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Vol. 2 (1). Jan./jun 2009
FENOMENOLOGIA E PSICOLOGIA: que se volta a) e o objeto visado pela
UMA RELAÇÃO EPISTEMOLÓGICA consciência (o que se revela a esta).
Distingue-se, assim, do modelo clássico de
ciência, que pressupõe a separação radical
Fernando Antônio Nascimento da Silva1 entre sujeito e objeto.
Faculdade Pio Décimo/Sergipe
A fenomenologia pura, cujo caminho
aqui queremos encontrar, cuja posição
única em relação a todas demais ciências
RESUMO:O presente texto trata-se de uma queremos caracterizar e cuja condição de
ciência fundamental da filosofia
reflexão das relações entre Psicologia e queremos comprovar, é uma ciência
Fenomenologia, no que diz respeito aos seus essencialmente nova, distante do pensar
fundamentos. Apresenta a Fenomenologia, natural em virtude de sua peculiaridade
de principio e que, por isso, só em nossos
como ciência dos fenômenos, como uma dias passou a exigir desenvolvimento.
alternativa ao modelo clássico de ciência, no Ela se denomina uma ciência do
âmbito das ciências humanas e sociais, ‘fenômeno’” (HUSSERL, 2006, pg. 25).
passando por uma rápida referência aos
O QUE É A FENOMENOLOGIA?
fundamentos epistemológicos da Psicologia.
Por fim, discute as relações entre ambas, no O exercício da fenomenologia
que diz respeito à apropriação do método implica numa experiência singular, pouco
fenomenológico pela Psicologia. usual: a suspensão de todo e qualquer juízo a
respeito do fenômeno para o qual a nossa
consciência se volta. Deixar de lado todo
INTRODUÇÃO conhecimento ou crença a respeito do
fenômeno pesquisado, como se dele nada
O presente texto não se propõe a soubesse, como se nunca tivéssemos passado
um discurso sobre o método fenomenológico pela experiência de amar, de nos
e, portanto, não tem como preocupação a envergonharmos, de ter sofrido alguma
elucidação dos seus conceitos nem das suas violência ou ter sido violento, por exemplo.
regras metodológicas. Volta-se para uma Como se fosse a primeira vez que entramos
pequena reflexão sobre a relação entre em contato com o fenômeno sobre o qual nos
psicologia e fenomenologia, no sentido de debruçamos.
clarificar, de modo sucinto, como esta pode Deixar que o fenômeno se mostre
contribuir com a psicologia, enquanto tal qual é, sem nenhuma interferência de
alternativa de um modelo científico distinto valor, científica, religiosa ou do conhecimento
da perspectiva da ciência Moderna. cotidiano, de modo que possamos apreendê-lo
A fenomenologia, segundo na sua essência, no seu modo próprio de ser,
Husserl, pode ser definida como a ciência dos que o distingue das outras coisas, tornando-o
fenômenos, entendendo estes, como o que se evidente para a nossa consciência; dá-se o
mostra à consciência por si mesmo. Trata-se, nome de redução fenomenológica ou epoché a
pois, de uma ciência que se centra na relação este movimento de suspensão dos juízos a
indissociável entre sujeito (uma consciência respeito das coisas.
Com a redução fenomenológica
temos a emergência do fenômeno, que se
1
Psicólogo; Professor da Faculdade Pio Décimo; apresenta de modo distinto das outras coisas,
Mestrando em Ensino de Ciências e Matemática constituindo-se numa relação direta entre
(NPGECIMA/UFS) fenômeno e consciência. Ou seja, à medida
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que o nosso saber a respeito das coisas explicação racional. Do mesmo modo, a
visadas (noema) encontra-se entre parênteses, fenomenologia tem a evidência como uma
temos que a consciência obtém um acesso exigência de configuração, pois só assim pode
direto ao objeto visado. Temos, assim, a se sustentar como possibilidade de
apreensão do fenômeno tal qual nos aparece conhecimento válido das coisas.
originariamente à nossa consciência, ao qual O modelo clássico de ciência,
doamos um sentido. herdado dos modernos, fundado na
Por esta característica (exigência), quantificação e na experimentação
a fenomenologia distingue-se da ciência. Esta vislumbrando o domínio e o controle das
se apresenta como um conhecimento, coisas, possui seu espaço de validade. Não
portadora de um saber, um discurso a respeito podemos negar a contribuição deste modelo
do objeto visado, exterior ao sujeito que para o conhecimento humano, no
conhece. A metodologia científica clássica desenvolvimento da tecnologia e para o
funda-se na distinção clara e inequívoca entre avanço da própria ciência. Configurava-se
sujeito e objeto, que é explicado, e sobre o como uma visão própria do seu tempo, no
qual se procura formular teorias e leis, qual o homem buscava o rompimento de
levando-a à apropriação do mesmo. barreiras culturais e religiosas que o
A formulação de hipóteses impediam de usufruir de toda a sua
apresenta-se como um exemplo típico do capacidade criativa e de investigação a
modo como a ciência, no paradigma vigente, respeito de si mesmo e do seu mundo.
