Comunicação elaborada pela jornalista Vanessa Rodrigues sobre a escritora brasileira Andrea del Fuego, prémio Saramago 2011, com o livro "Os Malaquias", para o Colóquio Tinha Paixão sobre Literaturas Brasileira e Africana, realizado nos Maus Hábitos, Porto, a 14 de Maio, 2012.
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Tinha paixão andreadel fuego-vanessarodrigues
1. - Andrea del Fuego
[.por Vanessa Rodrigues.]
vnrodrigues@gmail.com
Texto para o Colóquio Tinha Paixão de Literaturas Brasileira e Africana.
14 de Maio de 2012
O fogo é uma serpente, bruxuleante - labareda que lambe o ar - e perto do papel fica
ansioso, visceral, numa obsessão compulsiva, com transtorno pirotécnico, até que queima,
funde-se no papel, ziguezagueando o ar; deixa cheiro de ardência em toda a casa (assim
como há livros que nos queimam, ardem lentamente, ou nos atiçam chamas ao
pensamento); deixa esse odor, bronzeado pelo leve queimado, talvez um pouco de fuligem
no final, coisa mínima, e a acre fragrância de uma página que perdeu a vida.
Já experimentaram queimar uma folha de papel? Não vos deixa a ideia de poder?, de
recomeço, de impermanência, mas ao mesmo tempo de um alívio infinito, como se o
tempo meditasse por nós? No fim, neste rescaldo em que se mataram as fibras, em que se
carbonizou o hidrogénio da celulose, tudo o que resta é cinza...
E para podermos chegar à cinza da literatura (fragmentos do que resta que pode ser
recomeço, transformação) temos dois caminhos, ou pelo menos, aqueles que agora
vislumbro, nestes dias de Primavera a cheirar-nos: a vida ensina-nos a destrinçar a boa da
má literatura, será, então, a primeira impressão, para uma repulsa ou combustão
emocional, a PAIXÃO ;
… ou, por outro lado, como o escritor norte-americano Ray Bradbury sugeriu fazermos,
num romance distópico sobre o FOGO deitado à Literatura, para romper com a memória, a
História, e assim atestar como morta a continuidade do património intelectual das
civilizações, como se faz em dias de ditadura: deitamos fogo aos livros e deixamos que
ardam, em crescendo, até atingir a temperatura ideal para serem queimados, esse
Fahrenheit 451, queimando as palavras, a ardência e o peso delas, algumas mais
inflamáveis e inflamadas que outras, seguramente muitas combustíveis dos nossos
desentendimentos - porque entendimento é traduzir a linguagem de dentro de nós para o
mundo daqui – e o cérebro é muito mais rápido, criativo e imenso do que a nossa forma de
sintetizar a vida em milhões de palavras. E o infinito é apenas o começo.
2. Ando, pois – e isto agora em forma de uma penitente em confessionário – à procura do
FOGO: da produção simultânea de calor, luz, fumo e gases resultantes da combustão de
substâncias inflamáveis; lume. Podemos mesmo chamar-lhe uma “flor de obsessão”: ainda
não desabrochou. Como diria o escritor brasileiro Nelson Rodrigues, nessa mesma crónica
com este nome: Flor de Obssessão: “o que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias
fixas? Não há santo, herói, génio ou pulha sem ideias fixas. Só os imbecis não as têm.”
Ando, pois, fixada nisto: no Fogo na Literatura, no fogo na prosa, mas, essencialmente, no
FOGO das palavras dela: e finto a redundância do nome da escritora brasileira: Andrea del
Fuego. É um combustível, de rastilho fácil, incendiando a prosa com a lírica. E eu transei
com ela – com devido respeito: resta dizer, para sossegar espíritos mais inquietos aí na
plateia: não me queimei. Isto porque, sabemos, nós fazemos amor com o escritor sempre
que o folheamos, despimos. Vemos-lhe a anatomia. Dissecamos o corpo do livro à procura
do escritor. A anatomia dela é, pois, viscerosa, íntima, seca, curta, uma síntese inteligente
na economia das palavras, tem uma certa musicalidade:
Acompanhem-me, num excerto do livro “Os Malaquias”, como quem põe toros secos para
a fogueira:
“Júlia foi ao banheiro, nem cheiro de Dinorá. Trocou as fraldas do menino, que chamou
de António por causa do irmão do meio, o que brincava com ela. Tomou um café, foi até
ao guichê. Ainda não tinha ônibus directo para a Serra Morena, sendo lá um lugar de
passagem e sem rodoviária, a situação era a mesma de outros tempos. Teria que descer
na estrada e seguir a pé com António no braço.
