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                                    ARTIGO LITERÁRIO

    POSESIA E BÍBLIA HEBRAICA: UMA ANÁLISE DO POEMA
              “AVSHALOM” DE YONA WALLACH

                                              por

                                  Carlos Augusto Vailatti


RESUMO

        O presente artigo tem por objetivo analisar o poema chamado “Avshalom”
de autoria da poetisa israelense Yona Wallach através do ponto de vista literário,
lexical, ideológico e comparativo. No que diz respeito a este último item, nos
interessará estudar as semelhanças e as dissimilaridades existentes entre este
poema e alguns trechos bíblicos do livro de 2 Samuel, os quais também tratam de
traços biográficos do personagem Avshalom (Absalão).


Palavras-Chave: Yona Wallach, Avshalom, Análise Literária, 2 Samuel.



ABSTRACT

This article aims to analyze the poem called Avshalom authored by the Israeli
poet Yona Wallach through the literary point of view, lexical, ideological and
comparative. Regarding this last item, will interest us to study the similarities and
dissimilarities between this poem and some biblical excerpts of the book of 2
Samuel, which also deal with the traits biographical of character Avshalom
(Absalom).


Keywords: Yona Wallach, Avshalom, Literary Analysis, 2 Samuel.

1
 Este artigo foi apresentado originalmente como trabalho em 12/2010 para a Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (Departamento de Letras Orientais) da Universidade de São Paulo (USP).
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INTRODUÇÃO

        Uma das poetisas mais controvertidas das últimas décadas foi, sem dúvida
alguma, a israelense Yona Wallach. Wallach nasceu na cidade israelense de
Kiriat Ono, próximo a Tel Aviv, em 1944, e morreu ainda muito jovem em
decorrência de um câncer de mama, em 1985.2 Portanto, quando faleceu, ela
tinha apenas 41 anos de idade. Todavia, além da precocidade da sua morte, outro
acontecimento trágico que marcou a sua vida foi a morte de seu pai, Michael
Wallach, o qual foi morto de forma brutal durante a Guerra da Independência de
Israel, em 1948. Quando seu pai morreu, Wallach tinha somente quatro anos de
idade, e, conforme pode ser visto em alguns dos seus poemas, essa “orfandade”
influenciou grandemente os seus trabalhos.3

        Essa poetisa, orgulhosa de sua bissexualidade, chocou os seus leitores com
seus poemas ousados, nos quais misturava sexualidade e espiritualidade.4 Além
disso, os seus poemas também combinam elementos do rock and roll, da
psicologia junguiana e da gíria de rua.5

        Todavia, embora estejamos diante de uma escritora cujos poemas refletem
um vigoroso ecletismo, no presente estudo, porém, buscaremos analisar um de
seus poemas que possui um pano-de-fundo nitidamente bíblico, a saber:
Avshalom. O nosso objetivo será analisar este poema sob o ponto de vista
literário, lexical, ideológico e comparativo, sendo que sob esse último aspecto
nos interessará fazer a correlação entre o poema de Wallach e o texto da Bíblia

2
   Yona Wallach. [Breve biografia]. Wikipedia – The Free Encyclopedia. Disponível em:
http://en.wikipedia.org/wiki/Yona_Wallach. Acesso em: 25/10/2010.
3
  Guide to the City of Qyriat Ono. (Arquivo em PDF em inglês). Disponível em: http://www.kono.org.il.
Acesso em: 20/10/2010. A influência da ausência paterna parece ser vista de alguma forma, por exemplo,
nos seguintes poemas de Yona Wallach nos quais ela menciona a figura do pai: “Novamente a Alma”,
“Hebraico”, “Quando Você Vier para Deitar Comigo, Venha como Meu Pai” e “Meu Pai e Minha Mãe
Saíram para Caçar”, dentre outros.
4
  Yona Wallach. [Breve biografia]. Wikipedia – The Free Encyclopedia.
5
  Yona Wallach. [Breve biografia]. Disponível em: http://www.ithl.org.il/author_info.asp?id=280. Acesso
em: 24/10/2010.


                                                                                                W
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Hebraica que lhe serve de inspiração para a composição do seu poema. Veremos
como estes textos interagem e que semelhanças e dissimilaridades os mesmos
nos apresentam. Bem, depois dessas informações preliminares, vejamos então o
que nos reserva a leitura e a análise do poema Avshalom.




                                                                        W
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I – AVSHALOM: O POEMA TRANSLITERADO E TRADUZIDO
                                                                6
            Poema Transliterado                                     Poema Traduzido
1         ’ani mukhrahah pa‘am nosefet              1        Eu sou obrigada de novo a
2         lehizakher biveni ’avshalom               2        relembrar meu filho Avshalom
3         shesa‘arotayn nitpesu berahmi             3     cujos cabelos ficaram presos no
4         velo’ yatsa’ li                           meu útero

5         ligmor ’et ’avshalom beni                 4        e eu não logrei

6     ’ani         bonah     ’efsharuyot 5
                              ’et              acabar Avshalom meu filho
hargashati                               6     eu gero as possibilidades de
7         harahamim shotfim bi           minhas emoções

8         vehara‘av ha’efshari                      7        a piedade jorra nas entranhas

9         retsonot hatorashah                       8        e a fome possível

10        ve’avshalom shelo’ hurshah                9        o desejo de descendência

11        begilgul ’aher ’avshalom yihyeh 10     e Avshalom que não foi
                                          autorizado
12        ’ahuvi va’ani ’ahush zikhra
                                          11     em outra encarnação Avshalom
13        keshe’avshalom ’ahuvi           será
14        tehushah gufanit ’o ’eykh bitni 12     meu amante e eu sentirei a
15        reyqah me’avshalom beni         lembrança dela
16        sidur shel kokhavim                       13       quando meu amante Avshalom
17        noflim veherev macah                      14   é uma sensação corpórea ou
                                                    como meu ventre
18        bamagnet ‘al liba
                                                    15    está vazio de Avshalom meu
19        haregashah meduyaq
                                                    filho
20        bameh tilahem
                                                    16       um concerto de astros
21        veal‘ mah tanuah
                                                    17       cai e a espada golpeia
22        haruah
                                                    18       com um magneto o coração dela
23        le’an tisaakha
                                                    19       exato sentimento:
24        haruah beni
                                                    20       o que guerreará
                                                    21       e sobre o que descansará
                                                    22       o vento
                                                    23       aonde levará
                                                    24       o vento meu filho


6
    Poema de Yona Wallach traduzido diretamente do hebraico pelo Prof. Dr. Moacir Aparecido Amâncio.

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II – ANÁLISE LITERÁRIA

        O poema acima transliterado e traduzido nos apresenta uma variedade de
elementos literários que merecem a nossa análise de forma mais pormenorizada.
Dentre estes elementos, destacamos os seguintes:


        2.1)    Estrutura Quiásmica do Poema

        Em primeiro lugar, podemos perceber que Avshalom é um poema que foi
construído dentro da estrutura literária do quiasmo.7 Tal estrutura pode ser vista
nas linhas do poema que selecionamos abaixo.


2 (A) relembrar meu filho Avshalom

        5 (B) acabar Avshalom meu filho

                10 (C) e Avshalom que não foi autorizado

                         11 (D) em outra encarnação Avshalom será

                         12 (D) meu amante e eu sentirei a lembrança dela

                13 (D’) quando meu amante Avshalom

        15 (B’) está vazio de Avshalom meu filho

24 (A’) o vento meu filho




        Neste bloco literário, representado pelas linhas 2-5-10-11-12-13-15-24 do
poema, podemos notar um padrão “quiásmico” em estilo A-B-C-D-D’-B’-A’, no
qual se pode perceber uma progressão seguida de uma regressão no pensamento
da autora. Na escala progressiva, o poema apresenta Absalão (Avshalom): 1)
como filho (2A-5B), 2) como alguém que “não foi autorizado” ou “abortado”
(10C) e 3) como amante (11D-12D). Já na escala regressiva, o poema, em ordem

7
 Quiasmo é o nome dado à “figura de estilo pela qual se repetem palavras invertendo-se-lhes a ordem”.
(Cf. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, p.654).

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invertida, apresenta Absalão: 1) como amante (13D’) e 2) como filho (15B’-
24A’). Percebe-se na ordem invertida a falta do item C’, isto é, a referência a
Absalão como alguém que “não foi autorizado” ou “abortado”.

        Segundo Patzia e Petrotta, o propósito do autor ao utilizar esse tipo de
recurso literário, o quiasmo, que é caracteristicamente semítico, pode ser o de
querer mostrar progressão de pensamento e intensificação de significado.8 Em se
tratando do presente poema, tal propósito pode ser visto claramente no uso
repetido que Wallach faz do nome daquela criança que ela esperaria que nascesse
de seu ventre e para quem ela, inclusive, já tinha escolhido o nome, isto é,
Avshalom (Absalão). Wallach cita o nome do filho abortado, “Avshalom”, seis
vezes (linhas: 2-5-10-11-13-15). Além disso, ela se dirige a Avshalom chamando-
o de “meu filho” (beni) quatro vezes (linhas: 2-5-15-24) e também se refere a ele
como “meu amante” (’ahuvi) duas vezes (linhas: 12-13). Logo, podemos
compreender a tríade Avshalom – meu filho – meu amante como sendo o centro
deste poema wallachiano. Lilach Lachman, ao comentar a construção desse
poema, declara:


             “Absalão” é construído com a “lógica” do sentimento e da fantasia. Ela
             [Yona Wallach] transforma o trauma de um aborto em uma mistura um
             tanto surreal de nascimento, erotismo e morte. Em uma metamorfose, o
             filho que não nasceu será seu amante (linhas 11-12) assim como ele é sua
             perda.9


        Diante desses dados podemos notar que Avshalom é um poema que possui
uma forma de dispor as palavras e temas seguindo uma estrutura literária
bastante concatenada.




8
  “Quiasmo”, in: PATZIA, Arthur G.  PETROTTA, Anthony J. Dicionário de Estudos Bíblicos. [Trad.
Pedro Wazen de Freitas]. São Paulo, Editora Vida, 2003, pp.129,130.
9
  LACHMAN, Lilach. In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern Hebrew Poem Itself. [New and
Updated Edition]. Detroit, Wayne University Press, 2003, p.274. Os acréscimos entre colchetes são meus.

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        2.2)     A Questão da Identidade

        Encontramos também em Avshalom uma questão relacionada à “definição
da identidade”10 da personagem feminina das linhas 12 e 18. Wallach fala sobre a
“lembrança dela” (zikhra) na linha 12 e também menciona o “coração dela”
(liba) na linha 18 do poema. Afinal, a quem se refere essa preposição seguida de
um pronome feminino? Bem, se levarmos em consideração todo o contexto do
poema, nos veremos convencidos de que a própria Yona Wallach é essa mulher
cuja identidade não é citada explicitamente, mas cujo contexto não deixa dúvidas
a respeito de quem ela é de fato.

