Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
ESTADO DE DIREITO - 16 EDIÇÃO
1. Tribunal de Contas, esse
desconhecido?
Wremyr Scliar informa as
competências do Tribunal
de Contas, desconhecido
de grande parte da opinião
pública, mas muitíssimo
conhecido por aqueles que
são condenados a devolver
valores aos cofres públicos
Página 6
Alimentos reavivando
noções fundamentais
Silvio Venosa comenta os
artigos do Código Civil
que tratam da questão de
alimentos e esclarece aspectos
importantes da distinção
quanto aos alimentos
naturais e civis
Página 14
Direitos do Coração
Ana Jamily Veneroso Yoda
destaca a importância de
levar as crianças a terem
contato com o universo
de direitos que lhes são
assegurados
Página 15
PORTO ALEGRE, AGOSTO E SETEMBRO DE 2008 • ANO III • N° 16 Estado de Direito
Luiz Flávio Gomes
Página 5
Veja também
A conciliação no sistema de
Justiça do Quebec
Louise Otis relata as
razões que orientaram a
instauração da conciliação
judicial e as características
de integração dentro do
sistema de justiça
Página 20
Nepotismo
O STF pode Legislar?
Alimentos Gravídicos
A primeira mulher a ser
Desembargadora do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul Maria Berenice
Dias apresenta a polêmica
questão sobre o Projeto de Lei
7.376/2006, que concede à
gestante o direito de buscar
alimentos durante a gravidez,
re f e re n d a n d o a m o d e r n a
c o n c e p ç ã o d a s re l a ç õ e s
parentais desde a concepção
do nascituro
Página 07
AP
O Jornal Estado de Direito comemora
mais um feito relevante: o I Encontro
Internacional Estado de Direito, em
Brasília. O que era um projeto, agora
é uma realidade que pode estar em
outras cidades que quiserem partilhar
dessa idéia como um meio de discussão
sobre os rumos do Direito no Brasil,
veja nessa edição como foi importante
esse evento. Essas atividades realiza-das
em Shoppings Centers objetivam
transmitir o conhecimento de grandes
juristas que se juntam a nós para
fazer acontecer essa construção de
cidadania. Luiz Flávio Gomes um dos
palestrantes em Brasília, em seu artigo
alerta para os riscos que rondam o
denominado Estado de Direito cons-titucional
e aborda a “judicialização
do Direito” e a decisão do STF sobre
a Súmula vinculante que trata do ne-potismo.
Veja página 13
P a r l a m e n t a r e s : “ O s
parlamentares são os legítimos
e diretos representantes do
povo. Seu produto legislativo,
portanto, quando compatível
com a Constituição, é muito
mais democrático que uma
norma do judiciário.”
Declaração Universal dos
Direitos Humanos
Johanner Van Aggelen faz
um balanço dos 60 anos
ao longo da história, a
formulação jurídica no plano
internacional em regiões e
épocas distintas
Balanço dos 20 anos
da Constituição
O professor Bruno Espiñeira
Lemos apresenta reflexões
sobre os vinte anos da “Cons-tituição
Cidadã”, e observa
que de todas as nossas Cartas
políticas é a mais importante
e responsável por um cenário
democrático jamais vivido com
tamanha plenitude no Brasil
Página 08
II Encontro Nacional
Estado de Direito
em porto alegre
acesse o site e confira a programação www.estadodedireito.com.br
2. Estado 2 de Direito, agosto e setembro de 2008
Estado de Direito
Você faz parte dessa cultura Estado de Direito Comunicação Social Ltda.
O Jornal Estado de Direito desenvolve iniciativas que
fortalecem os ideais de promoção da cultura jurídica pela
cidadania e é com alegria que registramos nessa edição a I
Mostra de Cinema Português, com enfoque jurídico, realiza-da
em Porto Alegre e o I Encontro Internacional Estado de
Direito, em Brasília.
Agradecemos aos palestrantes de ambos eventos que
compartilharam os seus conhecimentos e elucidaram de forma
criativa como o Direito está presente em nosso cotidiano, seja
pelas oficinas de prática jurídica, comentários nos filmes e
palestras com uma linguagem mais simples.
Ressalto o papel das instituições e empresas que patroci-nam
as atividades do Jornal Estado de Direito, pois são elas
que dão vida aos nossos pensamentos. Cada passo conquis-tado
é fruto do apoio e credibilidade que nos dão para que
possamos levar até vocês mais informação e eventos com
renomados profissionais.
A todas as pessoas e empresas dispostas a serem parcei-ras
nessa idéia, convidamos a participar do nosso próximo
evento: II ENCONTRO NACIONAL ESTADO DE DIREITO,
que acontecerá em Porto Alegre.
Quero registrar que a televisão Café & Revista, via inter-net,
com mais de dois milhões de acessos passará a transmitir
pelo site www.cafeerevista.com.br todas as manhãs, às 10 h,
com reprise a noite, às 22 h, o programa “Estado de Direito”
produzido por mim.
De um lado o Jornal, de outro as atividades que fortalecem
o Projeto: “Conhecer o Direito é Desenvolver a Cidadania” e
para por em prática nossas idéias, os esforços são permanentes
e com todo entusiasmo na certeza de que estamos conseguin-do
trazer mais parceiros para juntos levar a cultura jurídica
de forma preventiva para toda sociedade!
Grande abraço,
Carmela Grüne
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Porto Alegre - RS - Brasil
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Carmela Grüne
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Jornalista Responsável
Patrícia Araujo - MTb 11686
Colaboraram nesta Edição
Bayard Fos, Diego Moreira Alves, Fábio Lino, Ayla Barbosa de Amorim,
Edgar Garcia Lira Junior, Jaqueline Muriel Nogueira e Silva, Juliana Gomes
Braggio e Talita Garcia
Redação
redacao@estadodedireito.com.br
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Maceió: Av. Moreira e Silva, 430 - Farol
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Recife: Av. Dantas Barreto, 191 lojas 22 a 24 - TJ
Recife: Rua da Aurora, 325 loja 01
Santa Catarina
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Curitiba: Rua Voluntários da Pátria, 547 - Loja - Centro
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Goiânia Setor Sul: Rua 101 n.º 123 Qd F17 Lt11E - Sala 01 - Setor Sul
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Através de nossos colaboradores, consulados e escritores
o jornal Estado de Direito chega a Portugal, Itália, México,
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*Os artigos publicados nesse jornal são responsabilidade dos autores
e não refletem necessariamente a opinião do Jornal e informa que os
autores são únicos responsáveis pela original criação literária.
Democracia, Judiciário e Associações
de Magistrados
A Constituição brasileira assegura o direito de associação (art.
5º., inciso), que representa a faculdade conferida aos os cidadão
de se reunirem para tratar de interesses comuns, sem que o Estado
possa intervir. É uma manifestação do status negativus.
Os juízes também se organizam em associações, que, de regra,
cuidam de questões que escapam ao âmbito de seus interesses
estritamente profissionais, a exemplo, do recente debate sobre a
investigação da vida pregressa de políticos com vista a registro de
candidaturas a cargos eletivos. Indaga-se porque isso acontece.
Na sociedade atual, caracterizada pelo reconhecimento de
extenso rol de direitos aos cidadãos, os juízes têm um papel de
fundamental importância, por lhes ter sido atribuída a função
de dar efetividade a estes direitos. O estado brasileiro é com-prometido
com um dos principais fundamentos do regime de
democrático – o princípio da proteção judicial, que é o primado
do estado de direito – não é possível um estado de direito sem
leis e sem juízes independentes e imparciais que as apliquem e
lhes garanta efetividade, sendo este um dos principais aspectos
das cartas de direitos, como o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Huma-nos,
dos quais o Brasil é signatário e o art. 5º. da CF do Brasil
(inciso LV).
O meio usual e próprio dos juízes se manifestarem sobre as
questões da vida nacional é o processo judicial, mediante o qual
se busca uma decisão jurídica. Entretanto, este não é o único
meio de os juízes se expressarem. Já é passado o tempo em que
não era dado aos juízes opinar sobre temas políticos de importân-cia
para o desenvolvimento da cidadania e da vida constitucional
da nação e hoje a sociedade espera uma participação mais ativa
da magistratura também no debate político.
De outra parte, diferentemente de outras Instituições, como o
legislativo, ou mesmo a OAB, em que a escolha dos seus represen-tantes
oficiais se dá de forma dialógica, pelo debate do processo
eleitoral, os dirigentes dos órgãos do Poder Judiciário ainda são
escolhidos pelo critério de antiguidade, que, não obstante conferir
relevante contribuição aos que honram a magistratura com sua ex-periência,
alija a magistratura do debate como procedimento pré-vio
de escolha. Por isso, as associações de magistrados cumprem a
relevante função de expressar o pensamento da magistratura.
Além disso, os temas de que mais se ocupam as associações
de magistrados não são reivindicações corporativas, mas questões
que interessam à própria sociedade. Quando, por exemplo, uma
associação defende mais celeridade e efetividade dos processos,
informatização, mais independência para os juízes ou mais res-paldo
às decisões de primeiro grau, está defendendo condições de
trabalho que se confunde com o interesse de toda a sociedade.
Neste contexto é que se compreende porque as associações
de magistrados lançam e se empenham em uma campanha por
eleições limpas. São os interesses da sociedade na preservação da
democracia que se confundem com o interesse da magistratura
no cumprimento da sua missão.
Por isso, é necessário que as associações de magistrados
sejam ouvidas e seus pleitos levados em consideração, pois
atuam não apenas como entidades que representam os interes-ses
profissionais de determinado grupo, mas, sobretudo, como
importantes agentes da democracia. As atividades associativas
aqui destacadas têm se revelado, na prática, como verdadeira
manifestação do status activus, contribuindo para a construção
de um regime cada vez mais democrático.
*Juiz Eleitoral da 1ª. Zona de Brasília e Diretor-Geral da Escola da Magistratura
do Distrito Federal.
Aiston Henrique de Sousa*
3. Estado de Direito, agosto e setembro de 2008 3
Mais de 100 mil aprovados
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4. Estado 4 de Direito, agosto e setembro de 2008
A relativização da coisa julgada e a segurança jurídica à
A coisa julgada afigura-se como ferramenta
imprescindível à pacificação coletiva, pois, a certeza
de uma decisão judicial significa para as partes em
litígio o fim das controvérsias que as mantinham
em constante conflito. Contudo, em que pese sua
importância, não se deve atribuir-lhe valor absoluto,
já que absoluto não é nenhum dos direitos funda-mentais,
nem mesmo o direito à vida.
Nesse contexto, não se pode olvidar que a
garantia da coisa julgada admite relativização. Essa
flexibilização do instituto é materializada à luz do
que Canotilho e Vital Moreira denominam de “Prin-cípio
da Concordância Prática ou da Harmonização”
(Fundamentos da Constituição. Coimbra Editora,
1991, p. 139).