Júlia amamentou o filho num canto sem tantos passageiros. Ajeitou a manta, a mala do
bebé, ficou na porta do banheiro. Via as mulheres entrando, indo e vindo, umas mais
apertadas, outras para fazer hora. Umas moças, outras senhoras, escolhia pelos olhos,
pedia a hora e ouvia a voz, se dava confiança. Eis que vinha a senhora de roxo, agora de
marron. Não reconheceu Júlia, mais madura e segura. Ficou atenta ao bebé, foi se
aproximanfo, Júlia beijou a testa de António, benzeu-se e tomou fôlego.
-A senhora pode segurar aqui pra eu ir no banheiro?
A de marron nem olhou para o rosto de Júlia, pegou António com jeito de quem
trabalhava em berçário.
-Pode ir sossegada.
3. Júlia entrou no banheiro, lavou as mãos sem olhar-se no espelho, secou-as nas laterais
da saia. O queixo tremeu, nunca possuiu o que era dela, não ia ser agora. Saiu do
banheiro, a mulher de marron não estava mais, nem António.
Foi ao guichê de braços soltos, uma bolsa nos ombros.
-Tem passagem para o mar?
– O mar é grande, minha senhora, que lugar do mar?
– Qualquer um.
– Tem pra Santos, onde tem porto.
– Vê uma
Ia voltar sozinha, como saiu, mesmo que o destino não fosse a Serra Morena. O ponto de
origem não foi a paisagem, mas o estrondo na casa dos pais. Disseram que no mar caem
mais raios, podia ser atingida por um e voltar a casa.”
...
Contudo, há uma confissão que tenho de vos fazer, nesta procura pelo Fogo, nesta
obsessão a que me propus para estar aqui hoje, até para dar textura ao tecido ardente.
Tudo começou por causa do computador. Liguei o Skype e, do outro lado do ecrã, aparece
um cabelão encaracolado, curto, volumoso, dois olhos esbugalhados e muito abertos, de
cores diferentes, prontos a ver mundo em vários ângulos; uma cara cheia, sorridente, de
fala-gargalhada, daquelas de quem tem humor até nos pontos finais, muito embora nas
vírgulas do discurso, além de rendidos, estamos já com a mão na barriga a achar que rir é
mesmo o melhor tonificador para manter uns abdominais efeito tanquinho.
Andrea del Fuego surgiu radiante, leve, de óculos de massa, pretos, a esconder-lhe os olhos
agudos e intensos. Em baixo, na época, o Francisco, o filho de agora dois meses, ainda dava
pontapés como forma de dizer que já existe no mundo, ainda que sob uma enorme bolsa
amniótica. Andrea graceja muito, faz humor brasileiro, daquele de pôr a vida a dançar ao
sabor das palavras, sacando o sol das nuvens, como se realmente a tristeza além de sem
fim, não tivesse sequer início.
Vislumbrei-lhe o quarto criativo, aquele onde surta, tem “piripaques” de criação... E,
senhoras e senhoras era uma parede a cru, onde ela faz arder a prosa, onde incendeia, onde
faz o suplício da fogueira, a dança livre das palavras que se roçam friccionam, até parirem
sentidos.
4. Exorcista, pedicure e madame. Estas, as três palavras que definem no twitter a
escritora brasileira Andréa del Fuego de 37 anos. E só para que conste: ela é fogo de signo:
Carneiro, ou Áries no Brasil, mas isto não interessa nada, apenas mais lenha para esta
imensa lareira à nossa volta.