        Nas linhas 11 e 12, Wallach escreve: “em outra encarnação Avshalom será
meu amante e eu sentirei a lembrança dela”. Já nas linhas 1 e 2, ela declara: “Eu
sou obrigada de novo a relembrar meu filho Avshalom”. Então, ao dizer: “eu
sentirei a lembrança dela” (linha: 12), a poetisa Wallach está se referindo à
personagem do seu poema (que é ela mesma), dirigindo-se a si própria na
terceira pessoa. Tal fato é reforçado pelas metáforas do “concerto de astros
(estrelas) que cai” e pela “espada [que] golpeia com um magneto o coração dela
(isto é, da própria Wallach, por causa do aborto que ela experimentou)”.11

        Sendo assim, o aparente “enigma” da identidade da mulher “anônima” das
linhas 12 e 18 é “desvendado” pelo próprio contexto do poema que acaba sendo
auto-explicativo.


        2.3)     Ruptura do Fluxo Literário


        Em seu poema, Avshalom, percebemos ainda que Wallach, em um
determinado momento, rompe com o fluxo literário convencional e fragmenta o

10
   Para um estudo detalhado sobre a questão da identidade em vários poemas de Yona Wallach, veja:
CARANDINA, Elisa. La Problematica Identitaria in Alcune Poesie Di Yona Wallach. XLIV, 3. (Articoli
in PDF). [Analli Di Ca’ Foscari. Rivista Della Facoltà Di Lingue e Letterature Straniere Dell’ Università
Ca’ Foscari Di Venezia]. Venezia, Università Ca’ Foscari, 2005.
11
   Lilach Lachman também enxerga as metáforas das “estrelas que caem” e da “espada que golpeia”
como alusões à experiência física do aborto vivida pela própria Yona Wallach. (Cf. LACHMAN, Lilach.
In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern Hebrew Poem Itself, p.274).

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seu pensamento, provocando rupturas na sintaxe do poema. Isto pode ser visto
nas linhas 13 e 14, onde ela escreve: “quando meu amante Avshalom (...) é uma
sensação corpórea ou como meu ventre”.

      Essa ruptura abrupta no fluxo do pensamento parece fazer ecoar de
alguma forma a dor que Wallach sente por não ter o seu filho ao seu lado, vivo,
no momento em que escreve. Tal situação parece descrever uma mente que está
um tanto quanto confusa – todavia, isto é feito deliberadamente – o que acaba
refletindo na estrutura desconexa de seu texto.




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III – ANÁLISE LEXICAL12

        Já o propósito da análise lexical será discutir e compreender o(s)
significado(s) de algumas das principais palavras em hebraico que aparecem no
poema que ora estamos estudando. Tendo este propósito em mente, analisemos
então algumas palavras que selecionamos para o nosso estudo.

        Na linha 2, o verbo lehizakher, que é traduzido como “relembrar”, vem da
raiz zkr (zayin-kaf-reysh), de onde vêm as palavras:


        - zakhar (com qamats seguido de patah), “lembrar, recordar, mencionar,
        aludir”;
        - ziker ou lezaker, “lembrar, fazer lembrar”; “masculinizar”;
        - zakhar (com dois qamats), “masculino”;
        - zekher, “memória, recordação, sugestão, alusão”;
        - zikaron, “memória, recordação”;
        - zakhrut, “virilidade”.

        Neste ponto, é interessante observarmos a presença do elemento lúdico na
poesia de Wallach, pois ela faz um trocadilho com algumas palavras derivadas da
raiz hebraica zkr, através do qual mistura deliberadamente o tema da “memória”
com o tema da “sexualidade”, tema este que é sempre recorrente em seus
poemas. Aliás, vejamos o que Linda Zisquit tem a nos dizer sobre isso:

              Neste poema, Wallach usa a palavra ‘ser lembrado’ (le-hizakher) e depois
              ‘sua memória / traço’ (zikhra), brincando com a problemática associação na
              etimologia hebraica entre memória (zikaron) e masculinidade (zakhar) ou
              macheza. Portanto, “Eu devo relembrar” busca fazer essa conexão entre ‘sua
              memória’ e ‘sua macheza’.13


12
   Para efetuar tal análise me baseio neste item em: BEREZIN, Rifka. Dicionário Hebraico-Português.
São Paulo, Edusp, 2003; HATZAMRI, Abraham  HATZAMRI, Shoshana More. Dicionário Português-
Hebraico e Hebraico-Português. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 2000.
13
   O original em inglês traz: “In this poem, Wallach uses the word ‘be reminded of’(le-hizakher) and later
‘her memory/trace’ (zikhra), playing on the problematic association in Hebrew etymology between
memory (zikaron) and maleness (zakhar) or malehood. Hence, ‘I must remember’ seeks to render that
connection between ‘her memory’ and ‘her malehood’”. (Cf. ZISQUIT, Linda. (Trad.). Wild Light:
selected poems of Yona Wallach. New York, The Sheep Meadow Press, 1997, p.69).



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      Na linha 3 merece destaque a palavra berahmi, “no meu útero”. Aqui,
notamos novamente a presença do elemento lúdico. Wallach se utiliza da raiz
hebraica rhm (reysh-hêt-mêm) para fazer um trocadilho entre os termos rehem,
“útero, matriz” e rahamim, “misericórdia, piedade, compaixão, clemência” (linha
7). Aliás, a palavra hebraica rahom, “amar”, também é proveniente da mesma
raiz. Logo, associar o “útero” à “piedade” e, implicitamente, ao ato de “amar”, é,
sem dúvida alguma, um belíssimo pensamento.

      Na linha 10, o vocábulo hurshah, “autorizado, permitido” se refere ao fato
de que Absalão não foi autorizado “a existir, a viver, a nascer”, uma alusão ao
aborto que Yona Wallach havia sofrido.

      Na linha 11 encontramos o curioso vocábulo gilgul, que pode ser
traduzido de várias maneiras, tais como: “rotação, giro”, “metamorfose”, “transe”
ou ainda “transmigração”. De acordo com o significado que dermos à palavra
gilgul, poderemos ter pelo menos três interpretações distintas para a oração
begilgul ’aher ’avshalom yihyeh ’ahuvi. Por exemplo:

      Primeira, se traduzirmos gilgul por “metamorfose”, então a oração do
poema terá um significado voltado para a fantasia literária da autora, ou seja,
“em outra metamorfose Absalão será meu amante”.

      Segunda, se traduzirmos gilgul por “transe”, logo, a oração terá um
significado mais existencial e pessoal, que pode fazer referência ao “transe
narcótico” provocado em Wallach em decorrência do freqüente uso que fazia de
entorpecentes. Neste caso, a oração do poema ficaria assim: “em outro transe
Absalão será meu amante”.

      Terceira, se traduzirmos gilgul por “transmigração”, fazendo alusão à
crença na “transmigração das almas” (gilgul neshamot), então a oração terá um
significado mais espiritual e religioso, pois estará fazendo menção à crença na
reencarnação. Seguindo este último pensamento, a oração do poema ficaria dessa
forma: “em outra encarnação Absalão será meu amante”.

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         Entretanto, em razão desses três elementos (fantasia literária, uso de
drogas e espiritualidade) estarem muito presentes na vida e nos textos de Yona
Wallach, qualquer uma das três opções de tradução para gilgul estaria correta,
pois se encaixaria bem no fluxo narrativo do poema e em seu contexto literário,
bem como, se harmonizaria com o modus vivendi da escritora.

         Na linha 16 vemos a palavra sidur, que foi traduzida como “um concerto”
e que significa também “ordenação, arranjo”; “trabalho tipográfico”; “livro de
orações”. Tal palavra vem da raiz sdr (samekh-dálet-reysh) de onde vem também
a palavra seder, que faz referência à “primeira noite da páscoa judaica”.

         Por fim, nas linhas 22 e 24 nós nos deparamos com a palavra ruah, cujos
significados são: “vento, brisa”; “ar, atmosfera”; “alma”; “tendência, espírito”;
“fantasma, aparição”; “ponto cardeal, lado”. Como a palavra ruah também
significa “espírito”, e, como o poema se insere dentro do contexto geral que trata
do tema do aborto (linhas: 1-2-3-9-10) e da reencarnação (linhas: 11-13), então,
traduzir o termo ruah por “espírito” parece ser mais apropriado. Sendo assim, as
linhas 22 a 24 ficariam assim: “o espírito | aonde levará | o espírito meu filho”.14




14
   É curioso notar a semelhança existente entre as linhas 22 a 24 de Avshalom (se traduzirmos ruah por
“vento”), isto é, “o vento | aonde levará | o vento meu filho”, e o texto do Evangelho de João 3.8a, que
diz: to. pneu/ma o[pou qe,lei pnei/ kai. th.n fwnh.n auvtou/ avkou,eij( avllV ouvk oi=daj po,qen e;rcetai kai. pou/
u`pa,gei(literalmente: “o vento onde quer sopra e a voz dele ouves, mas não sabes donde vem e aonde
vai”). (Cf. ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes, MARTINI, Carlo M. 
METZGER, Bruce M. (eds.). The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005).

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IV – ANÁLISE IDEOLÓGICA

        Antes de tudo, se faz necessário definirmos aqui o que pretendemos dizer
com “ideologia”. Usamos o termo “ideologia” para nos referirmos ao “modo de
ver, próprio de um indivíduo ou de uma classe”.15 No presente caso, portanto,
buscaremos analisar os principais temas existentes no poema, os quais, segundo
entendemos, apontam para a maneira peculiar wallachiana de olhar para certos
elementos da vida a partir da sua experiência vivencial. Em Avshalom,
detectamos seis temas principais:

        - Aborto

        - Bíblia Hebraica

        - Descendência

        - Reencarnação

        - Complexo de Édipo às Avessas (Complexo de Jocasta)

        - Vida Além-Túmulo


        Em primeiro lugar, podemos perceber que o tema do aborto, (que, aliás,
foi experimentado pela autora duas vezes) é retratado de forma bastante explícita
em Avshalom, principalmente na linha 10: “e Avshalom que não foi autorizado [a
nascer]”.16 Isso mostra que o poema não é escrito a partir de um ponto de vista
neutro, extrínseco e impessoal. Pelo contrário, Avshalom possui uma forte carga
existencial e empírica. Wallach escreve tendo como pano-de-fundo a sua própria
experiência, e não baseada em abstrações literárias fictícias.

        Em segundo lugar, percebemos, de igual modo, que o tema da Bíblia
Hebraica também está presente nos “bastidores” de Avshalom. Aliás, o próprio

15
   FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 7ª ed.
Curitiba, Ed. Positivo, 2008, p.459.
16
   De acordo com Igal Sarna, “Avshalom” foi escrito em 1963 depois do segundo aborto sofrido por
Wallach. (Cf. SARNA, Igal. In: COHEN, Zafrira Lidovsky. “Loosen the Fetters of Thy Tongue,
Woman”: The poetry and poetics of Yona Wallach. Cincinnati, The Hebrew Union College Press, 2003,
note 13, p.77).

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nome do poema, Avshalom, que remete ao personagem bíblico homônimo (Cf.
Shemuel Bet, capítulos 13, 14 e 18) é citado seis vezes ao todo ao longo do
poema. Some-se a isto ainda o fato de que os dizeres “[Avshalom] cujos cabelos
ficaram presos no meu útero” (linha: 2) remetem a 2 Sm 18.9: “(...) Absalão ia
montado numa mula; (...) pegou-se-lhe a cabeça no carvalho, e ficou pendurado
entre o céu e a terra (...)”. Por fim, as frases “meu filho Avshalom” (linha: 2),
“Avshalom meu filho” (linhas: 5 e 15) e “meu filho” (linha: 24) ecoam o triste
lamento do próprio rei Davi ao saber da morte de seu filho, Avshalom: “Meu
filho Absalão, meu filho, meu filho, Absalão!” (2 Sm 18.33). Mais adiante,
falaremos um pouco mais sobre as ligações entre o poema de Wallach e esse
texto bíblico que lhe serve de pano-de-fundo.

