Glorificacao de deus e salvacao do homem perspectivas liturgicas do vaticano ii
1. Glorificação de Deus e salvação do homem
Perspectivas litúrgicas do Vaticano II
Pe. Dr. Françoá Costa*
A liturgia é, na vida da Igreja, um espaço vital que, quando posto em análise,
suscita discussões praticamente intermináveis. Mas não é só o diálogo teológico que se
“esquenta” quando o assunto é liturgia, a mesma vida litúrgica da Igreja foi e continua
sendo um campo no qual as opiniões querem fazer-se ouvir, inclusive através de certo
fundamentalismo. A meu ver, as controvérsias no campo litúrgico surgem de duas
tendências que são, ao mesmo tempo, opostas e extremas: por um lado, o rubricismo
litúrgico, por outro, o relaxamento litúrgico.
Mas, qual é a raiz mais profunda desses debates tão “animados”? Creio que
podemos fazer uma analogia com o coração, órgão sensível, complexo e do qual depende
grande parte da nossa vitalidade. Pois bem, a liturgia é o coração da Igreja: nela
celebramos a fé e através dela descobrimos a fé da Igreja, conforme o antigo adágio lex
orandi lex credendi, isto é, “a lei da oração é a lei da fé”. O Catecismo explica esse
adágio da seguinte maneira: “a Igreja traduz em sua profissão de fé aquilo que expressa
em sua oração”1. Definitivamente, não se pode mexer no coração arbitrariamente; caso
contrário, se caminho rumo à morte.
Todos nós estamos de acordo que a reforma litúrgica que o Concílio Vaticano II
realizou e favoreceu em toda a Igreja foi expressão da ação do Espírito Santo que
dinamiza constantemente a mesma Igreja. Contudo, é fato que nem todos entenderam o
espírito dessa reforma. O cardeal Roger Etchegaray, ao prefaciar o clássico livro de Jean
Corbon, “A fonte da liturgia”, escrevia que “algumas vezes os animadores dessa
renovação orientam os seus esforços apenas para as modalidades da celebração e não nos
ajudam verdadeiramente a penetrar no mistério litúrgico”2.
O objetivo das páginas que seguem é aprofundar um pouco mais na Constituição
sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II sob a perspectiva do “mistério
litúrgico”, cujos objetivos não são outros senão a glorificação de Deus e a salvação do
homem. Contudo, não são objetivos extrínsecos ao mistério do culto cristão, ao contrário,
eles são ínsitos à toda celebração e neles se realiza essa dupla realidade que, na economia
da salvação, encontram-se sempre inseparavelmente entrelaçadas, como unidas estão as
* Pe. Françoá COSTA é doutor em teologia pela Univesidade de Navarra (Espanha) e professor na
Faculdade Católica de Anápolis nos cursos de Filosofia e Teologia.
1
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, nº 1124, Petrópolis: Vozes, 1998, 9ª ed., 317. A partir de agora
será citado como Cat.
2
Roger ETCHEGARAY, Prefácio, em Jean CORBON, A fonte da liturgia, Lisboa: Paulinas, 1999, 5.
2. Françoá Costa 2
duas caras de uma moeda. Penso que tal perspectiva nos afastará de uma polêmica
superficial e nos fará adentrar naquele fundamento teológico que ajudará a superar tanto o
rubricismo quanto o relaxamento em matéria litúrgica.