Tratando da relativização da coisa julgada, o in-tricado
problema que se afigura é a busca de solução
ao seguinte impasse: de um lado, há a necessidade
de um sistema processual capaz de garantir a efeti-vação
do Direito e da Justiça; de outro, há a neces-sidade
de preservação da estabilidade das relações
jurídicas, imprescindível à convivência social.
No conflito entre segurança jurídica (coisa
julgada) e Justiça (relativização da coisa julgada),
caberá ao intérprete solucionar o impasse através
da devida ponderação dos interesses envolvidos,
harmonizando-os e identificando a relação de
prevalência entre ambos, sem, no entanto, excluir,
por completo, qualquer deles. É o que se chama de
Princípio da Harmonização.
No caso em espeque, não se pode negar a pri-mazia
da Justiça sobre a garantia da coisa julgada.
O princípio da Justiça das decisões decorre da
própria garantia constitucional de acesso à pres-tação
jurisdicional (Princípio da Inafastabilidade),
prevista no art. 5º, XXXV, da Carta Magna. O
jurisdicionado possui o direito público subjetivo
constitucionalmente assegurado de acesso ao Ju-diciário,
que pressupõe, registre-se, a prestação de
tutela jurisdicional adequada, efetiva e justa. Pedro
Lenza, a esse respeito, esclarece que o Princípio da
Inafastabilidade é chamado por alguns de Princípio
do “acesso à ordem jurídica justa” ou do “acesso
à Justiça”, o que demonstra a íntima e inafastável
relação entre Justiça e tutela jurisdicional. (Direito
Constitucional Esquematizado. São Paulo, 2005,
p. 540).
Ora, a coisa julgada não é absoluta, logo, seus
efeitos restam enfraquecidos diante da exigência do
justo, não havendo como, face ao ideal de Justiça
que permeia a atividade jurisdicional, negar ao
cidadão a possibilidade de correção de uma decisão
errônea.
A Justiça é o princípio maior da Constituição
e, com efeito, todos os demais princípios constitu-cionais
cedem a ela. É inadmissível conviver num
sistema processual em que uma decisão carregada
de carga lesiva não possa ser revertida. São inúmeros
os casos em que se vê, em pólos contrapostos, o
comando legal determinando seja respeitada a coisa
julgada e uma injustiça patente, demonstrada atra-vés
de prova irrefutável. Nessas ocasiões, a garantia
do acesso à ordem jurídica justa repele a perenização
de julgados manifestamente discrepantes com os
ditames da Justiça.
Ademais, a eternização de comandos decisórios
injustos afeta a própria credibilidade do Poder
Judiciário. Quando os críticos à teoria da relativi-zação
falam em perda de credibilidade, no caso da
desconstituição das sentenças definitivas, o que se
observa é exatamente o contrário, vez que descredi-tante
não é a flexibilização ponderada e justificável
da coisa julgada, mas sim ter conhecimento da
existência de um julgado reconhecidamente injusto
e negar à parte a oportunidade de reparação do
equívoco.
Assim, conclui-se que a relativização da coisa
julgada não faz brotar a insegurança jurídica. Pelo
contrário, essa insegurança surge, exatamente, do
envilecimento da prestação jurisdicional, marcado
pela eternização de decisões injustas. Nesse compas-so,
a conclusão a que se chega é que não é razoável
perpetuar injustiças a pretexto de se impedir a
eternização de incertezas.
*Advogado da União – Procurador Chefe da Procuradoria-
Seccional da Advocacia-Geral da União em Petrolina/PE
– Pós-Graduando em Direito Processual Civil pela UNISUL.
Raul Murilo Fonseca Lima*
luz do princípio da harmonização
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5. Estado de Direito, agosto e setembro de 2008 5
Tribunal de Contas - esse desconhecido?
Wremyr Scliar
No programa de divulgação das atividades do Tribunal
de Contas do Rio Grande do Sul, a Escola Superior de
Gestão e Controle Francisco Juruena recebeu um grupo de
alunos da USC, unidade de Nova Prata, os quais assistiram a
uma sessão do Pleno e em seguida tiveram uma explanação
sobre o desenvolvimento de um julgamento que ali acabara
de ocorrer.
O julgamento referia-se às diárias pagas a vereadores
que tinham comparecido, no mês de janeiro, a um congresso
realizado em Itapema, praia localizada em Santa Catarina.
Quando noticiado pela imprensa, houve candentes críti-cas
pela viagem e diárias, noticiada como “farra das diárias”.
O julgamento considerou essas despesas como ilegais
e determinou a devolução dos valores res-pectivos
aos cofres municipais.
Então, lançou-se aos alunos que haviam
assistido ao julgamento o seguinte desafio:
“quem verificar pela imprensa, a partir de
amanhã, a notícia sobre o julgamento do
Tribunal de Contas, será contemplado com
um prêmio”.
O que se pretendia?
Mostrar aos alunos que a mídia, siste-mática,
orgânica e cientificamente, movida
por interesses alheios à administração pú-blica,
promove constantemente campanhas
difamatórias batizadas de farra das diárias,
o ralo do dinheiro dos contribuintes, o caos na saúde, o
desperdício nas obras públicas, a falta de qualidade do
ensino público, corrupção generalizada e assim por diante
muitas outras campanhas.
Entretanto, quando o próprio Estado corrige os erros,
deficiências, pune e manda devolver o dinheiro mal empre-gado,
a mídia silencia integralmente (ou nega-se) a prestar
a informação.
Obviamente, nenhum aluno foi contemplado com o
prêmio porque simplesmente nada, absolutamente nada,
foi noticiado sobre o resultado do julgamento pelo Tribunal
de Contas. Embora fosse aquela uma decisão complexa e
de repercussão jurisprudencial ampla nos processos admi-nistrativos
daquela Corte e nos procedimentos dos gestores
municipais e estaduais objetos de análise pelo Tribunal, para
a mídia não havia interesse, visto que a decisão punitiva era
uma “resposta” às acusações de imoralidade.
O julgamento que os alunos assistiram é um exemplo
paradigmático sobre as competências do Tribunal, assim
como as suas relações com os jurisdicionados, imprensa e
meio acadêmico.
Infelizmente, essa relação, principalmente com a mídia,
está contaminada por motivos políticos que impedem a
fluxo normal e necessário de notícias e informações sobre
as atividades do Tribunal de Contas.
Claro que essa contaminação não se restringe ao Tribunal
de Contas - ela atinge o Legislativo, o Judiciário e as ações
administrativas em gênero.
Por isso, publicações como o “Estado de Direito”, livre
e independe de obscuras campanhas agressivas e negativas
à administração pública, assim como livre e independe de
silêncios igualmente obscuros, são importantes e ressaltam
o necessário cumprimento dos valores constitucionais de
liberdade de imprensa e direito à informação, como reali-zação
da cidadania e dignidade humana.
O Tribunal de Contas, sinteticamente ora informando-se
aos leitores do “Estado de Direito”, tem sede constitucional e
tem a sua principal competência constitucional na emissão do
parecer prévio sobre as contas do chefe do poder executivo
(Presidente, Governadores e Prefeitos), o qual é encaminhado
ao Poder Legislativo corresponde para ser julgado. O julga-mento
não tem as características próprias de um processo
judicial - ele é político. O parecer do Tribunal de Contas pode
ser aprovado ou rejeitado, conseqüência idêntica será adotada
para as contas do chefe do poder executivo.
Cabe acrescer: nas Câmaras de Vereadores, o quorum
para rejeitar o parecer prévio do Tribunal de Contas é de
dois terços, enquanto que nos demais corpos legislativos, a
rejeição pode ser proclamada com maioria simples.
Quanto ao julgamento de “contas”, assinala-se que não se
trata de apreciação contábil, mas do cumprimento das obriga-ções
constitucionais e legais, ou seja, um exame de legitimidade
da ação administrativa do chefe do poder executivo.
O presidentes do corpos legislativo, assim como o pre-sidente
do tribunal judicial e do chefe do ministério público
também têm as suas contas examinadas pelo Tribunal de
Contas, mas nesse caso, a Constituição determina que elas
sejam julgadas mediante decisão que igualmente aprecia a
legitimidade das respectivas ações administrativas.
Por fim, cabe ao Tribunal de Contas apreciar a legalidade
dos atos de admissão, aposentadoria, contratos, editais,
programas administrativos, enfim, a ação administrativa,
exteriorizada por atos e fatos em toda a sua plenitude.
Com isso fica claro que o controle exercido pelo Tribunal
de Contas não é numérico ou aritmético - ele é um exame
de legitimidade (essa entendida como a conformidade ao
sistema jurídico).
O Tribunal de Contas exerce o controle (fiscalização
em sentido amplo) externo (porque localizado em campo
distinto) da administração pública.
Ele é independente, tem autonomia administrativa
e financeira. Diz a Constituição que o controle externo é
competência do Poder Legislativo com o auxílio do Tribunal
de Contas.
Prestar auxílio não é subserviência, dependência ou
hierarquização. Todos os poderes e órgãos de Estado devem-se
auxílio recíproco.
Não é Tribunal caudatário do legislativo: afinal, seus
membros são equiparados a magistrados para fins de inco-lumidade
dos seus julgamentos.
Verdade que o controle externo é atribuição do poder
legislativo. Aliás, no sistema brasileiro, o poder preeminente
é exatamente o legislativo, no qual se elabora o estatuto do
estado e da sociedade. Mas a competência constitucional de
controle externo da administração pública, ativa, técnica e
independente, é atribuída ao Tribunal de Contas.
Com a exceção do parecer prévio emitido sobre as contas
do chefe do poder executivo, nenhuma outra decisão ou
apreciação do Tribunal de Contas é submetida ao Poder
Legislativo.
Tribunal é; mas “sui generis”, disse Rui Barbosa. Ins-tituição
de Estado entre os poderes, sem ancoragem com
nenhum deles.
Por essa razão, indaga-se: depois da privatização das
principais atividades de infra-estrutura econômica do Estado
(energia elétrica, minérios e telecomunicações) qual ou quais
as próximas presas do mercado que a iniciativa privada
cobiça com tanta voracidade?
Pode ser o judiciário, ou o ministério público...Também
pode ser o “incômodo” (para o mercado e a sua mídia)
Tribunal de Contas.
O Tribunal de Contas pode ser desconhecido de grande
parte da opinião pública.
Mas ele é muitíssimo conhecido por aqueles que são
condenados a devolver dinheiros públicos, pagar multar ou
desfazer atos ou contratos.
Também ele é muitíssimo conhecido por aqueles que
sonham (o nosso pesadelo) em auferir pagamentos em níveis
internacionais por serviços (mal prestados) de auditoria
ao Estado.
Quanto ao obsequioso silêncio ou difamação midiática,
e por esse motivo, pode-se afirmar: nesse contexto factual,
há uma evidente frustração na concretização dos valores
da república e da democracia. Os cidadãos estão sendo
impedidos de conhecer e avaliar livremente o controle que
é exercido pelo Tribunal de Contas.
Isso é crime. E grave.
Wremyr Scliar é Mestre em Direito
do Estado, Diretor da Escola Supe-rior
de Gestão e Controle Francisco
Juruena do Tribunal de Contas - RS e
Professor de Direito Administrativo
da Fac. de Direito - PUC.