        Em terceiro lugar, Avshalom também aborda o tema da descendência.
Wallach, como qualquer outra mulher, fala sobre o desejo de ser mãe, ou “o
desejo de descendência” (retsonot hatorashah – linha: 9). Como bem declarou
Zafrira Cohen a esse respeito: “a maternidade tem sido considerada um
cumprimento da mulher de seu destino fisiológico, seu ‘chamado’ natural e
responsabilidade”.17 Logo, a não realização desse “chamado”, principalmente
para uma mulher israelense, se torna algo extremamente deprimente e lastimável,
uma vez que, segundo a Bíblia Hebraica, o ato de gerar filhos era um sinal
indicativo da bênção divina (Cf. Gn 1.27,28a; Sl 127.4,5).

        Em quarto lugar, encontramos em Avshalom (caso aceitemos a tradução de
gilgul com o significado de “transmigração”) o tema da reencarnação: “em outra
encarnação Avshalom será meu amante” (linhas: 11,12a). Segundo Severino
Celestino da Silva, os praticantes do judaísmo em geral, e, em especial os
seguidores das correntes ortodoxas e cabalistas, crêem que, após a morte, a alma
encarna em uma nova forma física.18 Sendo assim, não é de admirar que Wallach

17
   COHEN, Zafrira Lidovsky. “Loosen the Fetters of Thy Tongue, Woman”: The poetry and poetics of
Yona Wallach, p.77.
18
   SILVA, Severino Celestino. Analisando as Traduções Bíblicas: refletindo a essência da mensagem
bíblica. João Pessoa, Idéia, 2002, p.159. Cf. também o verbete “Metempsychosis”, in: SHERBOK, Dan
Cohn. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford, Oneworld Publications, 1998, p.130.

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reflita tal tipo de crença em seu poema. Todavia, vale lembrar aqui que a palavra
gilgul, além de ser traduzida como reencarnação, pode ser traduzida também
como metamorfose ou transe.19

        Em quinto lugar, identificamos em Avshalom uma espécie de Complexo de
Édipo às avessas, ou seja, um tipo de Complexo de Jocasta. Porém, antes de
entendermos esse conceito, devemos nos dirigir primeiramente à conhecida
história da mitologia grega que fala sobre Édipo e Jocasta. Um jovem chamado
Édipo, ao decifrar o enigma da esfinge, monstro mitológico que assolava a
cidade de Tebas, no Egito, acabou ganhando como prêmio a rainha Jocasta em
casamento. Contudo, casando-se com a rainha, sem o saber, Édipo estava se
casando com a própria mãe. Para resumir a história, no fim, Jocasta se suicida, e
Édipo, enlouquecido, fura os seus olhos e foge para Tebas.20 Tendo como base
essa história mitológica, Freud desenvolve a sua teoria sobre o que ele chama de
Complexo de Édipo. De acordo com Freud, o Complexo de Édipo é verificado
quando a criança atinge o período sexual fálico e começa a discernir a diferença
entre os sexos, manifestando a tendência de fixar a sua atenção libidinosa nas
pessoas do sexo oposto no ambiente familiar.21 Em se tratando do poema
Avshalom, podemos perceber um tipo de Complexo de Jocasta, no qual vemos,
de forma invertida, Wallach (Jocasta) se apaixonando pelo próprio filho,
Avshalom (Édipo), o que é evidenciado na seguinte parte do poema: “em outra
encarnação Avshalom será meu amante” (linhas: 11, 12a).22



19
   Veja as observações anteriores sobre as possíveis traduções para gilgul nas páginas 10 e 11.
20
   Cf. BULLFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Rio de Janeiro, Ediouro, 1999, pp.152,153.
21
      Complexo de Édipo.               Wikipedia – The Free Encyclopedia. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_de_Édipo. Acesso em: 04/12/2010.
22
   De acordo com Lachman: “Ocultado atrás do aborto de Absalão está o desejo proibido [de Wallach]
envolvendo seu pai e seu filho – a conversão de ‘o desejo de hereditariedade’ para o amor erótico e a
fantasia de que ‘Absalão será meu amante’”. (Cf. LACHMAN, Lilach. In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et
al. The Modern Hebrew Poem Itself, p.275). Kaufman, Rokem e Hess comentam que esses “cruzamentos
de gênero” presentes, por exemplo, em Avshalom, têm um “efeito deslumbrante” na poesia de Wallach.
(Cf. KAUFMAN, Shirley, ROKEM, Galit Hasan  HESS, Tamar S. Hebrew Feminist Poems From
antiquity to the Present: a bilingual anthology. New York, The Feminist Press, 1999, p.19).



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       Finalmente, em sexto e último lugar, encontramos em Avshalom o tema da
Vida Além-Túmulo. Além de o poema mencionar a ideia da reencarnação tanto
de Wallach quanto de Avshalom (linhas: 11,12a), ele também irá tratar, mais ao
final, do destino incógnito do filho abortado: “o vento (espírito) | aonde levará | o
vento (espírito) meu filho” (linhas: 22-24). Ao mesmo tempo em que Wallach
acredita na sua reencarnação e na de seu filho (linhas: 11,12a), ela também
demonstra ter dúvidas quanto ao paradeiro final de Avshalom (linhas: 22-24).
Dessa forma, o poema termina com uma pergunta que fica sem receber uma
resposta definitiva.

       Tendo terminado a nossa análise ideológica, passemos então para a última
parte do nosso trabalho: a análise comparativa do poema Avshalom.




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V – ANÁLISE COMPARATIVA

       Neste último ponto do nosso trabalho, o nosso propósito será fazer uma
análise comparativa entre o poema de Wallach e o texto da Bíblia Hebraica que
lhe serve de background. Veremos, em linhas gerais, como estes textos
interagem e quais são as semelhanças e diferenças que eles nos apresentam.

       Antes, entretanto, creio que seja bastante pertinente para o nosso estudo
mencionarmos aqui o que David Jacobson tem a nos dizer sobre a singularidade
do papel da Bíblia, tanto para a cultura israelense, como para os poetas
israelenses de uma forma geral.Vejamos as suas palavras:

            Há uma qualidade única no papel da Bíblia na cultura israelense e nas
            formas pelas quais os poetas israelenses fazem uso da Bíblia. Não        é
            somente a identidade nacional de Israel que está permeada pela sensação de
            que ela está reaproximando o povo judeu do seu passado bíblico, mas Israel
            também é o país no qual a maioria dos eventos bíblicos aconteceu.23

       Prossegue Jacobson:


            Não há país no mundo onde uma familiaridade tão grande com a Bíblia
            possa ser encontrada. Isto faz com que um escritor não consiga aludir a um
            texto literário que os leitores da obra não possam identificar. O escritor
            israelense pode fazer alusão à Bíblia com a certeza de que, por causa do
            papel central da Bíblia para a cultura israelense, na maioria dos casos os
            leitores da obra irão identificar imediatamente o texto aludido sem consultar
            a Bíblia, e na pior situação eles não terão muita dificuldade para encontrar a
            alusão na Bíblia.24


       Estas observações fornecidas por Jacobson são muito importantes para a
compreensão dos poemas de Yona Wallach em geral, e, mais particularmente,
para o entendimento do presente poema, Avshalom, que ora estamos estudando.
Já dissemos anteriormente, na análise ideológica, que a Bíblia Hebraica está
presente nos “bastidores” de Avshalom. Agora, tal afirmação ficará mais evidente
23
    JACOBSON, David C. Does David Still Play Before You?: Israeli poetry and the Bible. Detroit,
Wayne State University Press, 1997, p.20.
24
   Idem, Ibidem.

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através do quadro comparativo que criamos, o qual visa traçar algumas
semelhanças entre o poema Avshalom de Yona Wallach e alguns recortes de
textos da Bíblia Hebraica que falam sobre Absalão, um dos filhos do rei Davi.

         Vejamos como se configura tal quadro comparativo:

 25                                                          26
      Avshalom (Poema de Yona Wallach)                            Absalão (Bíblia Hebraica)
                                                     13.39a
1 Eu sou obrigada de novo a                              Então, tinha o rei Davi saudades
2 relembrar meu filho Avshalom                       de Absalão (...). 18.9 (...) Absalão ia
3 cujos cabelos ficaram presos no meu útero          montado numa mula; (...) pegou-se-lhe
                                                     a cabeça no carvalho, e ficou
                                                     pendurado entre o céu e a terra (...).
                                                     18.33
4 e eu não logrei                                          Então o rei se perturbou (...) e
5 acabar Avshalom meu filho                          chorou; e andando, dizia assim: Meu
6 eu gero as possibilidades de minhas                filho Absalão, meu filho, meu filho,
emoções                                              Absalão! Quem me dera que eu
7 a piedade jorra nas entranhas                      morrera por ti, Absalão, meu filho,
8 e a fome possível                                  meu filho! 18.18a Ora, Absalão, quando
9 o desejo de descendência                           ainda vivia, tinha tomado e levantado
10 e Avshalom que não foi autorizado                 para si uma coluna, que está no vale do
                                                     rei, porque dizia: “Filho nenhum tenho
                                                     para conservar a memória do meu
                                                     nome”.

11 em outra encarnação Avshalom será                 14.25
                                                           Não havia, porém, em todo o
12 meu amante e eu sentirei a lembrança dela         Israel homem tão belo e tão aprazível
13 quando meu amante Avshalom                        como Absalão; desde a planta do pé
14 é uma sensação corpórea ou como meu               até a cabeça não havia nele defeito
ventre                                               algum.
15 está vazio de Avshalom meu filho

16 um concerto de astros                             18.14b
                                                           E [Joabe] tomou três dardos, e
17 cai e a espada golpeia                            traspassou com eles o coração de
18 com um magneto o coração dela                     Absalão, estando ele ainda vivo no
19 exato sentimento:                                 meio do carvalho. 18.15 E o cercaram
20 o que guerreará                                   dez mancebos, que levavam as armas
21 e sobre o que descansará                          de Joabe. E feriram a Absalão, e o
22 o vento                                           mataram. 18.17 E tomaram a Absalão e
23 aonde levará                                      o lançaram no bosque, numa grande
24 o vento meu filho.                                cova, e levantaram sobre ele um mui
                                                     grande montão de pedras.

25
  Poema de Yona Wollach traduzido diretamente do hebraico pelo Prof. Dr. Moacir Aparecido Amâncio.
26
  Estes trechos bíblicos de 2 Samuel (Shemuel Bet) foram extraídos de: ALMEIDA, João Ferreira de.
(Trad.). Bíblia. [Edição Revista e Corrigida]. Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991.