1. O Mistério celebrado
“Encontro-te, ó Cristo, nos teus mistérios”3. Essa alusiva frase de Santo Ambrósio
serve para que adentremos no mysterium liturgicum através do qual se torna célebre o
Mistério cristão. Mas, qual é o Mistério cristão? É o Mistério Pascal, dado que toda a vida
de Cristo encaminha-se à Páscoa. O Mistério Pascal de Cristo é a sua Paixão, Morte e
Ressurreição. Mas o que é que nos salva senão Cristo e os Mistérios de sua carne? Toda a
vida de Cristo é salvadora, e toda ela encaminha-se ao ápice: o Mistério Pascal. Contudo,
nenhum de nós esteve fisicamente presente ao Mistério Pascal de Cristo, que é justamente
o que nos salva. Temos aqui um problema: se não estivemos lá presentes, em contato com
Cristo e sua Obra, como seremos salvos? Cristo com o seu poder – virtute sua – pode
alcançar-nos e salvar-nos, como de fato o fez e continua a fazer: alcança-nos e salva-nos
com o seu poder e com o seu amor, o Espírito Santo. Não obstante, através dos
Sacramentos, máxime da Eucaristia, somos tocados pelos mistérios salvadores do Senhor,
ele vai fazendo com que em nós torne-se uma realidade a redenção subjetiva, que é a
aceitação individual, pessoal, da redenção objetiva (a obra de Cristo: sua Paixão, Morte e
Glorificação). Fala-se aqui, então, de uma Redenção subjetiva maravilhosamente eficaz,
já que falamos dela enquanto ela torna-se realidade em nós através dos Sacramentos.
Cristo salva-nos coletivamente (na assembleia reunida) e individualmente (como
indivíduo que se encontra presente ao Mistério).
Ao colocar tanta ênfase no Mistério em matéria litúrgica, não há como não
recordar a figura de Odo Casel. Para esse “padre” da teologia litúrgica contemporânea o
mysterium Christi é o centro da vida litúrgica. Contudo, mistério deve ser entendido
como uma ação sagrada e cultual na qual se atualiza, por meio de um rito, o mistério da
salvação, que é Cristo mesmo, com tudo o que ele é, fez e disse. Na primeira metade do
século passado, Casel insistia que todos os sacramentos são, de fato, mistérios, porque
através deles a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo se atualizam em nós de maneira
mística, isto é, misteriosa, através dos sinais sacramentais4.
Ao realizarmos a nossa leitura da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, a
Sacrosanctum Concilium, encontraremos muitas semelhanças com essas ideias
3
AMBRÓSIO DE MILÃO, Apologia Prophetae David I, 58.
4
Cf. Odo CASEL, El misterio del culto cristiano, San Sebastián: Dinor, 1953, 62-63.
3. Glorificação de Deus e salvação do homem – Perspectivas litúrgicas do Vaticano II 3
caselianas, especialmente quando o Concílio afirma que “a liturgia, com efeito, mediante
a qual, especialmente no divino sacrifício da eucaristia, “se atua a obra da nossa
redenção” contribui sumamente para que os fiéis exprimam em suas vidas e manifestem
aos outros o mistério de Cristo e a genuína natureza da verdadeira Igreja”5. Algo
semelhante encontraremos no Catecismo da Igreja Católica ao tratar os sacramentos sob o
prisma da assim chamada “Economia Sacramental”, que “consiste na comunicação (ou
dispensação) dos frutos do Mistério Pascal de Cristo na celebração da liturgia
“sacramental” da Igreja”6. Os frutos do Mistério Pascal são-nos comunicados quando o
mesmo Mistério Pascal faz-se presente nos Sacramentos. Nestes há uma verdadeira
atualização dos Mistérios de Cristo no “hoje” de nossa história, de tal maneira que a
eternidade irrompe no tempo e o tempo entra na eternidade, por assim dizer. O “sursum
corda – corações ao alto” que o sacerdote diz na celebração eucarística é um verdadeiro
convite para ir ao céu por alguns instantes.
Diz ainda o Catecismo que “a liturgia cristã não somente recorda os
acontecimentos que nos salvaram, como também os atualiza, torna-os presentes. O
mistério pascal de Cristo é celebrado, não é repetido; o que se repete são as celebrações;
em cada uma delas sobrevém a efusão do Espírito Santo que atualiza o único mistério”7.
Uma aplicação imediata do que foi dito à Eucaristia nos fará afirmar a mesma coisa: nela
não se repete o Mistério Pascal, mas se atualiza; a Missa é atualização, não a repetição,
do mesmo e único sacrifício salvador. A efusão do Espírito Santo na Missa e as palavras
da consagração atualizam em primeiro lugar o mistério de Cristo através dos sinais
sacramentais, transformando as substâncias do pão e do vinho no Corpo e no Sangue do
Senhor. Mas o Espírito Santo também atualiza o mistério de Cristo em nós: de fato, na
celebração eucarística há uma segunda epíclese que frequentemente passa despercebida:
“(...) concedei que (...) sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um
só corpo e um só espírito” (Oração Eucarística III). O mesmo Espírito que eucaristizou os
dons do pão e do vinho nos eucaritiza para que sejamos “um só corpo e um só espírito” e,
em definitiva, para que sejamos cada vez mais outros cristos, o mesmo Cristo.