Andrea Fátima dos Santos nasceu em São Paulo, com raízes de Minas Gerais, embora ela
admita que tem mais de portuguesa do que pensava. A prémio Saramago 2011, com o livro
“Os Malaquias” é autora da trilogia de contos "Minto enquanto posso", aliás primeiro filho
literário, "Nego tudo" e "Engano seu". Escreveu também os juvenis "Sociedade da Caveira
de Cristal" e "Quase caio". Integra, entre outras, as antologias "Os cem menores contos
brasileiros do século" e "30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira". Está
hoje aqui connosco porque agarrou o pulso à nova geração de literatura brasileira e, entre
nós, está no sétimo lugar de livros mais vendidos a nível nacional pela editora Bertrand.
No Brasil é editada pela Língua Geral. Cá pelo Círculo de Leitores. E anda há 4 anos a
estudar Filosofia na Faculdade de São Paulo – uma forma de estruturar o pensamento e a
vida. É uma mulher de agarrar e ficar. É casada há 20 anos. Vive da Literatura e anda a
podar um último romance escrito sob o mecenato de uma bolsa literária da Petrobrás.
O resto vocês podem fazer Google e não precisam de mim para nada. Deixem-me por isso
destravar a bossa nova que tenho na Língua. E, sim, o meu português é afectado, tem
alguma tropicalidade já fajuta– 5 anos de Brasil haveria de deixar marca profunda nesta
vossa serva, e eu gosto. Por isso, assumindo o pretensiosismo de que já fui vizinha de
Andrea del Fuego, uma espécie de conterrânea, também eu quis perceber, como é que uma
autora como Andrea, natural do interior de São Paulo, a viver na alucinação urbana de
uma cidade como São Paulo, conseguiu ter a serenidade para escrever um livro tão
telúrico, com os pés enterrados na terra do interior de Minas Gerais.
Foi um parto, lento, de sete anos, com papéis quase queimados pelo escuro das gavetas, a
asfixia do mofo e a pior das mortes lentas e bifásica de um afeto: a indiferença e o
esquecimento. Ah e esconder até não enxergar mesmo. Ela desistiu várias vezes. Deixou os
gatafunhos perdidos em pastas de computador. Ficaram lá, jogados na incerteza. Talvez
um dia ela pegasse neles, de novo. Pegou, aprendeu e sofreu com ele. Foi o livro que,
segundo diz, a ensinou a escrever e a perceber que a Literatura não se ensina, aquela que é
a marca, a voz de alguém, é um caminho solitário, autista, perturbado, deserto, ermo,
asceta, onde ardemos sozinhos e chegamos a ter muita febre. Não há dicas: é um amar e
5. desamar, uma despedida, uma ruptura. E foi o livro de um sofrimento profundo, porque
escrever não tem nada de gostoso. É uma dor, um derramamento, uma disciplina mental,
e, sobretudo, uma forma de criar problemas para os personagens, porque eles têm de
superar o criador. Ser melhor do que ele. Desafiá-lo a ser melhor e a enfrentar medos,
limitações. Isto cansa, extenua qualquer um, uma espécie de meditação pela qual Andrea
passou. É por isso que agora está em fase de refluxo. Louca para começar, realmente, um
novo romance, porque a fase de podar capítulos é uma forma de sair pela madrugada e
passar de cabaret em cabaret, à procura do fogo da vida.
O prémio Saramago, o ano passado, além do evidente reconhecimento serviu, confidencia,
para lhe dar legitimidade pessoal de um caminho certo, depois, graceja, para provar à
família que, afinal, ela não estava a ficar louca quando se isolava no canto da casa, com
aquela parede crua, de há pouco, escrevendo umas coisas. Provou que afinal ela estava,
pois, a criar.
Mas para lá chegar, ao prémio, foi um longo caminho. Lentos passos, muita solidão e o
efeito ermita que o processo da escrita exige, já vimos, sobretudo pela loucura de Sampa.
São Paulo é uma esquizofrénica feliz: um plano sequência que nos improvisa ainda mais a
vida. Del Fuego, enquanto falávamos, citou, por isso, o escritor brasileiro: Marcelino
Freire: “Eu não escrevo sobre violência eu escrevo sob violência.