6. Estado 6 de Direito, agosto e setembro de 2008
Alimentos: reavivando noções fundamentais
Formado pela Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo (1969),
cursou o Curso de Direito do Consumi-dor
na Comunidade Européia, Univer-sidade
de Louvain-la-Neuve, Bélgica
(1993). Foi juiz no Estado de São Paulo
por 25 anos tendo se aposentado como
magistrado do antigo Primeiro Tribu-nal
de Alçada Civil.
Foi professor em várias faculdades
de Direito no Estado de São Paulo. É
também professor convidado e
palestrante em instituições docentes e
profissionais de todo o país e membro
da Academia Paulista de Magistrados
(APAMAGIS), Associação dos
Magistrados Brasileiros. Autor de di-versas
obras destaco ‘Primeiras Linhas
- Introdução ao Estudo do Direito’,
publicado pela Editora Atlas.
Sílvio de Salvo Venosa
CHRISTINA RUFATTO
O ser humano, desde o nascimento até sua morte, necessita de
amparo de seus semelhantes e de bens essenciais ou necessários para
a sobrevivência. Nesse aspecto, realça-se a necessidade de alimentos.
Desse modo, o termo alimentos pode ser entendido, em sua conotação
vulgar, como tudo aquilo necessário para sua subsistência. Acrescen-temos
a essa noção o conceito de obrigação que tem uma pessoa de
fornecer esses alimentos a outra e chegaremos facilmente à noção
jurídica. No entanto, no Direito, a compreensão do termo é mais am-pla,
pois a palavra, além de abranger os alimentos propriamente ditos,
deve referir-se também à satisfação de outras necessidades essenciais
da vida em sociedade.
O Código Civil, nos arts. 1.694 a 1.710 não se preocupou em
definir o que se entende por alimentos. Porém, no art. 1.920 encon-tramos
o conteúdo legal de alimentos quando a lei refere-se ao legado:
“O legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vestuário e a
casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se ele for menor.”
Assim, alimentos, na linguagem jurídica, possuem significado bem
mais amplo do que o sentido comum, compreendendo, além da
alimentação, também o que for necessário para moradia, vestuário,
assistência médica e instrução. Os alimentos, assim, traduzem-se em
prestações periódicas fornecidas a alguém para suprir essas necessi-dades
e assegurar sua subsistência. Nesse quadro, a doutrina costuma
distinguir os alimentos naturais ou necessários, aqueles que possuem
alcance limitado, compreendendo estritamente o necessário para a
subsistência; e os alimentos civis ou côngruos, isto é, convenientes,
que incluem os meios suficientes para a satisfação de todas as outras
necessidades básicas do alimentando, segundo as possibilidades do
obrigado. O Código de 1916 não distinguia essas duas modalidades,
mas o atual Código o faz (art. 1.694), discriminando alimentos neces-sários
ao lado dos indispensáveis, permitindo ao juiz que fixe apenas
estes últimos em determinadas situações restritivas. No § 2º, encon-tra-
se a noção destes: “Os alimentos serão apenas os indispensáveis à
subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de
quem os pleiteia.” Por outro lado, o § 1º estabelece a regra geral dos
alimentos amplos, denominados côngruos ou civis: “Os alimentos
devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e
dos recursos da pessoa obrigada.”
Nosso Código Civil anterior originalmente disciplinara a obrigação
alimentar dentre os efeitos do casamento, inserindo-a como um dos
deveres dos cônjuges (“mútua assistência”, art. 231, III e “sustento,
guarda e educação dos filhos”, art. 231, IV), bem como mencionando
competir ao marido, como chefe da sociedade conjugal, “prover a ma-nutenção
da família” (art. 233, IV), além de fazer a obrigação derivar
do parentesco (arts. 396 ss). A legislação complementar posterior, por
força das sensíveis transformações sociológicas da família, já analisadas
nesta obra, introduziu várias nuanças na regulamentação do instituto.
Anote-se também que há interesse público nos alimentos, pois se os
parentes não atenderem às necessidades básicas do necessitado, haverá
mais um problema social que afetará os cofres da Administração.
Em linha fundamental, quem não pode prover a própria subsis-tência
nem por isso deve ser relegado ao infortúnio. A pouca idade,
a velhice, a doença, a falta de trabalho ou qualquer incapacidade
pode colocar a pessoa em estado de necessidade alimentar. A socie-dade
deve prestar-lhe auxílio. O Estado designa em primeiro lugar
os parentes para fazê-lo, aliviando em parte seu encargo social. Os
parentes podem exigir uns dos outros os alimentos e os cônjuges
devem-se mútua assistência. A mulher e o esposo, não sendo parentes
ou afins, devem-se alimentos com fundamento no vínculo conjugal.
Também os companheiros em união estável estão na mesma situação
atualmente. Daí decorre, igualmente, o interesse público em matéria
de alimentos. Como vemos, a obrigação alimentar interessa ao Estado,
à sociedade e à família.É importante ressaltar uma distinção que tem
reflexos práticos: o ordenamento reconhece que o parentesco, o jus
sanguinis, estabelece o dever alimentar, assim como aquele decorrente
do âmbito conjugal definido pelo dever de assistência e socorro mútuo
entre cônjuges e, modernamente, entre companheiros. Existe, pois,
no ordenamento, uma distinção entre a obrigação alimentar entre
parentes e aquela entre cônjuges ou companheiros. Ambas, porém,
são derivadas da lei.
É enorme a pletora de ações de alimentos em nossas cortes, de
modo que as questões exigem muita dedicação e perspicácia dos
magistrados e operadores jurídicos em geral, em nação de acentuada
pobreza e com injusta distribuição de riquezas.
O art. 1.695 estabelece os pressupostos da obrigação alimentar:“São
devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens sufi-cientes,
nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e
aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do
necessário ao seu sustento.” O dispositivo coroa o princípio básico
da obrigação alimentar pelo qual o montante dos alimentos deve ser
fixado de acordo com as necessidades do alimentando e as possibili-dades
do alimentante
O Projeto do Estatuto das Famílias (nº 2285/2007), elaborado
por iniciativa do IBDFAM, apresenta uma diferente compreensão dos
alimentos: “Podem os parentes, cônjuges, conviventes ou parceiros
pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver com
dignidade e de modo compatível com a sua condição social” (art.
115). Aqui o princípio da vida com dignidade tem proeminência,
já trazendo esse projeto a possibilidade de alimentos entre parceiros
homoafetivos.
Não se pretende que o fornecedor de alimentos fique entregue à
necessidade, nem que o necessitado se locuplete a sua custa. Cabe ao
juiz ponderar os dois valores de ordem axiológica em destaque, bem
como a vida com dignidade não somente de quem recebe os paga.
Destarte, só pode reclamar alimentos quem comprovar que não pode
sustentar-se com seu próprio esforço. Não podem os alimentos conver-ter-
se em prêmio para os néscios e descomprometidos com a vida. Se,
no entanto, o alimentando encontra-se em situação de penúria, ainda
que por ele causada, poderá pedir alimentos. Do lado do alimentante,
como vimos, importa que ele tenha meios de fornecê-los: não pode
o Estado, ao vestir um santo, desnudar o outro. Não há que se exigir
sacrifício do alimentante. Lembre-se de que em situações definidas
como sendo de culpa do alimentando, os alimentos serão apenas os
necessários, conforme o § 2º do art. 1.694, mas os demais princípios
continuam aplicáveis.
O art. 1.694 assegura, em terminologia inovadora, que os alimen-tos
devem preservar a condição social de quem os pleiteia. Assim, o
novel ordenamento civil é claro no sentido de que os alimentos devem
preservar o status do necessitado. Se isto estava, de uma maneira ou
de outra, presente nas petições dos alimentandos no passado, com
respaldo por vezes nas decisões, tal não constava de texto legal expres-so.
Essa expressão é de total impropriedade, pois pode dar margem
a abusos patentes. Daí por que o texto legal vigente “compatível com
sua condição social” deve ser substituído pela ênfase à dignidade do
necessitado de alimentos, como já faz o citado projeto mencionado.
Também se mostra inadequada a generalização de alimentos que in-cluam
necessidades de educação para todos os parentes e o cônjuge
ou companheiro. As necessidades de educação devem ser destinadas
exclusivamente aos filhos menores e jovens até completar o curso
superior, se for o caso.
Por outro lado, as condições de fortuna de alimentando e ali-mentante
são mutáveis, razão pela qual também é modificável, a
qualquer momento, não somente o montante dos alimentos fixados,
como também a obrigação alimentar pode ser extinta, quando se
altera a situação econômica das partes. O alimentando pode passar
a ter meios próprios de prover a subsistência e o alimentante pode
igualmente diminuir de fortuna e ficar impossibilitado de prestá-los.
Daí por que sempre é admissível a ação revisional ou de exoneração
de alimentos (art. 1.699).
Os alimentos aqui enfocados são aqueles derivados de direito
de família, do casamento e do companheirismo, portanto obrigação
legal. No entanto, os alimentos, com a mesma compreensão básica,
podem decorrer da vontade, serem instituídos em contrato gratuito ou
oneroso e por testamento, bem como derivar de sentença condenatória
decorrente de responsabilidade civil aquiliana. Nada impede, embora
raro seja, dentro da autonomia da vontade, que os interessados con-tratem
pensão alimentícia, nem que por testamento ou doação seja ela
atribuída. A obrigação alimentar conseqüente da prática de ato ilícito
constitui uma forma de reparação do dano. Nesse sentido, o art. 948,
II, estipula como uma das modalidades de indenização para o caso de
homicídio, a “prestação de alimentos a quem o defunto os devia”. O
art. 950 determina a fixação de uma pensão proporcional no caso de
ofensas físicas, quando a vítima tem sua capacidade funcional debi-litada
ou diminuída. O regime jurídico desses alimentos de natureza
diversa, embora tenham particularidades próprias, obedece a um
sistema ao menos análogo. Nada obsta que, perante a omissão da lei
ou dos declarantes de vontade, os princípios alimentares do direito
7. Estado de Direito, agosto e setembro de 2008 7
de família sejam utilizados na interpretação.
Quanto à finalidade, denominam-se alimentos
provisionais ou provisórios aqueles que precedem ou
são concomitantes a uma demanda de separação judi-cial,
divórcio, nulidade ou anulação de
casamento, ou mesmo ação de alimentos.
Sua finalidade é propiciar meios para que
a ação seja proposta e prover a mantença
do alimentando e seus dependentes du-rante
o curso do processo. São regulares
ou definitivos os alimentos estabelecidos
como pensão periódica, ainda que sempre
sujeitos à revisão judicial. A referência aos
alimentos provisionais no presente Código
Civil é feita no art. 1.706, que determi-na
que se obedeça à lei processual. Os
alimentos provisionais são estabelecidos
quando se cuida da separação de corpos,
prévia à ação de nulidade ou anulação
de casamento, de separação ou divórcio.
