada é produzir utilidades para seus acionistas, tem sido refutada constantemente por empresários proeminentes e é hoje rejeitada maci- çamente pela opinião pública dos países desenvolvidos. Na América Latina, a situação tende a ser muito diferente. Existe um imenso potencial de trabalho voluntário que caso fosse adequada- mente convocado e se se criassem condições propícias, poderia cum-
  • 34. 38 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL prir papéis bastante significativos. Esforçadamente, setores da socie- dade civil estão tentando mobilizá-lo e é constante o surgimento de múltiplas iniciativas. Porém, tudo isso é, apesar das desconfianças e da incredulidade que surgem do arrazoamento desvalorizador, que ali- menta, por sua vez, erros grosseiros nas políticas. Não há, assim, entre outros aspectos, apoios públicos firmes às iniciativas da sociedade ci- vil de ação social e os incentivos fiscais são muito reduzidos. Além disso, o movimento de responsabilidade social empresarial é fraco e as contribuições muito reduzidas comparativamente. A proporção dos lucros empresariais dedicados a fins de interesse público é muito me- nor em relação à dos países avançados. É notável o trabalho que, mes- mo com todas estas limitações, levam adiante numerosas organizações, entre elas as de fé já mencionadas, para conseguir auxiliar nas dificul- dades de sobrevivência de extensos setores da população. No fundo, o que o pensamento econômico convencional está fa- zendo através de sua desvalorização das possibilidades da sociedade civil é fechar a passagem para o próprio ingresso do conceito de capital social. Diversas pesquisas de anos recentes, desde os primeiros estu- dos de Putnam e Coleman, até os efetuados em diversas realidades na- cionais de todo o planeta, revelam que há fatores cruciais para o desen- volvimento que não tinham lugar no pensamento econômico ortodo- xo, como os agrupados na idéia de “capital social”. São eles: o clima de confiança entre as pessoas de uma sociedade e com respeito a suas instituições e líderes, o grau de associatividade, ou seja, a capacidade de criar esforços associativos de todo tipo e o nível de consciência cívi- ca, a atitude quanto aos problemas coletivos, desde cuidar da limpeza dos lugares públicos até pagar os impostos. Estudos do Banco Mundial atribuem ao capital social e ao capital humano dois terços do cresci- mento econômico dos países e diversas pesquisas dão conta dos signi- ficativos impactos do capital social sobre a performance macroeco- nômica, a produtividade microeconômica, a governabilidade democrá- tica, a saúde pública e outras dimensões1. Desenvolver o capital social significa fortalecer a sociedade civil através de políticas que melhorem a confiança, que, segundo dizem os mesmos estudos, em sociedades polarizadas é muito fortemente erodida pela desigualdade. Também implica propiciar o crescimento da 1. Pode-se encontrar a apresentação de uma série de pesquisas recentes sobre o capital social e seus impactos em: Kliksberg, B. El capital social e la cultura. Claves olvidadas del desarrollo. Buenos Aires, Instituto de Integración Latinoamericana/Intal/BID, 2000.