Encontramo-nos numa ótica profundamente misteriosa. É justamente essa visão
mistérica que vai dominar a teologia litúrgica do Concílio Vaticano II. Nesse sentido, as
palavras de Matias Augé podem ajudar a uma melhor compreensão do que queremos
dizer: “ao sublinhar as sucessivas fases do plano salvífico de Deus, a Sacrosanctum
Concilium afirma que elas foram realizadas em Cristo e por Cristo “especialmente por
meio do mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição da morte e
Ascensão gloriosa” (n. 5). Com essa afirmação a Páscoa de Cristo, ou seja, a realidade da
redenção operada por Cristo (reconciliação do homem com Deus e perfeita glorificação
5
Constituição SACROSANCTUM CONCILIUM sobre a Sagrada Liturgia, nº 2, em DOCUMENTOS DO
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, SP: Paulus, 2011, 5ª ed., 33-34. A partir de agora será citada
como SC.
6
Cat. 1076.
7
Cat. 1104.
4. Françoá Costa 4
de Deus), é colocada não só no centro da história da salvação, mas também no centro da
liturgia da Igreja”8.
2. Perspectiva histórico-salvífica e eternidade de Deus
Os números 5 a 13 da Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Vaticano II tratam
a natureza da liturgia e sua importância na vida da Igreja. Talvez sejam os números mais
densamente teológicos do texto da Sacrosanctum Concilium9. Numa perspectiva
claramente histórico-salvífica, trata aquelas dimensões que são essenciais na liturgia:
glorificação de Deus e santificação (divinização) dos homens. Em efeito, depois de
anunciar a vontade salvífica universal de Deus, o Concílio cita Hb 1,1 que lembras as
distintas ações e palavras de Deus durante toda a história do povo de Israel. Ao chegar ao
momento mais alto da historia salutis, veio Cristo e nos salvou. Esta salvação é redenção
e divinização, visa o bem do homem em toda a sua integridade, mas foi também perfeita
glorificação de Deus.
Quanto à salvação do homem, trata-se de algo teologicamente necessário: o ser
humano sempre necessita ser salvado, também na nossa época (algo evidente, mas que é
preciso ser recordado!). Quanto à glorificação de Deus, logicamente não se trata de uma
necessidade: Deus não precisa criar o homem nem salvá-lo com a finalidade de que lhe
dê glória. Contudo, é justo que o ser humano glorifique a Deus; este fim só pode ser
perfeitamente alcançado em Cristo. O Concílio deixa bem claras essas duas realidades ao
afirmar que “em Cristo “deu-se o perfeito cumprimento da nossa reconciliação com Deus
e nos foi comunicado a plenitude do culto divino”10.
Na perspectiva histórico-salvífica, a Sacrosanctum Concilium nos recorda que “a
obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus”11 começa com as mirabilia
Dei realizadas em favor do Povo de Israel, chega à sua plenitude em Cristo e se faz
presente na Igreja, pois pela liturgia se leva a efeito a salvação que o Esposo (Cristo)
realizou em favor de sua Esposa (Igreja). Toda a liturgia é um diálogo sem interrupção
entre Cristo (vox Sponsi) e a Igreja (vox Sponsae) em favor do gênero humano.
Estamos a trabalhar, portanto, com dois conceitos centrais, por um lado com o
conteúdo da ação litúrgica – a história da salvação cuja plenitude é Cristo, máxime o seu
Mistério Pascal – e o fim de tal ação: salvação do homem e glória de Deus.
8
Cf. Matias AUGÉ, Liturgia – história, celebração, teologia, espiritualidade. Tradução de Comercindo B.
