1. O processo de elaboração da Teologia
Afonso Murad - Fonte: A casa da Teologia, Paulinas. capítulo 2
A teologia é feita de fé. Não basta ter fé para conseguir uma boa teologia, como a cana de
açúcar não se converte magicamente em rapadura ou álcool. O processo de elaboração do
conhecimento teológico tem características comuns a uma produção material: matéria prima, meio de
produção, operador e produto final. Apresenta também traços típicos de uma produção imaterial, pois
se trata de um conhecimento produzido pela mente humana. Por fim, a teologia é um conhecimento
distinto, pois combina o esforço da razão humana com a iluminação da graça divina. Cientes dos limites
de qualquer comparação, vamos considerar a teologia como uma forma de produzir conhecimento.
1. A matéria prima da teologia
Deus, a doutrina, a vida da Igreja
A matéria prima da teologia consiste naquilo que pode ser transformado em produto
teológico. O grande teólogo medieval Tomás de Aquino dizia que o objeto material da teologia é Deus.
Isso é pertinente, pois a teologia estuda sobre quem Deus é e como Ele se manifesta na história de seu
povo. Assim, é necessário ir à Bíblia, o livro revelado que narra as ações e as palavras divinas.
Assim, a matéria prima da teologia é Deus, como se revelou na história e é narrado na Bíblia.
Conforme a concepção de cada Igreja Cristã, ganha importância o processo de compreender e
interpretar a revelação, no correr dos tempos. Para os católicos, ela é denominada de “Tradição” e se
incorpora ao núcleo da revelação. A Tradição Eclesial gerou e desenvolveu os dogmas, que foram
definidos pelo magistério da Igreja, sobretudo através dos concílios, dos bispos e do Papa. Os
protestantes também consideram a Tradição Eclesial como matéria prima para a teologia, mas não
aceitam que ela faça parte da revelação. Tratam-na como um complemento humano.
Mesmo com tais diferenças, as Igrejas Cristãs consideram como matéria prima da teologia tudo
o que se relaciona à revelação, à fé cristã e sua doutrina, e à missão evangelizadora. Temas como a
criação, a graça e a salvação em Cristo, a Igreja, os ministérios, a pastoral, a prática do amor e da
solidariedade, a ética cristã, a morte e a segunda vinda de Jesus devem entrar na “máquina de fazer
teologia”, para daí surgir um produto teológico.
As religiões e a religiosidade
As pessoas e os povos vivem sua relação com o sagrado através de tradições religiosas,
comportamentos, ritos, gestos e símbolos. No mundo contemporâneo, muita gente cultiva uma
relação com o transcendente, sem pertencer a uma religião ou a determinada Igreja. Tem uma
religiosidade, mas não segue determinada religião formal. Nesse contexto, religiões e religiosidade se
tornaram importante matéria prima da teologia cristã.
Temas humanos significativos
Qualquer assunto que seja importante para o presente e o futuro da humanidade é assunto
digno de teologia, porque se relaciona com a encarnação de Jesus Cristo e a humanidade que ele ama
redime. Depois que o Filho de Deus se fez um como nós, exceto no pecado, todas as realidades
humanas foram tocadas e estão sendo transformadas pela graça divina. Então, qualquer tema
significativo pode se tornar teológico.
Em resumo, é matéria prima para a teologia cristã: (1) Deus, revelado em Jesus e transmitido pelo
testemunho dos cristãos; (2) a doutrina cristã, que jorra da Bíblia e se desenvolve nos séculos pela
tradição eclesial, (3) a vida atual da Igreja e seu ministério, (4) as religiões e a religiosidade, (5) um
tema humano significativo. Ora, cada ciência tem um “objeto”, ou seja, a matéria prima que ela aborda
e transforma em conhecimento. Como a teologia tem matérias primas tão diferentes. Não se trata de
cinco elementos distintos, mas do único conhecimento de Deus através de acessos diferentes e
complementares. Tanto na bíblia quanto em qualquer assunto humano significativo, o Deus de Jesus
2. vem ao nosso encontro e se deixa conhecer, mantendo-se ao mesmo tempo como o Transcendente,
que supera todo conhecimento.
Nesse ponto, vemos que há semelhanças entre a teologia e as ciências da religião, pois parte coincidem
em parte da matéria prima. Mas com ênfases distintas. Para a segunda, o fenômeno religioso,
entendido de forma não confessional, é a matéria prima fundamental.
2. Da matéria prima ao produto teológico
O que faz com que esses assuntos se tornem teológicos, como a cana de açúcar se transforma
em rapadura ou álcool? Em que consiste a fermentação e a destilação da teologia? É possível que
alguém escreva sobre Jesus ou sobre a Bíblia, sem ser teólogo? O que diferencia a teologia da ciência
da religião?
O específico da teologia cristã é interpretar a realidade, sob o olhar de Deus, revelado em Jesus
Cristo. Você já ouviu o conto infantil de “João e Maria”, no qual a casa era feita de chocolate, de doces
ou biscoitos? Tijolos, telhados, portas e janelas serviam ao mesmo tempo de alimento e material de
construção do lar. Na teologia também acontece algo parecido. A Bíblia e a Tradição Eclesial são, ao
mesmo tempo, parte da matéria prima e os instrumentos para elaborar o saber teológico. A teologia
cristã não somente fala sobre Deus. Ela reflete sobre vários temas possíveis, a partir de Deus
(revelação) e da resposta humana ao Deus que se revela (fé). Como dizia Tomás de Aquino, usando
termos de sua época, “Deus é objeto material e também objeto formal da ciência divina”.
