SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 6
Baixar para ler offline
 
                                        
                         OS TAPETES PARA A PROCISSÃO 
                                                      
                                                      




                                                                                       
                                                      
                                                      
                                                      
                                                      
                                                 Prólogo 
 
      A  semana  antes  da  Páscoa  chama‐se  Semana  Santa.  Em  Antigua,  uma  cidade  colonial 
construída pelo Espanhóis no final do século XVI, procissões de pessoas costumam deambular pelas 
ruas,  transportando  estátuas  velhas  de  séculos,  numa  tentativa  de  fazer  reviver  a  morte  e  a 
ressurreição de Cristo. Esta tradição é tão forte hoje quanto o era no tempo dos Espanhóis, embora 
tenha sido transformada pelo contacto com a cultura indígena da Guatemala. 
      Como penhor da sua fé, os habitantes fazem tapetes de serradura, flores e frutas coloridas, que 
são colocados no pavimento por onde passarão as procissões. Todos os anos são feitos tapetes com 
desenhos  diferentes.  E  todos  os  anos  as  procissões  os  calcam,  destruindo  os  seus  padrões  tão 
primorosamente desenhados!  
      Passei a infância na Guatemala. A minha família era chinesa e adepta da religião budista, mas 
a Semana Santa  era diferente de todas as outras,  mesmo para  uma família  tão tradicional como a 
nossa. Juntávamo‐nos sempre nos passeios com os vizinhos para ver os tapetes, antes de os cortejos 
os pisarem. Enquanto assistia à procissão, sentia que a história de que falavam estava a acontecer 
naquele  preciso  momento.  A  beleza  daqueles  tapetes  efémeros,  feitos  com  tanto  amor,  ficou  para 
sempre na minha memória e no meu coração. 
       
       
       
A cor tradicional da Semana Santa é o roxo. Por isso é que a minha mãe vende tantos rolos de 
tecido  dessa  cor  durante  a  época  da  Páscoa.  Um  dia,  o  carteiro  trouxe  um  envelope  com  letras 
prateadas impressas. 
      — Um convite! — exclamou a minha mãe. 
      Como não sabia ler espanhol muito bem, deu‐o a ler à minha irmã. 
      —  Diz  aqui  que  o  tio  Colocho  e  a  tia  Malía  nos  convidam  para  o  baptizado  do  bebé,  no 
Domingo de Páscoa. 
                                                     Um  pedaço  de  papel  escrito  em  chinês  caiu  do 
                                              envelope.  A  minha  mãe  leu‐o,  porque  nós  não 
                                              conseguíamos         ler     chinês,        embora      oralmente 
                                              percebêssemos tudo o que era dito em casa. 
                                                     —  Também  nos  convidam  para  passar  lá  a  Semana 
                                              Santa antes do baptismo. Claro que vamos! — exclamou a 
                                              minha mãe, cheia de alegria. 
                                                     Todos saltámos de contentamento. 
      Na  Quinta‐Feira  Santa,  enfiámo‐nos  no  nosso  carro  ferrugento  e  viajámos  para  a  cidade  de 
Antigua.  O  meu  pai  encheu  a  bagageira  com  as  nossas  coisas,  às  quais  juntou  uma  caixa  de 
refrigerantes  e  um  cesto  de  laranjas.  Durante  a  viagem,  cantámos  como  se  fossemos  autênticos 
mariachis.  Soubemos  que  tínhamos  chegado  a  Antigua  porque  o  carro  começou,  de  repente,  a 
percorrer ruas empedradas. 
      O  tio  Colocho,  a  tia  Malía  e  os  nossos  primos  estavam  à  nossa  espera  à  porta  da  loja.  Para 
cabermos todos ao almoço, tinham colocado uma mesa enorme no centro do estabelecimento. 
       




                                                                                       
                                                 