Nesse caso, os provisionais devem perdu-rar
até a partilha dos bens do casal. Mas
os alimentos provisórios podem ser requeridos sempre
que movida a ação de alimentos, com fixação initio litis
(art. 4º da Lei nº 5.478/68), desde que já haja prova
pré-constituída do dever de prestá-los. Provisórios ou
provisionais, pouco importando sua denominação, sua
compreensão e finalidades são idênticas.
Quanto ao tempo em que são concedidos, os ali-mentos
podem ser futuros ou pretéritos. Futuros são
aqueles a serem pagos após a propositura da ação; pre-téritos,
os que antecedem a ação. Em nosso sistema, não
são possíveis alimentos anteriores à citação, por força da
Lei nº 5.478/68 (art. 13, § 2º). Se o necessitado bem ou
mal sobreviveu até o ajuizamento da ação, o direito não
lhe acoberta o passado. Alimentos decorrentes da lei são
devidos, portanto, ad futurum, e não ad praeteritum. O
contrato, a doação e o testamento podem fixá-los para
o passado, contudo, porque nessas hipóteses não há
restrições de ordem pública.
O art. 1.701 também faculta ao devedor prestar
alimentos sob a forma de pensão periódica ou sob
a forma de concessão de hospedagem e sustento ao
alimentando. Essa modalidade somente se aplica aos
alimentos derivados do parentesco e não se aplicará, em
princípio, aos alimentos decorrentes do casamento ou
da união estável. O Projeto nº 6.960 tentou fazer esse
acréscimo para deixar esse aspecto expresso. O art. 25
da Lei nº 5.478/68 eliminara em parte essa faculdade
do devedor, estabelecendo que a prestação não pecu-niária
só pode ser autorizada pelo juiz se com ela anuir
o alimentando capaz. De qualquer modo, compete ao
juiz estabelecer as condições dessa pensão, conforme
as circunstâncias.
Na maioria das vezes, a obrigação alimentar gira
em torno de uma quantia em dinheiro a ser fornecida
periodicamente ao necessitado. O fornecimento direto
de alimentos no próprio lar do alimentante caracteriza
a denominada obrigação alimentar própria, pouco
utilizada na prática, em razão das inconveniências que
apresenta. Sem dúvida, duas pessoas que se digladiam
em processo judicial não serão as melhores companhias
para conviver sob o mesmo teto. Desse modo, embora
a lei faculte ao alimentante escolher a modalidade de
prestação, o juiz poderá impor a forma que melhor
atender ao caso concreto, de acordo com as circuns-tâncias,
conforme estampado no parágrafo único do
mencionado art. 1.701. É inócuo para o demandado
alegar, em sua defesa, no pedido de alimentos, que já
vem fornecendo sustento e morada ao reclamante: essa
matéria deverá ser sopesada na ação, sempre podendo
o necessitado pleitear judicialmente a regulamentação
da prestação alimentícia.
Não se esqueça também da distinção feita de plano
no início deste capítulo quanto aos alimentos naturais
ou necessários e os alimentos civis ou côngruos.
O tema é por demais amplo, com inúmeros detalhes,
os quais pretendemos enfocar em próximos escritos.
Alimentos gravídicos?
Maria Berenice Dias*
A expressão é feia, mas o seu significado é dos mais
salutares. Aguarda a sanção presidencial o Projeto de Lei
7.376/2006 que concede à gestante o direito de buscar ali-mentos
durante a gravidez, daí “alimentos gravídicos.”
Ainda que inquestionável a responsabilidade parental
desde a concepção, o silêncio do legislador sempre gerou
dificuldade para a concessão de alimentos ao nascituro.
Raras vezes a Justiça teve a oportunidade de reconhecer a
obrigação alimentar antes do nascimento, pois o art. 2º da
Lei de Alimentos exige prova do parentesco ou da obrigação.
O máximo a que se chegou foi, nas ações investigatórias de
paternidade, deferir alimentos provisórios
quando há indícios do vínculo parental.
Também após o resultado positivo do teste de
DNA ou quando se nega o réu a submeter-se à
perícia serve de fundamento para a antecipação
da tutela alimentar.
Assim, em muito boa hora é preenchida
injustificável lacuna. Porém, muitos são os
equívocos da lei, a ponto de questionar-se a
validade de sua aprovação. Apesar de apa-rentemente
consagrar o princípio da proteção
integral, visando assegurar o direito à vida do
nascituro e de sua genitora, nítida a postura
protetiva em favor do réu. Gera algo nunca
visto: a responsabilização da autora por danos
materiais e morais a ser apurada nos mesmos autos, caso o
exame da paternidade seja negativo. Assim, ainda que não
tenha sido imposta a obrigação alimentar, o réu pode ser
indenizado, pelo só fato de ter sido acionado em juízo. Esta
possibilidade cria perigoso antecedente. Abre espaço a que,
toda ação desacolhida, rejeitada ou extinta confira direito
indenizatório ao réu. Ou seja, a improcedência de qualquer
demanda autoriza pretensão por danos materiais e morais.
Trata-se de flagrante afronta o princípio constitucional de
acesso à justiça (CF, art. 5º, inc. XXXV), dogma norteador
do estado democrático de direito.
Ainda que salutar seja a concessão do direito, de forma
para lá de desarrazoada é criado um novo procedimento.
Talvez a intenção tenha sido dar mais celeridade ao pedido,
mas imprime um rito bem mais emperrado do que o da Lei
de Alimentos.
O primeiro pecado é fixar a competência no domicílio
do réu (CPC, art. 94), quando de forma expressa o estatuto
processual concede foro privilegiado ao credor de alimentos
(CPC, art. 100, inc. II). De qualquer modo, a referência há
que ser interpretada da forma que melhor atenda ao interesse
da gestante, a quem não se pode exigir que promova a ação
no local da residência do devedor de alimentos.
A outra incongruência é impor a realização de audiência
de justificação, mesmo que sejam trazidas provas de o réu
ser o pai do filho que a autora espera. Da forma como está
posto, é necessária a ouvida da genitora, sendo facultativo
somente o depoimento do réu, além de haver a possibilidade
de serem ouvidas testemunhas e requisitados documentos.
Porém, congestionadas como são as pautas dos juízes, mesmo
sem a audiência, convencido da existência de indícios da
paternidade, indispensável reconhecer a possibilidade de ser
dispensada a solenidade para a fixação dos alimentos.
Mas há mais. É concedido ao réu o prazo de resposta de
5 dias. Caso ele se oponha à paternidade a concessão dos
alimentos vai depender de exame pericial. Este, às claras é o
pior pecado da lei. Não há como impor a realização de exame
por meio da coleta de líquido amniótico, o que pode colocar
em risco a vida da criança. Isso tudo sem contar com o custo
do exame, que pelo jeito terá que ser suportado pela gestante.
Não há justificativa para atribuir ao Estado este ônus. E, se
depender do Sistema Único de Saúde, certamente o filho
nascerá antes do resultado do exame.
Os equívocos vão além. Mesmo explicitado que os
alimentos compreendem as despesas desde a concepção
até o parto, de modo contraditório é
estabelecido como termo inicial dos
alimentos a data da citação. Ninguém
duvida que isso vai gerar toda a sorte
de manobras do réu para esquivar-se
do oficial de justiça. Ao depois, o
dispositivo afronta jurisprudência
já consolidada dos tribunais e se
choca com a Lei de Alimentos, que de
modo expresso diz em seu art. 4º: ao
despachar a inicial o juiz fixa, desde
logo, alimentos provisórios.
Preocupa-se a lei em explicitar
que os alimentos compreendem as
despesas adicionais durante o perío-do
de gravidez, da concepção ao par-to,
identificando vários itens: alimen-tação
especial, assistência médica e
psicológica, exames complementares,
internações, parto, medicamentos
e demais prescrições preventivas e
terapêuticas indispensáveis, a juízo
do médico. Mas o rol não é exaustivo,
pois o juiz pode considerar outras
despesas pertinentes.
Quando do nascimento, os alimentos mudam de na-tureza,
se convertem em favor do filho, apesar do encargo
decorrente do poder familiar ter parâmetro diverso, pois deve
garantir ao credor o direito de desfrutar da mesma condição
social do devedor (CC, art. 1.694). De qualquer forma, nada
impede que o juiz estabeleça um valor para a gestante, até o
nascimento e atendendo ao critério da proporcionalidade, fixe
alimentos para o filho, a partir do seu nascimento.
Caso o genitor não proceda ao registro do filho, e inde-pendente
de ser buscado o reconhecimento da paternidade,
a lei deveria determinar a expedição do mandado de registro.
Com isso seria dispensável a propositura da ação investiga-tória
da paternidade ou a instauração do procedimento de
averiguação, para o estabelecimento do vínculo parental
(Lei 8.560/92).
Apesar das imprecisões, dúvidas e equívocos, os alimen-tos
gravídicos vêm referendar a moderna concepção das rela-ções
parentais que, cada vez com um colorido mais intenso,
busca resgatar a responsabilidade paterna. Mas este fato, por
si só, não absolve todos os pecados do legislador.
* Vice Presidente Nacional do IBDFAM, Desembargadora Apoenstada
do TJRS, Mestre em Direito
“Cabe ao juiz ponderar os
dois valores de ordem
axiológica em destaque,
bem como a vida com
dignidade não somente de
quem recebe os paga ”
“Não há como impor a
realização de exame por meio
da coleta de líquido amniótico,
o que pode colocar em risco a
vida da criança. Isso tudo sem
contar com o custo do exame,
que pelo jeito terá que ser
suportado pela gestante.”
8. Estado 8 de Direito, agosto e setembro de 2008
Um sintético balanço dos 20 anos da
Constituição de 1988
A bela moça que completa vinte anos em outubro
de 2008 foi gestada e gerada por uma Assembléia
Nacional Constituinte instalada em 1º de fevereiro
de 1987, sob a presidência do Ministro Moreira
Alves, então presidente do STF e já no dia seguinte,
foi escolhido presidente o Deputado Federal Ulysses
Guimarães.
Os trabalhos de discussão foram realizados por
24 (vinte e quatro) subcomissões que tiveram as
suas conclusões aperfeiçoadas por 8 (oito) comissões
temáticas e que por sua vez encaminharam o ante-projeto
à Comissão de Sistematização presidida pelo
relator Deputado Federal Bernardo Cabral.
É interessante destacar que no seio da Constituin-te
foram travados debates acalorados, com diversos
grupos de pressão buscando influenciar o texto final
da nova Carta, verdadeiros “fatores reais de poder”, na
ótica de Lassalle. Cada um deles com os seus graus e
níveis de influência, em sua grande maioria, utilizan-do-
se de mecanismos legítimos de pressão.
Entre tese, antítese e síntese geradora da nossa
Constituição Federal de 1988 ocorreram cerca de
(21.000) vinte e uma mil emendas de Plenário, além
das emendas populares que remontaram a cento e
vinte. Após um trabalho final concentrado nasceu a
nossa Carta democrática com 245 (duzentos e qua-renta
e cinco) artigos no corpo principal, seguidos
de outros 70 (setenta) artigos contidos nos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias.