                                                                                            W
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        Bem, depois de ter analisado o poema Avshalom a partir de várias
perspectivas, devemos analisá-lo agora através de uma comparação com alguns
textos sobre outro Avshalom, o da Bíblia Hebraica. Como podemos perceber no
quadro comparativo acima, há muitos pontos de contato entre o Avshalom de
Wallach e o Avshalom do Tanakh, bem como, há também diferenças. Dessa
“leitura comparativa” entre ambos os textos podemos extrair o seguinte:

        1) No poema, Wallach descreve a perda de Avshalom, seu filho, que não
veio ao mundo (linha: 10). Na Bíblia Hebraica, a perda de outro Avshalom, filho
do rei Davi, também é relatada por meio da sua morte (2 Sm 18.14b,15). Logo, é
curioso notar que Wallach parece pretender se auto-retratar como o rei Davi
através de uma espécie de auto-masculinização que ela impõe a si própria.27

        2) No poema, fala-se sobre “Avshalom cujos cabelos ficaram presos no
meu útero” (linhas: 2-3). Já na Bíblia Hebraica, lemos sobre Absalão que
“pegou-se-lhe a cabeça no carvalho, e ficou pendurado entre o céu e a terra” (2
Sm 18.9). Segundo Lilach Lachman, “na complexa cadeia de identidades que ela
[Wallach] cria, ela é Absalão que perde tudo; ela é Davi que chora a perda de seu
filho; ela é o carvalho, o instrumento da sua morte [de Avshalom]”.28

        3) No poema, Wallach repete algumas frases de lamento, através das quais
lamenta o não-nascimento de seu filho: “meu filho Avshalom” (linha: 2),
“Avshalom meu filho” (linhas: 5 e 15) e “meu filho” (linha: 24). Na Bíblia
Hebraica, o rei Davi, ao saber da morte de seu filho, Avshalom, também o
lamenta repetidas vezes: “Meu filho Absalão, meu filho, meu filho, Absalão!” (2
Sm 18.33). Aqui, o “papel” do rei Davi é assumido claramente por Wallach.

        4) No poema, Yona Wallach realiza uma metamorfose “mágica” no que
diz respeito a identidade de Avshalom. Ele é transformado de filho não-nascido

27
   Em outro de seus poemas que é bastante conhecido, Yonatan, Wallach se auto-retrata como um menino,
que é decapitado por outros meninos, os quais desejam ardentemente o seu sangue. (Cf. Yona Wallach.
[Breve      biografia].    Wikipedia     –     The     Free     Encyclopedia.       Disponível   em:
http://en.wikipedia.org/wiki/Yona_Wallach. Acesso em: 25/10/2010).
28
   Cf. LACHMAN, Lilach. In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern Hebrew Poem Itself, p.274.
Os acréscimos entre colchetes são meus.

                                                                                               W
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em amante: “em outra encarnação Avshalom será meu amante” (linhas: 11-12).
Nas linhas seguintes, de forma ambígua e eufemística, Wallach declara: “meu
ventre está vazio de Avshalom meu filho” (linhas: 14-15). Aqui, Wallach afirma
que o seu “ventre” (rehem) sente falta tanto do filho quanto do “órgão genital” do
seu amante. Deve-se dizer aqui que da raiz rhm (reysh-hêt-mêm) também é
derivada a palavra rahom, “amar, querer”.29 Não podemos nos esquecer de que
esta palavra também possui conotações sexuais. Já na Bíblia Hebraica, os
atributos físicos de Absalão também são mencionados em 2 Sm 14.25, conforme
podemos ver a seguir:


             Não havia, porém, em todo o Israel
             homem tão belo e tão aprazível como Absalão;
             desde a planta do pé até a cabeça
             não havia nele defeito algum.

        Estes atrativos físicos da personagem bíblica Absalão sem dúvida alguma
influenciaram Wallach na composição do seu poema, que buscou retratar
Avshalom deliberadamente de forma ambígua como seu filho-amante.30 Esta
fixação por personagens “transgêneros”, como a própria Wallach (mãe-amante) e
Avshalom (filho-amante), no presente poema, também é um tema recorrente em
outros poemas de Wallach.31

        5) No poema, a experiência física do aborto é abertamente aludida por
meio da expressão: “a espada golpeia com um magneto o coração dela [liba – o
coração da própria Wallach]” (linhas: 17-18). Tais palavras encontram a sua
correspondência no texto da Bíblia Hebraica, que diz: “E [Joabe] tomou três
dardos, e traspassou com eles o coração de Absalão” (2 Sm 18.14b). Enquanto
que na Bíblia Hebraica, Absalão tem o seu coração traspassado por dardos, no

29
   HATZAMRI, Abraham  HATZAMRI, Shoshana More. Dicionário Português-Hebraico e Hebraico-
Português, p.303.
30
   De acordo com Lachman, “Absalão se torna um objeto erótico através do qual a oradora re-experimenta
seu apetite sexual e seu trauma de infância da separação de seu pai, morto durante a Guerra de
Independência de Israel”. (Cf. LACHMAN, Lilach. In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern
Hebrew Poem Itself, p.275).
31
   Veja, por exemplo: “Yonatan”, “Tu és Minha Namorada”, “Homem não Homem / Mulher não
Mulher”, “O Mundo e a Filha da Floresta” etc.

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poema, Wallach troca de identidade com Avshalom, como que se solidarizando
com ele, e é ela quem sofre o golpe de uma espada no seu próprio coração. Em
outras palavras, Wallach descreve poeticamente a sua própria “morte”
juntamente com o seu filho “que não foi autorizado” (linha: 10) a vir a este
mundo.

        6) No poema, o destino do filho não-nascido, Avshalom, é confuso. Em
um primeiro momento, Wallach acredita que Avshalom irá se reencarnar e será o
seu amante na próxima encarnação (linhas: 11-12). Mas, mais adiante, Wallach
deixa de exibir esta certeza quanto à crença na reencarnação e demonstra
desconhecer qual será o destino de Avshalom (linhas: 22-24). Quanto ao Absalão
da Bíblia, o seu fim é ser lançado em uma cova em algum bosque (2 Sm 18.17),
de maneira que se guarda “silêncio” sobre o seu paradeiro além-túmulo.

        Em geral, podemos concluir esta breve análise comparativa entre o
Avshalom de Wallach e o Avshalom da Bíblia Hebraica, dizendo que Wallach
claramente se utiliza do texto bíblico em seu poema, fazendo, todavia, uma
releitura desconstrutivista do mesmo.32 Além disso, Wallach interpreta o
Avshalom da Bíblia Hebraica a partir da sua própria realidade traumática pós-
aborto. Dentro desta linguagem intrincada, complexa e multifacial, ora ela se
apresenta como Davi, ora se apresenta como Avshalom e ora se apresenta como a
própria árvore, o carvalho, que prendeu os cabelos de seu filho até o momento de
sua morte.




32
   Para Estrada, a estratégia geral da desconstrução é: “entender e fazer filosofia como sistema de um
desejo, da inevitável violência do querer dizer, do ajuizar, de se apropriar das coisas por meio da
linguagem, de prometer trazer o sentido à presença, mas nunca conseguir (...)”. (Cf. ESTRADA, Paulo
Cesar Duque (org.). Desconstrução e Ética: ecos de Jacques Derrida. Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio / São
Paulo, Loyola, 2004, p.95).

                                                                                               W
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CONCLUSÃO


       Bem, chegamos ao término do nosso trabalho. A partir do texto original
hebraico transliterado e da sua respectiva tradução estudamos o poema
wallachiano Avshalom primeiramente desde a sua análise literária, onde
identificamos a sua estrutura quiásmica, a questão da identidade abordada no
poema, bem como, a ruptura do fluxo literário, elementos estes presentes no seu
corpus.

       Em segundo lugar, nos utilizamos da análise lexical, através da qual
pudemos compreender alguns dos principais vocábulos empregados por Wallach
em seu poema.

       Em terceiro lugar, por meio da análise ideológica, identificamos os
principais temas e/ou conceitos presentes em Avshalom, os quais tivemos a
oportunidade de comentar.

       Por fim, em quarto e último lugar, nos detivemos na análise comparativa
entre o poema Avshalom e os textos bíblicos que tratam do seu homônimo. Neste
item, vimos os principais pontos de contato e as principais diferenças entre
ambos os textos.

       Depois de toda esta jornada, podemos chegar a algumas conclusões finais.
Primeira, Avshalom é um poema que busca dessacralizar as personagens bíblicas,
Davi e Absalão, bem como, busca dessacralizar também a própria linguagem
utilizada no texto bíblico.

       Segunda, o poema é escrito e estruturado a partir da própria experiência
vivida por Wallach. Embora Barthes tenha dito que “uma vez que um fato é
recontado (...) a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a




                                                                           W
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escrita começa”,33 contudo, não há como ler Avshalom de forma atemporal e
neutra, desvinculando-o da experiência traumática do aborto vivida pela poetisa.

        Terceira, em Avshalom Wallach brinca com o significado de muitas
palavras hebraicas, empregando, inclusive, muitos trocadilhos, valendo-se da
característica polissêmica de muitos desses termos. As raízes de muitos
vocábulos hebraicos possibilitam esse tipo de uso, o que Wallach faz habilmente
e sem desperdiçar as oportunidades.

        Finalmente, a quarta e última conclusão a que pudemos chegar, diz
respeito ao fato de que Avshalom aponta para a ruptura dos padrões
convencionais em geral. Wallach rompe com os padrões conceituais, estilísticos,
lingüísticos,       sexuais   e    sagrados     em       seu   texto,    redimensionando-os
subjetivamente e conferindo-lhes novos significados e valores.

        Aliás, a ruptura dos padrões convencionais parece ser uma obsessão
constante em seus poemas. O prazer último e múltiplo de Yona Wallach, a cada
linha escrita, parece ser justamente esse: romper com as normas, contestar os
padrões, mudar os conceitos, e, por fim, recriá-los novamente à sua imagem e
semelhança contraventora.




33
   BARTHES, Roland. The Rustle of Language. [Translated by Richard Howard]. California, University
of California Press, 1989, p.49.



                                                                                            W
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BIBLIOGRAFIA


Livros Consultados:


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BARTHES, Roland. The Rustle of Language. [Translated by Richard Howard].
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1999.

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                                                                         W
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Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Yona_Wallach. Acesso em:
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Yona        Wallach.         [Breve       biografia].      Disponível           em:
http://www.ithl.org.il/author_info.asp?id=280. Acesso em: 24/10/2010.


                                                                            W
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    © É permitida a reprodução parcial deste artigo desde que citada a sua
fonte. Citação Bibliográfica: VAILATTI, Carlos Augusto. Poesia e Bíblia
Hebraica: Uma Análise do Poema “Avshalom” de Yona Wallach. [Artigo].
                      São Paulo, Publicação do Autor, 2011.