      Durante a refeição, semeada de palavras cantonesas, contámos anedotas aos nossos primos e 
fartámo‐nos de rir.  
      De  repente,  algo  me  chamou  a  atenção  no  canto  da  sala.  Era  uma  estatueta  da  Virgem  de 
Guadalupe, colocada junto de Kuan Yin, a deusa chinesa. Pareciam amigas, envolvidas pelo incenso 
que ardia junto delas. 
      A minha mãe disse à tia Malía em chinês: 
—  Lembras‐te  de  quando  éramos  pequenas  na  China  e 
íamos para a ponte para ver a corrida dos barcos no rio? 
          A tia Malía sorriu: 
          —  Era  o  Festival  do  Barco  do  Dragão.  Nesse  dia, 
costumávamos  atirar  tamais1  chineses  ao  rio,  para  nos  darem 
sorte. 
          Riram‐se  muito.  Depois  ficaram  em  silêncio,  talvez  a 
recordar aqueles dias longínquos. A tia Malía disse então: 
          — Meninos, amanhã de madrugada vai realizar‐se a procissão que sai de La Merced, a igreja 
que fica ao fundo da rua. Os vizinhos estão a fazer tapetes de serradura por todo o bairro. Ide ver! 
          Tapetes de serradura! 
          O passeio estava cheio de redes com agulhas de pinheiro, girassóis, e flores roxas e amarelas. 
Havia  sacas  cheias  de  serradura  tingida  de  cores  brilhantes:  magenta,  turquesa,  laranja  e  verde. 
Vagens de marfim vegetal enchiam o ar com o seu cheirinho a mar e a palmeiras. 
          Don Ortiz, que vivia do outro lado da rua, estava a fazer um tapete. Primeiro, colocava no chão 
uma  camada  de  serradura  natural  e  molhava‐a.  Depois,  os  seus  ajudantes  faziam  desenhos  com 
serradura  colorida,  por  cima  dessa  camada.  Havia  tábuas  suspensas  sobre  o  tapete  para  poderem 
decorar tudo sem estragar o que já tinham feito. Usavam peneiras para espalhar a serradura colorida 
por cima de estênciles de cartão, perfurados de forma a formar padrões. Mediam os desenhos com 
cuidado, e segundo as instruções de Don Ortiz. Por fim, um ajudante percorria o tapete todo com um 
borrifador de água, para que a serradura se mantivesse bem plana. 
           




                                                                               
           
          Era tão bonito! Parecia um tapete verdadeiro! 
          — Queres ajudar, minha menina? — perguntou Don Ortiz, quando me viu a olhar. 
          Dei um salto e respondi: 


1
  O tamal é uma espécie de farinha de milho, doce ou salgada, podendo conter carnes, queijo, pimentões, etc., 
envolvida na própria palha da espiga de milho, e cozida em vapor. (N. T.) 
— Quero, sim. 
      —  Então  traz  aquela  serradura  vermelha  para  as  rosas  e  a  farinha  para  os  lírios.  E  vê  se 
encontras a peneira mais pequena, porque estas flores são muito delicadas. 
      Por cima da tapeçaria de serradura colorida, os artesãos colocavam flores de marfim vegetal e 
agulhas  de  pinheiro.  Um  a  um,  os  tapetes  foram  aparecendo  pela  rua  abaixo.  Estava  já  escuro 
quando a tia Malía disse: 
      — Vão para a cama. A procissão sai de manhã bem cedo. 
       
      Sexta‐Feira  Santa  amanheceu  enevoada.  Havia  muita  gente  à  porta  da  igreja.  Don  Ortiz, 
vestido de nazareno, viu‐nos e disse: 
                                                   — Meninos, querem os restos de serradura? 
                                                   —  Queremos,  sim  —  respondi,  excitada.  —  Vamos 
                                            fazer  um  tapete  pequenino,  com  o  desenho  de  uma  casa. 
                                            Despachem‐se, vem aí a procissão! 
                                                   Fizemos  rapidamente  uma  cabaninha  com  um 
                                            telhado  vermelho  e  paredes  amarelas.  Usamos  serradura 
                                            roxa para o céu e agulhas de pinheiro para a relva. Também 
                                            colocamos ramos de buganvília. Pétalas das flores do pátio 
compuseram um coração e estrelas e os cometas foram feitos com bagos de arroz e girassóis. Ainda 
consegui colocar uma bordadura de laranjas e regar tudo com água. Que bonito! 
      De repente, alguém sussurrou: 
      — Vem aí a procissão! 
      Ao som de um tambor, todos os nazarenos colocaram uma plataforma de madeira enorme aos 
ombros, na qual estava uma estátua de Jesus a carregar a Cruz. A estátua era rodeada por orquídeas 
e musgo da floresta e os seus olhos brilhavam. O meu coração vibrava, embora a coroa de espinhos e 
o sangue da face me fizessem tremer. Todos se ajoelharam. 
      O  Cristo  movia‐se  ao  som  da  música  triste  tocada  pela 
banda  que  fechava  a  procissão.  Parecia  uma  pessoa  real.  Os 
nazarenos,  vestidos  de  roxo  e  curvados  sob  o  peso  do  andor, 
estavam envoltos por uma nuvem de incenso branco. 
      Seguia‐se  o  andor  da  Virgem  Maria,  carregado  por 
mulheres.  Uma  espada  espetada  no  coração  de  Nossa  Senhora  simbolizava  a  sua  enorme  dor. 
Chorava  lágrimas  de  cristal  porque  o  seu  Filho  em  breve  morreria.  A  banda  tocava  uma  marcha 
destinada a consolá‐la a ela e a nós. 
      A procissão tinha finalmente atingido a nossa parte da rua. De repente, dei‐me conta de que 
os nazarenos iriam calcar o nosso lindo tapete! A cada passo que eles davam, o meu coração sentia‐
se  mais  apertado.  Então,  pus‐me  em  frente  do  nosso  tapete.  Não  queria  que  o  destruíssem.  “Não 
passem por aqui! Não passem por aqui!”, dizia mentalmente. 
      Don Ortiz pegou‐me na mão e puxou‐me dali para fora. 
       