busca conhecer as coisas. Antes do contato Romper com preconceitos, crenças e dogmas
com o fenômeno, já enunciamos algo sobre o exigiu do homem moderno um novo modo de
mesmo. Sobre ele já é dito alguma coisa ser, de ver a si mesmo como construtor da
pressupondo, assim, a existência de algum realidade, como sujeito.
conhecimento por parte do pesquisador a A ciência desconsidera a relação
respeito do que pretende conhecer, um quê que se estabelece entre o homem e o mundo
mínimo. Na verdade, um conhecimento que ao seu redor, partindo do pressuposto da
pode dizer mais a respeito do pesquisador do possibilidade da objetividade, hoje já não tão
que daquilo que é pesquisado. acreditada como outrora. Para a
Tal divergência, no entanto, não fenomenologia conhecer é apropriar-se das
invalida a aproximação entre fenomenologia e essências das coisas, o que só é possível a
ciência. O projeto “husserliano” sustentava-se partir da atribuição de sentido por uma
na fenomenologia como fundamento das consciência, ou seja, o fenômeno é
ciências. Fenomenologia e ciência se indissociável da subjetividade. Daí a
interceptam na medida em que partem do que possibilidade de se propor a uma psicologia
é evidente e buscam o rigor na apreensão dos fenomenológica.
fenômenos. O rigor na perspectiva da ciência
é a condição “sine qua non” no método A PSICOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA
científico, para a validação do conhecimento.
Por outro lado, a descrição rigorosa dos As ciências humanas se deram
modos como os fenômenos se apresentam à conta de que o modelo clássico de ciência não
consciência, sem a emissão de quaisquer abarca o homem como sujeito, mas nem por
juízos sobre os mesmos, constitui a exigência isso deixaram de ocorrer tentativas de
maior da fenomenologia. A evidência, por aproximação. Augusto Comte talvez seja o
outro lado, “autoriza” a emergência do status maior exemplo da tentativa de formatar as
de objeto científico a um dado fenômeno. A ciências humanas aos moldes da ciência
falta de evidência implica a possibilidade da Moderna, que o diga, também a Psicologia,
sua inexistência, de questionamentos, de uma
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no seu “nascimento” enquanto ciência com o complexidade inerente ao próprio objeto,
laboratório de Wundt. como pelo fato de que se trata do humano
A psicologia é uma ciência muito voltando-se para o humano.
jovem, pensando do ponto de vista do seu Assim, o desafio da Psicologia,
reconhecimento acadêmico, na perspectiva da como também das ciências ditas humanas,
ciência positiva. Mas, trata-se de um constitui na busca de referenciais que
conhecimento milenar, que se encontra superem os limites das fronteiras da ciência
presente, por exemplo, em Aristóteles. No clássica, mas também não perca o seu estatuto
sentido epistemológico, no que diz respeito ao de cientificidade, de rigor, a partir da
seu objeto e método(s), tem-se uma evidência dos fatos. Nesta busca corre-se o
diversidade conceitual e teórica, constituindo sério risco de perder seus referenciais
um espectro e abrangendo modelos que científicos e produzir um conhecimento
assumem o paradigma científico experimental fundado na mera intuição sem o necessário
a modelos cujo rigor metodológico não rigor metodológico.
apresenta tanta rigidez. A pluralidade conceitual e
Neste sentido, no que diz respeito metodológica da Psicologia demonstra,
às teorias psicológicas e seus respectivos inequivocamente, o quanto é difícil o caminho
métodos, apresentam-se tão complexas quanto por ela percorrido, no sentido da busca por
à questão do seu objeto. Diferentes matizes uma “unidade epistemológica”; talvez não
permeiam o universo da psicologia, numa desejável nem possível, haja vista a variadas
gama variada de referências, coexistindo possibilidades de ser do ser humano.
