Este documento discute as relações entre os estados devocionais do iogue descritos nos Yoga-Sutras de Patanjali e o estado devocional alcançado pelo dançarino clássico indiano de Bharata Natyam. Ele explora como o iogue e o dançarino podem atingir seus ápices devocionais através da prática do yoga e da dança clássica indiana, respectivamente, e identifica semelhanças entre esses estados dev
A Inteligência Artificial na Educação e a Inclusão Linguística
Yoga e Dança: Estados Devocionais
1. FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA
ANA CLÁUDIA SILVESTRE
YOGA E DANÇA CLÁSSICA INDIANA:
RELAÇÕES ENTRE OS ESTADOS DEVOCIONAIS DO IOGUE A PARTIR DOS YOGA-SUTRAS DE
PATANJALI E DO DANÇARINO CLÁSSICO DE BHARATA NATYAM
SÃO PAULO
JUNHO 2009
2. i
FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA
YOGA E DANÇA CLÁSSICA INDIANA:
RELAÇÕES ENTRE OS ESTADOS DEVOCIONAIS DO IOGUE A PARTIR DOS YOGA-SUTRAS DE
PATANJALI E DO DANÇARINO CLÁSSICO DE BHARATA NATYAM
AUTOR: ANA CLÁUDIA SILVESTRE
Trabalho de conclusão de Curso de Pós-Graduação em
YOGA, Faculdade de Educação Física - Faculdades
Metropolitanas Unidas, São Paulo
SÃO PAULO
JUNHO 2009
3. ii
“Para os deuses
e para os demônios
que dançam em meus sonhos.”
Devdutt Pattanaik
4. iii
Dedico este trabalho...
Aos meus mestres
Lia Diskin,
pela Divina Presença.
Manoel Collaço Veras,
por lembrar-me da doçura envolvida na 'aquisição' da
sabedoria.
e Andrês de Nuccio,
meu primeiro professor de Yoga e meu guru.
5. iv
AGRADECIMENTOS
Não percorremos momentos de grande significância sempre
sozinhos. Muitos destes momentos são delineados por encontros e
desencontros inesquecíveis, se considerarmos a memória algo
relevante. Um iogue bem sabe que não o é. De qualquer forma,
não posso deixar de agradecer em primeiro lugar aos meus
primeiros alunos de Yoga, que caminhavam até as aulas com
marcas de amarras no corpo e marcas de abstinência na alma;
recém saídos do 'involuntário' da clínica de dependentes
químicos, munidos de um comprometimento ímpar, onde em
cada encontro travavam uma luta para libertarem-se envocando
em mim o professor.
Aos meus ex-pacientes da clínica de hemodiálise ao
demonstrarem tanta dignidade diante da frequente eminência
da morte, em especial ao jovem Fabiano Gomes Viana (in
memorian).
À Adelaide França e Josy Alves, que sempre guardam um canto
para me hospedarem no outro lado do planeta.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana
6. v
À Mohamed Adil Assakkali pela generosidade e companhia
diante das viagens empreendidas, e à sua querida família
Assakkali, deixando em mim um profundo respeito pela cultura e
religião islâmica.
À Alberto Pimentel pela sua amizade de décadas,
incondicionalmente leal, que nunca questionou minhas
excentricidades em querer 'tornar-me' uma ioguine.
À Delduque Garcia Martins (in memorian) por ter me guiado em
direção aos escuros corredores das experiências sensoriais
durante nossa graduação e, que, sem dúvida, prepararam-me
para o meu caminho escolhido de hoje.
Ao vendedor de livros da Mesquita Azul.
Ao ascensorista muçulmano que distribui fotos de anjos.
À dançarina Parvati e sua família de músicos.
Ao motorista de riquixá em Jodpur.
À RadhaKrishan, meu primeiro guru de Bharata Natyam. À sua
esposa, Menakshi, que me proporcionou o encontro com ele.
À Surya Kumari (in memorian), minha segunda mestre de
Bharata Natyam, por tornar nossas tardes em High Street
Kensignton um doce retorno à Índia.
Ao meu professor Dr.Tauney Daniel, que tanto aguçou minha
mente para a filosofia.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - Agradecimentos
7. vi
À Roseli Cremasco pelas caronas até a faculdade FMU, quando a
barriga não mais me permitia dirigir.
Aos professores do curso de pós-graduação que me inspiraram:
Lilian Gulmini, George Barcat, Romão Trigo de Aguiar, Danilo
Forghieri, José Antônio Machado Filla, Maria Avelar Guimarães,
Maria Esther Massola, Marcos Neira, Marcelo Arias, Mario
Ferreira. À Flavia, que num encontro inusitado deu-me
confiança para iniciar este trabalho. E aos convidados: Alicia
Souto, Swami Anubhavananda, Monja Cohen, Sri Krishna, Dr.
Manmath Gharote.
Ao coordenador do curso de pós-graduação, Marcos Rojo pelo
exemplo de humildade diante de tanto conhecimento.
À Dra. Sandra Gemma, colega dos estudos de Vedanta , ex-aluna
de hatha-yoga e Saraswati encarnada: meu muito obrigada pela
facilidade com que transita pelo Universo acadêmico.
À Porter Moresby.
Aos sacerdotes dos templos da Índia que sempre me
proporcionaram uma dança divina a cada puja assistida.
À Sri Sathya Sai Baba.
À Swami Vagishananda Saraswati pela profundidade de seus
ensinamentos.
À Swami Dayananda Saraswati por ter ensinado meus mestres,
pela hospitalidade em seus ashrams e principalmente pelos dias
inesquecíveis em Anaikatti.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - Agradecimentos
8. vii
À minha mãe.
Ao meu pai (in memorian), um intenso iogue em vida.
À minha tia Zelinda e o sacro ofício do amor.
Aos meus filhos Danann Lúgha e Dylan Cael, manifestações do
amor divino.
E especialmente meu muito obrigada ao companheiro Robert
James Kemp por ter ninado nosso bebê para que eu pudesse
sonhar.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - Agradecimentos
9. viii
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS .....................................................................................................................iv
LISTA DE FIGURAS ......................................................................................................................ix
LISTA DE FOTOS .........................................................................................................................ix
RESUMO ...................................................................................................................................... x
ABSTRACT ..................................................................................................................................xi
1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 12
2. OBJETIVO ............................................................................................................................... 18
3. DESENVOLVIMENTO .............................................................................................................. 19
3.1. O Yoga........................................................................................................................... 19
3.1.1. Um breve olhar sobre o Universo do Yoga ............................................................ 19
3.1.2. O Yoga segundo Patanjali ...................................................................................... 20
3.1.3. A prática do Yoga segundo Patanjali ..................................................................... 24
3.1.4. A conquista final do Yoga segundo Patanjali......................................................... 29
3.2. A dança .......................................................................................................................... 31
3.2.1. Ecos ancestrais do Universo da dança.................................................................... 31
3.2.2. A Dança Clássica Indiana : Bharata Natyam ......................................................... 33
3.2.3. Shiva na forma de Nataraja, o dançarino entre chamas.......................................... 41
3.3. A correlação devocional entre o Yoga de Patanjali e a Dança Clássica Indiana Bharata
Natyam ......................................................................................................................... 44
4. CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 54
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 57
6. ANEXOS ................................................................................................................................. 59
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana
10. ix
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Deus Shiva na forma de dançarino............................................................................ 59
LISTA DE FOTOS
Foto 1. O lugar de meditação de um devoto de Shiva.............................................................. 60
Foto 2. Um sacerdote................................................................................................................ 60
Foto 3. O cotidiano permeado do sagrado da Índia 1............................................................... 61
Foto 4. O cotidiano permeado do sagrado da Índia 2............................................................... 61
Foto 5. Guru de Bharata Natyam ............................................................................................. 62
Foto 6. Guru de Bharata Natyam ............................................................................................. 62
Foto 7. Apresentação de Bharata Natyam 1............................................................................. 63
Foto 8. Apresentação de Bharata Natyam 2............................................................................. 63
Foto 9. Apresentação de Bharata Natyam 3............................................................................. 64
Foto 10. Apresentação de Bharata Natyam 4........................................................................... 64
Foto 11. Karana (pose) de Nataraja ......................................................................................... 65
Foto 12. A autora em uns dos karanas tradicionais da Dança Clássica Indiana ...................... 65
Foto 13. Oferenda de flores ...................................................................................................... 66
Foto 14. A devoção na Dança................................................................................................... 67
Foto 15. A devoção no Yoga .................................................................................................... 68
Foto 16. “A vida nada mais é que o sonhar dos deuses.” HEMENWAY (2207, p.94) ........... 69
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana
11. x
RESUMO
Este trabalho procura estabelecer a relação entre o estado devocional de dois
Universos distintos: o Yoga, segundo os preceitos de Patanjali, e o estado
devocional alcançado pelo dançarino clássico de Bharata Natyam. Para tal, estudou-
se Patanjali, mais especificamente como o iogue pode atingir seu ápice devocional,
tendo como foco o sutra quarenta e cinco do segundo capítulo dos Yoga-Sutras.
Igualmente, estudou-se o processo do dançarino clássico do estilo Bharata Natyam;
suas motivações até a externalização propriamente dita de seu estado devocional.
Experiências práticas da autora nortearam o trabalho, desde a motivação para
escrevê-lo quanto os insights vivenciados ao longo dos anos de estudo. Paralelo a
este conhecimento prático adquirido houve uma estruturação e fundamentação
teórico-literária como base para os argumentos aqui apresentados. Após concluído o
estudo, semelhanças entre os estados devocionais estudados foram reveladas,
juntamente com a possibilidade de complementarem-se.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana
12. xi
ABSTRACT
This presented work establishes a relationship between the devotional state of
two distinct Universes: Yoga, according to Patanjali, and the devotional state held by
a Bharata Natyam classical dancer. For that, the author studied Patanjali, more
specifically how a Yogi can reach the summit regarding their devotional state,
focusing on the sutra forty-five, second chapter from the Yoga-Sutras. In this same
way, the author studied the process of a Bharata Natyam classical dancer; their
motivation until the externalization of their devotional state. Practical experiences
lived by the author orientated this work, from the motivation to write it as well as the
insights lived throughout years of study. Parallel to this acquired practical knowledge,
there is its structure and fundamental literally theory as its base for the arguments
presented here. After concluding the study, similarities presented themselves
between the devotional states with the possibility to complementing each other.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana
13. 12
1. INTRODUÇÃO
A capacidade do ser humano em criar uma outra existência para si mesmo
sempre me soou como uma possibilidade fascinante.
