SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 40
Downloaden Sie, um offline zu lesen
Vanessa Aparecida Ricardo Anastacio




   UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
         FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
      LETRAS – LICENCIATURA EM PORTUGUÊS




A Construção Paródica – Bíblica na obra: “A Paixão
          Segundo GH” de Clarice Lispector




                  Piracicaba – SP
                     Maio 2011
Vanessa Aparecida Ricardo Anastacio




   UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
         FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
      LETRAS – LICENCIATURA EM PORTUGUÊS




A Construção Paródica – Bíblica na obra: “A Paixão
          Segundo GH” de Clarice Lispector




                              Projeto apresentado ao Curso de
                              Licenciatura em Português, como
                              requisito parcial para obtenção da
                              Licenciatura     em       Letras    -
                              Português,     sob    orientação   da
                              Professora     Josiane    Maria    de
                              Souza.




                  PIRACICABA - SP
                      Maio 2011
AGRADECIMENTOS




       Agradeço a Deus, meus familiares, amigos e entes queridos que, ainda
muitos sem saber, me ajudaram a caminhar passo a passo e alcançar a este meu
objetivo que a principio era tão distante.
       Aos professores por tudo que me foi ensinado e, a minha orientadora por
fazer caminho comigo.
RESUMO


Este trabalho é um estudo sobre o papel da paródia na obra de Lispector “A
Paixão Segundo GH” (1964), sobre como se constrói a reinterpretação da história
bíblica de maneira contundente e questionadora a Paixão de Cristo aqui é
reconstruída em novo sentido e a paródica se dá, sobretudo, a partir do
reaproveitamento de temas da Paixão de Cristo e da Criação, os quais são
retiradas do contexto religioso cristão e colocadas numa situação cotidiana, uma
mulher em um apartamento com uma barata.


Palavras chaves: paixão, reconstrução, paródica, barata, bíblia.
4
5

   SUMÁRIO




INTRODUÇÃO...................................................................................................... 06


CAOS .................................................................................................................... 10


PROVAÇÃO ......................................................................................................... 12


PECADO ............................................................................................................... 16


DANAÇÃO ............................................................................................................ 21


PAIXÃO OU O GOLPE DA GRAÇA .................................................................... 23


CONCLUSÃO ....................................................................................................... 34


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 39
6

    INTRODUÇÃO


       A paixão segundo G.H. é construída através de um enredo corriqueiro,
banal. Após mandar embora a empregada, G.H resolve fazer uma faxina no quarto
da serviçal. Ao começar a limpeza, se depara com uma barata. Tomada pelo susto
que, manifesta o grito, o nojo, GH esmaga a barata contra a porta do armário.
       A partir desse momento a personagem entrará no fluxo de perda/busca da
identidade pessoal, posto que numa espécie bárbara de “rito”, decide provar da
gosma da barata morta. Ao provar desta gosma, G.H opera-se em uma revelação.
       A barata repentina em meio à rotina de G.H, entre a casa, os filhos lançou-a
para um universo fora do humano, onde a personagem inicia um longo processo
de perda/busca da identidade.
       Esse anseio de encontrar os restos do homem quando a linguagem se
esgota é o que move a literatura de Clarice Lispector.
       Esta literatura, portanto, não é de fácil interpretação, acerca disso Clarice
mesmo afirma:

                         A obra clariceana não é de fácil assimilação, pois exige demais do leitor,
                         descentrando-o constantemente, questionando-o, abalando seu sistema de
                         referência... incluindo o de leitura. Ou seja, diante de sua obra, os modelos
                         tradicionais de interpretação de texto parecem falhos, como se o tempo todo
                         algo ficasse de fora ¾ e fica. Clarice já havia percebido isso em relação à sua
                         obra e em várias ocasiões comentou o fato, como podemos conferir no trecho
                         a seguir:
                         “Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero
                         não me pega mais’”(Lispector, 1973, p.14).¹


       Muito já fora produzido a cerca das escritas de Clarice Lispector, inclusive
de sua obra “A Paixão Segundo GH” (1964).
Assim como toda a escrita de caráter introspectivo de Clarice Lispector, “A paixão
Segundo GH” (1964) é o relato de uma experiência pessoal onde a personagem
G.H passa por um processo de perda/busca de sua identidade pessoal.
       O que se pretende neste trabalho é mostrar como a autora constrói este
processo de perda/busca da identidade da personagem “G.H”, através da 1