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Análise do poema Avshalom de Yona Wallach e suas referências bíblicas

  • 1. > W , h W z t s 1 ARTIGO LITERÁRIO POSESIA E BÍBLIA HEBRAICA: UMA ANÁLISE DO POEMA “AVSHALOM” DE YONA WALLACH por Carlos Augusto Vailatti RESUMO O presente artigo tem por objetivo analisar o poema chamado “Avshalom” de autoria da poetisa israelense Yona Wallach através do ponto de vista literário, lexical, ideológico e comparativo. No que diz respeito a este último item, nos interessará estudar as semelhanças e as dissimilaridades existentes entre este poema e alguns trechos bíblicos do livro de 2 Samuel, os quais também tratam de traços biográficos do personagem Avshalom (Absalão). Palavras-Chave: Yona Wallach, Avshalom, Análise Literária, 2 Samuel. ABSTRACT This article aims to analyze the poem called Avshalom authored by the Israeli poet Yona Wallach through the literary point of view, lexical, ideological and comparative. Regarding this last item, will interest us to study the similarities and dissimilarities between this poem and some biblical excerpts of the book of 2 Samuel, which also deal with the traits biographical of character Avshalom (Absalom). Keywords: Yona Wallach, Avshalom, Literary Analysis, 2 Samuel. 1 Este artigo foi apresentado originalmente como trabalho em 12/2010 para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Departamento de Letras Orientais) da Universidade de São Paulo (USP).
  • 2. W , h W z t s INTRODUÇÃO Uma das poetisas mais controvertidas das últimas décadas foi, sem dúvida alguma, a israelense Yona Wallach. Wallach nasceu na cidade israelense de Kiriat Ono, próximo a Tel Aviv, em 1944, e morreu ainda muito jovem em decorrência de um câncer de mama, em 1985.2 Portanto, quando faleceu, ela tinha apenas 41 anos de idade. Todavia, além da precocidade da sua morte, outro acontecimento trágico que marcou a sua vida foi a morte de seu pai, Michael Wallach, o qual foi morto de forma brutal durante a Guerra da Independência de Israel, em 1948. Quando seu pai morreu, Wallach tinha somente quatro anos de idade, e, conforme pode ser visto em alguns dos seus poemas, essa “orfandade” influenciou grandemente os seus trabalhos.3 Essa poetisa, orgulhosa de sua bissexualidade, chocou os seus leitores com seus poemas ousados, nos quais misturava sexualidade e espiritualidade.4 Além disso, os seus poemas também combinam elementos do rock and roll, da psicologia junguiana e da gíria de rua.5 Todavia, embora estejamos diante de uma escritora cujos poemas refletem um vigoroso ecletismo, no presente estudo, porém, buscaremos analisar um de seus poemas que possui um pano-de-fundo nitidamente bíblico, a saber: Avshalom. O nosso objetivo será analisar este poema sob o ponto de vista literário, lexical, ideológico e comparativo, sendo que sob esse último aspecto nos interessará fazer a correlação entre o poema de Wallach e o texto da Bíblia 2 Yona Wallach. [Breve biografia]. Wikipedia – The Free Encyclopedia. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Yona_Wallach. Acesso em: 25/10/2010. 3 Guide to the City of Qyriat Ono. (Arquivo em PDF em inglês). Disponível em: http://www.kono.org.il. Acesso em: 20/10/2010. A influência da ausência paterna parece ser vista de alguma forma, por exemplo, nos seguintes poemas de Yona Wallach nos quais ela menciona a figura do pai: “Novamente a Alma”, “Hebraico”, “Quando Você Vier para Deitar Comigo, Venha como Meu Pai” e “Meu Pai e Minha Mãe Saíram para Caçar”, dentre outros. 4 Yona Wallach. [Breve biografia]. Wikipedia – The Free Encyclopedia. 5 Yona Wallach. [Breve biografia]. Disponível em: http://www.ithl.org.il/author_info.asp?id=280. Acesso em: 24/10/2010. W
  • 3. W , h W z t s Hebraica que lhe serve de inspiração para a composição do seu poema. Veremos como estes textos interagem e que semelhanças e dissimilaridades os mesmos nos apresentam. Bem, depois dessas informações preliminares, vejamos então o que nos reserva a leitura e a análise do poema Avshalom. W
  • 4. W , h W z t s I – AVSHALOM: O POEMA TRANSLITERADO E TRADUZIDO 6 Poema Transliterado Poema Traduzido 1 ’ani mukhrahah pa‘am nosefet 1 Eu sou obrigada de novo a 2 lehizakher biveni ’avshalom 2 relembrar meu filho Avshalom 3 shesa‘arotayn nitpesu berahmi 3 cujos cabelos ficaram presos no 4 velo’ yatsa’ li meu útero 5 ligmor ’et ’avshalom beni 4 e eu não logrei 6 ’ani bonah ’efsharuyot 5 ’et acabar Avshalom meu filho hargashati 6 eu gero as possibilidades de 7 harahamim shotfim bi minhas emoções 8 vehara‘av ha’efshari 7 a piedade jorra nas entranhas 9 retsonot hatorashah 8 e a fome possível 10 ve’avshalom shelo’ hurshah 9 o desejo de descendência 11 begilgul ’aher ’avshalom yihyeh 10 e Avshalom que não foi autorizado 12 ’ahuvi va’ani ’ahush zikhra 11 em outra encarnação Avshalom 13 keshe’avshalom ’ahuvi será 14 tehushah gufanit ’o ’eykh bitni 12 meu amante e eu sentirei a 15 reyqah me’avshalom beni lembrança dela 16 sidur shel kokhavim 13 quando meu amante Avshalom 17 noflim veherev macah 14 é uma sensação corpórea ou como meu ventre 18 bamagnet ‘al liba 15 está vazio de Avshalom meu 19 haregashah meduyaq filho 20 bameh tilahem 16 um concerto de astros 21 veal‘ mah tanuah 17 cai e a espada golpeia 22 haruah 18 com um magneto o coração dela 23 le’an tisaakha 19 exato sentimento: 24 haruah beni 20 o que guerreará 21 e sobre o que descansará 22 o vento 23 aonde levará 24 o vento meu filho 6 Poema de Yona Wallach traduzido diretamente do hebraico pelo Prof. Dr. Moacir Aparecido Amâncio. W
  • 5. W , h W z t s II – ANÁLISE LITERÁRIA O poema acima transliterado e traduzido nos apresenta uma variedade de elementos literários que merecem a nossa análise de forma mais pormenorizada. Dentre estes elementos, destacamos os seguintes: 2.1) Estrutura Quiásmica do Poema Em primeiro lugar, podemos perceber que Avshalom é um poema que foi construído dentro da estrutura literária do quiasmo.7 Tal estrutura pode ser vista nas linhas do poema que selecionamos abaixo. 2 (A) relembrar meu filho Avshalom 5 (B) acabar Avshalom meu filho 10 (C) e Avshalom que não foi autorizado 11 (D) em outra encarnação Avshalom será 12 (D) meu amante e eu sentirei a lembrança dela 13 (D’) quando meu amante Avshalom 15 (B’) está vazio de Avshalom meu filho 24 (A’) o vento meu filho Neste bloco literário, representado pelas linhas 2-5-10-11-12-13-15-24 do poema, podemos notar um padrão “quiásmico” em estilo A-B-C-D-D’-B’-A’, no qual se pode perceber uma progressão seguida de uma regressão no pensamento da autora. Na escala progressiva, o poema apresenta Absalão (Avshalom): 1) como filho (2A-5B), 2) como alguém que “não foi autorizado” ou “abortado” (10C) e 3) como amante (11D-12D). Já na escala regressiva, o poema, em ordem 7 Quiasmo é o nome dado à “figura de estilo pela qual se repetem palavras invertendo-se-lhes a ordem”. (Cf. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, p.654). W
  • 6. W , h W z t s invertida, apresenta Absalão: 1) como amante (13D’) e 2) como filho (15B’- 24A’). Percebe-se na ordem invertida a falta do item C’, isto é, a referência a Absalão como alguém que “não foi autorizado” ou “abortado”. Segundo Patzia e Petrotta, o propósito do autor ao utilizar esse tipo de recurso literário, o quiasmo, que é caracteristicamente semítico, pode ser o de querer mostrar progressão de pensamento e intensificação de significado.8 Em se tratando do presente poema, tal propósito pode ser visto claramente no uso repetido que Wallach faz do nome daquela criança que ela esperaria que nascesse de seu ventre e para quem ela, inclusive, já tinha escolhido o nome, isto é, Avshalom (Absalão). Wallach cita o nome do filho abortado, “Avshalom”, seis vezes (linhas: 2-5-10-11-13-15). Além disso, ela se dirige a Avshalom chamando- o de “meu filho” (beni) quatro vezes (linhas: 2-5-15-24) e também se refere a ele como “meu amante” (’ahuvi) duas vezes (linhas: 12-13). Logo, podemos compreender a tríade Avshalom – meu filho – meu amante como sendo o centro deste poema wallachiano. Lilach Lachman, ao comentar a construção desse poema, declara: “Absalão” é construído com a “lógica” do sentimento e da fantasia. Ela [Yona Wallach] transforma o trauma de um aborto em uma mistura um tanto surreal de nascimento, erotismo e morte. Em uma metamorfose, o filho que não nasceu será seu amante (linhas 11-12) assim como ele é sua perda.9 Diante desses dados podemos notar que Avshalom é um poema que possui uma forma de dispor as palavras e temas seguindo uma estrutura literária bastante concatenada. 8 “Quiasmo”, in: PATZIA, Arthur G. PETROTTA, Anthony J. Dicionário de Estudos Bíblicos. [Trad. Pedro Wazen de Freitas]. São Paulo, Editora Vida, 2003, pp.129,130. 9 LACHMAN, Lilach. In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern Hebrew Poem Itself. [New and Updated Edition]. Detroit, Wayne University Press, 2003, p.274. Os acréscimos entre colchetes são meus. W
  • 7. W , h W z t s 2.2) A Questão da Identidade Encontramos também em Avshalom uma questão relacionada à “definição da identidade”10 da personagem feminina das linhas 12 e 18. Wallach fala sobre a “lembrança dela” (zikhra) na linha 12 e também menciona o “coração dela” (liba) na linha 18 do poema. Afinal, a quem se refere essa preposição seguida de um pronome feminino? Bem, se levarmos em consideração todo o contexto do poema, nos veremos convencidos de que a própria Yona Wallach é essa mulher cuja identidade não é citada explicitamente, mas cujo contexto não deixa dúvidas a respeito de quem ela é de fato. Nas linhas 11 e 12, Wallach escreve: “em outra encarnação Avshalom será meu amante e eu sentirei a lembrança dela”. Já nas linhas 1 e 2, ela declara: “Eu sou obrigada de novo a relembrar meu filho Avshalom”. Então, ao dizer: “eu sentirei a lembrança dela” (linha: 12), a poetisa Wallach está se referindo à personagem do seu poema (que é ela mesma), dirigindo-se a si própria na terceira pessoa. Tal fato é reforçado pelas metáforas do “concerto de astros (estrelas) que cai” e pela “espada [que] golpeia com um magneto o coração dela (isto é, da própria Wallach, por causa do aborto que ela experimentou)”.11 Sendo assim, o aparente “enigma” da identidade da mulher “anônima” das linhas 12 e 18 é “desvendado” pelo próprio contexto do poema que acaba sendo auto-explicativo. 2.3) Ruptura do Fluxo Literário Em seu poema, Avshalom, percebemos ainda que Wallach, em um determinado momento, rompe com o fluxo literário convencional e fragmenta o 10 Para um estudo detalhado sobre a questão da identidade em vários poemas de Yona Wallach, veja: CARANDINA, Elisa. La Problematica Identitaria in Alcune Poesie Di Yona Wallach. XLIV, 3. (Articoli in PDF). [Analli Di Ca’ Foscari. Rivista Della Facoltà Di Lingue e Letterature Straniere Dell’ Università Ca’ Foscari Di Venezia]. Venezia, Università Ca’ Foscari, 2005. 11 Lilach Lachman também enxerga as metáforas das “estrelas que caem” e da “espada que golpeia” como alusões à experiência física do aborto vivida pela própria Yona Wallach. (Cf. LACHMAN, Lilach. In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern Hebrew Poem Itself, p.274). W