Desde a sua promulgação em 05 de outubro de
1988, com a finalidade de propiciar o seguimento do
avanço democrático, embora nem sempre sendo esta
a tônica das “mudanças”, foram realizadas 6 (seis)
Emendas de Revisão e outras 56 (cinqüenta e seis)
Emendas Constitucionais.
Para regulamentar os dispositivos da Carta de 88
foram promulgadas 67 (sessenta e sete) leis comple-mentares
e 38 (trinta e oito) leis ordinárias.
Trata-se sem sombra de dúvida, de uma Carta
analítica, detalhista e minuciosa, todavia, diante da
força dos legítimos grupos de pressão aliada à dimen-são
da expectativa de uma sociedade que buscava uma
reconstrução depois das sombras em que viveu, nos
parece ter sido ela a melhor síntese que se poderia
alcançar, diante do seu claro conteúdo afirmativo.
Respeitou-se, na medida do possível, toda a
carga valorativa dos pleitos contidos e latentes, e,
em grande parte, finalmente externalizados sob um
cenário democrático que se descortinava.
O que de novo trouxe a Constituição-cidadã?
Em primeiro lugar e na mesma ordem de
importância restabeleceu a democracia no Brasil,
instaurando o Estado Democrático de Direito (v.
Preâmbulo e art. 1º, além da força irradiadora de
diversos dispositivos contidos no seu ventre), após
mais de duas décadas de um regime militar vigente
sob o Estado de exceção dos Atos Institucionais,
Adicionais e Complementares que se sobrepunham
à própria Constituição formal de então (1967 e EC
1/1969).
Ao lado da importância conferida aos Municípios
na nova Federação que se instaurou, agora com novas
bases e diretrizes ditadas para a União, para os Esta-dos
e para os Municípios, merece destaque como um
dos seus “Princípios Fundamentais”, o princípio-regra
da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III).
Seguindo a linha da democracia nascente, de
implemento da soberania popular, percebe-se a sua
carga intencionalmente mitigada entre as modalida-des
representativa e participativa (esta ainda pouco
explorada em favor da coletividade), o que se lê nos
ditames do art. 1º, Parágrafo único, combinado com
o art. 14), sem perder-se de vista, a consagração do
pluralismo político (art. 1º, V).
A garantia do equilíbrio e da harmonia entre
os poderes ou funções do Estado, com a sua carga
histórica contra o absolutismo é um elemento claro
de fortalecimento de um real Estado Democrático de
Direito (art. 2º).
Quando se elegeu como objetivos fundamentais
da República Brasileira, a construção de uma socie-dade,
livre, justa e solidária (art. 3º, I), a erradicação
da pobreza e da marginalização, além da redução
das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), o
constituinte originário firmou um compromisso com
a sociedade brasileira e outorgou este compromisso
a cada um dos legisladores e gestores públicos do
país, em cada uma das suas esferas de governo, de-monstrando
se tratar agora o país, de uma República
Federativa, Democrática e fundada em ditames de um
Estado Social, ainda que a livre iniciativa assegurada
seja um componente, não excludente, que acrescenta
também o cunho Liberal ao novo Estado.
Quando a Carta de 88 prosseguiu elencando
dentre os objetivos da nova ordem constitucional,
o da promoção do bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação (art. 3º, IV) deixou claro
que o nosso país, se não respeitava, necessariamen-te
deverá respeitar a sua pluralidade, com o seu
componente muticultural e multiétnico, ainda que
para isso seja necessária a mão forte e punitiva do
Estado (Leis 7.716/89; 8.081/90; 9.459/97; Dec.
5.397/2005, dentre outras) que punem as discrimi-nações
delituosas.
Logo após consagrar a prevalência dos direitos
humanos nas suas relações internacionais (art. 4º, II),
a Constituição de 1988 brindou a sociedade brasileira
com o seu art. 5º e seus atuais 78 (setenta e oito) inci-sos
e 4(quatro) parágrafos, verdadeira Declaração de
Direitos Fundamentais, não por menos, denominado
no Título dos “Direitos e Garantias Fundamentais”,
como o Capítulo “Dos Direitos e Deveres Individuais
e Coletivos”.
Nas Constituições editadas sob o regime militar
(art. 150, da Constituição de 1967 e art. 153, da
Emenda n. 1 de 1969) havia a previsão formal de
proteção do direito à vida, a igualdade, a liberdade, a
segurança, o princípio da legalidade, a liberdade de
pensamento e de crença religiosa, a inviolabilidade
da correspondência, a proteção da propriedade, a
liberdade de reunião e de associação, “protegia-se” a
casa como asilo inviolável, o sigilo das comunicações
telegráficas e telefônicas, previa a ampla defesa, o
mandado de segurança, o habeas corpus, a ação
popular, o direito de petição, a assistência judiciária
gratuita, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e
a coisa julgada, a liberdade de ofício ou profissão e a
garantia de acesso ao Judiciário.
A propósito, o formalismo constitucional pós-64
entendia também que o Estado brasileiro se encon-trava
sob um “regime democrático”, tanto assim que
estabelecia que: “o abuso de direito individual ou
político, com o propósito de subversão do regime
democrático ou de corrupção, importará a suspensão
daqueles direitos de dois a dez anos...” (art. 154, Carta
de 1969, destaque nosso).
Essa breve digressão serve tão-somente para
demonstrar que a Constituição meramente formal,
sem legitimidade e carga potencial de aplicabilidade
concreta, ainda que a sua efetividade apenas venha
a se materializar ao longo do tempo, não passa de
simples “folha de papel”, em expressão tomada de
empréstimo de Lassalle.
Sob um real manto democrático, a Constituição de
1988 trouxe petrificados e auto-aplicáveis os direitos
e garantias previstos no seu art. 5º, com efetivação
possível, caso não obedecidos pelos agentes públicos,
fazendo-se uso dos mecanismos processuais assegura-dores
previstos no mesmo dispositivo constitucional
(Habeas corpus, mandado de segurança individual e
coletivo – este último, novidade no histórico consti-tucional
brasileiro, juntamente com o habeas data e
o mandado de injunção).
A “função social” da propriedade (art. 5º, XXIII,
art. 170, III e art. 186), embora prevista na Emenda
n. 1/69 (art. 160, III), constitui-se em novidade cons-titucional
no que diz respeito à sua efetiva aplicação
no processo de desconcentração improdutiva do uso
da terra, de incentivo à reforma agrária e na própria
política de ordenamento do solo e da política urbana
(arts. 182 a 185).
Os direitos sociais previstos no art. 6º, que con-sagrou
os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à
moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à
proteção à maternidade e à infância e assistência aos
desamparados, é dispositivo com carga de irradiação
sobre os artigos que compõem o Título da “Ordem
Social” (arts. 193 a 217) e significam cobrança dos
governantes por efetivação das respectivas políticas
públicas.
As conquistas dos trabalhadores e das associações
sindicais encontram-se consagradas nos arts. 7º e 8º,
afigurando-se como mecanismos pioneiros em nossa
ordem constitucional, o seguro-desemprego, a licen-ça-
paternidade, a garantia contra a despedida injusta,
garantia de salário nunca inferior ao mínimo, 13º salá-rio,
proteção do trabalho do portador de deficiência,
proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre
para menores de dezoito anos e que qualquer espécie
de trabalho para os menores de dezesseis anos, salvo
na condição de aprendiz, somente é possível a partir
dos quatorze anos, além da previsão dos direitos dos
trabalhadores domésticos, a estabilidade do dirigente
sindical, dentre alguns outros.
Como já dissemos a Carta de 88 seguiu no desejo
de uma democracia também de cunho participa-tivo,
quando consagrou que a soberania popular
será exercida não apenas com o sufrágio universal,
consubstanciado no voto direto e secreto, com igual-dade
de valor entre os eleitores, mas também com o
exercício do plebiscito, do referendo e da iniciativa
popular (art. 14).
Garantiu à administração pública os princípios
da legalidade, impessoalidade, moralidade, publi-cidade
e agora o da eficiência (EC 19/98), além da
regra da acessibilidade ao serviço público, por via
de concurso público.
O Poder Judiciário e os magistrados foram
destinatários de garantias efetivas para o exercício
das suas funções judicantes, de modo independente
e o Ministério Público separou-se da Advocacia de
Estado conquistando relevo sem par no funcio-namento
das instituições democráticas, sendo-lhe
atribuído tamanho grau de autonomia que muito o
aproximou de um “quarto Poder”. O surgimento da
Defensoria Pública foi uma importante conquista,
embora ainda pendente de um nível adequado de
efetivação que atenda aos anseios da população que
não pode custear um advogado quando necessário,
Bruno Espiñeira Lemos*
“Como já dissemos a Carta
de 88 seguiu no desejo de
uma democracia também
de cunho participativo,
quando consagrou que a
soberania popular será
exercida não apenas com
o sufrágio universal,
consubstanciado no voto
direto e secreto, com
igualdade de valor entre os
eleitores, mas também com
o exercício do plebiscito,
do referendo e da iniciativa
popular (art. 14).”
9. Estado de Direito, agosto e setembro de 2008 9
sem prejuízo do seu sustento e dos seus familiares,
possibilitando um real acesso ao Judiciário.
A Polícia Federal, embora já existisse no cenário
pretérito, somente com a Constituição de 1988
alcançou posto e status constitucional de “órgão
permanente”. Ou seja, poderá até ser modificada a
sua estrutura e funcionamento, nos limites da norma
constitucional, mas jamais extinta.
O Meio Ambiente também foi aquinhoado
com densa previsão que possibilitou o início de
sua proteção (art. 225, com seus sete incisos e seis
parágrafos). O respaldo constitucional à Cultura e à
Ciência e Tecnologia são elementos cruciais para que
o povo brasileiro alcance o seu merecido espaço em
suas relações internas, fortalecidas e consolidadas
com o respeito à sua identidade cultural que é plu-ral,
somando-se em matéria de ciência e tecnologia
a investimentos que se revertam em benefício da
coletividade.
Especial cuidado foi dedicado à família, aos
idosos, às crianças e aos adolescentes e também
às pessoas portadoras de deficiências (art. 226 a
230).
Os povos indígenas tiveram a sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições reco-nhecidas
em conjunto com os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupavam,
cujas demarcações são de atribuição da União (art.
231).
A Carta de 88 e o cenário jurídico nacional
não vivem apenas da legislação que complementa
a Constituição. O texto constitucional com a sua
natureza irradiadora sobre todo o edifício jurídico
brasileiro inspirou dezenas de leis específicas, edita-das
não necessariamente como normas diretamente
regulamentadoras da Constituição em si, e, sim, na
condição de irradiadas pelos marcos referenciais
constitucionais, surgindo dentre diversas normas,
como dignas de nota:
- Em matéria de proteção ao consumidor (art.