Encafuou-se, por isso, numa casa em Ilhabela para reescrever “Os Malaquias” (sei que
anseiam que lhes conte um pedaço da história, sejam pacientes, já lá vamos), ficou
quietinha, isolou-se por 40 dias, sem dizer uma palavra, e, segundo conta, conseguiu uma
concentração vertical (com a mente, claro):
faz-se assim: ela apanhou um elevador e foi descendo, descendo, descendo, sem
interrupções – o telefone não toca, não há nenhuma chamado para nada, há uma certa
obsessão que se esquece, mesmo, os chamados do corpo: uma fome e sede imensas. Lutou,
porém, contra os borrachudos, esses mosquitinhos quase imperceptíveis que são
residentes nessa maravilhosa e paradisíaca ilha a norte de São Paulo, e que se encarregam
de chupar pequenas quantidades de sangue da pele, deixando picadas impertinente, que
empolam, de alergia, deixando o corpo num FOGO quase insustentável. “Os Malaquias”
foram reescritos e revistos numa cama com mosquiteiro à volta.
6. Nesta obra premiada, cujo primeiro nome foi “Serra Morena” há um estilo apurado,
cuidado, com descrições que se embalam numa narrativa formal, mas ao mesmo tempo
que deixa essa voz, essa marca da Andrea: brincar com as palavras, bafejando-as de poesia,
criando imagens, adornando a prosa com metáforas, sinestésica – criando esses universos
sensoriais de aromas, cheiros, paladares, cores, onomatopeias (posso jurar que ouço o
ranger da porta, o barco na água, os pensamentos dos personagens, como mastiga um e
caminha outro, o cheiro de café, a terra húmida.) Há luz, muita luz. Parece que é sempre
dia. E cheira a ruralidade. Cheira a terra vermelha, do ferro que abunda em Minas Gerais.
Cheira a clorofila, a vacas, a porcos, aos panos a secar ao sol, cheira a água fresca e flores
do campo. Estamos pois no vale de Serra Morena.
E eis os irmãos Malaquias, lançados ao acaso da vida, aos caminhos díspares e
decisórios que a vida nos presenteia a partir deste e não daquele
acontecimento.
“Todos se recolheram, a noite ia grossa, o vento afrouxava as janelas. As telhas
vibravam, num mínimo gesto a tempestade nasceria dentro da casa. Os pais dormiam
em um quarto. Nico, Júlia e António em outro, na mesma cama, aninhados em forma de
embrião.
Um gato esticou as pernas, as paredes se retesaram. A pressão do ar achatou os corpos
contra o colchão, a casa inteira se acendeu e apagou, uma lâmpada no meio do vale. O
trovão soou comprido até alcançar o lado oposto da serra. Debaixo da construção a
terra, de carga negativa, recebeu o raio positivo de uma nuvem vertical. As cargas
invisíveis se encontraram na casa dos Malaquias.
O coração do casal fazia a sístole, momento em que a aorta se fecha. Com a via
contraída, a descarga não pôde atravessá-los e aterrar-se. Na passagem do raio, pai e
mãe inspiraram, o músculo cardíaco recebeu o abalo sem escoamento. O clarão aqueceu
o sangue a níveis solares e pôs-se a queimar toda a árvore circulatória. Um incêndio
interno que fez o coração, cavalo que corre por si, terminar a corrida em Donana e
Adolfo.
Nas crianças, nos três, o coração fazia a diástole, a via expressa estava aberta. O vaso
dilatado não perturbou o curso da eletricidade e o raio seguiu pelo funil da aorta. Sem
afetar o órgão, os três tiveram queimaduras ínfimas, imperceptíveis.”
7. Depois de perderem os pais, fulminados por uma espécie de fogo da natureza, um raio,
os irmãos separam-se. O mais velho Nico, espécie de caseiro de um dono de fazenda; o
irmão do meio, o anão, inspirado no avô de Andrea del Fuego, é rejeitado para adopção.
A irmã, criada por freiras num orfanato, é uma nómada, migrante. Mas é preciso
estarmos desligados do real para vivermos as figuras de estilo como realidade, ou, de
certa forma, mergulharmos numa espécie de Andrea no País das Maravilhas. O
fantástico é roupagem que, às vezes, veste o romance, uma prosa que começa, pois, com
um facto familiar pouco falado em casa. Uma espécie de silêncio que ganhou uma
geremia: ou melhor um fogo nos dedos e na inquietação. Ela partiu desse silêncio, a
partir da orfandade do avô Nico.