                                                                              
                                                    
      — Filha, isto faz parte da tradição. Fazemos destes tapetes ofertas à vida. Não reparaste nisso? 
As  flores  desabrocham  e  logo  morrem,  mas  deixam  sementes  para  que  outras  cresçam.  À  morte 
segue‐se a vida e à vida segue‐se a morte. 
      Não consegui detê‐los. Passo a passo, os pés dos nazarenos rasgaram a relva, as paredes e o 
telhado da nossa casa. Apagaram as estrelas e os cometas. Esborrataram as cores. Pisaram as flores e 
espalharam as laranjas com os pés. O nosso tapete era agora um rio triste que corria pelo meio da 
rua, cheirando a mar e a palmeiras. 
                                             Seguimos  a  banda.  Debaixo  de  um  sol  escaldante,  a 
                                       procissão  da  Semana  Santa  desenrolava‐se  lentamente  pelas 
                                       ruas  empedradas.  Cristo  já  tinha  morrido  a  estas  horas.  Havia 
                                       homens vestidos como romanos e nazarenos vestidos de negro. 
                                       Estes transportavam o Cristo morto num caixão magnífico, feito 
                                       de ouro e cristal. 
                                             Deambulámos pelas ruas, em busca de outras procissões. 
                                       Na  maioria  das  vezes,  apenas  encontrámos  vestígios  arruinados 
de tapetes maravilhosos. 
      Nessa noite, chegámos a casa cansados e tristes.  
       
      No dia seguinte, a minha mãe e a tia Malía fizeram tamais chineses para o baptizado. 
      — As procissões são tão comoventes — disseram em chinês. 
      A minha mãe acrescentou: 
      — São tão bonitas como os festivais que celebramos na China. Realizam‐se todos os anos, mas 
são sempre diferentes. 
 
 
                                                      
      No  Domingo  de  Páscoa,  a  igreja  estava  engalanada  com  cores  alegres  porque  era  o  dia  da 
Ressurreição, o dia em que Cristo voltou à vida. O meu priminho foi baptizado com o nome de Angel. 
Angel Sem Quan. Quando lhe deitaram água sobre a cabeça, desatou a chorar e o seu pranto ecoou 
pela cúpula da igreja. 
      Nessa  mesma  tarde,  na  festa,  Don  Ortiz  falou  sobre  o  tapete  que  faríamos  no  ano  seguinte. 
Falou de um com pombas e pães com forma de crocodilos. Pensei logo em fazer um com borboletas 
e pássaros. Don Ortiz tinha razão. Depois de o tapete que  tínhamos feito para a procissão ter sido 
destruído, podíamos pensar em fazer logo outro. 
      No  seu  pequeno  altar,  a  Virgem  de  Guadalupe  e  a  deusa  Kuan  Yin 
brilhavam à luz da vela. 
      Fizemos  uma  grande  festa  no  pátio.  Coube‐me  a  mim  dar  a  última 
pancada no  pote de barro que tínhamos suspenso. Parti‐o e os rebuçados 
aterraram todos na minha cabeça. O  meu priminho, o Angel, achou muita 
graça. 
      E assim terminou a Semana Santa. 
                                                                                                            
                                                                                                            
                                                                                                            
                                                                                                            
                                                                                                            
                                                                                                            
                                                                                                            
                                                                                                            
                                                                                                            
                                                                                                            
                                                                                         Amelia Lau Carling 
                                                                                          Sawdust Carpets 
                                                                         Toronto, Groundwood Books, 2005 
                                                                                    (Tradução e adaptação) 

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Duas irmãs...vindas de outro planeta!
Duas irmãs...vindas de outro planeta!Duas irmãs...vindas de outro planeta!
Duas irmãs...vindas de outro planeta!isabel preto
 