5º, XXXII e art. 170, V) a Lei n. 8.078/1990, co-nhecida
como Código de Defesa do Consumidor,
que revolucionou as relações de consumo no Brasil,
citando-se apenas um dentre diversos outros pontos
dignos de destaque no referido diploma, que é a
possibilidade de desconsideração da personalidade
jurídica da empresa que, em detrimento do consu-midor,
“abuse de direito, excesso de poder, infração
da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos
ou contrato social. A desconsideração também
será efetivada quando houver falência, estado de
insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa
jurídica provocados por má administração.”
- A Lei n. 8.080/90 que instituiu o sistema único
de saúde, o SUS, somando-se a ela, dezenas de
outras normas que permitem a gradual implantação
das políticas públicas de saúde e que tratam desde
os procedimentos para transplantes, fornecimento
de medicamentos de alto custo, distribuição de
medicamentos aos portadores e doentes de AIDS,
até sobre cirurgia plástica reparadora de mama
pelo SUS.
- Em matéria de proteção à criança e ao ado-lescente,
de valia imensurável, tem-se a Lei n.
8.069/90, conhecida como Estatuto da Criança e
do Adolescente.
- A Lei n. 7.853/89 que trata do apoio às pessoas
portadoras de deficiência.
- A Lei n. 8.313/91, que dispõe sobre o progra-ma
nacional de apoio à cultura.
- A Lei n. 8.642/93, que trata do programa
nacional de atenção integral à criança e ao ado-lescente.
- A Lei n. 9.029/95, que proíbe a exigência de
atestados de gravidez e esterilização para efeitos
admissionais.
- A Lei n. 9.099/95, que criou os Juizados
Especiais.
- A Lei n. 9.394/96, que trouxe as diretrizes e
bases da educação nacional
- A Lei n. 9.455/97, que define os crimes de
tortura.
- A Lei n. 9.503/97, que é o novo Código Bra-sileiro
de Trânsito.
- A Lei n. 9.605/98, que prevê sanções penais
para atividades lesivas ao meio ambiente.
- A Lei n. 9.613/98, que regulamenta o com-bate
à lavagem de dinheiro e a ocultação de bens,
direitos e valores.
- A Lei n. 9.777/98, que baliza o combate ao
trabalho escravo.
- A Lei n.10.406/2002, que é o novo Código
Civil.
- A Lei n. 10.741/2003, que trata do estatuto
dos idosos.
- A Lei n. 11.340/2006, que regulamenta o
combate à violência doméstica e familiar contra
a mulher.
O que se pode constatar diante deste breve
balanço é que a nova-cidadã de apenas vinte anos
incompletos tem toda a sua vida pela frente na busca
da plenitude da sua realização, o que não ocorrerá
sem a luta diária da sociedade civil organizada
reivindicando as políticas públicas respectivas e a
atuação harmônica entre as funções do Estado.
A realidade social de um país se modifica cons-tantemente
e diversas conjunturas podem residir
em um mesmo momento histórico. A realidade
cambiante, entretanto, jamais poderá fazer tábula
rasa de uma Constituição legítima que foi elaborada
sem prazo de validade ou duração.
Nossa Carta de 88 sofreu diversas mudan-ças
desde a sua promulgação, muitas delas nem
sempre necessárias, outras sim, foram realizadas
para adaptá-la ao processo natural de evolução da
sociedade.
Vida longa à Constituição de 1988, de todas
as nossas Cartas políticas (com ressalva apenas
parcial, por justiça, à breve de 1934 e a de 1946) a
mais importante, a real, a conciliadora e ao mesmo
tempo bastonária da ruptura, responsável por um
cenário democrático jamais vivido com tamanha
plenitude no Brasil, trazendo adrede o dever de
luta pacífica e perene da sociedade na busca por um
cenário em que se reduzam a um mínimo tolerável
as desigualdades não saudáveis entre cada um dos
brasileiros, quando então, o festejado e homenage-ado
com justiça, Diploma essencial, terá cumprido
importante parte dos seus “objetivos”.
Necessidade de se exercer uma resistência em
relação a soluções simplistas e generalizadas, e que
a busca da melhor resposta implica avaliação cri-teriosa
não apenas de algumas questões de ordem
normativa e formal.
* Advogado. Procurador do Estado da Bahia. Mestre em Direito
pela UFBa. Professor de Direito Constitucional. Ex-Procurador
Federal.
10. Estado 10 de Direito, agosto e setembro de 2008
A terra é um imenso condomínio
Paulo Magalhaes*
Tendo em conta que a Biosfera possui bens que
pelas suas características são factual e juridicamen-te
indivisíveis, e que ninguém se pode excluir do
seu consumo, a humanidade já vive num sistema
de condomínio. Isto é, existe uma parte que é
susceptível de divisão jurídica, a crosta terrestre,
onde os diversos Estados exercem já soberania, e
outras que circulam por todo o planeta e que por
isso, são juridicamente indivisas, requerendo uma
administração comum: a Atmosfera e a Hidrosfera.
Para todos os efeitos, e porque o uso em excesso
destes bens provoca sempre um prejuízo a todos
os outros e a si próprio, da mesma forma que
quem cuida destes bens, afecta de forma positiva
todos os outros, os territórios políticos dos Estados
vivem na condição de partilharem o dominium
comum sobre estes bens indivisíveis. Portanto,
o Condomínio da Terra já existe, os condóminos
somos todos, só que este condomínio está desor-ganizado
e sem administrador.
Uma das regras para o funcionamento de um
sistema de condomínio é que ele só funciona com
todos os vizinhos, o que pressupõe um PRINCÍPIO
DE NÃO EXCLUSÃO.
Neste sentido, os Condóminos da Terra serão
todas as pessoas individuais ou colectivas, de
direito privado ou público que, por livre e espon-tânea
iniciativa, reconheçam a condição comum de
condóminos de um imenso Condomínio, o Planeta
Terra. Esta vivência em sistema de condomínio
não corresponde a nenhuma ideologia política
de carácter individualista ou comunitarista, mas
sim a uma realidade que nos é pré-existente. É
necessário tirar consequências da proclamação
que vivemos na era da globalização.
Uma soberania complexa
O projecto “Condomínio da Terra” tem como
objectivo conciliar a necessidade comum a todos
os povos, da posse de um território definido e
delimitado, com a unidade interdependente da
Biosfera. Esta harmonização é realizada através
de uma proposta de coexistência de soberanias
autónomas num espaço colectivo, ou seja, um
poder político, supremo e independente, relativo
à fracção territorial de cada Estado, e partilhado,
no que concerne às partes insusceptíveis de divisão
jurídica, (atmosfera e hidrosfera) das quais todos
os povos são funcionalmente dependentes. Esta
será pois a Soberania Complexa.
Para entender o conceito agora proposto, é
fundamental distinguir a soberania ou propriedade
que é exercida sobre os ecossistemas, do serviço
que estes prestam. Estes serviços não se confinam
a nenhuma forma de titularidade ou soberania, são
inevitavelmente globais e, portanto, de interesse
comum.
A título de exemplo, uma floresta afecta
positivamente toda a Biosfera, absorvendo CO2,
regulando o clima, o ciclo hidrológico e bioquí-mico
e servindo de suporte à biodiversidade. Faz
a manutenção dos ciclos vitais que sustentam a
vida de todo o planeta. Estes serviços são “usa-dos”
por todos, em qualquer ponto do planeta.
A economia de simbiose propõe uma integração
daquilo a que se poderia chamar de “economia da
manutenção dos sistemas vitais” com a economia
de produção.
A “Economia de Simbiose” constitui uma pro-posta
de valoração económica dos vários serviços
ecológicos, que a própria economia ambiental já
preconiza, enquadrando-a na impossibilidade ju-rídica
de os dividir segundo a lógica das fronteiras
políticas. Assume que todos usamos bens am-bientais,
que alguns usam-nos para lá dos limites
equitativos e, que outros possuem dentro do seu
território ecossistemas que afectam positivamente
os bens que todos usam e de que dependem. Logo,
um país que é soberano sobre uma fracção do
planeta onde está localizado um ecossistema que
reconhecidamente presta serviços de dimensão
global, deveria ser compensado pelos serviços de
interesse comum que está a prestar.
Isto só será possível com a clarificação da
titularidade comum dos bens ambientais indivi-sos,
articulando este pressuposto jurídico com o
sistema económico, que já reconhece a existência
de uma falha de mercado, devido à inexistência de
uma “instituição de troca onde o sujeito que afecta
positivamente outro(s) receba uma compensação
por isso ou o sujeito que afecta negativamente
outro(s) suporte o respectivo custo.
Essa instituição de troca, este administrador
de um condomínio global deveria ser um orga-nismo
já existente, exercendo novas funções, por
exemplo a ONU.
*Licenciado pela Universidade Católica do Porto, Pós-graduado
pela Universidade de Coimbra, e Aluno de
Doutramento da Universidade de Salamanca. Autor do livro “O
Condomínio da Terra” publicado pela Editora Almedina.
Legalidade ou ilegalidade dos loteamentos ou
Bruno Mattos e Silva*
condomínios fechados
Também chamado de “condomínio atípico” ou
“loteamento fechado”, há controvérsias a respeito da
legalidade dos chamados “condomínios fechados”.
A questão diz respeito à possibilidade de se edificar
cercas ou muros ao redor do loteamento e implantar
controle de acesso, mediante instalação de guarita na
entrada do loteamento ou “condomínio”, com pessoal
contratado para impedir a entrada de pessoas que
não sejam moradoras ou convidadas, inviabilizando
a utilização dos espaços não privativos do loteamento
ou condomínio por outras pessoas.
Normalmente, o “condomínio fechado” é geren-ciado
por uma associação de moradores, que presta
serviços diversos, com vigilância e limpeza, executa
obras manutenção ou de melhorias etc. Essa associa-ção
poderá se constituir formalmente, com registro
em cartório, hipótese em que haverá a criação de uma
pessoa jurídica. Mesmo nessa hipótese, porém, não se
confunde a associação de moradores do “condomínio
fechado” com o condomínio edilício, previsto nos
arts. 1.331 a 1.358 do novo Código Civil. Tecnica-mente,
o “condomínio fechado” é um loteamento e
não um condomínio, exceto na hipótese do art. 8º
da Lei nº 4.591/64, que veremos adiante.
De acordo com o art. 22 da Lei nº 6.766/79,
a partir do registro do loteamento no cartório de
registro de imóveis, passam a integrar o domínio
do Município as vias e praças, os espaços, livres
e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros
equipamentos urbanos, constantes do projeto e do
memorial descritivo. Por isso há quem afirme que os
chamados “condomínios fechados” não são legais,
pois as vias de acesso e demais áreas não privativas
deveriam ser abertas a todas as pessoas, moradoras ou
não do condomínio, por serem propriedade pública
de uso comum do povo.