1
 - KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector: do biográfico ao literário. São Paulo:
EDUC/Limiar.
7

reconstrução paródica da história de Cristo, da Criação e da Paixão. Durante toda
a construção da obra observamos transposições, citações ou alusões aos textos
bíblicos, desde ao título até o “caminho” de identidade pessoal que percorre G.H.
São variadas as possibilidades de compreensão abertas pelo texto literário. O
estudo do tema levará em conta apresentar e explicar que a paródia - intertextual
que constrói Clarice Lispector “nada tem de cômico, ao contrario, apresenta um
forte tom irônico e questionador”2, a experiência de perda/busca da identidade
pessoal que passa a narradora-personagem, os momentos de caos, provação,
redenção até a construção final: a Paixão.
      Discutir conceitualmente uma obra de arte implica tomá-la numa certa
perspectiva necessariamente, em certo sentido, destruí-la enquanto obra. Uma
das únicas formas de falar de modo artístico de arte é compondo uma outra obra
que dialogue com ela, comparando -as.
      O tema escolhido justifica-se na apresentação da reconstrução paródica -
intertextual de Clarice Lispector que, utiliza fragmentos modificados dos textos
bíblicos, rompe com a tradição, com o enredo e constrói sua obra através de uma
desconstrução anterior, por sobreposição, na transposição de textos tanto do
Antigo quanto do Novo testamento no uso da inclusão dos dualismos e paradoxos,
nas alusões implícitas ou explicitas.
O critico Benedito Nunes em O Drama da Linguagem, Uma Leitura de Clarice
Lispector (1995), dedica uma parte à análise do romance “A paixão Segundo G.H”,
onde nos conta que a personagem G.H:


                      (...) fascinada pela barata que simultaneamente a repugna e atrai,
                      experimenta inicialmente uma náusea seca, que é seguida por um êxtase
                      selvagem em que ela se vê sendo vista, esvaziada de sua vida pessoal .
                      No estado de êxtase, as oposições inconciliáveis da existência se
                      confundem diante de G.H, numa visão abissal que reduz as diferenças e
                      tenta supri-las.
                      Nesta perspectiva a personagem passa por um processo de conversão
                      radical, em que a experiência do sacrifício da identidade pessoal a leva
                      à dolorosa sabedoria da renuncia. Esta sabedoria é paradoxal, pois a
                      perda de G.H se transforma em ganho: através da negação de si
                      mesma, ela atinge a realidade autentica. A descida em direção a esta
                      existência impessoal constitui uma verdadeira ascese, em que G.H se
                      desliga do mundo e experimenta a perda do eu.
8

                         Ora, as correntes místicas do Oriente e do Ocidente convergem na visão
                         do ascetismo
                         como uma prática negativa de pregação e desnudamento da alma. O
                         ascetismo é um método que visa ao sacrifício do eu. O processo só se
                         completa quando o individuo supera suas limitações egoísticas que o
                         separam da totalidade do real. Neste sentido, a purgação ascética
                         constituiria uma antecipação da morte.
                         A fim de ultimar a experiência de perda da individualidade, a personagem
                         ingere a massa branca da barata esmagada, tentando assumir redimir- se
                         na e com a própria coisa que participa: " é uma espécie de comunhão
                         negra, sacrílega e primitivista, que ritualiza o sacrifício consumado". Este
                         gesto de extremo desprezo à própria pessoa, contudo, gera um acesso
                         incoercível de nojo, tal como no começo. E G.H, que saíra de seu mundo
                         pela repugnância, a ele retorna também pela repugnância.
                         Mas a personagem que retorna ao mundo não é mais a mesma que
                         dele saíra. A trajetória seguida por G.H acompanha, muito de perto, a via
                         mística, reproduzindo as suas limagens típicas do deslocamento espacial
                         (saída/entrada), do deserto (aridez, secura, solidão, silêncio) e da
                         contraditória visão do inefável (realidade primária, núcleo, nada, glória). ²
                         ( Grifos meus)


Ainda de acordo com que expõe Benedito Nunes, podemos distinguir duas pautas
no discurso de A Paixão Segundo G.H. A primeira delas diz respeito ao tema da
arte e da linguagem; a outra, transversal a anterior, possui caráter paleológico e
contém a prática meditativa sobre Deus e a existência. Esta última corresponde à
via mística e, a primeira indica o movimento da narrativa em direção ao
inexpressivo, figurado pela realidade nua, vazia e silenciosa da vida divida 4. O
que, conseqüentemente gera um processo discursivo peculiar, envolvendo o
sujeito da narrativa e a própria narrativa, que Benedito Nunes descreve assim:


                         Na trajetória da ascese, que levaria do pessoal ao impessoal, o eu
                         sacrificado da personagem, como sujeito de uma experiência de natureza
                         mística, é o mesmo eu como sujeito emissor da narração, uma vez que
                         nesse romance em primeira pessoa o narrador e a personagem formam
                         uma só e mesma instância. O sujeito que narra é o sujeito que se
                         desagrega. E à medida que narra a sua desagregação, e se desagrega
                         enquanto narra, o sentido de sua narrativa vai se tornando fugidio. A
                         metamorfose de G.H, que ela própria relata, é concomitantemente a
                         metamorfose da narrativa. A primeira metamorfose, no rumo da
                         experiência mística, se dá como inexpressivo impõe, dá-se como
                         perda de identidade da própria narrativa. Ambas se produzem como um
                         esvaziamento - esvaziamento da alma e da narrativa: a alma desapossada
                         do eu e a narrativa, de seu objeto ³. (Grifos meus)2

2
 - Olga de Sá, “Paródia e Metafísica”. Lispector, Clarice. A paixão Segundo GH. Scipione, 1997.
        3 - Nunes, Benedito. O Drama da Linguagem - Uma Leitura de Clarice Lispector. 2 ed. São
Paulo: Ed. Ática S.A, 1995. Série Temas, Vol 12, p. 75.
9

Já fora dito que o objetivo desse trabalho é examinar a reconstrução da história
Bíblica da Paixão de Cristo através da narrativa cotidiana da obra de Lispector, o
percurso dessa reconstrução a ser apresentado no trabalho se dará pelos
seguintes processos: caos, resignação e provação, a redenção e o caminho final
onde se dá o encontro da identidade através da busca: a Paixão.
10

         CAOS


         O caos se instaura na narrativa, através da dificuldade do narrador em
proferir um discurso sobre a experiência vivida: “Só posso compreender o que me
aconteceu, mas só me aconteceu o que eu compreendo - que sei do resto? O
resto não existiu (Lispector. 1998. p.10)”
Inicialmente com a incompreensão de G.H a respeito de sua própria vida:


                         Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu,
                         pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria
                         chamar desorganização (Lispector. 1998. p.07)
                         (...) Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha
                         formação humana (...) E - e se a realidade é mesmo que nada existiu?! (...)
                         Quem sabe nada me aconteceu? Só posso compreender o que me
                         acontece mas só acontece o que eu compreendo - que sei do resto? O
                         resto não existiu (...) (PSGH p.10) 4


    Ao entrar no quarto da empregada o susto de G.H com o aparecimento da barata,
simultaneamente a “desorganização das idéias”, o questionamento de sua
identidade, o caos: a desordem dos pensamentos de G.H que, sabe que algo lhe
acontecerá depois do susto, no entanto ainda não é capaz de compreender.
A respeito dessa experiência da qual G.H não entende e não quer explicação, que
busca sem sucesso o recurso da linguagem para “dar forma” a experiência:


                         Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é
                         vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não.
                         Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade.
                         Entender é uma criação, meu único modo. (PSGH. P.17 )


A paródia inicial do caos é construída através da criação de um plano narrativo
embasado. Na incompreensão, da entrega da personagem G.H à confusão a
desordem e a impossibilidade de transformar essa experiência, de transmiti-la pra
o plano da linguagem, o que nos permite aludir aos caos cristão narrado no livro
de Gênesis , o vazio que antecede a criação:4


4
 - Lispector, Clarice, A paixão Segundo GH. Todas as referências a essa obra a serem citadas daqui a
diante serão feitas pela abreviação PSGH.
11

                     No principio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia;
                     as trevas cobriam       o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as
                     águas.
                     Deus disse: “ Que exista a luz!” (...)
                     Deus disse:” Que exista um firmamento no meio das águas para separar
                     águas de águas!” (Gênesis 1: 1-3; 6)


A construção de toda a criação do mundo é, portanto, através das palavras
proferidas por Deus, ou seja, a partir da linguagem, a mesma idéia é sustentada
no livro de João:


                     “No principio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
                     Deus. Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada do que foi feito
                     se fez. (João 1: 1-3)