A casa do penhasco (psicografia vera lúcia marinzeck de carvalho espírito a...
A casa do penhasco (psicografia vera lúcia marinzeck de carvalho   espírito a...A casa do penhasco (psicografia vera lúcia marinzeck de carvalho   espírito a...
A casa do penhasco (psicografia vera lúcia marinzeck de carvalho espírito a...Ricardo Akerman
 
Maria castanha com a historia dos duendes
Maria castanha com a historia dos duendesMaria castanha com a historia dos duendes
Maria castanha com a historia dos duendeszemeira
 
Torto arado itamar vieira junior
Torto arado   itamar vieira juniorTorto arado   itamar vieira junior
Torto arado itamar vieira juniorEliete Vasconcelos
 
O natal das bruxas
O natal das bruxasO natal das bruxas
O natal das bruxasFatimapedro
 
Candace camp trilogia dos aincourt 01 a mansão dos segredos
Candace camp trilogia dos aincourt 01 a mansão dos segredosCandace camp trilogia dos aincourt 01 a mansão dos segredos
Candace camp trilogia dos aincourt 01 a mansão dos segredosAndreia
 
A casa das bengalas jhdr
A casa das bengalas jhdrA casa das bengalas jhdr
A casa das bengalas jhdrRisoleta Montez
 
Ninguem da prendas pai natal
Ninguem da prendas pai natalNinguem da prendas pai natal
Ninguem da prendas pai natalesquecimento1
 
Conto sophia noite.natal_total
Conto sophia noite.natal_totalConto sophia noite.natal_total
Conto sophia noite.natal_totalMaria Ferreira
 
O Espírito Natalino - Beth Martins
O Espírito Natalino -  Beth MartinsO Espírito Natalino -  Beth Martins
O Espírito Natalino - Beth MartinsIrene Aguiar
 
Vera lucia marinzeck_de_carvalho_-_mansao_da_pedra_torta
Vera lucia marinzeck_de_carvalho_-_mansao_da_pedra_tortaVera lucia marinzeck_de_carvalho_-_mansao_da_pedra_torta
Vera lucia marinzeck_de_carvalho_-_mansao_da_pedra_tortaPatrick François Jarwoski
 
A Maria Castanha
A Maria CastanhaA Maria Castanha
A Maria Castanhaguest6c5ce0
 
Conto sophia noite.natal_total
Conto sophia noite.natal_totalConto sophia noite.natal_total
Conto sophia noite.natal_totalmaria54cunha
 

Mais procurados (19)

Susana Teles Margarido
Susana Teles MargaridoSusana Teles Margarido
Susana Teles Margarido
 
Duas irmãs...vindas de outro planeta!
Duas irmãs...vindas de outro planeta!Duas irmãs...vindas de outro planeta!
Duas irmãs...vindas de outro planeta!
 
A casa do penhasco (psicografia vera lúcia marinzeck de carvalho espírito a...
A casa do penhasco (psicografia vera lúcia marinzeck de carvalho   espírito a...A casa do penhasco (psicografia vera lúcia marinzeck de carvalho   espírito a...
A casa do penhasco (psicografia vera lúcia marinzeck de carvalho espírito a...
 
Maria castanha com a historia dos duendes
Maria castanha com a historia dos duendesMaria castanha com a historia dos duendes
Maria castanha com a historia dos duendes
 
Vera lucia de_carvalho_–_a_casa_do_penhasco
Vera lucia de_carvalho_–_a_casa_do_penhascoVera lucia de_carvalho_–_a_casa_do_penhasco
Vera lucia de_carvalho_–_a_casa_do_penhasco
 
Torto arado itamar vieira junior
Torto arado   itamar vieira juniorTorto arado   itamar vieira junior
Torto arado itamar vieira junior
 
O natal das bruxas
O natal das bruxasO natal das bruxas
O natal das bruxas
 
Ano das estrelas, 26 de julho de 2013
Ano das estrelas, 26 de julho de 2013Ano das estrelas, 26 de julho de 2013
Ano das estrelas, 26 de julho de 2013
 
Candace camp trilogia dos aincourt 01 a mansão dos segredos
Candace camp trilogia dos aincourt 01 a mansão dos segredosCandace camp trilogia dos aincourt 01 a mansão dos segredos
Candace camp trilogia dos aincourt 01 a mansão dos segredos
 
A aldeia das flores
A aldeia das floresA aldeia das flores
A aldeia das flores
 
A casa das bengalas jhdr
A casa das bengalas jhdrA casa das bengalas jhdr
A casa das bengalas jhdr
 
Ninguem da prendas pai natal
Ninguem da prendas pai natalNinguem da prendas pai natal
Ninguem da prendas pai natal
 
Conto sophia noite.natal_total
Conto sophia noite.natal_totalConto sophia noite.natal_total
Conto sophia noite.natal_total
 