  • 35. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 39 associatividade e contribuir para fazer amadurecer a consciência cívica. O arrazoamento econômico convencional tem estado amarrado a idéias muito estreitas sobre os fatores que contam, que não consideram estes elementos, ou que os relegam. Por trás da falácia da incredulidade sobre a sociedade civil, encontra-se uma rejeição mais ampla da idéia de que há outros capitais que se deve ter em conta, como o social. Um fechado “reducionismo economicista” obstrui a passagem para ampliar a visão do desenvolvimento com sua incorporação e para extrair as conseqüên- cias conseguintes em termos de políticas de apoio ao fortalecimento e potencialização das capacidades latentes na sociedade civil. 8. Oitava falácia: a participação sim, mas não! A participação da comunidade de forma cada vez mais ativa na gestão dos assuntos públicos surge nesta época como uma exigência crescente das grandes maiorias da sociedade na América Latina e ou- tras regiões. Os avanços da democratização, produto de longas lutas históricas dos povos, criaram condições de livre organização e expres- são, que dispararam esta “sede” por participação. Por outro lado, existe hoje uma convalidação mundial crescente da superioridade em termos de efetividade da participação comunitária sobre as formas organizativas tradicionais de corte vertical ou burocrático. No campo social, isso é muito visível. Os programas sociais fazem melhor uso dos recursos, conseguem ser bem-sucedidos no alcance de suas metas e criam auto- sustentabilidade, se as comunidades pobres às quais se deseja favore- cer participam desde o início e ao longo de todo o seu desenvolvimen- to e compartilham do planejamento, da gestão, do controle e da avalia- ção. Assinala a respeito Stern, o economista-chefe do Banco Mundial, resumindo múltiplos estudos da instituição (2000): “Ao longo do mun- do, a participação funciona: as escolas operam melhor se os pais parti- cipam, os programas de irrigação são melhores se os camponeses parti- cipam, o crédito trabalha melhor se os solicitantes participam. As re- formas dos países são muito mais efetivas se forem geradas no país e dirigidas pelo país. A participação é prática e poderosa”2. 2. Apontam-se diversos dados e pesquisas sobre a superioridade gerencial da participação em: Kliksberg, B. “Seis tesis no convencionales sobre participación en instituciones y desarrollo”. Revista do Instituto Internacional de Gobernabilidad, n. 2, Barcelona, dez. 1998.
  • 36. 40 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL Dois recentes trabalhos: Superando a pobreza humana, do PNUD (2000), e The voices of the poor, do Banco Mundial (2000), baseado numa gigantesca pesquisa com 60 mil pobres de 60 países, chegam a similar conclusão em termos de políticas: é preciso dar prioridade para investir e fortalecer as organizações dos próprios pobres. Eles carecem de “voz e voto” real na sociedade. Fortalecer suas organizações lhes permitirá participar de modo muito mais ativo e recuperar terreno em ambas as dimensões. Propõe-se, entre outros aspectos: facilitar sua cons- tituição, apoiá-las, dar possibilidades de capacitação a seus líderes, for- talecer suas capacidades de gestão. Na América Latina, o discurso político tende cada vez mais a reco- nhecer a participação. Seria claramente antipopular enfrentar a pres- são pró-participação tão forte na sociedade, e com argumentos tão con- tundentes a seu favor. Entretanto, os avanços reais quanto à imple- mentação efetiva de programas com altos níveis de participação comu- nitária são muito reduzidos. Continuam predominando os programas “chave na mão” e impostos verticalmente, onde quem tem poder de decisão ou os que desenham são aqueles que sabem e a comunidade desfavorecida deve acatar suas diretivas e ser sujeito passivo deste. Também são comuns os programas em que se fazem fortes apelos quan- do se trata de programas participativos, quando na verdade há um mí- nimo conteúdo real de intervenção da comunidade na tomada de deci- sões. O discurso diz “sim” à participação na região, mas os fatos com freqüência dizem “não”. Os custos desta falácia são muito fortes. Por um lado, está sendo desperdiçada uma enorme energia latente nas comunidades pobres. Ao serem mobilizadas, como ocorreu em experiências latino-america- nas reconhecidas — como o caso de Villa El Salvador, no Peru, as esco- las Educo, em El Salvador, ou o orçamento municipal participativo, em Porto Alegre3 —, os resultados são surpreendentes. A comunidade multiplica os recursos escassos, somando a eles incontáveis horas de trabalho, e é geradora de contínuas iniciativas inovadoras. Além disso, a presença da comunidade é um dos poucos meios que previne efetiva- 3. O caso de Villa El Salvador é analisado com detalhes por Carlos Franco em seu trabalho “La experiencia de Villa El Salvador: del arenal a un modelo social de avanzada”. In: Kliksberg, B. Pobreza, un tema impostergable. Nuevas respuestas a nivel mundial. 4. ed. Buenos Aires/Caracas, Fondo de Cultura Económica, 1997. Sobre o caso do orçamento municipal participativo em Porto Alegre, ver o texto de Zander Navarro, “La democracia afirmativa y el desarrollo redistributivo: el caso del presupuesto participativo em Porto Alegre, Brasil”. In: Jarquin, E. & Caldera, A. (comp.). Programas sociales, pobreza y participación ciudadana. Washington, BID, 2000.