O viajante que se adapta à uma cultura completamente diferente da sua sem
dificuldades, o ator que encarna personagens tão diferentes do chamado si - mesmo
de forma tão convincente, um psicoterapeuta que se desvincula de suas próprias
referências para compreender e auxiliar o universo distinto de seu paciente, um
dançarino clássico indiano que cria uma aura devocional à sua volta, esquecendo-se
de si para tornar-se pelo menos momentaneamente uma entidade Divina e não
menos importante um iogue ou um Swami que abandonou interesses vinculados a
um mundo material com o qual não mais se identifica.
Mal sabia que todo e qualquer approach vivido por mim neste sentido, era na
verdade um treino para identificar-me com algo maior que eu mesma, mais real e
permanente.
Não conseguia ver o processo do ser humano de identificar-se como
meramente um mecanismo de defesa; o que a psicanálise e minha graduação
tentaram me convencer. Esta possibilidade do ser humano poderia ser a resposta
para nos libertarmos do que pensamos que somos, recriarmos uma nova coreografia
para nossa dança da vida, mudarmos totalmente a direção do caminho e re-
inventarmo-nos.
Muitos dos meus questionamentos foram amenizados em contato com
Bharata, Índia, onde esta cultura só aprofundou o desejo de continuar tentando re-
coreografar meus passos. Lá, muitas pessoas me influenciaram, motivando-me
neste processo que talvez possa chamar de renascimento. Na minha primeira
estadia em solo Índia no com o deleite de não ter tempo determinado para voltar, fui
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana
14. 13
iniciada na dança clássica de estilo Bharata Natyam, por um mestre transbordando
compaixão e conhecimento. Enquanto viajante solitária fui literalmente resgatada por
uma dançarina e sua família de músicos na fronteira com Paquistão para juntas
desenharmos nas areias do deserto passos cadenciados junto ao vento e ao calor,
sem dúvida as tardes mais felizes que minha memória pode resgatar. De extrema
relevância, o motorista do riquixá que quase me faz perder o trem quando pára
bruscamente seu veículo nas ruelas da cidadela azul, para realizar uma oferenda à
Rama 1 ; o quanto ele me fez compreender que naquele lugar, pelo menos naquele
momento os valores eram outros e, ao engolir minha raiva ocidental presa à noção
de tempo e horários, percebi que era preciso aceitar, respeitar e submeter-me. Havia
uma coreografia em suas mãos cheias de flores depositadas aos pés da imagem da
divindade de sua adoração, ascendia incensos, tocava um sino, e em pequenos
círculos girava um recipiente com fogo, enquanto o sol surgia nos vãos do mercado
da cidade prestes a acordar. O quanto naquele exato momento transcendi a noção
do que imaginava que era o tempo. Do trem que respeitava um determinado horário.
Sei que naquele momento também não me lembrava que fui atéia um dia. A
realidade fez-se quase outra, houve uma significância presente, praticamente
concreta. Aquela pessoa, que fazia um papel de levar-me até uma estação de trem
já não era mais a pessoa que se apresentara diante dos meus olhos. Era agora um
devoto comprometido, era Hanuman 2 desmanchando-se de amor à Rama.
Anos mais tarde, dentro do pátio de um grande templo em Tiruvannamalai, sul
da Índia , com os pés descalços queimados pelo calor do meio-dia olhava a entrada
de um dos templos menores exibindo uma placa: Only hindus allowed 3 .
Aparentemente os estrangeiros tinham acesso somente à área externa do templo.
Havia uma visível tristeza em mim nesta recusa, expressa nos meus olhos baixos.
Imaginava como poderia tornar-me hindu naquele momento para poder entrar ali.
Um sacerdote saiu da entrada do templo sorrindo de forma benevolente, indicou-me
o caminho até a entrada escura. O pequeno templo era retangular, dividido por
1 Um dos deuses hindus, herói do célebre épico Índia no Ramayana e conhecido como a sétima encarnação de Vishnu, o
mantenedor do Universo segundo crenças hindus.
2 “[...] O conhecido macaco- deus, pode ser visto em templos por toda a Índia, mais frequentemente prostrado diante de
imagens de Rama e Sita. Ele é considerado como um deus do poder e força, que manteve-se em celibato por toda sua vida.
Como ele é o maior devoto de Rama, é adorado como símbolo da atitude emocional típica de um servo para com seu
senhor.” HEMENWAY (2007, p.77; tradução livre da autora)
3 Entrada permitida somente à hindus.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 1.Introdução
15. 14
barras de ferro enfileiradas, indicando o caminho do devoto até a deidade. Deidade
esta que não tinha idéia de qual seria, apesar de saber que estava num dos templos
de Shiva 4 . O calor era tão intenso quanto agradável. Cheiro forte de incenso. Um
silêncio impenetrável. A cabeça e ombros precisavam ser cobertos. O coração
despido. A mente esvaziada. Minha atitude resgatou uma receptividade natural.
Qualquer outra experiência mística ou religiosa anterior foi desconsiderada sem o
mínimo esforço. Passado e futuro eram meras palavras que alguém deve ter criado
com o objetivo de manipulação. Só havia o momento presente. Era mais que uma
sensação, era uma certeza de estar experienciando um sentido de algo que fosse
permanente. Havia uma alegria quase indescritível de percorrer aqueles corredores
descalça, seguindo as pessoas à minha frente. Uma extasiante expectativa foi-se
formando até que se chegasse aos pés do lingam 5 . Todo o Universo tornou-se tão
fértil quanto aquele lingam e desde então esta experiência devocional registrou-se
como a primeira significativa entre outras que pude vivenciar dentro e fora da Índia.
Não menosprezando a subjetividade de toda e qualquer experiência, estas
experiências aqui relatadas foram fortes motivações pessoais para escrever sobre
algo possível, sobre esta identificação com algo que não o nosso mundo confortável
ou pré-determinado e, a partir daí, suas infinitas possibilidades de comunhão com
algo maior.
Como estudiosa da ciência do Yoga, julgo de extrema importância a relação
que me proponho a estabelecer entre a dança devocional Indiana e a procura do
iogue por libertação através do processo de identificação com uma entidade que
possa ser chamada Divina.
Na atualidade, mais precisamente a partir da década de sessenta, foi trilhado
um caminho de grande significância rumo aos estudos sobre Yoga no Ocidente.
Uma vasta literatura de autores foi sendo acumulada desde então. O mesmo pode
ser constatado sobre sua prática. Basta verificarmos o número de praticantes de
Yoga hoje no Brasil e comparar com dez anos atrás. A recente classe de pós-
4 Deus hindu que “[...] tem sido adorado por tanto tempo quanto a criação de imagens propriamente dita.”
HEMENWAY(2007, p.32). Pertence à Trindade Hindu – Bhrama, Visnhu, e Shiva – e seu papel é o de destruir o Universo,
para que outro deus possa re-criá-lo; símbolo da impermanência contida no Mundo Manifesto
5 “[...] Pedra oval, levemente polida que se mantêm apoiada num receptáculo plano. Indica a completude da excelência
divina, e a união indivisível do Ser.” STORL (2004, p.56; tradução livre da autora).
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 1.Introdução
16. 15
graduação que passa de cem alunos na Faculdade Metropolitanas Unidas de São
Paulo. Ainda, o crescimento do interesse das pessoas aqui de nosso país em viajar
para a Índia. De outro lado, sobretudo nos grandes centros Índia nos, vemos cada
vez mais a população interessada em valores cultuados no Ocidente. Não temos
como negar o fato : nos últimos anos houve um aumento no interesse de integração
entre Ocidente e Oriente. Os dois lados do mundo trocam o que têm de mais
significativo e peculiar. Assim, com suas devidas relatividades à parte, procuram se
completar.
Completo poderá ser também o caminho do aspirante espiritual que, ou
através dos oito passos do Yoga, propostos por Patanjali ou através da
externalização de bhava 6 , na dança clássica Indiana , andam confiantes rumo à
libertação; o objetivo último da existência humana.
Não posso deixar de relatar que o disponível hoje em livros ou relatos
científicos sobre esta relação entre a dança devocional com o Yoga, que pretendo
discorrer, pareceu-me limitado. Muitos dos insights e conclusões que serão aqui
apresentados, basearam-se no trânsito dos dois mundos estudados por mim
experienciados, com algum apoio de autores renomados neste campo de estudo.
Cito GUPTA (2000, p. 59 e 60), doutora em antropologia que também transita tanto
pelo mundo do Yoga como pelo da dança clássica, mas tem um approach vinculado
ao tantrismo 7 :
“[...] as várias formas de asceticismo identificadas com yoga na Índia
contrastam há muito tempo com seu oposto, a sexualidade e fertilidade da
mulher, simbolizadas pela dançarina Indiana [...] asceticismo e erotismo
são dois pólos magnéticos que geram a descarga elétrica na
espiritualidade Indiana.” (tradução livre da autora).
Neste trabalho fiz a opção de ter como base os estudos de Patanjali e não
utilizar reflexões sobre tantrismo elaboradas pela autora acima citada.
6Veiculo de expressão devocional do dançarino clássico indiano.