O Espírito Natalino - Beth Martins
O Espírito Natalino -  Beth MartinsO Espírito Natalino -  Beth Martins
O Espírito Natalino - Beth Martins
 
Turmas 5,6,8
Turmas 5,6,8Turmas 5,6,8
Turmas 5,6,8
 
Vera lucia marinzeck_de_carvalho_-_mansao_da_pedra_torta
Vera lucia marinzeck_de_carvalho_-_mansao_da_pedra_tortaVera lucia marinzeck_de_carvalho_-_mansao_da_pedra_torta
Vera lucia marinzeck_de_carvalho_-_mansao_da_pedra_torta
 
A lenda do Alecrim
A lenda do AlecrimA lenda do Alecrim
A lenda do Alecrim
 
A Maria Castanha
A Maria CastanhaA Maria Castanha
A Maria Castanha
 
Conto sophia noite.natal_total
Conto sophia noite.natal_totalConto sophia noite.natal_total
Conto sophia noite.natal_total
 

Destaque (20)

A rua do_ouvidor_segundo_m_de_assis
A rua do_ouvidor_segundo_m_de_assisA rua do_ouvidor_segundo_m_de_assis
A rua do_ouvidor_segundo_m_de_assis
 
Jclicgabrieladiaz
JclicgabrieladiazJclicgabrieladiaz
Jclicgabrieladiaz
 
SUAFCHI2016_ClosingRelease
SUAFCHI2016_ClosingReleaseSUAFCHI2016_ClosingRelease
SUAFCHI2016_ClosingRelease
 
Lista exercícios3bi2
Lista exercícios3bi2Lista exercícios3bi2
Lista exercícios3bi2
 
Eva
EvaEva
Eva
 
Ofereçorosa
OfereçorosaOfereçorosa
Ofereçorosa
 
Νέος Αναπτυξιακός Νόμος 4399/2016 - Ενημερωτικό Σημείωμα
Νέος Αναπτυξιακός Νόμος 4399/2016 - Ενημερωτικό ΣημείωμαΝέος Αναπτυξιακός Νόμος 4399/2016 - Ενημερωτικό Σημείωμα
Νέος Αναπτυξιακός Νόμος 4399/2016 - Ενημερωτικό Σημείωμα
 
LAS TIC
LAS TIC LAS TIC
LAS TIC
 
Connection
ConnectionConnection
Connection
 
BCS - Excellent Cust Serv
BCS - Excellent Cust ServBCS - Excellent Cust Serv
BCS - Excellent Cust Serv
 
O silencio da alma
O silencio da almaO silencio da alma
O silencio da alma
 
Samuel Frey's new Resume
Samuel Frey's new ResumeSamuel Frey's new Resume
Samuel Frey's new Resume
 
Mudar de casa
Mudar de casaMudar de casa
Mudar de casa
 
INTELIGÊNCIA - ENERGIA PULSANTE
INTELIGÊNCIA - ENERGIA PULSANTEINTELIGÊNCIA - ENERGIA PULSANTE
INTELIGÊNCIA - ENERGIA PULSANTE
 
Roda do tempo
Roda do tempoRoda do tempo
Roda do tempo
 
Ouvir jesus
Ouvir jesusOuvir jesus
Ouvir jesus
 
TT DecJan 2015
TT DecJan 2015TT DecJan 2015
TT DecJan 2015
 
film-flaier-black-curves
film-flaier-black-curvesfilm-flaier-black-curves
film-flaier-black-curves
 
5555
55555555
5555
 
R sadpe09 005-8
R   sadpe09 005-8R   sadpe09 005-8
R sadpe09 005-8
 

Semelhante a A tradição dos tapetes efémeros na Semana Santa

Semelhante a A tradição dos tapetes efémeros na Semana Santa (20)

O Natal na Voz do Povo 2
O Natal na Voz do Povo 2O Natal na Voz do Povo 2
O Natal na Voz do Povo 2
 
'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre
'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre
'Uma estrela' - conto - Manuel Alegre
 
Apresentação joana...
Apresentação joana...Apresentação joana...
Apresentação joana...
 
Apresentação joana...
Apresentação joana...Apresentação joana...
Apresentação joana...
 