Dalla Costa. São Paulo: Ave Maria, 1996, 65.
9
Cf. Matias AUGÉ, Liturgia – história, celebração, teologia, espiritualidade, op. cit., 60.
10
SC, 5.
11
SC, 5.
5. Glorificação de Deus e salvação do homem – Perspectivas litúrgicas do Vaticano II 5
Na liturgia da Igreja dão-se, portanto, essas duas realidades que não são
contraditórias: antropocentrismo e teocentrismo cristão. Uma primeira conclusão que nós
podemos tirar dessas considerações é que não se pode ver a liturgia como uma espécie de
jogo oposto entre Deus e o homem, muito ao contrário: na liturgia, Deus e o homem se
encontram. A participação nos divinos mistérios através das ações litúrgicas da Igreja não
deve ser vista como algo a ser feito por pessoas que não têm o que fazer. Orar a Deus não
é perder tempo, mas – como dizia São João Maria Vianney – “a mais bela profissão do
homem sobre a terra é rezar e amar”. Oramos a Deus, como cidadãos do céu, para
construir, como cidadãos da terra, sem deixar de sermos cidadãos do céu, um mundo mais
justo e mais fraterno. O opus liturgicum deve levar-nos à liturgia operum.
A Constituição conciliar afirma que a humanidade de Jesus – na unidade da
pessoa do Verbo – é instrumento de nossa salvação e que nela “nos foi comunicada a
plenitude do culto divino”. A salvação operada por Cristo – continua Sacrosanctum
Concilium – teve o seu prelúdio, a sua plenitude e a sua atualização12. O prelúdio seria a
atuação de Deus nos tempos do Antigo Testamento, a plenitude é o próprio Cristo e sua
ação salvadora, a atualização do mistério de Cristo acontece através dos ritos litúrgicos da
Igreja.
Nesse sentido, Jean Daniélou, famoso teólogo francês que conheceu de perto o
movimento litúrgico, afirmava que a liturgia cristã deve ser estudada com o método
intrabíblico que contempla o fato cristão fundamental da ação de Deus na história que
constitui a historia salutis. Para esse autor, os sacramentos são intervenções atuais de
Deus como foram as grandes obras realizadas pelo mesmo Deus na Antiga e na Nova
Aliança. É preciso, portanto, conhecer quais são essas obras de Deus para compreender o
conteúdo dos ritos sacramentais13. Mas, a proposição contrária também é verdadeira:
podemos ir dos ritos sacramentais ao conhecimento das grandes atuações de Deus, pois,
como dizia esse mesmo autor, a liturgia tem um horizonte amplo ao recapitular toda a
historia da salvação, inclusive a criação de todas as coisas (vertente cósmica da opus
liturgicum da Igreja)14.
Em relação à atualização do Mistério de Cristo na sagrada Liturgia, as afirmações
de Jean Corbon continuam sendo de grande interesse15. Depois de lamentar-se o
12
SC, 5-6.
13
Cf. Jean DANIÉLOU, Histoire de Salut et formation liturgique, « Maison-Dieu »78 (1964) 22-25.
14
Cf. IDEM, Le mystère liturgique, intervention actuelle de Dieu dans l’histoire, « Maison-Dieu »79
(1964) 35-39.
15
Na compreensão atual da teologia litúrgica, não podemos esquecer a importância que teve o teólogo
alemão Odo Casel (1886-1948) e o seu famoso livro “O mistério do culto cristão”. Para este autor, o
Mysterium Christi é o centro de toda a vida litúrgica. Neste contexto, mistério é uma ação sagrada e cultual
na qual se atualiza, por meio de um rito, o mistério da salvação que não é outro senão Cristo e sua obra
redentora. São de Casel as seguintes considerações: “Desde que Cristo deixa de estar visivelmente entre
nós, ‘o que era visível em Cristo – como diz Gregório Magno – passou aos mistérios’. A sua pessoa, suas
ações salvadoras e o influxo da sua graça encontram-se nos mistérios do culto, como diz Ambrósio:
“encontro-te e te sinto vivo nos teus mistérios” (cf. Odo CASEL, El misterio del culto cristiano, op. cit.,
46).