O que faz com que um tema se torne teológico consiste no uso da Bíblia, lida e interpretada
no conjunto da caminhada da Igreja Cristã. Tecnicamente, isso se chama de “mediação hermenêutica
teológica”. Trata-se do meio ou instrumento que possibilita a interpretação de qualquer assunto
importante, sob o olhar da fé, criando, assim, um conhecimento próprio. Para usar uma imagem
material, diríamos que são como as engrenagens da máquina da teologia. Assemelham-se ao fermento
e ao alambique de destilação da teologia. Ou ainda, ao fogo e ao recipiente que, com a luz de Deus e
o trabalho humano, transforma a garapa (caldo de cana) no açúcar que adoça nossa vida.
Uma relação original e criativa
O fato da fé ser, ao mesmo tempo, tema da teologia e sua forma própria de gerar um saber,
comporta riscos e possibilidades. As Igrejas podem entrar num círculo vicioso, no qual as leituras
teológicas simplesmente confirmam aquilo que já se sabe. Nesse caso, elas se fechariam aos
questionamentos novos, que estimulam o avanço da fé. Sem perceber, usariam a Palavra de Deus
como “viseira” e não como luz para o caminho. De outro lado, quanto mais os cristãos se colocam
próximos das grandes alegrias e desafios dos outros seres humanos, mais serão capazes de descobrir
as novidades que estão na Escritura, e no “arsenal da fé” (depositum fidei) da Igreja. Identificarão, na
realidade de nosso tempo, não somente aspectos negativos, mas também os sinais da presença de
Deus. As ciências da religião podem ajudar a teologia a sair do círculo vicioso auto-justificante. Pois
traz um olhar crítico e “de fora”.
A medição hermenêutica pré-teológica
A primeira etapa consiste em escolher o tema ou assunto que será a matéria prima da teologia.
A seguir, é preciso fazer um trabalho prévio, com a contribuição de outros saberes, antes de usar o
instrumental teológico propriamente dito, que é a Bíblia e a Tradição Eclesial. Por que esta etapa do
instrumental pré-teológico é tão importante? Porque dá mais cientificidade à teologia e ajuda os
cristãos a purificarem concepções equivocadas que podem ser confundidas com o núcleo da revelação.
Algumas coisas tomadas como divinas, na mentalidade comum, são frutos da cultura de determinada
época. Quem não respeita as etapas do método da teologia, usa diretamente a Bíblia ou simplesmente
repete dogmas pode cometer um equívoco. Seria como colocar a cana na panela, sem descascar,
limpar e moer.
3. Ora, para a teologia, as ciências da religião pode ser um poderoso parceiro, como mediação
hermenêutica pré-teológica.
3. Teologia os outros saberes
É importante usar outros saberes no labor teológico. Eles podem vir antes da teologia
propriamente dita, para preparar conceitos, questionar compreensões equivocadas da Bíblia e da
doutrina e ampliar a visão. Algumas vezes, outras áreas do saber desempenharão um papel auxiliar,
como instrumentais da teologia que já foram incorporados à sua “máquina de pensar”, como é o caso
das línguas bíblicas. Em outros casos, é necessário o diálogo da teologia com diferentes disciplinas e
áreas do saber, a respeito de um tema que interessa a todos. Vejamos algumas formas de relação da
teologia com outras ciências:
Transignificação – A teologia toma conceitos de outras ciências, tornando-os parte de seu próprio saber e
alargando o significado original.
Multidisciplinaridade – cada ciência, com o método próprio, oferece sua contribuição, sobre um tema em
questão. Funciona como um painel, com distintos olhares.
Interdisciplinaridade – Diferentes saberes partilham não somente o mesmo objeto, mas também intercambiam
algo do seu método.
Transdisciplinaridade – as ciências se permitem “atravessar” umas pelas outras, pois reconhecem que são
incapazes de, sozinhas, dar conta de explicar a complexidade da realidade.
Ciência da religião e teologia: abrindo caminho para reflexão
A ciência da religião considera os livros sagrados das diversas religiões, como a Bíblia, o Alcorão
e demais escritos como um tema de estudo. Não há juízo de valor, se um é mais importante do que
outro. Não tem compromisso com nenhuma religião ou Igreja. Embora a matéria prima da ciência da
religião e da teologia sejam, em parte, a mesma, a perspectiva é diferente. Como a teologia pressupõe
a fé, reflete sobre Deus, de forma engajada e apaixonada. Tem como finalidade gerar e difundir um
saber que será útil para a Missão da Igreja no mundo.
Existe uma relação de colaboração entre a teologia cristã e a(s) ciência(as) da religião(ões).
Como ambas estudam o fenômeno religioso, os resultados de pesquisa de uma é útil para outra.
Muitas vezes o professor da ciência da religião é uma pessoa de fé, que estuda as religiões e a
religiosidade para ajudar a compreender a experiência espiritual. A ciência da religião, com seu olhar
multidisciplinar, contribui para purificar algumas tradições humanas, que foram assumidas
indevidamente pelas Igrejas cristãs.