Paragem aLer+_ dezembro.2012
Paragem aLer+_ dezembro.2012Paragem aLer+_ dezembro.2012
Paragem aLer+_ dezembro.2012
 
Vila criança
Vila criançaVila criança
Vila criança
 
Só danço se eu for a mestra, exigiu a borboleta
Só danço se eu for a mestra, exigiu a borboletaSó danço se eu for a mestra, exigiu a borboleta
Só danço se eu for a mestra, exigiu a borboleta
 
Conto de natal
Conto de natalConto de natal
Conto de natal
 
Era uma vez uma praia atlântica
Era uma vez uma praia atlânticaEra uma vez uma praia atlântica
Era uma vez uma praia atlântica
 
A história do pai natal
A história do pai natalA história do pai natal
A história do pai natal
 
Quase um retrato
Quase um retratoQuase um retrato
Quase um retrato
 
Contos de Natal em Rede
Contos de Natal em RedeContos de Natal em Rede
Contos de Natal em Rede
 
Casamento diospiro noz
Casamento diospiro nozCasamento diospiro noz
Casamento diospiro noz
 
Toda
TodaToda
Toda
 
O Natal Em Portugal
O Natal Em PortugalO Natal Em Portugal
O Natal Em Portugal
 
Ppt cavaleiro
Ppt cavaleiroPpt cavaleiro
Ppt cavaleiro
 
O natal em diversos países da europa
O natal em diversos países da europaO natal em diversos países da europa
O natal em diversos países da europa
 
O ferro de engomar
O ferro de engomarO ferro de engomar
O ferro de engomar
 
Bom jesus nos meus tempos de crianca
Bom jesus nos meus  tempos de criancaBom jesus nos meus  tempos de crianca
Bom jesus nos meus tempos de crianca
 