Há, basicamente, quatro posições a respeito do
tema, três a favor da legalidade dos “condomínios
fechados” e uma contra. Vejamos, inicialmente, a
primeira posição, que sustenta a legalidade dos “con-domínios
fechados” que, sem prejuízo da aplicação
da Lei nº 6.766/99, forem aprovados pela legislação
municipal, que pode disciplinar genericamente os
“condomínios fechados” ou autorizar a utilização
privativa das vias internas e demais bens públicos
aos moradores do condomínio:
“O fato de determinados bens passarem a integrar
o domínio do Poder Público não significa que não
possam ter sua destinação primitiva alterada, sob
pena de manietar a Administração das comunas,
conforme as competências constitucionais que lhe são
próprias. Não se esqueça que compete aos Municípios
(art. 30, CF) legislar sobre assuntos de interesse local
(inciso I) e promover, no que couber, adequado
ordenamento territorial mediante planejamento e
controle do uso, do parcelamento e da ocupação do
solo urbano (inciso VIII).”
A segunda posição é no sentido de que o “condo-mínio
fechado” prescinde de lei municipal, bastando
ato administrativo de concessão ou permissão para
que as vias internas do condomínio passem a ser de
utilização privada.
Essas posições sustentam também que o morador
tem direito à segurança (arts. 5º e 6º da Constituição
Federal), assim como o Poder Público Municipal
tem competência constitucional para disciplinar a
utilização do solo urbano (art. 30, VIII) e dos bens
públicos municipais (art. 18).
Também favorável à legalidade dos “condomínios
fechados”, existe a posição que defende a possibi-lidade
de aplicação do art. 8º da Lei nº 4.591, de
16-12-64, em vez da Lei nº 6.766/79, como meio
de constituição de condomínios de casas, qualquer
que seja o tamanho desse condomínio.
Contra essas três posições, há quem sustente a
ilegalidade dos “condomínios fechados”, ainda que
existente legislação municipal a respeito:
“A ilegalidade da propriedade da terra urbana não
diz respeito só aos pobres. Os loteamentos fechados
que se multiplicam nos arredores das grandes cidades
são ilegais, já que o parcelamento da terra nua é regi-do
pela Lei Federal nº 6.766, de 1979, e não pela que
rege os condomínios, a Lei nº 4.591, de 1964. (...)
Moram em loteamentos fechados juízes, promotores
do Ministério Público, autoridades de todos os níveis
de governo. Eles usufruem privadamente de áreas
verdes públicas e também vias de trânsito que são
fechadas intramuros. Para viabilizar a privatização do
patrimônio público, na forma de um produto irresis-tível
ao mercado de alta renda, há casos de prefeituras
e câmaras municipais que não titubearam em se
mancomunar para aprovar lei locais que contrariam
a lei federal. Ou seja, aprova-se uma legislação ilegal,
bem de acordo com a tradição nacional de aplicação
da lei de acordo com as circunstâncias e o interesse
dos donos do poder.”
Sem entrar no mérito dessa discussão, a pessoa
que pretender adquirir um lote ou uma casa em um
“condomínio fechado” deve verificar se há lei muni-cipal
ou ato administrativo regulando ou concedendo
a propriedade ou qualquer direito ao uso privativo
das vias internas do condomínio (primeira e segunda
posições) ou se está diante de um condomínio de
casas, regido pela Lei nº 4.591/64, como ocorre com
qualquer edifício de apartamentos (terceira posição).
É interessante observar se existe alguma ação judicial
contra o “condomínio fechado” ou contra a associação
de moradores que o administra, com base na alegação
de violação do art. 22 da Lei nº 6.766/79 (quarta
posição). Às vezes os loteadores, por ocasião do início
do empreendimento, dizem que o condomínio será
“fechado”, mas não têm qualquer amparo legal para
tanto e o comprador, ao final, descobre que adquiriu
um lote comum.
Pode-se sustentar que há uma maior segurança
jurídica quando a formatação utilizada para o “condo-mínio
fechado” é a da Lei nº 4.591/64. Mas mesmo
nessa hipótese há possibilidade de ser entendido que
o “condomínio de casas” (art. 8º da Lei nº 4.591/64)
é um loteamento disfarçado (Lei nº 6.766/79). A
questão é polêmica. O mais seguro, por óbvio, é o
condomínio de casas de pequenas proporções, de
acordo com interpretação restritiva do art. 8º da Lei
nº 4.591/64.
Essa matéria será modificada, caso seja aprovado
o Projeto de Lei nº 3.057, de 2000, na forma do subs-titutivo
da Comissão Especial (publicado no Diário
da Câmara dos Deputados de 20/02/2008), ora em
tramitação na Câmara dos Deputados. Essa proposta
legislativa expressamente prevê a possibilidade, em
certos casos, da criação de “condomínios fechados”,
nominados de condomínios urbanísticos, e também
regula a possibilidade de instalação de controle de
acesso em loteamentos para fins urbanos.
A questão da legalidade ou ilegalidade do “con-domínio
fechado” não se confunde com a questão
do chamado “condomínio irregular”, que não tem
sequer registro válido do parcelamento no cartório
imobiliário, embora possa existir um “condomínio
irregular fechado”, ou seja, um loteamento irregular
cercado ou murado e com controle de acesso.
* Advogado, consultor parlamentar e autor do livro “Compra
de imóveis” (Ed. Atlas).
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12. Estado 12 de Direito, agosto e setembro de 2008
O Supremo Tribunal Federal e a penhora do
bem de família do fiador
O direito social à moradia do fiador e a penhora
do seu bem de família nos contratos de locação é
tema de destaque no debate jurídico atual, em face do
conflito normativo e valorativo que lhe é inerente.
Em 08 de fevereiro de 2006, no julgamento do
Recurso Extraordinário n° 407.688-8, cuja relatoria
foi do Ministro Cezar Peluso, a maioria dos ministros
participantes do julgamento entendeu constitucional,
em face do direito fundamental à moradia previsto no
art. 6° da Constituição Federal, a regra que permite a
penhora do imóvel residencial do fiador, nos termos
do art. 3°, inciso VII, da Lei n° 8009/90, na versão
que lhe deu a Lei n° 8.245/91.
A questão debatida, para além da dogmática,
remete a argumentos filosóficos, pois a avaliação
do conflito entre a regra que determina a penhora
e o princípio da dignidade da pessoa humana que
fundamenta o direito social à moradia é, na verdade,
um conflito de valores antes de ser um conflito de
normas, como bem demonstrou a argumentação
trazida na votação.
Dos votos condutores da maioria no julgamento
em questão, deve-se destacar o voto do relator, Minis-tro
Cezar Peluso, que se baseou no argumento utili-tarista
de que a penhora do bem de família do fiador
supostamente garantiria o direito à moradia através
da maior oferta de imóveis no mercado. Nessa linha
de argumentação, a regra é constitucional porque
maximiza o bem-estar geral, ao garantir uma maior
oferta de imóveis para locação - diante de uma fiança
reforçada pela penhorabilidade – e, conseqüentemen-te,
a diminuição do risco dos locadores. Diminuindo
o risco, maior será a oferta e menor será o preço pago
em geral para efetivar o direito à moradia através de
contratos de locação.
O segundo argumento a embasar a decisão pela
constitucionalidade foi apresentado de diferentes
formas pelos ministros Joaquim Barbosa, Gilmar
Mendes e Sepúlveda Pertence. Tais julgadores
defenderam a posição pela constitucionalidade da
penhora com base no fato de que o fiador se obriga
voluntariamente, portanto, no pleno exercício da sua
autonomia de vontade, podendo, de tal forma, abrir
mão de seu direito fundamental à moradia.
Contudo, os supracitados argumentos pela
constitucionalidade da penhora do bem de família
do fiador não são sustentáveis numa visão utili-tarista,
tampouco numa análise voluntarista mais
detida.
Inicialmente, em termos utilitaristas, a exceção
prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/90, justificar-se-ia
sob duas condições: 1) o fiador tem uma diferença
de capacidade em relação aos devedores em geral e
aos locatários em particular; 2) a finalidade a ser
buscada é melhor atendida pelos fiadores em função
dessa diferença.
As regras que estabelecem distribuições no
funcionalismo utilitarista se estruturam de maneira a
verificar as conseqüências desses atos. Assim, a regra
considerada correta é aquela que maximiza a utilida-de,
nesse caso, a regra correta seria a que maximiza
o bem em questão, ou seja, a moradia.
Para determinar essa maximização é necessário
um raciocínio conseqüencialista, ou seja, é impres-cindível
verificar se a regra em questão realmente traz
algum ganho de bem-estar identificável. Destarte, o
argumento utilitarista do ministro Cesar Peluso falha
no teste do próprio utilitarismo, pois o voto do relator
não demonstra quais seriam as conseqüências da
penhora do bem de família do fiador no mercado de
locação, Com efeito, não existe nenhum estudo do
mercado apresentado na decisão que fundamente o
argumento de que a penhora do bem de família do
fiador irá aumentar o acesso à moradia através de
locações. Ou seja, assim como é possível supor que
a regra aumentaria a oferta de moradias é, também,
perfeitamente plausível defender que esta regra irá
diminuir o número de pessoas dispostas a prestar
fiança, o que tornaria o acesso à moradia mais restrito.
Como não existe nenhuma análise confiável nesse
sentido, o argumento falha por falta de confiabilidade
da análise das conseqüências da regra da penhora do
bem de família do fiador.
Ademais, o voto em comento não demonstra a
diferença da penhora do bem de família do fiador
em relação à penhora do bem de família do locatário
e dos devedores em geral para fins de maximização
do acesso à moradia. Será que a penhora do bem
de família do locatário não maximiza o acesso à
moradia? Qual a diferença, em relação à maximi-zação
do acesso à moradia, entre a penhora do bem
de família do fiador e do locatário? Nos moldes
supracitados, não há como se admitir o argumento
utilitarista sob análise, pois não se sustenta na sua
própria racionalidade.
Quanto ao argumento voluntarista, o que é olvi-dado
pelos ministros do Supremo Tribunal Federal
é que essa liberdade, que vincula o indivíduo pela
intencionalidade, depende do respeito à dignidade
da pessoa humana. Como salienta Kant, o pensa-dor
de maior referência para os voluntaristas, pela
segunda formulação do imperativo categórico, a
ação está sempre ligada ao uso que se faz dos seres
humanos.
Nesse aspecto, a dignidade denota que a legis-lação
ideal expressa na filosofia kantiana não pode
admitir que as determinações da legislação positiva
prejudiquem um ser humano em favor de objetivos
hipotéticos. A legislação puramente racional, na dou-trina
de Kant, não admite imperativos hipotéticos que
poderiam sujeitar determinadas pessoas a servirem de
meio para quaisquer fins contingentes de uma maio-ria
ou dela própria. Nesse contexto, o ser humano não
pode, através do exercício de sua liberdade, atentar
contra a dignidade humana das demais pessoas, bem
como da sua própria pessoa.
A autonomia da vontade kantiana legitima o arbí-trio
livre, ou seja, aquele arbítrio conforme a vontade
que respeita o valor do ser humano. Toda a liberalidade
(uso do arbítrio) que contrasta com o valor (dignidade)
do ser humano, seja o valor humano nos outros ou em
nós mesmos, é contrária à razão e, portanto, ilegítima
para consubstanciar uma obrigação.