O raio aconteceu, também. É real!
O resto é vertigem e tempo, alma e diabo no corpo, inquietações e um total líquido
amniótico, sempre pronto a rebentar para parir algo. Quem folheia “Os Malaquias” percebe
que há um lago que se liquefaz, que escorre do livro, uma cachoeira, neste ritmo de
narrativa que segue um fluxo. Literalmente, dentro da diegese do livro, há um vale que será
inundado por um rio. E nós chapinhamos nessas águas. Engolfamo-nos nela, capítulo-a-
capítulo, que são autênticos poemas isolados.
E que verbo seria, caso Andrea fosse um? Posso arriscar? “Queimar: com as palavras”.
Para um autor estreante naquele que é considerada a Literatura nobre, Andreia queima
com as palavras pois tem um fôlego inteligente, pensado, estruturado, mas ao mesmo
tempo leve e erudito, sem ser hermético. Talvez seja porque a Filosofia, admite, a tenha
ensinado a pensar, a desmontar as palavras, a tecer uma lógica na teia invisível de uma
trama literária. E isso porque os personagens têm de impor desafio ao escritor, fazer-lhe a
vida negra. A Filosofia é um divisor de águas, de grande influência no controlo do texto:
racionalizar para criar uma organização, dividir o problema em partes: o discurso do
método, afirma, contundente, serve muito para a Literatura.
Mas, meus caros, continuo à procura do FOGO. E sei, de fonte segura, que Andrea del
Fuego usou e abusou da Literatura. Estreou-se em 2004 com esse “Minto Enquanto
Posso”, de que agora não gosta muito (o complexo que acomete a maioria dos escritores
sobre as obras anteriores), justificando-o pela pressa de querer publicar, inerente à cidade
onde vive, São Paulo, e onde as coisas têm de acontecer rápido demais.
8. Andrea estreou-se nos contos eróticos. Um erótico a roçar, o realismo mágico, imberbe,
ingénuo. Começou a fazer crónicas para a rádio, dando conselhos sobre sexo, drogas (mas
só afectivamente pesadas, como o Amor e a Paixão) e transformou, então o nome de
Fátima dos Santos, casto, imaculado, puro, quase virginal, para Del Fuego. Era toda uma
pasión latina a latejar. O vermelho que pulsa vestia-se de lingerie para pôr as ligas e as
meias rendadas na prosa. Estudou publicidade, fez produção para revistas, bastidores de
cinema e manteve um blogue durante algum tempo, onde denunciou um outro incêndio
interno: a fotografia. Queimou por isso com a luz, escreveu com ela imagens e apercebeu-
se que a fotografia é irmã gémea do micro-conto: o momento congelado, onde ficcionamos
o antes, acontecimento, e o que poderá ser depois. Uma espécie de beijo de Judas, uma
ontologia do tempo em suspenso, a repetição do infinito congelada, a repetição mecânica
do que jamais se poderá repetir existencialmente diria o francês Roland Barthes. Um
particular absoluto, a Ocasião, o Encontro, o vazio, uma explosão congelada de uma
metamorfose. O micro-conto para del Fuego é esta relação curta com o tempo, a ficção e o
real imaginado. Outra espécie de Fogo na Literatura. E agora pergunto: já experimentaram
queimar uma fotografia? Rasgar, talvez, mas deitar fogo??? Não vos dá a sensação de
apagar uma memória com o fogo? Talvez seja isto: agarrar o fogo como transformador,
como a química do pensamento, como química digestiva, como química mutável. E talvez,
então, na procura do Fogo, de qualquer Fogo, e neste especificamente, literário, como o de
Andrea del Fuego, que há nela uma voz peculiar, um laivo de transformação latejante,
talvez seja este, então, o Fahrenheit 451 que a Literatura faz em nós: o de transformar e nos
tornar obsessivos por palavras que se estendem a nós, que nos queima, e nos fazem arder,
febris pela magia que a paixão literária tem.