6. Françoá Costa 6
desconhecimento do mistério da Ascensão de Jesus Cristo aos céus, o autor de Liturgie de
source afirma que a subida de Cristo aos céus é “uma viragem decisiva, o final de
qualquer coisa a que não devemos fugir, o fim de um relacionamento com Jesus ainda
muito exterior, mas sobretudo o começar duma relação de fé, totalmente nova, de um
tempo novo: a liturgia dos últimos tempos”16.
A fonte da liturgia é o Pai, mas enquanto a humanidade de Cristo não sai gloriosa
do sepulcro não há liturgia, já que a liturgia eterna da qual nós participamos aqui na terra
é o próprio Corpo glorificado de Jesus, culto perfeito que o Pai recebe e através do qual
santifica os seres humanos e atrai a criação na sua totalidade. Considerando a Ascensão
como “o espaço novo da liturgia”, o autor utiliza a imagem do “rio de vida que saía do
trono de Deus e do Cordeiro” (Ap 22,1) para explicar que esse rio flui e reflui. O Pai,
fonte da liturgia, fez brotar de si mesmo um rio de salvação através da humanidade do seu
Filho. Jesus Cristo, morto e ressuscitado, no seu movimento ascensional faz refluir o rio
ao encontro do Pai. O Filho encarnado leva consigo, na sua humanidade gloriosa, toda a
criação. Esse refluxo do rio crístico é de uma “correnteza” extraordinariamente forte,
sendo ao mesmo tempo portadora da máxima glorificação do Pai e consumadora da
salvação dos seres humanos: “o acontecimento da história aí está, no coração da
Trindade, e, doravante, um com o Pai, Ele torna-se fonte”. O Pai, ao contemplar o
regresso do Filho, acompanhado de toda a humanidade e de toda a criação, alegra-se e faz
jorrar essa alegria – pela ação do Espírito Santo – rumo a toda à humanidade. Isto é, o
Pai partilha o Filho no Espírito Santo; o efeito dessa partilha é a liturgia celebrada aqui na
terra como participação da liturgia celeste, que é a fontal17.
Como não encontrar nessas considerações o eco daquelas palavras sobre a liturgia
celeste da Sacrosanctum Concilium?
“Na liturgia da terra nós participamos, saboreando-a já, da liturgia
celeste, que se celebra na cidade santa de Jerusalém, para a qual nos
encaminhamos como peregrinos, onde o Cristo está sentado à direita de
Deus, qual ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo; com toda a
milícia do exército celeste entoamos um hino de glória ao Senhor e,
venerando a memória dos santos, esperamos fazer parte da sociedade
deles; esperamos pelo salvador, nosso Senhor Jesus Cristo, até que ele,
nossa vida se manifeste, e nós apareceremos com ele na glória”18.
16
Jean CORBON, A fonte da liturgia, Lisboa: Paulinas, 1999, 42.
17
IDEM, A fonte da liturgia, op. cit., 43-49. O Kyrios morto e ressuscitado “realiza continuamente a única
liturgia, a pascal, existente no mundo para arrancá-lo da morte e lhe comunicar a vida divina da qual ele é
pleno: Per ipsum cum ipso et in ipso. Sendo assim, nada de extraordinário que a realidade mistério pascal
no próprio Cristo e em nós seja fortemente acentuada na constituição sobre a liturgia do Concílio Vaticano
II. Urge readquirir coma antiga Igreja o sentido sintético, sagrado, mistérico, pascal dos eventos da salvação
e da sua “celebração” em nós, sabendo ver e viver o seu centro concreto e universal: Cristo morto e
ressuscitado” (Cipriano VAGAGGINI, O sentido teológico da liturgia. Tradução de Francisco Figueiredo
de Moraes. São Paulo: Loyola, 2009, 246).
18
SC, 8.