Nesse compasso, o argumento voluntarista
usado pelos ministros Joaquim Barbosa, Gilmar
Mendes e Sepúlveda Pertence não condiz com o
voluntarismo (em termos kantianos), pois o fato de
que o fiador se obriga voluntariamente não legítima
a possibilidade de que ele abra mão de sua dignidade
e, conseqüentemente, de seu direito à moradia, eis
que o respeito à dignidade é premissa de qualquer
obrigação jurídica.
Caso o raciocínio voluntarista fosse defensável,
seria possível aos indivíduos oferecer outros bens em
garantia de forma a dispor de seus direitos fundamen-tais.
Seria possível, nesse raciocínio, oferecer nossa
vida como garantia? Nosso corpo? Nossa liberdade? O
Direito prevê formas de instituição de garantias e im-põe
o cumprimento das obrigações, mas, a efetivação
dessas garantias e cumprimento das obrigações não
se dá sem limites, caso contrário, deveria possibilitar
garantias como a carne do corpo que Antônio, o
mercador, oferece a Shylock, o agiota, no Mercador
de Veneza de William Shakespeare.
* Advogado, especialista e mestre em Direito pela UFRGS,
doutorando em Direito pela PUCRS e professor dos cursos de
Direito da FEEVALE e do IPA (rafaeldresch@feevale.br).
Rafael de Freitas Valle Dresch*
Ativismo judicial e cidadania: a judicialização da política
e das relações sociais em verde e amarelo
Gustavo Rabay Guerra*
O Poder Judiciário Nacional e a cidadania bra-sileira
vivem uma fase de intensas transformações e
conquistas na passagem dos 200 anos desde a insta-lação
da Casa da Suplicação do Brasil, aos 10 de maio
de 1808, data que assinala, também, a consagração da
independência judicial no País, tendo o citado órgão
operado ainda antes da primeira Constituição brasileira
(1824), que o transformou em Supremo Tribunal de
Justiça do Império do Brasil, e que, posteriormente,
com a Constituição Republicana de 1891, se transmu-tou
em Supremo Tribunal Federal (STF).
Por esses dias, temas instigantes povoam as
sessões do STF. O papel político e a conseqüente
necessidade de legitimação democrática discursiva
do Judiciário ficaram patentes no julgamento de
questões complexas, tais como a fidelidade partidá-ria
e a autorização de experiências científicas com
células tronco-embrionárias. Tivemos, também, a
imposição do uso das algemas, o caso da greve dos
servidores públicos e o fim do nepotismo nas três
funções do Estado. Em seguida, teremos, ainda,
julgamentos marcantes, tais como a possibilidade de
descriminalização de aborto de fetos anencefálicos, a
demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol,
a constitucionalidade do casamento homossexual e,
por fim, a questão das ações afirmativas e das cotas
nas universidades públicas.
Esses são exemplos de como o Judiciário vem
se tornando o último reduto político-moral da
sociedade, nos temas que naturalmente suscitem os
chamados desacordos morais razoáveis (reasonable
disagreements). Vivenciamos, assim, o que Ingeborg
Maus chamou de “Superego da sociedade órfã” e o
que Viana Lopes identifica como a “Invasão do Di-reito”,
no contexto da expansão do papel dos atores
judiciais e da própria normatividade no quotidiano
das práticas sociais. No “Estado Judicante” é mais
fácil conclamar o debate público na corte do que no
parlamento. É o fenômeno da acessibilidade dos espa-ços
judiciais, em substituição à representação política
tradicional, em que os eleitores demandam de seus
governantes as providências necessárias para o bom
funcionamento da sociedade. Diante das frustrações
da ausência de representação política, o julgador
torna-se, ele próprio, porta-voz de uma ideologia
refratária dos desmandos do poder, descendo ao “in-ferno
de uma democracia desnorteada” (Paul Ricouer)
e impondo severos comprometimentos ao espaço
público e a sua própria instituição. A nova “cidadania
judicial” tem que enfrentar velhos fantasmas.
A expansão do poder dos magistrados a partir
da assunção do papel normativo da Constituição e
como isso acarretou uma mudança comportamental
da função judiciária, que da emudecida passividade
e da falta de efetividade passou à judicialização ex-cessiva,
como nos diz Luís Roberto Barroso. Como
exemplos de tal mudança da paisagem atitudinal,
sopesam-se decisões que vão do racismo e sexismo
explícitos – como aquela proferida por um juiz
mineiro que considerou inconstitucional a Lei Maria
da Penha e diabólicas as mulheres –, passando pela
marca patrimonialista do nosso Judiciário – encar-nado
na magistrada paraibana que atestou ser o
julgador “incomparavelmente superior a qualquer
outro ser material” –, até as recentes construções
jurisprudenciais que, (re)habilitando instrumentos
constitucionais legítimos e democráticos, como o
mandado de injunção para efetivar o direito de greve
no serviço público, resignificam a gramática dos
direitos fundamentais.
Será possível, enfim, modular a reflexividade po-lítico-
moral do ativismo judicial? Se há limites éticos
ao ativismo político dos juízes, tais só poderão ser
ponderados a partir do recorte histórico e do estudo de
casos, implicados em uma linguagem que reconheça a
integridade e a idiossincrasia do debate brasileiro.
*Doutorando em Direito, Estado e Constituição pela UnB.
Mestre em Direito Público pela UFPE. Professor Titular de
Direito Constitucional do UniCEUB. Coordenador do Curso de
Pós-Graduação à Distância em Direito Constitucional Aplicado
da Universidade Gama Filho/Instituto Posead. Professor de
Hermenêutica Jurídica do Instituto dos Magistrados do Distrito
Federal. Advogado. Contato: gustavorabay@justice.com.
13. Estado de Direito, agosto e setembro de 2008 13
Nepotismo: o STF pode legislar?
No nosso livro Do Estado de Direito constitucional e transnacional:
riscos e precauções (Gomes, L. F. e Vigo, R.L., São Paulo: Premier, 2008,
p. 157) analisamos, detalhadamente, os dezoito mais preocupantes riscos
que rondam o denominado Estado de Direito constitucional. Um deles
diz respeito à “judicialização do Direito”, ou seja, os juízes é que dão a
configuração final do Direito e isso pode ser feito de modo equivocado
e autoritário. Particularmente no que diz respeito ao STF, ele pode criar
normas obrigatórias, a partir de textos constitucionais, sem a interposição
da lei e do legislador? Numa espécie de ativismo normatizante, ele pode
invadir competência alheia e disciplinar assuntos ainda não cuidados
pelo Poder Legislativo?
Kelsen dizia que o Poder Judiciário, no exercício do controle de
constitucionalidade das leis, seria, no máximo, um “legislador negativo”
(poderia negar validade a uma lei). Nosso STF, entretanto, na medida em
que edita súmulas vinculantes, que devem ser seguidas por todos os juízes
e toda administração pública, vem se comportando como um “legislador
ativo”. Isso é possível?
Nos últimos tempos nossa máxima Corte, sob o império do neo-constitucionalismo
(Alexy, Dworkin, Zagrebelsky, Ferrajoli, Nino etc.),
vem assumindo, com toda clareza, essa anômala função. Fez isso na
regulamentação da fidelidade partidária, disciplinou depois os limites do
uso das algemas (Súmula Vinculante 11) e, agora, acaba editar a Súmula
Vinculante 13, que cuida da proibição do nepotismo, direto ou cruzado
(nos três poderes).
Da constitucionalização do Direito pode resultar num novo tipo de
Estado, que é o judicial? Sim. Os novos senhores do direito já não são
os legisladores, senão, os juízes constitucionais. Bachof, já no final da
década de 50, falava na superioridade jurídica do juiz sobre o legislador
no momento da realização do direito. Atualmente, Alexy propõe assim
também a preferência pela capacidade argumentativa dialógica judiciária
em face da que se gera no âmbito legislativo.
A última palavra interpretativa da Constituição e das leis é do juiz.
Nisso reside a chamada judicialização do Direito. Mas uma coisa é inter-pretar
uma lei, outra distinta é criar uma regra geral obrigatória, a partir
da interpretação exclusiva da Constituição. A denominada judicialização
do Direito permite isso? O STF está autorizado a “legislar”, ocupando o
lugar do Poder Legislativo? O próprio STF, por meio das denominadas
súmulas vinculantes, vem dizendo que sim. Mas até que limite isso é pos-sível?
Por que está ocorrendo esse fenômeno? Quais riscos são inerentes
a essa nova função?
Súmula Vinculante 13
No dia 20.08.08, quando discutia o tema nepotismo, deliberou nossa Su-prema
Corte editar mais uma súmula vinculante. No dia seguinte (21.08.08)
publicou a Súmula Vinculante 13 (que não pode ser descumprida por nenhum
órgão público). A sua redação final é a seguinte: “A nomeação de cônjuge,
companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o
terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma
pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para
o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gra-tificada
na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido
o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”.
Desde a publicação dessa súmula, tornou-se possível impugnar, no
próprio STF, por meio de reclamação, a contratação de parentes para cargos
da administração pública direta e indireta no Executivo, no Legislativo e
no Judiciário. Qualquer diligente membro do Ministério Público poderá
fiscalizar o cumprimento da referida súmula.
Confirmou-se inicialmente a constitucionalidade da Resolução 7, do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que veda o nepotismo no Judiciário.
Em seguida partiu o STF para sua tarefa (anômala) de legislar. Analisando
o Recurso Extraordinário (RE 579.951-RN) interposto pelo Ministério
Público do Rio Grande do Norte contra a contratação de parentes no
município de Água Nova, os ministros reafirmaram que a Constituição
Federal veda o nepotismo. Em outras palavras: não é necessária a edição
de lei para que a regra seja respeitada por todos os Poderes da União.
Esse novo ativismo judicial (do STF) está impregnado de vários riscos.
O primeiro reside no enfraquecimento da democracia. Os parlamentares
são os legítimos e diretos representantes do povo. Seu produto legislativo,
portanto, quando compatível com a Constituição, é muito mais demo-crático
que uma norma do judiciário. Atuando o STF como “legislador
ativo”, há sempre também o risco de “aristocratização do Direito” (ou
seja: o Direito pode derivar de uma casta elitizada, não da vontade dos
representantes do povo). Conforme a composição do STF, pode-se ade-mais
descambar para uma “hipermoralização do Direito” (que significa
priorizar as regras morais sobre o direito positivado). Que a prudência e
a razoabilidade sejam sempre as companheiras do STF, sobretudo na sua
atividade legisferante.
*Professor Doutor em Direito penal pela Universidade de Madri, Mestre em
Direito penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.
com.br). Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998)
e Advogado (1999 a 2001).
ESPECIAL
“Kelsen dizia que o Poder
Judiciário, no exercício
do controle de constitu-cionalidade
das leis,
seria, no máximo, um
“legislador negativo”
(poderia negar validade
a uma lei). Nosso STF,
entretanto, na medida em
que edita súmulas vincu-lantes,
que devem ser
seguidas por todos os
juízes e toda adminis-tração
pública, vem se
comportando como um
“legislador ativo”.
Isso é possível?”
Luiz Flavio Gomes*
AP