  • 37. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 41 mente contra a corrupção. O controle social da mesma sobre a gestão é uma grande garantia a respeito que se perde ao impedir a participação. Por outro lado, o divórcio entre o discurso e a realidade é claramente percebido pelos pobres e eles se ressentem disso com descontentamen- to e frustração. Limitam-se, assim, as possibilidades de programas em que se ofereça a participação genuína, porque as comunidades estão “escaldadas” pelas falsas promessas. O “sim”, mas “não” está baseado em resistências profundas a que definitivamente as comunidades pobres participem, que se disfarcem diante de sua ilegitimidade conceitual, política e ética. Chegou a hora na região de colocá-las em foco e enfrentá-las. 9. Nona falácia: a esquivança ética A análise econômica convencional sobre os problemas da Améri- ca Latina extrapola normalmente a discussão sobre as implicações éti- cas dos diferentes cursos de ação possíveis. Pareceria tratar-se de um tema técnico, mas de caráter neutro, em que apenas devem predomi- nar arrazoamentos custo — benefício para resolvê-lo. A situação, po- rém, é muito diferente. O tema tem a ver com a vida das pessoas e as considerações éticas deveriam estar, por extensão, absolutamente pre- sentes. Do contrário, estar-se-ia incorrendo no grande risco sobre o qual previne um dos maiores filósofos da nossa época, Charles Taylor. Taylor (1992) afirma que há uma declarada tendência a que a racionalidade técnica, a discussão sobre os meios, substitua a discussão sobre os fins. A tecnologia é um meio para alcançar fins, que, por sua vez, devem ser objeto de outra ordem de discussão. Se a discussão sobre os fins desa- parecer, como pode estar ocorrendo, previne Taylor, e a racionalidade tecnológica predomina sobre a racionalidade ética, os resultados po- dem ser muito regressivos para a sociedade. Na mesma direção assina- lou recentemente outro destacado pensador, Vaclav Havel, presidente da República Tcheca (2000): “é necessário reestruturar o sistema de valores no qual nossa civilização descansa”, e advertiu que os países ricos, por ele chamados de “euro-americanos”, devem examinar sua consciência. Segundo ele, estes países impuseram as orientações atuais da civilização global e são responsáveis por suas conseqüências. Estas vozes proeminentes sugerem um debate a fundo sobre os te- mas éticos do desenvolvimento. O chamado tem raízes em realidades intoleráveis. A ONU (2000) chama a atenção para a imprescindibilidade
  • 38. 42 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL de um debate desta ordem num mundo onde perecem diariamente 30 mil crianças por causas evitáveis, imputáveis à pobreza. Afirma que se reage indignamente, e isso é correto, diante de um único caso de tortura, mas se passa por alto diariamente ante essa aniquilação em grande esca- la. O Fundo de População Mundial (2000) ressalta que morrem todo ano 500 mil mães durante a gravidez, mortes também em sua grande maioria evitáveis e ligadas à falta de assistência médica. Noventa e nove por cen- to delas ocorrem nos chamados países em desenvolvimento. Na América Latina, é imprescindível debater, entre outros temas: o que acontece com as conseqüências éticas das políticas; qual é a “eticidade” dos meios empregados, se é eticamente lícito sacrificar ge- rações; por que os mais fracos, como as crianças e os idosos, são os mais afetados pelas políticas aplicadas em muitos países; a destruição de famílias está gerando a pobreza, e outras questões similares. É uma região onde, como se tem visto, a maioria das crianças é pobre, onde milhares de crianças vivem nas ruas, marginalizadas pela sociedade e onde, enquanto a taxa de mortalidade de crianças menores de cinco anos, em 1997, era no Canadá de 6.9 em cada 1000, atingia na Bolívia 82.8, no Equador 57.7, no Brasil 45.9 e no México 36.4 (Organização Panamericana da Saúde, 2000). Na América Latina, 17% dos