7Doutrina nascida na Índia que manipula um conjunto de práticas visando a preparação do corpo e da mente do homem
para ampliar sua percepção sobre o mundo e sobre si mesmo. Não raro utilizam-se da energia sexual para manipulação
desta percepção.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 1.Introdução
17. 16
Ao comentar os aforismos a respeito do Yoga de autoria de Patanjali, MEHTA
(1998, p.132) escreve sobre um dos estados de controle (yamas) esperados ao
praticante, mais especificamente brahmacarya 8 . O autor descaracteriza a
sexualidade como algo importante para a busca pessoal da libertação:
“[...] brahmacarya é completamente sem esforço. Onde este é resultado de
esforço e tensão, se expressa apenas na forma de celibato. Mas, quando
há incessante svadhyaya 9 , na qual existe a rejeição de um e a não
indulgência do outro, então surge brahmacarya, não somente como
conservação de energia mas também como renovação de energia.”
E ainda, TAIMNI (2006, p.169 e 173):
“[...] ódio, desonestidade, fraude, sensualidade e possessividade são
alguns dos vícios e inerentes à raça humana, e enquanto o ser humano
estiver sujeito a estes vícios, seja em suas formas densas, seja em suas
formas sutis, sua mente permanecerá vítima de distúrbios emocionais
violentos ou dificilmente perceptíveis que, em última análise, tem suas
principais origens nesses vícios [...]. não por que haja algo 'pecaminoso'
neles, mas por sua potencialidade de infligir constantes perturbações
mentais e emocionais. Ninguém que se deixe atrair pelos 'objetos dos
sentidos' pode esperar ser livre das preocupações e ansiedades que
caracterizam a vida do homem mundano [...] o problema não está em ter a
sensação, o que é totalmente natural e em si mesmo inofensivo, mas no
ansiar pela repetição das experiências que envolvem sensações que
causam prazer. Eis o que deve ser evitado e desenraizado, uma vez que o
10
desejo (kama) é que perturba a mente e cria samskaras , e não a
sensação em si mesma.”
Tendo pontuado brevemente o ideal da conduta do iogue rumo à libertação,
entende-se que os sutras de Patanjali condensam de forma brilhante o mecanismo
da mente humana. Sendo isto praticamente unânime para os estudantes sérios de
Yoga, o caminho de análise de GUPTA (2000) desvincula-se da genuína senda do
aspirante espiritual. Ainda, ao ser analisado somente o papel do dançarino, o que
será feito também nesta monografia, vamos compreender como são encarnados os
deuses da mitologia hindu com o propósito devocional, assim como o de elevação
da consciência espiritual de quem o assiste, revelando por exemplo a identificação
do dançarino com a consorte de um dos deuses que ele também representa.
Atuando como Radha 11 ; o anseio pelo encontro 'sensual' dos amantes Radha e
Krishna é uma mera metáfora para o encontro do devoto com sua entidade Divina,
ou Ishwara. O objeto deste encontro é a possibilidade de transcendência que é
8 Refreamento dos impulsos sexuais que “ [...] facilitam a ascensão contemplativa.” ELIADE (1998, p.55).
9 “O estudo do conhecimento sagrado sobre libertação.” FEUERSTEIN(2005, p.231).
10 “[...] marcas indeléveis no subconsciente deixadas pelas experiências diárias.” FEUERSTEIN (2005, p.204).
11 Pastora e amante do deus Krishna – este sendo a oitava encarnação do deus Visnhu e um dos mais adorados deuses
hindus
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 1.Introdução
18. 17
caracterizado por ser desprovido de eroticismo ou qualquer resquício com kama 12 .
Não interessa aqui, criar espaço para discutir o que alguns teóricos chamam de
principio feminino ou masculino, como determinantes na motivação do objetivo de
comunhão do dançarino com o Divino. Entende-se, segundo a ótica da
pesquisadora, que Ishwara está além de todo e qualquer conceito de dualidade,
mesmo que para a almejada comunhão com Ele, tanto o dançarino quanto o iogue O
compreendam a partir de preceitos dualistas.
Inicialmente será descrito o universo do Yoga num contexto geral, para logo
em seguida ser abordado o Yoga de Patanjali a partir dos Yoga-Sutras; no que este
consiste, sua prática (com ênfase no Kriya Yoga 13 . e auto-entrega à Deus) e seu
objetivo final. Será abordado brevemente no próximo item do desenvolvimento a
dança, no seu contexto histórico. A seguir, a dança clássica Indiana no estilo
Bharata Natyam será estudada. Dentro deste item, será introduzido o papel de Shiva
como Nataraja, o deus dançarino. No terceiro e último item do desenvolvimento, será
feito a correlação entre os estados devocionais dos dois Universos distintos: o Yoga
segundo Patanjali e a Dança Clássica Indiana Bharata Natyam.
E por fim, a conclusão deste estudo será apresentada.
12“Prazer em geral e desejo sexual, ou sensualidade, em particular.” FEUERSTEIN (2005, p.123).
13A vivência, por parte do iogue, de práticas de austeridade, auto-estudo e devoção ao Senhor que tem como finalidade
atenuar o sofrimento humano.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 1.Introdução
19. 18
2. OBJETIVO
Esta monografia estabelece uma correlação entre o último estado de
observância do iogue: a auto-entrega à Deus (Isvara- Pranidhanat) sugerido por
Patanjali com a atitude devocional da Dança Clássica Indiana no estilo Bharata Natyam,
através de experiências práticas da autora, fundamentadas por uma revisão literária.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana
20. 19
3. DESENVOLVIMENTO
“No que é a noite para todos os seres transitórios, o iogue em perfeito
controle de si mesmo permanece desperto. E aquilo onde os outros seres
se sentem despertos é noite para o santo que realmente vê.” Bhagavad
Gita 14 , 2.69.
3.1. O Yoga
3.1.1. Um breve olhar sobre o Universo do Yoga
O desejo pela superação e transcendência de sua condição, tem conduzido o
homem desde seu aprimoramento como raça, a procurar por algo que o ajude a se
identificar com uma realidade maior que ele mesmo. Sofrimentos causados pelo
medo da morte, dificuldades de aceitação no processo de seu envelhecimento,
eminência constante de doenças graves, escravidão perante sua própria mente e
desejos, entre tantas outras aflições manifestam-se em maior ou menor grau em
todos os seres humanos em algum momento da existência. Não raro, o homem vem
criando mecanismos para defender-se do fato de que sua vida é efêmera. Receia
viver uma existência sem sentido, deslocando-se por um frágil e cansativo
paradigma de prazer e dor. Os momentos de paz que visitam sua mente são
insignificantes e raros, pois pensa ainda que para ser feliz ou completo, necessita
envolver-se num interminável processo de 'vir-a-ser', dificilmente aceitando-se como
é, ou querendo a todo instante conquistar posses ou prestígio.
14Em sânscrito é traduzido como: “ 'Canção do Senhor', a mais famosa de todas as escrituras sagradas do Yoga; episódio
do Mahabharata, onde parece ter sido habilmente introduzido antes da era cristã.” FEUERSTEIN (2005, p.53).
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana
21. 20
Há muitos milênios a humanidade em todos os lugares do planeta, vem
procurando soluções passíveis de pelo menos diminuir esta sua condição de
fragilidade e tenta identificar-se com uma realidade superior, que torne sua mente
mais equânime em caráter definitivo. Foi na Índia que esta procura expressou-se – e
tem se expressado – de forma coerente e incansável em seu propósito.
“A civilização da Índia gerou uma variedade avassaladora de crenças,
práticas e perspectivas espirituais, todas as quais tem como objetivo uma
dimensão da realidade que supera em muito a vida humana individual e os
cosmos que a humanidade percebe e imagina. Essa dimensão já foi
chamada Deus, o Ser Supremo, o Absoluto, o Si Mesmo, o Espírito, o
Incondicionado e o Eterno.” FEUERSTEIN (2006, p.25).
Dentre as tentativas de se pensar um mundo possível para estas aspirações
de transcendência, vários pensamentos filosóficos surgiram na civilização Indiana.
“É um saber especializado cuja meta é a obtenção de uma forma mais alta de ser
[...] a filosofia conduz à aquisição de um estado divino, tanto aqui como no além.”
ZIMMER (2003, p. 54). O conhecimento do transcendente era transmitido ao
discípulo oralmente através de um mestre ou guru qualificado. O consequente
respeito de seus discípulos era conquistado quando se percebia como este mestre
conduzia sua vida; suas habilidades em manter-se distante das tentações
mundanas, sua disciplina em práticas ascetas, seu profundo conhecimento das
escrituras tidas como sagradas e uma entrega espiritual absoluta, sem reservas.
“Seu próprio pensamento deve converter-se em sua vida, em sua carne, em sua
alma, manifestando-se numa habilidade em exercício.” ZIMMER (2003, p.59). Exigia-
se, por sua vez, do adhikarin (aspirante espiritual qualificado) que ousasse
empreender a jornada do aprendizado rumo à filosofia do transcendente “... uma
entrega tão completa à autoridade do mestre espiritual, que se torna impossível
voltar a forma de vida de outrora.” ZIMMER (2003, p.56).
3.1.2. O Yoga segundo Patanjali
Acredita-se que o Yoga de Patanjali, uma das tentativas Indiana s rumo ao
transcendente e um dos objetos de estudo desta monografia, tenha florescido por
volta do II século d.C., possivelmente posterior ao misticismo dos primeiros
Upanishads e paralelo ao desenvolvimento do Budismo.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
22. 21
“Segundo a tradição hindu, Patanjali foi uma encarnação de Ananta, ou
Sesha, o rei da raça das serpentes que supostamente guarda os tesouros
ocultos da Terra. Diz-se que Ananta tomou o nome de Patanjali porque
queria ensinar o Yoga na Terra e caiu (pat) do Céu sobre a palma (anjali)
de uma mulher virtuosa chamada Gônika.[...] Ananta é representado muitas
vezes como a almofada sobre a qual se reclina o deus Vishnu. [...] Até
hoje, muitos yogins prostram-se perante Ananta antes de começar a rotina
diária de exercícios yogues.” FEUERSTEIN (2006, p. 272).