  • 8. W , h W z t s seu pensamento, provocando rupturas na sintaxe do poema. Isto pode ser visto nas linhas 13 e 14, onde ela escreve: “quando meu amante Avshalom (...) é uma sensação corpórea ou como meu ventre”. Essa ruptura abrupta no fluxo do pensamento parece fazer ecoar de alguma forma a dor que Wallach sente por não ter o seu filho ao seu lado, vivo, no momento em que escreve. Tal situação parece descrever uma mente que está um tanto quanto confusa – todavia, isto é feito deliberadamente – o que acaba refletindo na estrutura desconexa de seu texto. W
  • 9. W , h W z t s III – ANÁLISE LEXICAL12 Já o propósito da análise lexical será discutir e compreender o(s) significado(s) de algumas das principais palavras em hebraico que aparecem no poema que ora estamos estudando. Tendo este propósito em mente, analisemos então algumas palavras que selecionamos para o nosso estudo. Na linha 2, o verbo lehizakher, que é traduzido como “relembrar”, vem da raiz zkr (zayin-kaf-reysh), de onde vêm as palavras: - zakhar (com qamats seguido de patah), “lembrar, recordar, mencionar, aludir”; - ziker ou lezaker, “lembrar, fazer lembrar”; “masculinizar”; - zakhar (com dois qamats), “masculino”; - zekher, “memória, recordação, sugestão, alusão”; - zikaron, “memória, recordação”; - zakhrut, “virilidade”. Neste ponto, é interessante observarmos a presença do elemento lúdico na poesia de Wallach, pois ela faz um trocadilho com algumas palavras derivadas da raiz hebraica zkr, através do qual mistura deliberadamente o tema da “memória” com o tema da “sexualidade”, tema este que é sempre recorrente em seus poemas. Aliás, vejamos o que Linda Zisquit tem a nos dizer sobre isso: Neste poema, Wallach usa a palavra ‘ser lembrado’ (le-hizakher) e depois ‘sua memória / traço’ (zikhra), brincando com a problemática associação na etimologia hebraica entre memória (zikaron) e masculinidade (zakhar) ou macheza. Portanto, “Eu devo relembrar” busca fazer essa conexão entre ‘sua memória’ e ‘sua macheza’.13 12 Para efetuar tal análise me baseio neste item em: BEREZIN, Rifka. Dicionário Hebraico-Português. São Paulo, Edusp, 2003; HATZAMRI, Abraham HATZAMRI, Shoshana More. Dicionário Português- Hebraico e Hebraico-Português. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 2000. 13 O original em inglês traz: “In this poem, Wallach uses the word ‘be reminded of’(le-hizakher) and later ‘her memory/trace’ (zikhra), playing on the problematic association in Hebrew etymology between memory (zikaron) and maleness (zakhar) or malehood. Hence, ‘I must remember’ seeks to render that connection between ‘her memory’ and ‘her malehood’”. (Cf. ZISQUIT, Linda. (Trad.). Wild Light: selected poems of Yona Wallach. New York, The Sheep Meadow Press, 1997, p.69). W
  • 10. W , h W z t s Na linha 3 merece destaque a palavra berahmi, “no meu útero”. Aqui, notamos novamente a presença do elemento lúdico. Wallach se utiliza da raiz hebraica rhm (reysh-hêt-mêm) para fazer um trocadilho entre os termos rehem, “útero, matriz” e rahamim, “misericórdia, piedade, compaixão, clemência” (linha 7). Aliás, a palavra hebraica rahom, “amar”, também é proveniente da mesma raiz. Logo, associar o “útero” à “piedade” e, implicitamente, ao ato de “amar”, é, sem dúvida alguma, um belíssimo pensamento. Na linha 10, o vocábulo hurshah, “autorizado, permitido” se refere ao fato de que Absalão não foi autorizado “a existir, a viver, a nascer”, uma alusão ao aborto que Yona Wallach havia sofrido. Na linha 11 encontramos o curioso vocábulo gilgul, que pode ser traduzido de várias maneiras, tais como: “rotação, giro”, “metamorfose”, “transe” ou ainda “transmigração”. De acordo com o significado que dermos à palavra gilgul, poderemos ter pelo menos três interpretações distintas para a oração begilgul ’aher ’avshalom yihyeh ’ahuvi. Por exemplo: Primeira, se traduzirmos gilgul por “metamorfose”, então a oração do poema terá um significado voltado para a fantasia literária da autora, ou seja, “em outra metamorfose Absalão será meu amante”. Segunda, se traduzirmos gilgul por “transe”, logo, a oração terá um significado mais existencial e pessoal, que pode fazer referência ao “transe narcótico” provocado em Wallach em decorrência do freqüente uso que fazia de entorpecentes. Neste caso, a oração do poema ficaria assim: “em outro transe Absalão será meu amante”. Terceira, se traduzirmos gilgul por “transmigração”, fazendo alusão à crença na “transmigração das almas” (gilgul neshamot), então a oração terá um significado mais espiritual e religioso, pois estará fazendo menção à crença na reencarnação. Seguindo este último pensamento, a oração do poema ficaria dessa forma: “em outra encarnação Absalão será meu amante”. W
  • 11. W , h W z t s Entretanto, em razão desses três elementos (fantasia literária, uso de drogas e espiritualidade) estarem muito presentes na vida e nos textos de Yona Wallach, qualquer uma das três opções de tradução para gilgul estaria correta, pois se encaixaria bem no fluxo narrativo do poema e em seu contexto literário, bem como, se harmonizaria com o modus vivendi da escritora. Na linha 16 vemos a palavra sidur, que foi traduzida como “um concerto” e que significa também “ordenação, arranjo”; “trabalho tipográfico”; “livro de orações”. Tal palavra vem da raiz sdr (samekh-dálet-reysh) de onde vem também a palavra seder, que faz referência à “primeira noite da páscoa judaica”. Por fim, nas linhas 22 e 24 nós nos deparamos com a palavra ruah, cujos significados são: “vento, brisa”; “ar, atmosfera”; “alma”; “tendência, espírito”; “fantasma, aparição”; “ponto cardeal, lado”. Como a palavra ruah também significa “espírito”, e, como o poema se insere dentro do contexto geral que trata do tema do aborto (linhas: 1-2-3-9-10) e da reencarnação (linhas: 11-13), então, traduzir o termo ruah por “espírito” parece ser mais apropriado. Sendo assim, as linhas 22 a 24 ficariam assim: “o espírito | aonde levará | o espírito meu filho”.14 14 É curioso notar a semelhança existente entre as linhas 22 a 24 de Avshalom (se traduzirmos ruah por “vento”), isto é, “o vento | aonde levará | o vento meu filho”, e o texto do Evangelho de João 3.8a, que diz: to. pneu/ma o[pou qe,lei pnei/ kai. th.n fwnh.n auvtou/ avkou,eij( avllV ouvk oi=daj po,qen e;rcetai kai. pou/ u`pa,gei(literalmente: “o vento onde quer sopra e a voz dele ouves, mas não sabes donde vem e aonde vai”). (Cf. ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes, MARTINI, Carlo M. METZGER, Bruce M. (eds.). The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005). W
  • 12. W , h W z t s IV – ANÁLISE IDEOLÓGICA Antes de tudo, se faz necessário definirmos aqui o que pretendemos dizer com “ideologia”. Usamos o termo “ideologia” para nos referirmos ao “modo de ver, próprio de um indivíduo ou de uma classe”.15 No presente caso, portanto, buscaremos analisar os principais temas existentes no poema, os quais, segundo entendemos, apontam para a maneira peculiar wallachiana de olhar para certos elementos da vida a partir da sua experiência vivencial. Em Avshalom, detectamos seis temas principais: - Aborto - Bíblia Hebraica - Descendência - Reencarnação - Complexo de Édipo às Avessas (Complexo de Jocasta) - Vida Além-Túmulo Em primeiro lugar, podemos perceber que o tema do aborto, (que, aliás, foi experimentado pela autora duas vezes) é retratado de forma bastante explícita em Avshalom, principalmente na linha 10: “e Avshalom que não foi autorizado [a nascer]”.16 Isso mostra que o poema não é escrito a partir de um ponto de vista neutro, extrínseco e impessoal. Pelo contrário, Avshalom possui uma forte carga existencial e empírica. Wallach escreve tendo como pano-de-fundo a sua própria experiência, e não baseada em abstrações literárias fictícias. Em segundo lugar, percebemos, de igual modo, que o tema da Bíblia Hebraica também está presente nos “bastidores” de Avshalom. Aliás, o próprio 15 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 7ª ed. Curitiba, Ed. Positivo, 2008, p.459. 16 De acordo com Igal Sarna, “Avshalom” foi escrito em 1963 depois do segundo aborto sofrido por Wallach. (Cf. SARNA, Igal. In: COHEN, Zafrira Lidovsky. “Loosen the Fetters of Thy Tongue, Woman”: The poetry and poetics of Yona Wallach. Cincinnati, The Hebrew Union College Press, 2003, note 13, p.77). W
  • 13. W , h W z t s nome do poema, Avshalom, que remete ao personagem bíblico homônimo (Cf. Shemuel Bet, capítulos 13, 14 e 18) é citado seis vezes ao todo ao longo do poema. Some-se a isto ainda o fato de que os dizeres “[Avshalom] cujos cabelos ficaram presos no meu útero” (linha: 2) remetem a 2 Sm 18.9: “(...) Absalão ia montado numa mula; (...) pegou-se-lhe a cabeça no carvalho, e ficou pendurado entre o céu e a terra (...)”. Por fim, as frases “meu filho Avshalom” (linha: 2), “Avshalom meu filho” (linhas: 5 e 15) e “meu filho” (linha: 24) ecoam o triste lamento do próprio rei Davi ao saber da morte de seu filho, Avshalom: “Meu filho Absalão, meu filho, meu filho, Absalão!” (2 Sm 18.33). Mais adiante, falaremos um pouco mais sobre as ligações entre o poema de Wallach e esse texto bíblico que lhe serve de pano-de-fundo. Em terceiro lugar, Avshalom também aborda o tema da descendência. Wallach, como qualquer outra mulher, fala sobre o desejo de ser mãe, ou “o desejo de descendência” (retsonot hatorashah – linha: 9). Como bem declarou Zafrira Cohen a esse respeito: “a maternidade tem sido considerada um cumprimento da mulher de seu destino fisiológico, seu ‘chamado’ natural e responsabilidade”.17 Logo, a não realização desse “chamado”, principalmente para uma mulher israelense, se torna algo extremamente deprimente e lastimável, uma vez que, segundo a Bíblia Hebraica, o ato de gerar filhos era um sinal indicativo da bênção divina (Cf. Gn 1.27,28a; Sl 127.4,5). Em quarto lugar, encontramos em Avshalom (caso aceitemos a tradução de gilgul com o significado de “transmigração”) o tema da reencarnação: “em outra encarnação Avshalom será meu amante” (linhas: 11,12a). Segundo Severino Celestino da Silva, os praticantes do judaísmo em geral, e, em especial os seguidores das correntes ortodoxas e cabalistas, crêem que, após a morte, a alma encarna em uma nova forma física.18 Sendo assim, não é de admirar que Wallach 17 COHEN, Zafrira Lidovsky. “Loosen the Fetters of Thy Tongue, Woman”: The poetry and poetics of Yona Wallach, p.77. 18 SILVA, Severino Celestino. Analisando as Traduções Bíblicas: refletindo a essência da mensagem bíblica. João Pessoa, Idéia, 2002, p.159. Cf. também o verbete “Metempsychosis”, in: SHERBOK, Dan Cohn. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford, Oneworld Publications, 1998, p.130. W