7. Glorificação de Deus e salvação do homem – Perspectivas litúrgicas do Vaticano II 7
A liturgia é uma realidade que brota da Fonte e cuja história presente na
eternidade é o próprio Mistério Pascal de Jesus Cristo. Nesta perspectiva, fica fácil
entender aquilo que o então cardeal Joseph Ratzinger escrevia no seu “Espírito da
Liturgia” de que o culto público da Igreja é a entrada de Deus no nosso mundo, deixando-
se encontrar e realizando a verdadeira libertação. Assim sendo, quando mais os
sacerdotes e os demais fiéis se entreguem a esse Deus que se entrega, tanto mais a liturgia
será mais nova, mais verdadeira e mais pessoal19.
A Igreja manifestou que a sua vocação é a celebração do louvor de Deus, aqui na
terra como antecipação, no céu, como plenitude. Nesse sentido, é interessante notar que a
primeira constituição do Concílio é sobre a Sagrada Liturgia, isto é: o mais importante é a
adoração a Deus. A visão do Vaticano II é que nós saboreamos antecipadamente a liturgia
celeste ao entoarmos os hinos da glória do Senhor esperando fazer parte da sociedade dos
santos. É preciso reconhecer agradecidos que nós só podemos saborear esse “fluxo-
refluxo” que existe na comunhão trinitária porque o Pai, a quem é dada toda a honra e
toda a glória no Filho pelo Espírito Santo, quis partilhar as suas inefáveis alegrias num
desbordar que forma o rio da liturgia. Esse rio flui do Pai – por Cristo no Espírito – e
reflui ao Pai – também por Cristo no Espírito Santo – levando consigo numa correnteza
de energia e de amor todo o nosso ser e todo o fruto das nossas mãos. Na liturgia, Deus se
encontra conosco e nós nos encontramos com ele; ele faz a sua obra, e nós, ao
recebermos a sua ação recriadora, lhe ofertamos as nossas ações. Na ação litúrgica,
pressupondo a ação de Deus, cabem todas as ações humanas.
Nós, como membros da Igreja, estamos destinados ao louvor de Deus, ao culto
divino. O texto de Ef 1,11-14 nos dá umas pistas para vermos essa realidade passo a
passo, aí se diz que:
• fomos escolhidos;
• para servirmos à celebração de sua glória;
• ouvimos a Palavra da verdade;
• fomos selados com o Espírito Santo;
• Deus adquiriu-nos para o louvor da sua glória.
Ser escolhidos para o louvor da glória de Deus implica salvação e glorificação.
Deus, na sua infinita misericórdia, quis tornar possível a necessidade salvífica que nós
temos de entrar em contato com o Mistério Pascal. A liturgia possibilita a entrada no
Santuário celeste. Somente quando tivermos total acesso a esse Santuário da vida íntima
de Deus se consumirá a nossa salvação e glorificaremos para sempre o Deus uno e trino.
A partir da salvação realizada por Cristo, tudo está transpassado pela glória de Deus e
encontra a sua ponte visível de contato com a eternidade através dos ritos sacramentais
que a Igreja realiza.
19
Cf. Joseph RATZINGER, El espíritu de la liturgia, una introducción, Madrid: Cristiandad, 2001, 193.
8. Françoá Costa 8
3. A beleza de Deus na liturgia
Assim como o Mistério (Acontecimento “Cristo”) cavou um buraco no muro da
história penetrando-a totalmente e salvando o ser humano (fluxo), da mesma maneira o
Mistério celebrado (Liturgia) cavou um buraco na eternidade (refluxo) conduzindo os
nossos louvores às eternas moradas. É também através da liturgia que a beleza entra nesse
nosso mundo atual dando-lhe sentido. É famosa a frase de Dostoievsky, no seu romance
“O Idiota”: “a beleza salvará o mundo”. João Paulo II, depois de citar essa frase do
escritor russo afirma que “a beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente”20. Há
também aqui um duplo movimento: a beleza do Mistério entra na nossa história trazendo
a glória de Deus e salvando-nos e tudo o que é belo apresenta-se como vestígio ou até
mesmo semelhança de Deus.