TradiçõEs De Natal
TradiçõEs De NatalTradiçõEs De Natal
TradiçõEs De Natal
 

A tradição dos tapetes efémeros na Semana Santa

  • 1.     OS TAPETES PARA A PROCISSÃO                Prólogo    A  semana  antes  da  Páscoa  chama‐se  Semana  Santa.  Em  Antigua,  uma  cidade  colonial  construída pelo Espanhóis no final do século XVI, procissões de pessoas costumam deambular pelas  ruas,  transportando  estátuas  velhas  de  séculos,  numa  tentativa  de  fazer  reviver  a  morte  e  a  ressurreição de Cristo. Esta tradição é tão forte hoje quanto o era no tempo dos Espanhóis, embora  tenha sido transformada pelo contacto com a cultura indígena da Guatemala.  Como penhor da sua fé, os habitantes fazem tapetes de serradura, flores e frutas coloridas, que  são colocados no pavimento por onde passarão as procissões. Todos os anos são feitos tapetes com  desenhos  diferentes.  E  todos  os  anos  as  procissões  os  calcam,  destruindo  os  seus  padrões  tão  primorosamente desenhados!   Passei a infância na Guatemala. A minha família era chinesa e adepta da religião budista, mas  a Semana Santa  era diferente de todas as outras,  mesmo para  uma família  tão tradicional como a  nossa. Juntávamo‐nos sempre nos passeios com os vizinhos para ver os tapetes, antes de os cortejos  os pisarem. Enquanto assistia à procissão, sentia que a história de que falavam estava a acontecer  naquele  preciso  momento.  A  beleza  daqueles  tapetes  efémeros,  feitos  com  tanto  amor,  ficou  para  sempre na minha memória e no meu coração.       
  • 2. A cor tradicional da Semana Santa é o roxo. Por isso é que a minha mãe vende tantos rolos de  tecido  dessa  cor  durante  a  época  da  Páscoa.  Um  dia,  o  carteiro  trouxe  um  envelope  com  letras  prateadas impressas.  — Um convite! — exclamou a minha mãe.  Como não sabia ler espanhol muito bem, deu‐o a ler à minha irmã.  —  Diz  aqui  que  o  tio  Colocho  e  a  tia  Malía  nos  convidam  para  o  baptizado  do  bebé,  no  Domingo de Páscoa.  Um  pedaço  de  papel  escrito  em  chinês  caiu  do  envelope.  A  minha  mãe  leu‐o,  porque  nós  não  conseguíamos  ler  chinês,  embora  oralmente  percebêssemos tudo o que era dito em casa.  —  Também  nos  convidam  para  passar  lá  a  Semana  Santa antes do baptismo. Claro que vamos! — exclamou a  minha mãe, cheia de alegria.  Todos saltámos de contentamento.  Na  Quinta‐Feira  Santa,  enfiámo‐nos  no  nosso  carro  ferrugento  e  viajámos  para  a  cidade  de  Antigua.  O  meu  pai  encheu  a  bagageira  com  as  nossas  coisas,  às  quais  juntou  uma  caixa  de  refrigerantes  e  um  cesto  de  laranjas.  Durante  a  viagem,  cantámos  como  se  fossemos  autênticos  mariachis.  Soubemos  que  tínhamos  chegado  a  Antigua  porque  o  carro  começou,  de  repente,  a  percorrer ruas empedradas.  O  tio  Colocho,  a  tia  Malía  e  os  nossos  primos  estavam  à  nossa  espera  à  porta  da  loja.  Para  cabermos todos ao almoço, tinham colocado uma mesa enorme no centro do estabelecimento.        Durante a refeição, semeada de palavras cantonesas, contámos anedotas aos nossos primos e  fartámo‐nos de rir.   De  repente,  algo  me  chamou  a  atenção  no  canto  da  sala.  Era  uma  estatueta  da  Virgem  de  Guadalupe, colocada junto de Kuan Yin, a deusa chinesa. Pareciam amigas, envolvidas pelo incenso  que ardia junto delas.  A minha mãe disse à tia Malía em chinês: 
  • 3. —  Lembras‐te  de  quando  éramos  pequenas  na  China  e  íamos para a ponte para ver a corrida dos barcos no rio?  A tia Malía sorriu:  —  Era  o  Festival  do  Barco  do  Dragão.  Nesse  dia,  costumávamos  atirar  tamais1  chineses  ao  rio,  para  nos  darem  sorte.  Riram‐se  muito.  Depois  ficaram  em  silêncio,  talvez  a  recordar aqueles dias longínquos. A tia Malía disse então:  — Meninos, amanhã de madrugada vai realizar‐se a procissão que sai de La Merced, a igreja  que fica ao fundo da rua. Os vizinhos estão a fazer tapetes de serradura por todo o bairro. Ide ver!  Tapetes de serradura!  O passeio estava cheio de redes com agulhas de pinheiro, girassóis, e flores roxas e amarelas.  Havia  sacas  cheias  de  serradura  tingida  de  cores  brilhantes:  magenta,  turquesa,  laranja  e  verde.  Vagens de marfim vegetal enchiam o ar com o seu cheirinho a mar e a palmeiras.  Don Ortiz, que vivia do outro lado da rua, estava a fazer um tapete. Primeiro, colocava no chão  uma  camada  de  serradura  natural  e  molhava‐a.  Depois,  os  seus  ajudantes  faziam  desenhos  com  serradura  colorida,  por  cima  dessa  camada.  Havia  tábuas  suspensas  sobre  o  tapete  para  poderem  decorar tudo sem estragar o que já tinham feito. Usavam peneiras para espalhar a serradura colorida  por cima de estênciles de cartão, perfurados de forma a formar padrões. Mediam os desenhos com  cuidado, e segundo as instruções de Don Ortiz. Por fim, um ajudante percorria o tapete todo com um  borrifador de água, para que a serradura se mantivesse bem plana.        Era tão bonito! Parecia um tapete verdadeiro!  — Queres ajudar, minha menina? — perguntou Don Ortiz, quando me viu a olhar.  Dei um salto e respondi:  1  O tamal é uma espécie de farinha de milho, doce ou salgada, podendo conter carnes, queijo, pimentões, etc.,  envolvida na própria palha da espiga de milho, e cozida em vapor. (N. T.) 