  • 14. W , h W z t s reflita tal tipo de crença em seu poema. Todavia, vale lembrar aqui que a palavra gilgul, além de ser traduzida como reencarnação, pode ser traduzida também como metamorfose ou transe.19 Em quinto lugar, identificamos em Avshalom uma espécie de Complexo de Édipo às avessas, ou seja, um tipo de Complexo de Jocasta. Porém, antes de entendermos esse conceito, devemos nos dirigir primeiramente à conhecida história da mitologia grega que fala sobre Édipo e Jocasta. Um jovem chamado Édipo, ao decifrar o enigma da esfinge, monstro mitológico que assolava a cidade de Tebas, no Egito, acabou ganhando como prêmio a rainha Jocasta em casamento. Contudo, casando-se com a rainha, sem o saber, Édipo estava se casando com a própria mãe. Para resumir a história, no fim, Jocasta se suicida, e Édipo, enlouquecido, fura os seus olhos e foge para Tebas.20 Tendo como base essa história mitológica, Freud desenvolve a sua teoria sobre o que ele chama de Complexo de Édipo. De acordo com Freud, o Complexo de Édipo é verificado quando a criança atinge o período sexual fálico e começa a discernir a diferença entre os sexos, manifestando a tendência de fixar a sua atenção libidinosa nas pessoas do sexo oposto no ambiente familiar.21 Em se tratando do poema Avshalom, podemos perceber um tipo de Complexo de Jocasta, no qual vemos, de forma invertida, Wallach (Jocasta) se apaixonando pelo próprio filho, Avshalom (Édipo), o que é evidenciado na seguinte parte do poema: “em outra encarnação Avshalom será meu amante” (linhas: 11, 12a).22 19 Veja as observações anteriores sobre as possíveis traduções para gilgul nas páginas 10 e 11. 20 Cf. BULLFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Rio de Janeiro, Ediouro, 1999, pp.152,153. 21 Complexo de Édipo. Wikipedia – The Free Encyclopedia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_de_Édipo. Acesso em: 04/12/2010. 22 De acordo com Lachman: “Ocultado atrás do aborto de Absalão está o desejo proibido [de Wallach] envolvendo seu pai e seu filho – a conversão de ‘o desejo de hereditariedade’ para o amor erótico e a fantasia de que ‘Absalão será meu amante’”. (Cf. LACHMAN, Lilach. In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern Hebrew Poem Itself, p.275). Kaufman, Rokem e Hess comentam que esses “cruzamentos de gênero” presentes, por exemplo, em Avshalom, têm um “efeito deslumbrante” na poesia de Wallach. (Cf. KAUFMAN, Shirley, ROKEM, Galit Hasan HESS, Tamar S. Hebrew Feminist Poems From antiquity to the Present: a bilingual anthology. New York, The Feminist Press, 1999, p.19). W
  • 15. W , h W z t s Finalmente, em sexto e último lugar, encontramos em Avshalom o tema da Vida Além-Túmulo. Além de o poema mencionar a ideia da reencarnação tanto de Wallach quanto de Avshalom (linhas: 11,12a), ele também irá tratar, mais ao final, do destino incógnito do filho abortado: “o vento (espírito) | aonde levará | o vento (espírito) meu filho” (linhas: 22-24). Ao mesmo tempo em que Wallach acredita na sua reencarnação e na de seu filho (linhas: 11,12a), ela também demonstra ter dúvidas quanto ao paradeiro final de Avshalom (linhas: 22-24). Dessa forma, o poema termina com uma pergunta que fica sem receber uma resposta definitiva. Tendo terminado a nossa análise ideológica, passemos então para a última parte do nosso trabalho: a análise comparativa do poema Avshalom. W
  • 16. W , h W z t s V – ANÁLISE COMPARATIVA Neste último ponto do nosso trabalho, o nosso propósito será fazer uma análise comparativa entre o poema de Wallach e o texto da Bíblia Hebraica que lhe serve de background. Veremos, em linhas gerais, como estes textos interagem e quais são as semelhanças e diferenças que eles nos apresentam. Antes, entretanto, creio que seja bastante pertinente para o nosso estudo mencionarmos aqui o que David Jacobson tem a nos dizer sobre a singularidade do papel da Bíblia, tanto para a cultura israelense, como para os poetas israelenses de uma forma geral.Vejamos as suas palavras: Há uma qualidade única no papel da Bíblia na cultura israelense e nas formas pelas quais os poetas israelenses fazem uso da Bíblia. Não é somente a identidade nacional de Israel que está permeada pela sensação de que ela está reaproximando o povo judeu do seu passado bíblico, mas Israel também é o país no qual a maioria dos eventos bíblicos aconteceu.23 Prossegue Jacobson: Não há país no mundo onde uma familiaridade tão grande com a Bíblia possa ser encontrada. Isto faz com que um escritor não consiga aludir a um texto literário que os leitores da obra não possam identificar. O escritor israelense pode fazer alusão à Bíblia com a certeza de que, por causa do papel central da Bíblia para a cultura israelense, na maioria dos casos os leitores da obra irão identificar imediatamente o texto aludido sem consultar a Bíblia, e na pior situação eles não terão muita dificuldade para encontrar a alusão na Bíblia.24 Estas observações fornecidas por Jacobson são muito importantes para a compreensão dos poemas de Yona Wallach em geral, e, mais particularmente, para o entendimento do presente poema, Avshalom, que ora estamos estudando. Já dissemos anteriormente, na análise ideológica, que a Bíblia Hebraica está presente nos “bastidores” de Avshalom. Agora, tal afirmação ficará mais evidente 23 JACOBSON, David C. Does David Still Play Before You?: Israeli poetry and the Bible. Detroit, Wayne State University Press, 1997, p.20. 24 Idem, Ibidem. W
  • 17. W , h W z t s através do quadro comparativo que criamos, o qual visa traçar algumas semelhanças entre o poema Avshalom de Yona Wallach e alguns recortes de textos da Bíblia Hebraica que falam sobre Absalão, um dos filhos do rei Davi. Vejamos como se configura tal quadro comparativo: 25 26 Avshalom (Poema de Yona Wallach) Absalão (Bíblia Hebraica) 13.39a 1 Eu sou obrigada de novo a Então, tinha o rei Davi saudades 2 relembrar meu filho Avshalom de Absalão (...). 18.9 (...) Absalão ia 3 cujos cabelos ficaram presos no meu útero montado numa mula; (...) pegou-se-lhe a cabeça no carvalho, e ficou pendurado entre o céu e a terra (...). 18.33 4 e eu não logrei Então o rei se perturbou (...) e 5 acabar Avshalom meu filho chorou; e andando, dizia assim: Meu 6 eu gero as possibilidades de minhas filho Absalão, meu filho, meu filho, emoções Absalão! Quem me dera que eu 7 a piedade jorra nas entranhas morrera por ti, Absalão, meu filho, 8 e a fome possível meu filho! 18.18a Ora, Absalão, quando 9 o desejo de descendência ainda vivia, tinha tomado e levantado 10 e Avshalom que não foi autorizado para si uma coluna, que está no vale do rei, porque dizia: “Filho nenhum tenho para conservar a memória do meu nome”. 11 em outra encarnação Avshalom será 14.25 Não havia, porém, em todo o 12 meu amante e eu sentirei a lembrança dela Israel homem tão belo e tão aprazível 13 quando meu amante Avshalom como Absalão; desde a planta do pé 14 é uma sensação corpórea ou como meu até a cabeça não havia nele defeito ventre algum. 15 está vazio de Avshalom meu filho 16 um concerto de astros 18.14b E [Joabe] tomou três dardos, e 17 cai e a espada golpeia traspassou com eles o coração de 18 com um magneto o coração dela Absalão, estando ele ainda vivo no 19 exato sentimento: meio do carvalho. 18.15 E o cercaram 20 o que guerreará dez mancebos, que levavam as armas 21 e sobre o que descansará de Joabe. E feriram a Absalão, e o 22 o vento mataram. 18.17 E tomaram a Absalão e 23 aonde levará o lançaram no bosque, numa grande 24 o vento meu filho. cova, e levantaram sobre ele um mui grande montão de pedras. 25 Poema de Yona Wollach traduzido diretamente do hebraico pelo Prof. Dr. Moacir Aparecido Amâncio. 26 Estes trechos bíblicos de 2 Samuel (Shemuel Bet) foram extraídos de: ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia. [Edição Revista e Corrigida]. Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. W
  • 18. W , h W z t s Bem, depois de ter analisado o poema Avshalom a partir de várias perspectivas, devemos analisá-lo agora através de uma comparação com alguns textos sobre outro Avshalom, o da Bíblia Hebraica. Como podemos perceber no quadro comparativo acima, há muitos pontos de contato entre o Avshalom de Wallach e o Avshalom do Tanakh, bem como, há também diferenças. Dessa “leitura comparativa” entre ambos os textos podemos extrair o seguinte: 1) No poema, Wallach descreve a perda de Avshalom, seu filho, que não veio ao mundo (linha: 10). Na Bíblia Hebraica, a perda de outro Avshalom, filho do rei Davi, também é relatada por meio da sua morte (2 Sm 18.14b,15). Logo, é curioso notar que Wallach parece pretender se auto-retratar como o rei Davi através de uma espécie de auto-masculinização que ela impõe a si própria.27 2) No poema, fala-se sobre “Avshalom cujos cabelos ficaram presos no meu útero” (linhas: 2-3). Já na Bíblia Hebraica, lemos sobre Absalão que “pegou-se-lhe a cabeça no carvalho, e ficou pendurado entre o céu e a terra” (2 Sm 18.9). Segundo Lilach Lachman, “na complexa cadeia de identidades que ela [Wallach] cria, ela é Absalão que perde tudo; ela é Davi que chora a perda de seu filho; ela é o carvalho, o instrumento da sua morte [de Avshalom]”.28 3) No poema, Wallach repete algumas frases de lamento, através das quais lamenta o não-nascimento de seu filho: “meu filho Avshalom” (linha: 2), “Avshalom meu filho” (linhas: 5 e 15) e “meu filho” (linha: 24). Na Bíblia Hebraica, o rei Davi, ao saber da morte de seu filho, Avshalom, também o lamenta repetidas vezes: “Meu filho Absalão, meu filho, meu filho, Absalão!” (2 Sm 18.33). Aqui, o “papel” do rei Davi é assumido claramente por Wallach. 4) No poema, Yona Wallach realiza uma metamorfose “mágica” no que diz respeito a identidade de Avshalom. Ele é transformado de filho não-nascido 27 Em outro de seus poemas que é bastante conhecido, Yonatan, Wallach se auto-retrata como um menino, que é decapitado por outros meninos, os quais desejam ardentemente o seu sangue. (Cf. Yona Wallach. [Breve biografia]. Wikipedia – The Free Encyclopedia. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Yona_Wallach. Acesso em: 25/10/2010). 28 Cf. LACHMAN, Lilach. In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern Hebrew Poem Itself, p.274. Os acréscimos entre colchetes são meus. W