Ao receber a beleza de Deus nesse mundo através da liturgia, as nossas
celebrações deveriam ser belas refletindo dessa maneira a beleza que irradia nos
Tabernáculos eternos, na Jerusalém celeste na qual moraremos um dia. O Concílio
Vaticano II expressou também e de maneira sintética a beleza da liturgia quando disse
que as nossas celebrações devem resplandecer de “nobre simplicidade”21: uma nobreza
que é simples e uma simplicidade que é nobre. Sem dúvida, uma expressão que deixa
vislumbrar algo da beleza de Deus: infinitamente nobre, infinitamente simples.
Nesse sentido, é interessante observar a descrição que um filósofo italiano,
Alessandro Baricco, faz com o objetivo de mostrar que é importante criar certos limites:
“Imagine só: um piano. As teclas começam. As teclas acabam. Você sabe que existe
oitenta e oito, sobre isso ninguém pode enganá-lo. Não são infinitas (...), mas com essas
teclas é infinita a música que você pode criar. Elas são oitenta e oito. (...) Eu gosto disso.
É fácil viver com isso. mas se (...) diante de você estende-se um teclado com milhões de
teclas, milhões e trilhões de teclas que nunca acabam e que nunca terminam e se esse
teclado é infinito... Se esse teclado é infinito, então nesse teclado não há uma música que
você possa tocar. Você se sentou no banquinho errado: esse é piano que Deus toca”22.
Gutiérrez-Martín cita o texto de Baricco para fundamentar a necessidade de
observar a forma litúrgica com os seus ritos sublinhando que deve ser assim por que, por
um lado toda experiência humana é limitada frente ao insondável mistério do Deus uno e
20
Cf. Fiódor DOSTOIÉVSKY, O Idiota. Tradução de José Geraldo Vieria. São Paulo: Martin Claret, 2012,
2ª ed., 3ª reimpressão, 423. Cf. JOÃO PAULO II, Carta aos artistas, 1999, nº 16:
http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/1999/documents/hf_jp-
ii_let_23041999_artists_po.html consultada no dia 18/05/2012.
21
SC, 34.
22
Cf. Alessandro BARICCO, Novecento: um monólogo, em José Luis GUTIÉRREZ-MARTÍN, Forma,
liturgia y nihilismo. Em torno al cincuenta aniversario del Concilio Vaticano II, “Scripta Theologia 3/43
(2011) 720.
9. Glorificação de Deus e salvação do homem – Perspectivas litúrgicas do Vaticano II 9
trino, e, por outro, neste mundo é necessário uma mediação “delimitada” e bem definida,
as “oitenta e oito teclas” do piano, para participar de maneira finita da música infinita de
Deus. A forma litúrgica é consequência não somente da experiência de Deus que o
homem pode ter, mas do mistério mesmo da encarnação, através do qual Deus mesmo
quis “circunscrever-se” através da humanidade do seu Filho. Desta maneira, Gutiérrez-
Martín concluía que a celebração ritual do culto é o confim necessário para que a Igreja
possa oferecer ao Pai, neste mundo, a obra salvadora, e a glória que, depois da
consumação pascal, o seu Filho amado, Cristo, lhe apresenta eternamente nos céus23.
O que foi dito anteriormente tem muitas consequências práticas à hora de viver a
liturgia, especialmente a Eucaristia, que é um sacramento “fonte-fim”. Sem dúvida,
poderíamos aplicar à eucaristia aquelas palavras que o Concílio aplica à liturgia em geral:
a eucaristia “é o cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte
donde emana toda a sua força”24. À hora de preparar a celebração da eucaristia, será
muito importante ter presente tanto as dimensões cristocêntricas quanto aquelas que são
antropocêntricas, lembrando que as primeiras tem primazia em relação às segundas: é
Cristo quem salva o homem e dá ao Pai no Espírito a perfeita glória. Cristo é, portanto, o
centro de toda ação litúrgica. “Com razão, a liturgia é considerada como exercício da
função sacerdotal de Cristo”. Neste sentido, há pouco tempo, Julián Lopez Martín, bispo
de León (Espanha), novamente fazia notar a importância do sentido de mistério que
devemos ter em relação à liturgia se quisermos celebrá-la com arte. Com outras palavras,
a participação ativa será fruto de uma autêntica arte celebrativa que tenha em conta o
Mistério de Cristo que dá glória a Deus e salva os homens25.