A tradição iogue acolheu o tratado dos Yoga-Sutras de Patanjali como sendo
o Yoga Clássico, talvez por ter sido considerado desde seu surgimento como o mais
abrangente, sistemático ou completo. “[...] a escola de Patanjali foi a que acabou
sendo reconhecida como o sistema oficial (darshana) da tradição yogue.”
FEUERSTEIN (2006, p.272). Elogiado pela “sua prosa, sobriedade, clareza,
laconismo e flexibilidade de expressão” ZIMMER (2003, p. 210), acredita-se ainda
que os Yoga-Sutras de Patanjali não tenham sido sua criação.
Afirmam os estudiosos que Patanjali compilou magistralmente idéias que já
existiam anteriormente à sua obra. Sua prosa constitui-se de cento e noventa e seis
sutras ou fios - frases curtas favorecendo uma memorização mais rápida e que,
provavelmente visavam facilitar o aprendizado, já que este acontecia oralmente do
mestre para o discípulo. Davam a entender ainda que já existia um conhecimento ou
reflexão por parte dos discípulos destas chamadas 'meia frases' e elas serviriam
como lembretes de anteriores exposições complexas como sugere Surendranath
Dasgupta (apud FEUERSTEIN 2006, p.274), estudiosa da História da Filosofia
Indiana . Esta é a impressão que os leitores também devem ter ao se depararem
com o primeiro sutra do primeiro capítulo: “Atha yoganusaram”- 'Será feita agora
uma exposição do Yoga' -TAIMNI (2006, p.17).Outro trecho que reforça a idéia é:
“Atha denota situação auspiciosa [...] sugere que o estudante, tendo sido
devidamente preparado, poderia estar habilitado para compreender a discussão que
se segue.” MEHTA (1995, p.12 e 13). Houve uma separação daquilo que é
considerado ilusório do que não é, ou pelo menos o estudante compreendeu qual é
o caminho necessário a ser trilhado, se a sua prioridade é a senda espiritual com o
objetivo em samadhi (libertação). Com a aquisição prévia de viveka (discernimento),
os olhos voltam-se para o transcendente. Vairagya (desapego) foi experienciado
pelo discípulo quando ele, convicto da verdade do ensinamento decide-se por
desvincular-se de antigos condicionamentos, frutos de um ego identificado com o
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
23. 22
não permanente ou ilusório para lançar-se à este conhecimento sem restrições. Este
movimento interno do adhikarin denomina-se em sânscrito: mumuksha.
Aqueles que se comprometem a aprofundarem-se nos ensinamentos de
Patanjali garantem que o impacto dos quatro capítulos ou padas dos Yoga-Sutras
assemelha-se ao impacto causado pelo sublime da arte. Numa linguagem tida como
simbólica, os sutras desenvolvem-se de uma forma circular, não lógica ou linear. A
primeira seção compromete-se a responder 'o que é Yoga', enfatizando a
característica essencial de samadhi e intitula-se: Samadhi Pada. A segunda parte ou
Sadhana Pada prepara o aspirante espiritual física, mental, emocional e moralmente
para a prática do chamado Yoga Superior. Vibhuti Pada expõe os poderes
adquiridos através da prática vinculada aos ensinamentos obtidos nos capítulos
anteriores e compõe a terceira parte. A possibilidade de se alcançar a
transcendência de Si Mesmo e do Universo Manifestado, tendo como foco o
processo de libertar-se é a quarta parte: Kaivalya Pada.
A tradução da palavra sadhana, tantas vezes usada por Patanjali, é entendida
por FEUERSTEIN (2005, p.195) como:
“meios de realização [...] Todas as autoridades do Yoga aceitam a noção
de que somos inerente livres, mas todas concordam também que, para
realizar essa liberdade inata, é preciso cultivar o autoconhecimento e uma
atitude de distanciamento. Em outras palavras, o praticante deve viver a
partir de uma disposição que é análoga a essa liberdade inerente, ou
semelhante à iluminação. Esse processo de imitar o Divino (imitatio
Dei) é a própria essência do caminho espiritual.” (grifo da autora).
Esta possibilidade e processo propriamente dito de imitação do divino será
estudada no decorrer da monografia.
É provável que o conhecimento descrito por Patanjali da psique humana
tenha sido delineado por ele mesmo através de sua própria experimentação. Muitos
estudiosos erroneamente atribuem seus preceitos como sendo baseados na escola
Samkhya, afinal as duas escolas de pensamento são estruturalmente duais
defendendo a existência de uma natureza (chamada de Prakriti) essencialmente
alheia ao Si Mesmo transcendente (Purusha). È importante ressaltar que os Yoga-
Sutras de Patanjali, diferentemente da escola Samkhya, valorizam a busca pelo
samadhi através do controle do prana e das forças vitais, sendo esta uma das mais
significativas diferenças entre as duas escolas de pensamento Índia no.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
24. 23
Quanto ao pensamento estruturalmente dual dos Yoga-Sutras,
“[...] é necessário notar que a palavra utilizada em relação ao mundo
fenomenal é drsyam, aquilo que é 'visto' ou capaz de ser 'visto'. O contato
de purusha com prakriti resulta no surgimento de uma dualidade que, em
linguagem moderna, pode ser chamada de lados subjetivo e objetivo da
natureza. Destes, purusha é a essência ou o substrato do lado subjetivo, e
prakriti a essência do lado objetivo dessa dualidade. [...]. Ambos, drasta e
drstam, são, portanto, necessários ao mundo fenomenal.” TAIMNI (2006, p.142).
O mundo fenomênico assim o é, ou seja, perceptível, decorrente da ação dos
chamados três 'gunas', segundo Patanjali. Sattva (“principio psicocósmico de lucidez
ou de mera existência, vazia de filtros concentuais e revestimentos emocionais”
FEUERSTEIN (2005, p.208), rajas (principio dinâmico) e tamas (principio da inércia).
“Enquanto o yogi não atravessar a fronteira da manifestação e transcender o
domínio dos gunas [...] não terá condições de perceber sua verdadeira natureza.”
TAIMNI (2006, p.143).
A idéia primordial é a atenuação da dualidade acima descrita, através da
prática consistente dos Yoga-Sutras, alcançando finalmente a fusão ou o estado
'liberto', kaivalya.
“... o Purusha, chamado de 'poder da consciência', é concebido como
absolutamente distinto da natureza (Prakriti), que é desprovida de
consciência. Mas o que chamamos de consciência se deve a uma curiosa
correlação (samyoga) entre purusha e prakriti... entre o Si Mesmo e a
Natureza – isto é, entre a pura Atenção e o complexo constituído de corpo
e personalidade. Tal correlação deve ser atenuada através dos processos
do Yoga, até que o Si Mesmo brilhe em seu esplendor original.”
FEUERSTEIN (2005, p.187).
A seguir, nota-se a importância que os estudiosos atribuem à dualidade: “O
processo de realização sempre se desenrola num contexto dual: a Consciência
testemunhante confronta o jogo da Natureza sob a forma do corpo-mente.”
FEUERSTEIN (2006, p.301).
“Patanjali utiliza outra imagem para precisar as relações entre o espírito e
a inteligência: assim como uma flor se reflete num cristal, a inteligência
reflete o purusha (Yoga-Sutra I, 41). Mas só um ignorante pode atribuir ao
cristal as qualidade da flor (forma, dimensões, cores)”. ELIADE (1998,
p.37).
E ainda, percebe-se a importância dada às experiências, algo muitas vezes
alheia ao imaginado principio 'transcendente', gerando outra característica dualista
ao pensamento. Depende-se das 'experiências' vividas dentro de um corpo físico, de
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
25. 24
natureza material para que o processo de libertação – o Si Mesmo transcendente
possível de ser refletido como um cristal, aconteça.
“[...] os citta-vrtti, os ‘turbilhões de consciência’, não podem ser controlados
e finalmente abolidos se antes não forem ‘experimentados’. Em outros
termos, não é possível libertar-se da existência (samsara) se não se
conhece a vida de maneira concreta. [...] não é senão pelas experiências
que se obtém a liberdade. [...]. De fato, o Yoga clássico de Patanjali
confere grande importância à experiência, ou seja, ao conhecimento dos
diferentes estados de consciência.” ELIADE (1998, p.47 e 48).
Ao nomear o Yoga Superior de Ashtanga Yoga – ou Yoga de oito membros,
Patanjali sugere o experienciar de oito estágios correspondentes entre si. São eles:
1. yamas (auto-restrições), 2. niyamas (auto-observâncias), 3. asana (postura), 4.
pranayama (controle respiratório), 5. pratyahara (abstração dos sentidos), 6. dharana
(concentração), 7. dhyana (contemplação ou meditação) e 8. samadhi (libertação).
A segunda parte dos Yoga-Sutras, Sadhana Pada ou a prática sugerida por
Patanjali como caminho espiritual eficiente rumo à libertação, será estudado logo a
seguir.
3.1.3. A prática do Yoga segundo Patanjali
Dentre os niyamas (estados de auto-observância) propostos, são estes os
cinco elementos a serem conquistados: a pureza, o contentamento, a austeridade, o
auto-estudo e a auto-entrega. Juntamente com os yamas 15 , funcionam como um
pré-requisito para que se possa alcançar o objetivo final de libertar-se e revelam um
ideal de conduta para o futuro iogue. Os três últimos acima mencionados: tapas
(austeridade), svadhyaya (auto-estudo) e Isvara Pranidhanat (auto-entrega à Deus)
são agrupados como Kriya Yoga no primeiro aforismo do segundo capítulo, Sadhana
Pada. Compreender a atitude de auto-entrega à Deus, para futuramente relacioná-la
com a Dança Clássica Indiana é a intenção deste estudo, portanto o mecanismo de
como estes elementos interagem na vida do iogue é de extrema importância.