  • 4. — Quero, sim.  —  Então  traz  aquela  serradura  vermelha  para  as  rosas  e  a  farinha  para  os  lírios.  E  vê  se  encontras a peneira mais pequena, porque estas flores são muito delicadas.  Por cima da tapeçaria de serradura colorida, os artesãos colocavam flores de marfim vegetal e  agulhas  de  pinheiro.  Um  a  um,  os  tapetes  foram  aparecendo  pela  rua  abaixo.  Estava  já  escuro  quando a tia Malía disse:  — Vão para a cama. A procissão sai de manhã bem cedo.    Sexta‐Feira  Santa  amanheceu  enevoada.  Havia  muita  gente  à  porta  da  igreja.  Don  Ortiz,  vestido de nazareno, viu‐nos e disse:  — Meninos, querem os restos de serradura?  —  Queremos,  sim  —  respondi,  excitada.  —  Vamos  fazer  um  tapete  pequenino,  com  o  desenho  de  uma  casa.  Despachem‐se, vem aí a procissão!  Fizemos  rapidamente  uma  cabaninha  com  um  telhado  vermelho  e  paredes  amarelas.  Usamos  serradura  roxa para o céu e agulhas de pinheiro para a relva. Também  colocamos ramos de buganvília. Pétalas das flores do pátio  compuseram um coração e estrelas e os cometas foram feitos com bagos de arroz e girassóis. Ainda  consegui colocar uma bordadura de laranjas e regar tudo com água. Que bonito!  De repente, alguém sussurrou:  — Vem aí a procissão!  Ao som de um tambor, todos os nazarenos colocaram uma plataforma de madeira enorme aos  ombros, na qual estava uma estátua de Jesus a carregar a Cruz. A estátua era rodeada por orquídeas  e musgo da floresta e os seus olhos brilhavam. O meu coração vibrava, embora a coroa de espinhos e  o sangue da face me fizessem tremer. Todos se ajoelharam.  O  Cristo  movia‐se  ao  som  da  música  triste  tocada  pela  banda  que  fechava  a  procissão.  Parecia  uma  pessoa  real.  Os  nazarenos,  vestidos  de  roxo  e  curvados  sob  o  peso  do  andor,  estavam envoltos por uma nuvem de incenso branco.  Seguia‐se  o  andor  da  Virgem  Maria,  carregado  por  mulheres.  Uma  espada  espetada  no  coração  de  Nossa  Senhora  simbolizava  a  sua  enorme  dor.  Chorava  lágrimas  de  cristal  porque  o  seu  Filho  em  breve  morreria.  A  banda  tocava  uma  marcha  destinada a consolá‐la a ela e a nós.  A procissão tinha finalmente atingido a nossa parte da rua. De repente, dei‐me conta de que  os nazarenos iriam calcar o nosso lindo tapete! A cada passo que eles davam, o meu coração sentia‐
  • 5. se  mais  apertado.  Então,  pus‐me  em  frente  do  nosso  tapete.  Não  queria  que  o  destruíssem.  “Não  passem por aqui! Não passem por aqui!”, dizia mentalmente.  Don Ortiz pegou‐me na mão e puxou‐me dali para fora.        — Filha, isto faz parte da tradição. Fazemos destes tapetes ofertas à vida. Não reparaste nisso?  As  flores  desabrocham  e  logo  morrem,  mas  deixam  sementes  para  que  outras  cresçam.  À  morte  segue‐se a vida e à vida segue‐se a morte.  Não consegui detê‐los. Passo a passo, os pés dos nazarenos rasgaram a relva, as paredes e o  telhado da nossa casa. Apagaram as estrelas e os cometas. Esborrataram as cores. Pisaram as flores e  espalharam as laranjas com os pés. O nosso tapete era agora um rio triste que corria pelo meio da  rua, cheirando a mar e a palmeiras.  Seguimos  a  banda.  Debaixo  de  um  sol  escaldante,  a  procissão  da  Semana  Santa  desenrolava‐se  lentamente  pelas  ruas  empedradas.  Cristo  já  tinha  morrido  a  estas  horas.  Havia  homens vestidos como romanos e nazarenos vestidos de negro.  Estes transportavam o Cristo morto num caixão magnífico, feito  de ouro e cristal.  Deambulámos pelas ruas, em busca de outras procissões.  Na  maioria  das  vezes,  apenas  encontrámos  vestígios  arruinados  de tapetes maravilhosos.  Nessa noite, chegámos a casa cansados e tristes.     No dia seguinte, a minha mãe e a tia Malía fizeram tamais chineses para o baptizado.  — As procissões são tão comoventes — disseram em chinês.  A minha mãe acrescentou:  — São tão bonitas como os festivais que celebramos na China. Realizam‐se todos os anos, mas  são sempre diferentes.   
  • 6.     No  Domingo  de  Páscoa,  a  igreja  estava  engalanada  com  cores  alegres  porque  era  o  dia  da  Ressurreição, o dia em que Cristo voltou à vida. O meu priminho foi baptizado com o nome de Angel.  Angel Sem Quan. Quando lhe deitaram água sobre a cabeça, desatou a chorar e o seu pranto ecoou  pela cúpula da igreja.  Nessa  mesma  tarde,  na  festa,  Don  Ortiz  falou  sobre  o  tapete  que  faríamos  no  ano  seguinte.  Falou de um com pombas e pães com forma de crocodilos. Pensei logo em fazer um com borboletas  e pássaros. Don Ortiz tinha razão. Depois de o tapete que  tínhamos feito para a procissão ter sido  destruído, podíamos pensar em fazer logo outro.  No  seu  pequeno  altar,  a  Virgem  de  Guadalupe  e  a  deusa  Kuan  Yin  brilhavam à luz da vela.  Fizemos  uma  grande  festa  no  pátio.  Coube‐me  a  mim  dar  a  última  pancada no  pote de barro que tínhamos suspenso. Parti‐o e os rebuçados  aterraram todos na minha cabeça. O  meu priminho, o Angel, achou muita  graça.  E assim terminou a Semana Santa.                      Amelia Lau Carling  Sawdust Carpets  Toronto, Groundwood Books, 2005  (Tradução e adaptação)