Outro autor espanhol, Félix Maria Arocena, dá uma definição de ars celebrandi
que vai à questão mais profunda, isto é, à atitude espiritual do celebrante. Segundo
Arocena, ars celebrandi é a expressão do caminho de fé que segue, como consequência, o
espírito de quem modera a celebração26. Reconhecer a grandeza de Deus (Deo gloria) e
receber a salvação de Deus (salus hominis) são, na economia da salvação, duas caras de
uma mesma moeda. Receber, na fé, a salvação e celebrá-la na liturgia são duas realidades
que vão sempre unidas na sagrada liturgia. O moderador da celebração, isto é, o
sacerdote, presidirá a celebração com arte se ele souber que o primeiro agente é Deus, é
ele quem faz a sua arte, a sua obra de beleza. É preciso recordar e voltar sobre esse tema
frequentemente: a liturgia é obra de Deus a favor dos homens.
23
Cf. José Luis GUTIÉRREZ-MARTÍN, Forma, liturgia y nihilismo. Em torno al cincuenta aniversario
del Concilio Vaticano II, “Scripta Theologia 3/43 (2011) 720-721.
24
SC, 10.
25
Julián LÓPEZ MARTÍN, Actualidad de la constitución “Sacrosanctum Concilium” del Concilio
Vaticano II, “Scripta Theologia 3/43 (2011) 692. O mesmo autor observa que tanto o Sínodo de 2005
quanto o Papa Bento XVI convidaram com insistência a entrarmos novamente no caráter sagrado do
mistério eucarístico e, por extensão, de toda a liturgia como uma ação santa (cf. Id.).
26
Cf. Félix María AROCENA, El linguaje simbólico de la liturgia, “Scripta Theologica” 1/43 (2001) 113-
114.
10. Françoá Costa 10
A arte celebrativa, nesse sentido, não é a mera obediência a um conjunto de
regras, de rubricas, mas é uma realidade que tem uma raiz muito mais profunda: a atitude
espiritual do celebrante. Contudo, continuam sendo importantes as “oitenta e oito teclas”
através das quais se toca, pela mediação da Igreja, o mistério de Deus na sua vida íntima
de comunhão e amor. Já que “ninguém jamais viu Deus”, devemos aproveitar porque “o
Filho único, que está no seio do Pai” o revelou (Jo 1,18) e continua a fazer-se presente
em cada celebração litúrgica. Para encontrar-nos a nós mesmos, organizemos um almoço,
um jantar, um momento qualquer de diversão; para encontrarmos a Deus, celebremos os
divinos mistérios na sagrada liturgia.
Para terminar, não gostaria de omitir um fato conhecido por todos e ao qual é
preciso estar atentos: existe um novo movimento litúrgico chefiado por Joseph Ratzinger,
o cardeal Malcom Ranjith, Mons. Nicola Bux, entre outros. As palavras do então cardeal
Ratzinger no prólogo do seu “Espírito da Liturgia” foi um dos momentos mais
importantes desse movimento: assim como Romano Guardini, na primeira metade do
século XX, favoreceu o descobrimento da beleza da liturgia, de maneira semelhante
Ratzinger queria favorecer um novo movimento litúrgico, um movimento rumo à liturgia
que nos leve a uma celebração adequada, tanto interna quanto externamente27. Nicolas
Bux foi mais longe e titulou um dos seus livros “A reforma de Bento XVI – a liturgia
entre a inovação e a tradição28. Onde vai para esse novo movimento? A meu ver, a
melhor contribuição será a de ajudar-nos a celebrar a liturgia como o que ela é: mistério
de Deus que se faz acessível salvando-nos e dando glória à Trindade Santíssima.
27
Cf. Joseph RATZINGER, El espíritu de la liturgia, una introducción, op. cit., 2001, 30.
28
Cf. Nicola BUX, La riforma di Benedetto XVI – la liturgia tra innovazione e tradizione, Pieme, 2009, 2ª
ed.
11. Glorificação de Deus e salvação do homem – Perspectivas litúrgicas do Vaticano II 11
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12. Françoá Costa 12
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