“Muitos aspirantes tem a idéias bastante confusas e, às vezes, totalmente
equivocadas, em relação ao objetivo e a técnica do Yoga [...] sua capacidade e
15 Cinco auto-restrições que consistem em: não violência, verdade, não roubar, castidade e ausência de cobiça.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
26. 25
seriedade são testadas com rigor, ao tentarem praticar Kriya Yoga.” TAIMNI (2006,
p.110). Esta chamada autodisciplina preparatória ou Kriya Yoga é tríplice em sua
natureza, e ela se correlaciona com a própria natureza do ser humano que, segundo
Patanjali, é também de três vértices: a vontade - podendo esta ser controlada pela
prática de tapas ( austeridade), o intelecto – podendo ser aprimorado por svadhyaya
(auto-estudo) e as emoções, direcionadas através da prática de Isvara Pranidhanat
(auto-entrega à Deus).
Quanto ao controle de sua vontade, o iogue necessita purificar e sobretudo
disciplinar sua natureza 'inferior' gerenciando seu corpo ao aprimorar a
autodeterminação e autocontrole. A palavra tapas em sânscrito pode significar,
segundo TAIMNI (2006) o processo ao qual o 'ouro' impuro é submetido a um 'calor'
com o objetivo de queimar suas impurezas restando o ouro puro. Incluem-se nesta
tentativa de autocontrole: jejuns, sacrifícios por um determinado tempo, prática de
pranayamas (contenção da respiração) etc. Até que o iogue passe a identificar-se
não com o veículo somente, mas com a consciência, façanha difícil para o homem
comum que devido à sua ignorância não dissocia veiculo e consciência. A aquisição
da extrema força de vontade com propósitos cada vez mais espirituais faz o iogue
experienciar um poder sobre seu próprio corpo e seus apelos e compreender que
sua mente consegue impor-se sobre seus impulsos. “Somente quando este poder de
dissociar a consciência dos veículos tiver sido adquirido até certo ponto, o sadhaka16
poderá de fato purificar e controlar os veículos e usá-los para os propósitos do Yoga.”
TAIMNI (2006, p.181).
Com a vontade menos subjugada aos desejos inconstantes da mente, o
intelecto do iogue necessita voltar-se para a disciplina dos estudos, envolvendo-se
com a literatura essencial do Yoga. Conquistado o conhecimento necessário, é o
conhecimento vindo de seu interior chamado de 'real' e adquirido através de práticas
meditativas e reflexões, seu objetivo genuíno em svadhyaya. “O estudante começa,
assim, a obter um 'insight' mais profundo dos problemas da vida do Yoga”. TAIMNI
(2006, p.182). Naturalmente quanto mais envolvido neste processo reflexivo e
meditativo, o objeto de sua busca acabará por absorver cada vez mais o estudante.
Neste momento talvez ele se sinta preparado para recitar mantras para seu Ista-
16 Praticante espiritual.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
27. 26
Devta (deidade escolhida). Outros mantras como o Gayatri, por exemplo, também
poderão ser utilizados. O que vigora é uma atitude de profunda absorção e
comprometimento com o saber.
“[...] até que o sadhaka esteja apto a extrair todo o conhecimento ou
devoção do interior, por seus próprios esforços. Este é o significado do
prefixo sva, em svadhyaya. Ele abandona todo auxilio externo, tais como
livros, discursos etc. e mergulha em sua própria mente para tudo de que
necessite em sua busca.” TAIMNI (2006, p.182 E 183).
As emoções constituem o último aspecto a ser discutido dentro da tripla
natureza do Kriya -Yoga. O entregar-se à Deus ou Isvara-Pranidanat.. No interior
do ser humano, a Realidade já se encontra livre da ilusão responsável pelas aflições
e misérias da vida. Manifestações do que TAIMNI (2006) chama de 'egoidade', ou a
constante imposição do “eu”, arrasta o homem para a identificação ou com o veiculo
ou o próprio ambiente com o qual estão inseridos. Este movimento interno faz com
que a natureza plena desta Realidade seja ignorada. “Purusa se vê envolvido em
prakriti através de avidya’ 17 TAIMNI (2006, p.183). Este fato por si só é gerador de
inúmeras aflições para o ser humano, identificado em sânscrito como: kleshas. De
acordo com Patanjali são cinco as causas formadoras dos kleshas das quais todo
ser humano, invariavelmente se vê refém: 1) ignorância; quando o irreal é
confundido com o real. O mundo conhecido é maya (ilusão), percebido
erroneamente pelos sentidos. A ignorância, consequência da identificação com este
mundo ilusório, é tida como a raiz causadora de todos os outros quatro kleshas a
seguir. 2) o sentimento de individualidade que carrega o ser humano, fator que
dificulta o conhecimento de sua verdadeira natureza – o puro 'eu sou' por conta da
ignorância transforma-se em 'eu sou isto'. 3) apego; busca pela repetição do que
provoca prazer. 4) aversão .Comportamento de evitação a tudo que causa
desprazer. 5) vontade de viver; “...a pessoa se identifica erradamente com o corpo e
fica sujeita ao instinto de sobrevivência”. FEUERSTEIN(2005, p.22).
Quando a prática de auto-entrega à Deus se revela eficaz, o iogue realizou
um esforço fenomenal de deslocamento do que TAIMNI (2006) chama de 'continuo
recolhimento da consciência' , um caminho traçado da personalidade: a sede de
consciência do 'eu' para a consciência do Supremo. Compreendendo que um
17 “'nescedade', [...] ignorância espiritual.” FEUERSTEIN (2005, p.50).
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
28. 27
envolvimento consciente do Yoga tem dentre seus objetivos a destruição dessa
'consciência do eu', e isto pode se dar através da
“ [ ...] a prática de Isvara Pranidhanat [...] tem por objeto a dissolução de
asmita 18 , pela sistemática e progressiva fusão da vontade individual com a
Vontade de Isvara, destruindo, assim, a própria raiz dos kleshas” .TAIMNI
(2006, p.183).
Ao entregar-se à Deus, permitindo com que vigore a Sua vontade e não mais
a vontade do ego pessoal é possível, de acordo com o ensinamento dos Yoga-
Sutras, tanto enfraquecer os kleshas a ponto de destruí-los, como também alcançar
o propósito maior no Yoga: samadhi.
“Isvara pode apressar certos homens o processo de libertação, ele ajuda a
chegar mais rápido em samadhi. [...]. O papel de Isvara é, aliás, bastante
modesto. Ele pode, por exemplo, fazer com que o praticante que o
escolheu como objeto de concentração obtenha o samadhi. Segundo
Patanjali (Yoga-Sutra, II,45), esse auxilio divino não é efeito de um “desejo”
ou de um “sentimento” - por que Deus não pode ter nem desejos nem
emoções – e sim de uma simpatia “metafísica” entre Isvara e purusha,
simpatia que explica pela correspondência de suas estruturas. Isvara é um
purusha livre desde a eternidade, jamais atingido pelos klesha (Yoga-Sutra,
I, 24). ” ELIADE ( 1998, p.74).
Surge então, de acordo com Patanjali uma opção para o futuro iogue; ou ele
libera-se pela extensa técnica yóguica dos oito membros acima mencionada, ou
coloca em pratica à auto-entrega à Deus: “Patanjali, no entanto, introduziu Isvara no
Yoga, porque Isvara era por assim dizer um dado experimental; os yoguis apelavam para
Isvara, embora pudessem liberar-se pela observância exclusiva da técnica yóguica.”
ELIADE ( 1998, p. 75).
Não se pode deixar de salientar que ao mencionar 'Deus', Patanjali revela um
conceito abrangente de um 'Principio Eterno Atemporal' e não um Deus pessoal ou
antropomórfico.
“[...] Isvara é desprovido da grandeza do Deus criador e todo-poderoso, e do
pathos próprio ao deus dinâmico e grave das diversas místicas. Isvara nada
mais é que um arquétipo do praticante; um macro-yogin, muito
provavelmente um patrono de seitas yóguicas. Com efeito, Patanjali afirma
que Isvara foi o guru dos sábios das épocas imemoriais; pois, acrescenta ele,
Isvara não está preso ao tempo (Yoga-Sutra, I,26).” ELIADE(1998, p.75).
“Portanto, Isvara Pranidhanat mais exatamente significaria uma reta orientação
para o Real ou Atemporal, indica abrir-nos para a Realidade e, assim, viver nos espaços
abertos. Isvara ou Realidade não é em alguma direção. É todo-abarcante.” MEHTA
18 “Percepção de si mesmo como ser separado.” FEUERSTEIN (2005, p.45).
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
29. 28
(1995, p.112 e 133). E quanto à atitude de entrega do aspirante espiritual
propriamente dita, sugere-se um desapego extremo dos resultados de suas ações:
“[...] entregar-se ao Senhor, isto é, a prática de bhakti 19 , a devoção ao [...]
Ser divino como governante onipresente do Universo e “testemunha” que
habita o interior de cada criatura, reitor interno que controla cada ação, a
quem se deve oferecer os frutos de todas as ações.” ZIMMER (2003,
p.305).
O segundo sutra do primeiro capítulo merece ser lembrado: 'Yogas citta-vritti-
nirodhah' - 'Yoga é a inibição das modificações da mente', tradução de TAIMNI
(2006, p.19), que tão bem caracteriza e define os estágios de progresso passados
pelo iogue e expõe a natureza essencial do Yoga. O ideal a ser conquistado é a
desidentificação e o futuro aniquilamento da mente inferior, chamada de kama-
manas para um gradual envolvimento com aspectos cada vez mais superiores de
Consciência, até uma fusão completa com Paramatma (Divina Realidade). Entende-
se que o aspirante espiritual que se empenhou na árdua, porém recompensadora
tarefa de abraçar os oito estágios propostos por Patanjali, tenha obrigatoriamente
suprimido os citta-vrittis (turbilhões da mente). Segundo os estudiosos, o vôo dado
pelo iogue rumo à sua transcendência acontece metaforicamente na figura de um
pássaro de duas asas: abhyasa (esforço) e vairagya (desapego). Sem esforço nada
real se estabelece. “Pelo abhyasa obtém-se o sucesso, pela prática se ganha a
liberação. A consciência perfeita adquire-se pelo ato. O Yoga obtém -se agindo.”
