O poema descreve a longa noite de 48 anos de ditadura em Portugal, durante a qual o país esteve mergulhado em tristeza e privações. Muitos morreram sem experimentar a liberdade. Agora, com a democracia, aqueles que sobreviveram à noite das trevas têm o dever de celebrar a nova era dizendo em voz alta "Bom Dia".
1. Bom Dia
A noite foi longa.
Quarenta e oito anos de uma noite longa e escura.
Tanto tempo a negro,
tanto tempo sem luz,
tanto tempo sem cores.
Mesmo quando era dia,
o luto das mães e dos pais e das mulheres
enegrecia o país,
mesmo quando havia sol não se via nada,
a terra era um pedaço de breu.
Havia mar e flores e céu e crianças,
mas era tudo uma coisa baça,
um nevoeiro, uma tristeza mal disfarçada.
Mesmo assim há quem tenha saudades
dessa noite sombria.
Se calhar foi porque dormiram bem e sonhavam.
Outros não, a maior parte não,
a maior parte não dormia,
a maior parte deitava-se de barriga vazia,
a maior parte ficava de olhos abertos
a pensar na miséria e na privação,
na discriminação e na falta de horizonte.
Foi longa a noite, muitos não acordaram,
muitos morreram a pensar na liberdade que nunca tiveram.
E é por isso que todos os que sobreviveram à noite das trevas,
e floriram em cravos,
e tiveram filhos e tiveram netos,
todos os que acordaram nessa manhã
e em todas as outras que se lhe seguiram,
têm o dever de dizer alto e bom som
Bom Dia.
Autor: Vítor Encarnação
abril de 2017