perspectivas diametralmente opostas com
princípios inconciliáveis. Trata-se, pois, de O FAZER PSICOLÓGICO FUNDADO
uma questão epistemológica ainda aberta e NUM FAZER FENOMENOLÓGICO
muito complexa, considerando que
contemporaneamente temos uma emergência Diante da crise das ciências com a
de novas teorias, abordagens e áreas de qual se depara, Husserl se propõe a constituir
atuação. uma ciência que seja o fundamento da
Com Wundt, a Psicologia busca o filosofia. Não que ele se oponha ao modelo
reconhecimento como um saber científico, a Moderno de ciência, mas por entender que
partir de estudos experimentais. No entanto, a esta tinha se contaminado por um objetivismo
complexidade da condição humana não é extremado, a ponto de impossibilitá-la de
possível de ser aprendida meramente entre os chegar ao fenômeno tal qual se apresenta, ao
instrumentos dos laboratórios: O ser humano desconsiderar que a relação entre sujeito e
transcende aos seus limites físicos e objeto é determinante na constituição do
observáveis, a existência humana implica uma objeto científico.
relação de alteridade, temporalidade,
fantasias, sentimentos, buscas e tantas outras “O que Husserl acusa com suas questões
questões às quais nos foge a possibilidade de é que, com a prosperidade das ciências
positiva, houve um desvio das questões
medir, observar diretamente e estabelecer leis. decisivas para a humanidade, em outras
Se de um lado as ciências palavras, um completo esquecimento da
humanas e sociais não se conformam ao subjetividade” (GOTO, 2008, pg. 106)
paradigma positivista, por outro a Psicologia,
por ser uma ciência humana do humano, Para Husserl, a psicologia trilha
apresenta-se, de modo peculiar, mais pelo mesmo caminho. No dizer de Goto
desconfortável, por se tratar de um (2008), “da mesma maneira que pergunta
conhecimento cujo objeto de estudo se mostra sobre uma possível crise nas ciências e na
bastante complexo. Tanto por ser uma cultura, Husserl indaga se a Psicologia (...)
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também não sofre uma crise em sua CONCLUSÃO
cientificidade.” No sentido de fundar-se
cientificamente, a psicologia busca a Na medida em que se volta para
compreensão dos fenômenos psicológicos a os fenômenos, a fenomenologia impõe uma
partir dos pressupostos da ciência positiva. crítica à ciência meramente empírica, por
A relação entre Psicologia e entendê-la incapaz de apreensão das coisas
Fenomenologia é bastante próxima. Nasce nas suas constituições originárias, em virtude
com o próprio Husserl, ao fazer a crítica da do seu compromisso com a objetividade. Esta
Psicologia enquanto ciência positiva, se apresenta comprometida, ao olhar
vislumbrando uma psicologia husserliano, uma vez que toda relação entre
fenomenológica. Entende a necessidade da sujeito e objeto se dá mediada pela
Psicologia se voltar para a subjetividade como consciência que lhe atribui um significado.
objeto próprio dela, diferenciando-se da Considerando o contexto no qual
ciência clássica, que via na questão da a ciência psicológica encontra-se emersa, de
subjetividade um empecilho para o uma multiplicidade de abordagens e teorias
conhecimento. que procuram desvendar os fenômenos
psicológicos a partir dos mais distintos, e, não
“Toda a análise que ele propõe através raro, contraditórios referenciais, a
do processo da redução à essência, ou fenomenologia se apresenta como uma
redução transcendental, via entender
como o ser humano é feito. O filosofo
herdeira legítima e direta da filosofia,
Husserl busca assim oferecer comprometida com o saber científico a partir
instrumentos de base para poder da evidência e do rigor, na fundamentação e
construir uma psicologia positiva e, (...) recurso metodológico para a Psicologia.
institui a análise fenomenológica da
subjetividade transcendental como base
para a psicologia” (BELLO, 2004, pg. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
129)
BELLO, Angela Ales. Fenomenologia e
Em Husserl a fenomenologia, ciência humanas. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
mais do que uma orientação metódica, vai se
constituir num fundamento para a Psicologia GOTO, Tommy Akira. Introdução à
ao colocar a subjetividade no âmago da psicologia fenomenológica. A nova psicologia
própria ciência. Ao assim fazer, temos uma de Edmund Husserl. São Paulo: Paulus, 2008.
ruptura com o paradigma clássico de ciência, HUSSERL, Edmund. Ideias para uma
que permite a Psicologia avançar na fenomenologia pura e para uma filosofia
constituição do seu objeto, bem como na fenomenológica. Aparecida, SP: Idéias &
proposição do modo de se fazer ciência, na Letras, 2006.
medida, e mesmo lidando de modo muito
intimo com a subjetividade se mantém no
rigor.
Se a fenomenologia possibilita
uma fundamentação epistemológica e
metódica da Psicologia enquanto ciência ao
construir rigorosamente o conhecimento
psicológico, por outro lado, “também abre
possibilidades para ampliar o entendimento da
psicologia como profissão, seja no âmbito
clínico ou social” (GOTO, 2008, pg. 237).
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