ELIADE (1998, p.47). O esforço também é valorizado, segundo outro autor, ao
comentar também os aforismos de Patanjali: “Prática prolongada e firme é o segredo
do sucesso em todos esses empreendimentos.” TAIMNI (2006, p 31). Sob o outro
aspecto, o desapego constitui na erradicação completa das motrizes do desejo. “[...]
a verdadeira arma a ser utilizada na aquisição do autêntico vairagya é a mais
penetrante luz de buddhi 20 , que se expressa como viveka” 21 .TAIMNI (2006, p. 35). O
discernimento torna-se possível através da conquista de uma mente cada vez mais
identificada com seu aspecto 'búddhico'. Através da prática naturalmente torna-se
mais pura e menos voltada para ilusões, capaz de renunciar e discernir.
O iogue após extensa e consciente prática, abarca finalmente a possibilidade
de libertar-se, sua conquista final.
19 “Devoção amorosa” FEUERSTEIN (2005, p.55).
20 Mente superior.
21 “Percepção da diferença entre o real e o irreal” FEUERSTEIN (2005, p. 255).
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30. 29
3.1.4. A conquista final do Yoga segundo Patanjali
Libertar-se é o objetivo último da existência humana.
Em sânscrito: “samadhi: êxtase, o membro final do caminho do iogue.”
FEUERSTEIN (2005, p.199). E ainda, “... um mergulho nas camadas mais profundas
da consciência .” TAIMNI ( 2006, p.37).
Em relação a descrição do estado liberto, alguns autores mencionam a dificuldade
que permeia este processo descritivo. “O estado extático, sendo o auge de um processo
árduo e prolongado de disciplina mental, é dificílimo de definir ou descrever, muito
embora essa definição ou descrição seja crucial para o perfeito entendimento do Yoga.”
FEUERSTEIN ( 2006, p.314).
Centralizar a consciência longe do mundo físico descreve os passos do iogue
rumo ao samadhi
“A característica que desenvolve essa consciência superior, a qual se
desenvolve samadhi, é que a mente é completamente isolada do mundo
físico, e a consciência é centralizada em um ou outro grupo de veículos,
começando pelo corpo mental inferior e finalizando com o veículo átmico.”
TAIMNI (2006, p.38).
Quanto mais refinado o meio com o qual o iogue se expressa em relação ao
aprimoramento de sua consciência como aspecto da Realidade Última, mais
significativa é superação dos estágios de samadhi. Kaivalya é o nome dado ao
estado último em que a consciência existe em plena liberdade, a consciência mais
transcendente possível de ser obtida, no reino de Prakriti.
Por meio da prática do pratyahara (abstração dos sentidos), o iogue,
independente do mundo externo ao seu redor, experiência uma técnica denominada:
samyama. As últimas etapas da meditação yóguica: dharana (concentração),
dhyana( a meditação propriamente dita; alguns estudiosos a denominam também de
'contemplação') e samadhi (êxtase ou libertação). As etapas em si, são semelhantes,
“... de tal forma que o praticante que se aplica a uma delas (a
concentração, por exemplo) não consegue se sustentar nela sem
dificuldade e com frequência, involuntariamente, escorrega na meditação
ou no êxtase. Eis porque estas últimas práticas tem um nome em comum:
samyama.” ELIADE (1998, p.71).
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
31. 30
Uma outra maneira deste processo ser descrito seria:
“...procura-se controlar e canalizar esse tipo de atividade ('imagens
mentais inerentes à própria mente') em dharana e dhyana e direcionar essa
atividade da mente para um único canal. Nada resta agora na mente, nada
pode nela surgir, exceto a “semente” de samyama ou objeto de
contemplação.” TAIMNI (2006, p.86).
Ao utilizar-se a analogia do cristal sobre a folha de papel colorida, este ainda
reflete resquícios de cores mesmo não sendo a sua própria, o que Patanjali chamou
de 'sabija samadhi', samadhi com semente.
“Uma influência externa ainda o altera, embora esta modificação seja de
natureza muito sutil. Somente quando o cristal é colocado sobre um papel
branco, que emite luz branca, é que ele brilhará luz branca, que inclui todas
as cores em uma composição harmoniosa, símbolo da verdade Total ou
Realidade.” TAIMNI (2006, p.87).
Através da prática do chamado 'samadhi sem semente', nirbija samadhi é que
trará à mente à possibilidade de fundir-se na Realidade. Já na reta final de sua
jornada rumo à libertação plena, o iogue compreende o 'eu sou outro além do meu
corpo', refletindo o Si Mesmo.
“Chama-se dharma megha samadhi [...] que parece se referir a uma
abundância de virtudes ('dharma') que preenchem de uma só vez o yogin.
Este experimenta ao mesmo tempo um sentimento de saturação e de
ruptura com o mundo: ele tem um sentimento de saciedade em relação a
todo conhecimento e a toda consciência.” ELIADE (1998, p.82).
Neste estado liberto, o iogue aniquilou seus citta-vrittis (turbilhões de sua
mente). O conhecedor, o conhecimento e o conhecido fundiram-se. De acordo com
TAIMNI (2006), o Universo manifestado para Patanjali revela a todo instante três
aspectos ou 'triplicidade'; como por exemplo, o observador, observado, a
observação. “É devido ao fato de que a realidade Una ter-se tornado Trina que é
possível produzir uma fusão do Três em Um.” TAIMNI (2006, p. 85). Quando liberto,
a partir do que compilou Patanjali, o conhecedor conquista o perfeito e completo
conhecimento do conhecido.
De acordo com o estudioso ELIADE (1998), a espontaneidade do jivan-mukta (o
liberto em vida) é possível através do estado 'não condicionado de samadhi' que o
chamado Yoga Clássico de Patanjali proporciona. “Sob certo ponto de vista pode-se
dizer que o jivan-mukta aboliu o Tempo e a História; sua espontaneidade de certa forma
se parece com a existência paradisíaca do homem primordial evocado pelos mitos.”
ELIADE (1998, p.280). “Graças ao samadhi ultrapassa-se definitivamente a condição
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
32. 31
humana – que é dramática, nascida do sofrimento e consumida no sofrimento – e se
obtém enfim a liberdade total.” ELIADE (1998, p.45).
Portanto, a possibilidade de transcendência do fardo da existência humana é
finalmente encontrada. O magistral trabalho do estudioso deve ser levado em conta
pelo adhikarin: “[...] pelo samadhi, o praticante transcende os contrários e reúne, em
uma experiência única, o vazio e o pleno, a vida e a morte, o ser e o não ser.”
ELIADE (1998, p.93).
3.2. A dança
3.2.1. Ecos ancestrais do Universo da dança
A dança é conhecida, tanto por leigos como por estudiosos do tema, como
uma das expressões mais significativas e concretas da vida. Ela acolhe a inerente
necessidade de se auto-expressar dos seres humanos. Nesta atitude (de auto-
expressão), a existência muitas vezes encontra sentido, pelo menos naquele fugaz
momento em que os corpos tentaram se movimentar de maneira mais harmônica.
Historicamente falando, a dança sempre esteve presente na Humanidade, desde
seus tempos imemoriais; de forma terapêutica ou como veículo de cura, nas mais
diversas celebrações, como ajuda para atrair um parceiro, como estratégia
ritualística e mágica ou ainda como auxilio na fertilidade tanto das mulheres quanto
da terra favorecendo a colheita.
Os antigos rituais utilizavam-se da dança, como explicita o autor:
“A dança teve um papel decisivo a ser representado nos rituais ancestrais
ao longo dos anos, e incorporou valores da cultura que ajudava também a
formar. Com a vida tornando-se mais sofisticada, o místico, os atos tribais
de sociedades primitivas praticamente entregou às religiões organizadas
suas cerimônias. As mais importantes delas são as relacionadas com a
fertilidade tanto da terra quanto da raça humana.” BUONAVENTURA
(1998, p. 26;.tradução livre da autora).
Porém foi como ritual religioso que encontrou seu significado mais expressivo,
mantendo-se por um tempo relativamente extenso no cenário da Humanidade, e
ainda assim o é em muitas culturas, como na Indiana por exemplo. Na antiguidade a
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
33. 32
religião ou melhor, o ato do homem sacralizar seus atos e intenções, fazia parte de
seu dia-a-dia: “ Toda dança foi uma vez parte de um ritual religioso, e em algumas
culturas ainda o é. Na antiguidade, a religião era parte da vida cotidiana, e todas as
intercorrências vividas eram tocadas por ela.” BUONAVENTURA (1998, p.25)
Atribuíam significância para o nascer e o por do sol; os ciclos da colheita; o
nascimento e a morte do corpo. Todos estes acontecimentos eram, por exemplo
vistos como resultado de forças misteriosas e como algo além da compreensão das
pessoas daquela época. Criaram mundos de espíritos para tentarem lidar com aquilo
que não entendiam. Depois intuíram os mitos e seus rituais para ajudarem neste
processo, os quais tinham o poder de iluminar o desconhecido sem reduzí-lo ao
mundano. Espíritos estavam por toda a parte: no ar, em árvores, no sol e na lua.
Havia no homem já esta percepção de que era possível transcender a vida cotidiana
e até mundana através da dança, e esta como canal à atitude devocional.
Antes da invenção da linguagem, o veiculo maior de auto-expressão era o
corpo. Ainda nos dias de hoje, com o desenvolvimento da linguagem, a palavra não
se faz completa, invariavelmente ainda necessitamos da ajuda do corpo como um
todo. Ao observarmos, por exemplo, o ápice devocional nos templos Índia nos
podem existir entoações de mantras 22 , mas grande parte de um puja 23 se dá através
de uma simbólica coreografia, executada minuciosamente pelos sacerdotes.