  • 19. W , h W z t s em amante: “em outra encarnação Avshalom será meu amante” (linhas: 11-12). Nas linhas seguintes, de forma ambígua e eufemística, Wallach declara: “meu ventre está vazio de Avshalom meu filho” (linhas: 14-15). Aqui, Wallach afirma que o seu “ventre” (rehem) sente falta tanto do filho quanto do “órgão genital” do seu amante. Deve-se dizer aqui que da raiz rhm (reysh-hêt-mêm) também é derivada a palavra rahom, “amar, querer”.29 Não podemos nos esquecer de que esta palavra também possui conotações sexuais. Já na Bíblia Hebraica, os atributos físicos de Absalão também são mencionados em 2 Sm 14.25, conforme podemos ver a seguir: Não havia, porém, em todo o Israel homem tão belo e tão aprazível como Absalão; desde a planta do pé até a cabeça não havia nele defeito algum. Estes atrativos físicos da personagem bíblica Absalão sem dúvida alguma influenciaram Wallach na composição do seu poema, que buscou retratar Avshalom deliberadamente de forma ambígua como seu filho-amante.30 Esta fixação por personagens “transgêneros”, como a própria Wallach (mãe-amante) e Avshalom (filho-amante), no presente poema, também é um tema recorrente em outros poemas de Wallach.31 5) No poema, a experiência física do aborto é abertamente aludida por meio da expressão: “a espada golpeia com um magneto o coração dela [liba – o coração da própria Wallach]” (linhas: 17-18). Tais palavras encontram a sua correspondência no texto da Bíblia Hebraica, que diz: “E [Joabe] tomou três dardos, e traspassou com eles o coração de Absalão” (2 Sm 18.14b). Enquanto que na Bíblia Hebraica, Absalão tem o seu coração traspassado por dardos, no 29 HATZAMRI, Abraham HATZAMRI, Shoshana More. Dicionário Português-Hebraico e Hebraico- Português, p.303. 30 De acordo com Lachman, “Absalão se torna um objeto erótico através do qual a oradora re-experimenta seu apetite sexual e seu trauma de infância da separação de seu pai, morto durante a Guerra de Independência de Israel”. (Cf. LACHMAN, Lilach. In: BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern Hebrew Poem Itself, p.275). 31 Veja, por exemplo: “Yonatan”, “Tu és Minha Namorada”, “Homem não Homem / Mulher não Mulher”, “O Mundo e a Filha da Floresta” etc. W
  • 20. W , h W z t s poema, Wallach troca de identidade com Avshalom, como que se solidarizando com ele, e é ela quem sofre o golpe de uma espada no seu próprio coração. Em outras palavras, Wallach descreve poeticamente a sua própria “morte” juntamente com o seu filho “que não foi autorizado” (linha: 10) a vir a este mundo. 6) No poema, o destino do filho não-nascido, Avshalom, é confuso. Em um primeiro momento, Wallach acredita que Avshalom irá se reencarnar e será o seu amante na próxima encarnação (linhas: 11-12). Mas, mais adiante, Wallach deixa de exibir esta certeza quanto à crença na reencarnação e demonstra desconhecer qual será o destino de Avshalom (linhas: 22-24). Quanto ao Absalão da Bíblia, o seu fim é ser lançado em uma cova em algum bosque (2 Sm 18.17), de maneira que se guarda “silêncio” sobre o seu paradeiro além-túmulo. Em geral, podemos concluir esta breve análise comparativa entre o Avshalom de Wallach e o Avshalom da Bíblia Hebraica, dizendo que Wallach claramente se utiliza do texto bíblico em seu poema, fazendo, todavia, uma releitura desconstrutivista do mesmo.32 Além disso, Wallach interpreta o Avshalom da Bíblia Hebraica a partir da sua própria realidade traumática pós- aborto. Dentro desta linguagem intrincada, complexa e multifacial, ora ela se apresenta como Davi, ora se apresenta como Avshalom e ora se apresenta como a própria árvore, o carvalho, que prendeu os cabelos de seu filho até o momento de sua morte. 32 Para Estrada, a estratégia geral da desconstrução é: “entender e fazer filosofia como sistema de um desejo, da inevitável violência do querer dizer, do ajuizar, de se apropriar das coisas por meio da linguagem, de prometer trazer o sentido à presença, mas nunca conseguir (...)”. (Cf. ESTRADA, Paulo Cesar Duque (org.). Desconstrução e Ética: ecos de Jacques Derrida. Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio / São Paulo, Loyola, 2004, p.95). W
  • 21. W , h W z t s CONCLUSÃO Bem, chegamos ao término do nosso trabalho. A partir do texto original hebraico transliterado e da sua respectiva tradução estudamos o poema wallachiano Avshalom primeiramente desde a sua análise literária, onde identificamos a sua estrutura quiásmica, a questão da identidade abordada no poema, bem como, a ruptura do fluxo literário, elementos estes presentes no seu corpus. Em segundo lugar, nos utilizamos da análise lexical, através da qual pudemos compreender alguns dos principais vocábulos empregados por Wallach em seu poema. Em terceiro lugar, por meio da análise ideológica, identificamos os principais temas e/ou conceitos presentes em Avshalom, os quais tivemos a oportunidade de comentar. Por fim, em quarto e último lugar, nos detivemos na análise comparativa entre o poema Avshalom e os textos bíblicos que tratam do seu homônimo. Neste item, vimos os principais pontos de contato e as principais diferenças entre ambos os textos. Depois de toda esta jornada, podemos chegar a algumas conclusões finais. Primeira, Avshalom é um poema que busca dessacralizar as personagens bíblicas, Davi e Absalão, bem como, busca dessacralizar também a própria linguagem utilizada no texto bíblico. Segunda, o poema é escrito e estruturado a partir da própria experiência vivida por Wallach. Embora Barthes tenha dito que “uma vez que um fato é recontado (...) a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a W
  • 22. W , h W z t s escrita começa”,33 contudo, não há como ler Avshalom de forma atemporal e neutra, desvinculando-o da experiência traumática do aborto vivida pela poetisa. Terceira, em Avshalom Wallach brinca com o significado de muitas palavras hebraicas, empregando, inclusive, muitos trocadilhos, valendo-se da característica polissêmica de muitos desses termos. As raízes de muitos vocábulos hebraicos possibilitam esse tipo de uso, o que Wallach faz habilmente e sem desperdiçar as oportunidades. Finalmente, a quarta e última conclusão a que pudemos chegar, diz respeito ao fato de que Avshalom aponta para a ruptura dos padrões convencionais em geral. Wallach rompe com os padrões conceituais, estilísticos, lingüísticos, sexuais e sagrados em seu texto, redimensionando-os subjetivamente e conferindo-lhes novos significados e valores. Aliás, a ruptura dos padrões convencionais parece ser uma obsessão constante em seus poemas. O prazer último e múltiplo de Yona Wallach, a cada linha escrita, parece ser justamente esse: romper com as normas, contestar os padrões, mudar os conceitos, e, por fim, recriá-los novamente à sua imagem e semelhança contraventora. 33 BARTHES, Roland. The Rustle of Language. [Translated by Richard Howard]. California, University of California Press, 1989, p.49. W
  • 23. W , h W z t s BIBLIOGRAFIA Livros Consultados: ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes, MARTINI, Carlo M. METZGER, Bruce M. (eds.). The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005. ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia. [Edição Revista e Corrigida]. Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. BARTHES, Roland. The Rustle of Language. [Translated by Richard Howard]. California, University of California Press, 1989. BEREZIN, Rifka. Dicionário Hebraico-Português. São Paulo, Edusp, 2003. BULLFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Rio de Janeiro, Ediouro, 1999. BURNSHAW, Stanley (ed.) et al. The Modern Hebrew Poem Itself. [New and Updated Edition]. Detroit, Wayne University Press, 2003. CARANDINA, Elisa. La Problematica Identitaria in Alcune Poesie Di Yona Wallach. XLIV, 3. (Articoli in PDF). [Analli Di Ca’ Foscari. Rivista Della Facoltà Di Lingue e Letterature Straniere Dell’ Università Ca’ Foscari Di Venezia]. Venezia, Università Ca’ Foscari, 2005. COHEN, Zafrira Lidovsky. “Loosen the Fetters of Thy Tongue, Woman”: The poetry and poetics of Yona Wallach. Cincinnati, The Hebrew Union College Press, 2003. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997. ELLIGER, K. RUDOLPH, W. (eds.). Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1997. ESTRADA, Paulo Cesar Duque (org.). Desconstrução e Ética: ecos de Jacques Derrida. Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio / São Paulo, Loyola, 2004. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 7ª ed. Curitiba, Ed. Positivo, 2008. W
  • 24. W , h W z t s HATZAMRI, Abraham HATZAMRI, Shoshana More. Dicionário Português- Hebraico e Hebraico-Português. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 2000. JACOBSON, David C. Does David Still Play Before You?: Israeli poetry and the Bible. Detroit, Wayne State University Press, 1997. KAUFMAN, Shirley, ROKEM, Galit Hasan HESS, Tamar S. Hebrew Feminist Poems From antiquity to the Present: a bilingual anthology. New York, The Feminist Press, 1999. PATZIA, Arthur G. PETROTTA, Anthony J. Dicionário de Estudos Bíblicos. [Trad. Pedro Wazen de Freitas]. São Paulo, Editora Vida, 2003. SHERBOK, Dan Cohn. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford, Oneworld Publications, 1998. SILVA, Severino Celestino. Analisando as Traduções Bíblicas: refletindo a essência da mensagem bíblica. João Pessoa, Idéia, 2002. ZISQUIT, Linda. (Trad.). Wild Light: selected poems of Yona Wallach. New York, The Sheep Meadow Press, 1997. Sites Consultados: Guide to the City of Qyriat Ono. (Arquivo em PDF em inglês). Disponível em: http://www.kono.org.il. Acesso em: 25/10/2010. LACHMAN, Lilach. A Review of Wild Light: Selected Poems of Yona Wallach. February 12, 2004. Disponível em: http://israel.poetryinternationalweb.org/piw_cms/cms/cms_module/index.php?ob j_id=3074. Acesso em: 24/10/2010. Yona Wallach. [Breve biografia]. Wikipedia – The Free Encyclopedia. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Yona_Wallach. Acesso em: 25/10/2010. Yona Wallach. Israel Poetry International Web. Disponível em: http://israel.poetryinternationalweb.org/piw_cms/cms/cms_module/index.php?ob j_id=3182. Acesso em: 24/10/2010. Yona Wallach. [Breve biografia]. Disponível em: http://www.ithl.org.il/author_info.asp?id=280. Acesso em: 24/10/2010. W
  • 25. W , h W z t s © É permitida a reprodução parcial deste artigo desde que citada a sua fonte. Citação Bibliográfica: VAILATTI, Carlos Augusto. Poesia e Bíblia Hebraica: Uma Análise do Poema “Avshalom” de Yona Wallach. [Artigo]. São Paulo, Publicação do Autor, 2011. s ' d / ^ /^ D d D d d ^ d ^ ^d^ D , : , , K K h ^ W h^W / ^ /^ ^ d ^d W