partos são realizados sem qualquer tipo de assistência médica e com os conse- qüentes resultados em termos de mortalidade materna, que é cinco vezes maior em relação à dos países desenvolvidos; ressalte-se que possuem cobertura apenas 25% das pessoas maiores de idade. Surgem de tudo isso problemas éticos básicos: o que é mais im- portante? Como destinar recursos? Não deveriam ser reestudadas as prioridades? Não há políticas que deveriam ser descartadas por seu efeito “letal” em termos sociais? Ao denunciar-se a fraqueza da falácia que esquiva a discussão éti- ca, ela toma com freqüência o rosto do “pragmatismo”. Argumenta-se que é impossível discutir ética quando não há recursos. Entretanto, mais do que nunca, quando os recursos são escassos deveria debater- se a fundo sobre as prioridades. Nos países em que esse debate ocorre, os resultados costumam ser muito diferentes em termos de prioridades e de resultados sociais daqueles onde o assunto é evitado. Quanto mais recursos existirem, melhor, e se deve fazer o possível para aumentá- los, mas pode haver mais e continuar destinados sob os padrões de alta desigualdade próprios da América Latina. A discussão sobre as priori- dades finais é a única que garante um uso socialmente racional dos recursos. A Comissão Latino-Americana e do Caribe, presidida por
  • 39. DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS ... 43 Patricio Aylwin (1995), realizou uma análise sistemática para a Cúpula social mundial de Copenhague sobre que recursos faziam falta para resolver as brechas sociais mais importantes da região. Concluo que não são tão quantitativos como se supõe imaginariamente e que uma parte importante deles pode ser obtida reordenando prioridades, forta- lecendo um sistema fiscal progressivo e eficiente, e gerando pactos so- ciais para aumentar os recursos para áreas críticas. Num artigo do jornal New York Times, o renomado filósofo Peter Singer (1999) sustenta que não é possível que os estratos prósperos das sociedades ricas se livrem do peso de consciência que significa a con- vivência com realidades maciças de abjeta pobreza e sofrimento no mundo, e que devem encarar de frente sua situação moral. Sua suges- tão é totalmente extensiva aos estratos similares da América Latina. 10. Décima falácia: não há outra alternativa Uma argumentação preferida no discurso econômico ortodoxo é a alegação de que as medidas que se adotam são as únicas possíveis, que não haveria outro curso de ação alternativo. Portanto, os graves proble- mas sociais que criam são inevitáveis. A longa experiência do século XX é plena em fracassos históricos de modelos de pensamento que se auto-apresentaram como o “pensamento único”. Parece demasiadamen- te complexo o desenvolvimento, para que se acredite que só existe um único caminho. Por outro lado, em diferentes regiões do globo os fatos não favoreceram o “pensamento único”. Resumindo a situação, afirma William Pfaff (International Herald Tribune, 2000): “O consenso inte- lectual sobre as políticas econômicas globais foi rompido”. Na mesma direção, refletindo a necessidade de buscar novas vias, opina Felix Rohatyn (Financial Times, 2000), atual embaixador dos Estados Uni- dos na França: “Para sustentar os benefícios (do atual sistema econô- mico) nos Estados Unidos e globalmente, temos de transformar os perdedores em ganhadores. Se não o fizermos, provavelmente todos nós nos transformaremos também em perdedores”. Amartya Sen (2000), por sua vez, destaca: “Tem havido demonstrações recentes não só frente às reuniões financeiras internacionais, mas também na forma de protestos menos organizados, mas intensos em diferentes capitais, desde Jacarta e Bangcoc até Abidjã e México. As dúvidas acerca das relações econômi- cas globais continuam vindo de diferentes confins do planeta e há sufi- ciente razão para ver estas dúvidas sobre a globalização como um fenô- meno global; são dúvidas globais, não uma oposição localizada”.