Sentam-se de frente para o altar, e com a mão direita oferecem flores à deidade,
lavam-na com mel e iogurtes, trocam-lhe a roupa, reverenciam a forma de Deus
escolhida com mudras 24 sagrados, específicos para a ocasião auspiciosa da
oferenda. Movimentos harmônicos estudados e preservados em seu significado por
milênios. Uma dança sagrada.
22 “Pensamento ou intenção expressos como som. [...] Até o mais famoso de todos os mantras, a silaba sagrada om, só se
torna mantra depois que o mestre (guru) lhe transmite poder.” FEUERSTEIN ( 2005, p.147).
23 “[...] Adoração diária a uma divindade escolhida.” FEUERSTEIN (2005, p. 185).
24 Gestos intencionais com as mãos ou com o corpo, em rituais iogues ou ainda na dança clássica. “ Na Índia, os mudras
são incorporados em atividades religiosas. Os vários mudras encontram seu significado em diferentes deidades. [...] Com as
suas mãos, o dançarino Índia no expressa a vida no Universo.” HIRSCHI (2000, p.5).
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
34. 33
3.2.2. A Dança Clássica Indiana: Bharata Natyam
“Existem poucas pessoas, que tenham tido o privilégio de assistir uma
performance de um artista capacitado de Bharata Natyam, que
contestariam a afirmação que este é um dos mais sutis, sofisticados e
graciosos estilos de arte-dança do mundo. Flores abrem-se das mãos do
dançarino, pássaros voam das pontas de seus dedos, o corpo balança ora
em orgulho ora em devoção, cada músculo de seu rosto transforma-se; os
olhos movimentam-se com extrema suavidade ou desprezo, as
sobrancelhas expressam horror ou suspeita, mesmo quando a face toda
coloca-se de forma diferente e geralmente com sentimentos contrários na
mesma respiração – tal como é um drama dançado realizado de acordo
com as mais delicadas nuances de um repertório musical, ou um poema
através do veiculo de um corpo, é certamente inigualável em qualquer
outra arte. E o milagre é que tem sobrevivido por quase três mil anos no
25
nosso país , quase que intacta, em toda a sua variada forma de esplendor
e humores reunidos através dos séculos.”Mulk Raj Anand (apud KHOTARI
-2000, p.16; tradução livre da autora).
O que hoje se conhece sobre Bharata Natyam é que esta é uma dentre as
sete formas de Dança Clássica Indiana, nascida no sul da Índia . Mas de acordo com
Dr. KHOTARI (2000), renomado crítico e estudioso da História das Danças na Índia ,
Bharata Natyam inclui não somente um dos estilos clássicos e sim todas as formas
de drama-danças. O tratado em sânscrito, Natya Shastra, que segundo estudiosos
data do século III ou IV anterior a era cristã aproximadamente, estabeleceu os
princípios técnicos e estéticos da arte dançada. O conteúdo dramático a ser
expresso na dança utiliza-se da pantomina e de gestos harmônicos a partir do corpo
do dançarino, mais especificamente dos olhos, pescoço, sobrancelhas e mãos.
Nomeia-se esta expressão: abhinaya, que é representada ou externalizada com o
auxílio de navarasa (os 'nove estados de ânimo'): amor, admiração, desprezo, medo,
ira, desgosto, pesar, valor e bem-aventurança.
O impacto e poder da arte da dança clássica Indiana é tamanho que a palavra
'abhinaya' traduz a possibilidade da expressão dançada. Segundo o tratado de
Natya Shastra, 'abhinaya' pode ser dividida em quatro categorias:
25 Índia.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
35. 34
“'angika abhinaya' (como a expressão se dá através dos membros do
corpo),' vachika abhinaya' (como a música e as letras da música dançada
devem ser expressas), 'aharya abhinaya' (como os complementos como a
luz, maquiagem, ornamentos podem e devem ser expressos) e 'sattvika
abhinaya' (a natureza real da expressão devocional e é a característica em
que cada artista contribui com seus atributos de devoto)”.ESHWAR (2002,
p.18;tradução livre da autora).
É clara a intenção do dançarino de transcender a harmonia dos movimentos
corporais. Na dança Indiana do estilo Bharata Natyam, de cunho devocional
declarado, isso pode acontecer através da abhinaya:
“No ato da representação da Abhinaya é que Bharata Natyam salta do
pessoal para o sagrado. [...] é quando a dança torna-se visceralmente
visível, até então a sua visibilidade era puramente psicológica.” Raghava R.
Menon (apud ESHWAR – 2002, p.vii; tradução livre da autora).
Segundo a mitologia da cultura védica 26 preserva-se a lenda que o
surgimento do Bharata Natyam se deu com a inspiração do que concebiam que era
Deus, e este na forma de Brahma 27 quando criou o 'quinto Veda', o Natya Veda ou
uma quintessência dos quatro Vedas. Segundo a ótica do mundo mitológico,
Brahma obedeceu ao pedido do sábio Bharata propagando o então Natya Shastra, o
primeiro tratado de arte/drama/dança que se tem conhecimento na História da
Humanidade. Nataraja, Deus na forma de Shiva dançarino era capaz de deleitar
todos os outros deuses com suas incomparáveis habilidades de movimentar-se. Diz-
se que o próprio Universo pode ter sido criado a partir de sua dança cósmica
frenética ajudando sua incansável tarefa de destruir a avidhya, a ignorância nos
devotos.
“Usando seu poder na arte da música, dança, e de tocar o tambor, ele
enfeitiça o Universo inteiro para o deleite de sua platéia. [...] O que quer que
sua voz, suas batidas do tambor e suas mímicas alcancem dentro do limite da
existência, isto tudo permanece. Permanece por gerações, como base para
um pensamento que está por vir, em sonhos, decisões, esperanças e em
expectativas.” STORL (2004, p. 142; tradução livre da autora).
Não se pode deixar de ressaltar a função social da dança clássica de Bharata
Natyam no passado; na grande glória alcançada dentro dos templos e mais tarde,
nas cortes reais. Entretanto seu propósito maior sempre foi propagar formas de
adoração ao sagrado. E isto tem sido mantido, apesar das inerentes mudanças
históricas, políticas e sociais da Índia.
26 Cultura baseada nos 'vedas', em sânscrito: 'conhecimentos'. Divide-se em quatro hinários: Rig-veda, Atharva-veda, Yajur-
veda e Sama-veda e é tido como o mais antigo trabalho literário Índia no, e o alicerce das escrituras sagradas.
27 “O Criador na trindade clássica do Hinduísmo, sendo os outros dois deuses Vishnu e Shiva” FEUERSTEIN (2005, p.60).
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36. 35
“[...] mesmo se esta ancestral arte-dançada sobreviva, dentro de uma era
industrial e atômica, mais uma e outra vez, é muito pouco provável que sua
estrutura suporte o aspecto religioso, mas isto ainda desabrocha em seu
aspecto mais puro.” Mulk Raj Anand, apud KHOTARI (2000, p.18 ;tradução
livre da autora).
Entende-se, portanto esta milenar arte dançada primordialmente como uma
expressão espiritual, sendo que os movimentos são criados intencionalmente como
uma oferenda ao Divino e que esta tradição tem sido fielmente mantida, há pelo
menos três mil anos na Índia. A forma clássica da dança Indiana enfatiza o enraizar-
se, o que é relativo à gravidade da terra para alcançar os céus. Como, por exemplo,
alguns coreógrafos apontam que as poses são feitas próximas da terra, com o foco
na abertura das articulações dos quadris, assim como em padmasana 28 no Yoga. Na
dança, a intenção é imitar a posição de joelhos dobrados das deidades.
O que se procura alcançar, portanto, é a fusão de atma (alma individual) com
paramatma (alma universal). O dançarino retrata personagens das escrituras
sagradas hindus assim como em 'Mahabharata', 'Ramayana' e 'Os Puranas',
procurando despertar o espectador para sua própria divindade.
“Quando Krishna rouba a manteiga das gopis como qualquer outra criança
assim o faria, ele nos dá ao mesmo tempo a beleza de uma brincadeira
divina e pode nos seduzir para dentro deste cenário de fantasias
espirituais. Nós dançamos com nossos corpos, mas os esquecemos deles
e os transformamos. Nós dançamos as vidas dos deuses e deusas, mas
fazendo isso transcendemos o que está num nível 'abaixo'. A humanidade
deve tornar-se divina, da mesma forma que a divindade torna-se humana.”
Rukmini Devi ( apud KHOTARI – 2000, p. 26; tradução livre da autora).
É o que a autora a seguir também reforça, a respeito do caráter devocional
que deve impregnar os movimentos do dançarino:
“Ainda, tentar classificar os vários requisitos da beleza física envolvida na
arte da dança Indiana, sem primeiramente insistir e observar suas
implicações divinas seria tão inútil quanto fazer um catálogo de cores de
um por do sol acreditando que ao fazer isso um estará criando uma obra de
arte.” AMBROSE ( 1983, p.19; tradução livre da autora). E para tornar esta
idéia devocional ainda mais presente no leitor: “Aonde quer que eu dance,
este lugar se torna um templo” é uma frase do célebre dançarino Índia no
Ram Gopal, apud AMBROSE ( 1983, p. 12; tradução livre da autora).
Milênios antes, muitas das danças clássicas na Índia eram realizadas por
brâmanes 29 , sempre do sexo masculino que exerciam também papéis de
28 “'Padma' significa lotus. Nesta postura as pernas estão cruzadas, os pés descansam nas coxas com as solas para cima.
A espinha está ereta. [...] A flor de lotus nasce na lama, porém não demonstra nenhum sinal disto; assim devemos viver no
mundo.” RADHA (2003, p. 118 e 120).
29 “[...] guardiões do conhecimento sagrado.” FEUERSTEIN (2005, p. 62).
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
37. 36
sacerdotes, estudiosos, músicos e dançarinos. Antes de iniciar uma performance, ou
ainda, qualquer movimento com seu corpo, o dançarino sempre de pés descalços
realiza um 'namaskar' (um ritual de saudação), em homenagem à deidade Terra.
Posiciona gentilmente as solas de seus pés, paralelas ao chão, pedindo permissão à
deidade para poder criar ' tala' (ritmo). Ele não violentará a criação, ao contrário, irá
celebrá-la de forma vigorosa criando batidas vibrantes com o ritmo de seus próprios pés.
É esperado pelos gurus que seus discípulos usem seus conhecimentos e
talento para expressar um ideal espiritual, não simplesmente criem beleza física ao
personificar os deuses. O que os estudiosos ancestrais vem profetizando a cerca
das tradições deve ser uma referência constante. Somente ao ser feita a invocação
apropriada (namaskar), a dança pode iniciar-se. “O conhecimento transmitido pelos
ancestrais deve ser mantido. Somente depois da invocação, a dança tem a
permissão para ser iniciada.” AMBROSE (1983, p.19; tradução livre da autora).
Dentre os ensinamentos mais valiosos dos gurus para uma performance tradicional,
ressalta-se que;
“[...] a música deve ser sustentada em silêncio pela garganta do dançarino.
A emoção demonstrada pelo olhar. O ritmo pelos pés. Por onde as mãos
se movem, o olhar segue. Os caminhos que este olhar percorre, a mente
atrai-se por ele. Por onde a mente segue, também segue o humor, o
sentimento que fez-se nascer. Por onde segue o sentimento, aí reside o
néctar divino ( rasa).” AMBROSE (1983,p.19; tradução livre da autora).
Ou seja, quem participa desta performance como mero espectador será
convidado a experienciar através da projeção do dançarino este néctar da bem
aventurança.
É tão claramente percebido na Índia esta intenção espiritual que as danças
clássicas são conhecidas também como “a arte dos templos” . È importante ressaltar
que atualmente a denominação de artistas proeminentes neste país hoje já não mais
se intitulam devadasis 30 como na ocasião do surgimento da dança clássica devido o
seu desaparecimento dentro do cenário histórico cultural Índia no. Porém há um
significativo nível de comprometimento com a intenção devocional/espiritual, e ainda
hoje para ser iniciado por um mestre confiável, comprometido e vinculado à tradição
em qualquer um dos estilos de dança clássicos na Índia , aspectos éticos da conduta
30Serventes de Deus; dançarinas que dedicavam suas vidas às deidades nos templos; através de rituais e danças de
adoração aos deuses.
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
38. 37
do dançarino são relevantes assim como uma relação direta com o desenvolvimento
de sua espiritualidade.
Ao personificar 'histórias' sagradas, o dançarino conectado com as tradições
e, portanto consciente da seriedade implícita em sua arte tem naturalmente a
consciência de que, por exemplo o separar das palmas das mãos em anjali mudra 31
seguido do posicionar dos braços quase esticados na lateral e na altura dos ombros,
de acordo com a renomada dançarina e mestre Surya Kumari do 'Índia n Performing
Arts' de Londres, simboliza o caminho traçado pelos seres humanos ao nascer.
Estávamos envolvidos na Unidade, anterior ao nosso nascimento – palmas das
mãos unidas e, com o nascimento, mergulhamos na dualidade – o separar dos
braços e mãos. Ainda, Kumari usa a analogia de uma marionete, que ao 'ganhar
vida' utiliza-se de movimentos precisos – de recolher e esticar articulações dos
ombros; mexer os olhos, intercalados com movimentos também laterais do pescoço,
ambos com as batidas da música e, movimentar rapidamente palmas das mãos em
pataka mudra 32 para o alto. A marionete agora faz parte de um mundo manifesto
dual, simbolizando cada um dos seres humanos. Passa-se a compreender a filosofia
existente por de trás dos movimentos corporais, que quase sempre está presente
numa apresentação de Bharata Natyam. A partir daí dança-se junto com o artista na
expectativa de se resgatar a condição unificada perante toda a criação. .
Outro exemplo da simbologia existente em cada movimento ou enredo da
dança devocional Indiana pode ser verificado:
“[...] um pote de água que a Gopi (camponesa) carrega no alto de sua
cabeça e que Krishna tenta quebrar pode simbolizar valores e crenças de
uma determinada ordem social. È isto que Krishna tenta derrubar de várias
formas ao querer destruir este pote.” Menon, apud ESHWAR (2002, p.7;
tradução livre da autora).
Ele ainda procura adverti-la para que não o encha novamente, pois a água
pode representar nesta linguagem metafórica, meias verdades e manifestações do
ego entendidas como ignorância na cultura aqui estudada. Krishna funciona como
guia espiritual enquanto a platéia é aqui projetada na figura das camponesas
31 As duas mãos, com as palmas unidas posicionam-se à frente do peito, como em um gesto de prece. “Na Índia, este é um
gesto de saudação ou agradecimento; denota respeito para com outro ser humano.” HIRSCHI (2000, p.144).
32 palma da mão aberta, dedos eretos e levemente tensionados, em sânscrito significa:'bandeira'.“Um dos treze hasthas de
acordo com Abhinaya Darpanam.” ESHWAR ( 2002, p.34).
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
39. 38
ansiando por um desfecho libertador deste sansara 33 a qual acreditam estarmos
todos envolvidos. Este nomeado Senhor, ou guia tenta prevenir que compulsões ou
apegos terrenos não são impossíveis de serem minimizados. Enquanto devoto,
dança-se junto com o dançarino que empreende tal jornada de libertação, libertando
pelo menos momentaneamente, cada um dos espectadores.
Na Índia, além do requisito 'espiritual', espera-se que este dançarino tenha
sido também treinado para incorporar vários veículos de expressão artística como:
compreensão profunda da música clássica Indiana e ter desenvolvido
conhecimentos muito além da média em técnicas de drama, mímica, maquiagem e
iniciado em artes como escultura, pintura e outras formas de arte chamadas
'criativas'.
Neste país, a maioria das suas manifestações artísticas é de cunho
devocional. Abaixo, está retratado um poema original que retrata a intenção
devocional cotidiana da cultura em questão. A autora Antal é da região de Tamil
Nadu, no sul da Índia e, mesmo seus poemas tendo sido escritos no século IX, “ ...
são ainda cantados nos casamentos de hoje em dia na região de Tamil.”
DALLAPICCOLA (2006, p.90).
“Neste dia auspicioso,
Lua cheia no mês de Markali,
Venham amadas e jovens donzelas
do abençoado Ayarpati, venham enfeitadas com jóias,
venham todas que desejarem
banhar-se em águas límpidas.
Você de corpo escuro,
face ardente como o sol,
suave como a lua,
com olhos do formato de lótus rosa;
Aquele jovem leão,
Filho de Yashoda de olhos belos,
Filho de Nandagopa
Pronto com lança afiada,
O próprio Narayana
Atenderão nossos desejos.
Venha se juntar a nós neste voto em Markali,
Todos irão aplaudi-la.
Atenda, oh canção, nossos votos.”
Antal (IX século)
33 “O mundo fenomênico da mudança, que se contrapõe à Realidade transcendente.” FEUERSTEIN (2005, p.204).
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento
40. 39
“O poema se refere à um voto firmado entre moças virgens que, ao
banharem-se num rio de águas frias durante o crepúsculo,durante o mês
de Markali - meio de dezembro ao meio do mês de janeiro -, seriam
abençoadas com uma feliz vida de casadas e com crianças. Aqui as
garotas rezam para obter Krishna, o possuidor do 'corpo escuro' com olhos
na forma da flor de lotus e na figura de um leão, como o futuro marido
delas.” DALLAPICCOLA (2006, p 76). Tradução livre da autora.
Porém é na 'bhava' (sentimento) da dança Bharata Natyam, que reside a
visível diferença de um artista conectado com seu propósito espiritual de outro que
realiza movimentos técnicos somente. Pode também ser entendida como expressão
- que transcende o que uma platéia leiga avalia como 'expressão facial'. 'Bhava'
qualifica-se como um veículo da expressão devocional.
“Bharata Natyam tem muitos veículos de expressão: os movimentos dos
membros, a linguagem gestual dos mudras, tala (ritmo) executado com os
pés, poemas cantados pelos músicos e dançarino. Mas o mais importante
de todos é bhava ou expressão. Muito frequentemente as pessoas pensam
que significa 'expressão facial' somente. Esta é uma visão muito estreita,
(bhava) é uma forma de externalização de uma expressão interna. A
expressão interna é uma intensa emoção que enleva.” Rukmini Devi apud
KHOTARI (2000, p.24; tradução livre da autora).
Em externalização do estado de bhava, os olhos brilham como reflexos da
mais pura dedicação à sua deidade escolhida. Todo o restante do corpo, ora em
movimentos abstratos ou através de um harmônico lirismo, contam histórias com as
mãos e ainda criam ritmos com os pés, mas toda a intenção do artista está por
completa tão absorta numa atitude de entrega motivado pelo seu amor à Deus que a
platéia não tem outra alternativa a não ser render-se também como devoto – ou no
mínimo como cúmplice - diante de tamanha habilidade que o dançarino
comprometido tem de esquecer-se dele próprio para personificar algo além de sua
personalidade egóica. E com uma conotação Divina. Esta ressonância da platéia,
traduzida por muitos como 'bem-aventurança' existe tão somente pela emoção
transmitida através do dançarino, captada pelo espectador e é chamada em
sânscrito de 'rasa'.
Esta arte resulta, portanto, num simultâneo relacionamento entre arte clássica
e religião e culmina na espiritualidade, seu objetivo final. Como ressalta a renomada
dançarina ESHWAR (2002, p.3; tradução livre da autora):
Ana Cláudia Silvestre - Yoga e Dança Clássica Indiana - 3. Desenvolvimento