      É nítida a narrativa de incompreensão, de entrega da personagem à
desordem. A impossibilidade de transformar a experiência vivida em linguagem,
nos remetendo a idéia caótica de um mundo primitivo, sem formas nem
linguagem, também ao que se narra em Gênesis:
      “E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o
Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz. E
houve luz. (Gen 1: 2-3)
A narrativa parte então do principio do Caos para a tentativa de um discurso que
possa, ao menos em parte, dar conta do vivido, a esse discurso será dado o nome
de Provação, onde a personagem passará pelo sofrimento ao provar da barata
morta. A narrativa nos remete ironicamente o sentido Cristão de agonia que é
justamente imposto para nos testar, como seres humanos e, em G.H esta
provação é imposta pela barata.
12

      PROVAÇÃO


                            “Provação. Agora entendo o que é provação. Provação: significa
                     que a vida está me provando. Mas provação: significa que eu também
                     estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais
                     insaciável”. (PSGH p.125)


      De acordo com a liturgia Cristã, as provas são instrumentos utilizados por
Deus para revelar nosso verdadeiro caráter, nesse sentido as provações são uma
maneira de sofrimento, na qual Deus nos testa nos experimenta nos conhece.
      Ainda na mesma perspectiva cristã, são muitas as provas a que podemos
ser submetidos por Deus, dentre elas estão, as doenças, as perseguições e as
tentações.
      No livre de Gênesis, que narra a criação do mundo, temos a narração da
primeira provação imposta ao homem: a tentação do paraíso, Deus coloca no
jardim do Éden o primeiro homem e a primeira mulher, para gozo do paraíso,
restringindo apenas a que comam o fruto da árvore da sabedoria. E, é justamente
sobre essa tentação que se transpõe à narrativa de Lispector.
      Em G.H o pecado se constitui a partir da idéia do pecado original contida
em Gênesis que em síntese é o desejo de provar pelo gosto de algo proibido.
      G.H passa pela experiência da provação em dois sentidos, a primeira, o ato
de provar, de sentir o gosto da “gosma da barata” e a segunda de experimentar o
sofrimento, de dar prova e testemunho dessa realidade.
      Temos uma retomada ao livro de Gênesis, onde a idéia da provação é
representada através da prova do “sabor proibido”. A massa branca da barata é,
pois, uma alusão a Adão e Eva que viviam no paraíso, antes de provarem do fruto
da arvore do conhecimento, cometendo o pecado original. Assim como na
escritura, na vida da narradora, ao provar do fruto então proibido há a revelação
de uma nova verdade. Em Gênesis também, a referência à serpente, na qual a
barata se transforma.
      Tocar na barata é, portanto, tocar no impuro, segundo o que a escritura nos
diz em Levitico 11: a lei que ensina a separar o impuro do puro, os animais
13

Deuteronômio 14, 11-19 das aves impuras, Mateus 15, 1-11 da desobediência dos
mandamentos de Deus. A narradora acaba, portanto, de “entrar no inferno da
matéria viva, cair na danação de [sua] alma” para fugir da rotina supérflua até
então estabelecida do ser organizado e comungar com o nada, tocando, em ato
sacrílego, no imundo.
                             Para construir uma alma possível uma alma cuja cabeça não
                     devore a própria cauda a lei manda que só se fique com o que é
                     disfarçadamente vivo. E a lei manda que, quem comer do imundo, que o
                     coma sem saber. Pois quem comer do imundo sabendo que é imundo
                     também saberá que o imundo não é imundo. É isso?
                             “E tudo o que anda de rastos e tem asas será impuro, e não se
                      comerá”. (PSGH p. 69).
                             A barata ser impuro, “ser empoeirado”, “um bicho de cisterna seca”


      A barata como já fora dito, é a transfiguração da serpente, o animal que
impede G.H a realizar o ato proibido, a prova do interdito, do imundo através de
sua sedução: “A barata que enchia o quarto de vibração enfim aberta, as
vibrações de seus guizos de cascavel no deserto” (PSGH. p.55)
      É que assim como a serpente do paraíso fizera com Eva, o inseto seduz
G.H. que provará do fruto proibido: o de dentro da mesma barata.
      Assim como a serpente a barata é pura sedução. “Cílios, cílios
pestanejando que chamam. [...] E neste deserto de grandes seduções, as
criaturas: eu e a barata viva “(PSGH. p.56)”.
      “A verdade é o que é [...] assim, pois entende? Por que teria eu medo de
comer o bem e o mal? (PSGH.p.140) Se eles existem é porque é isto que existe”.
E depois dessa justificativa, interpela seu interlocutor: “Lembra-te que eu comi do
fruto proibido. O conhecimento do bem e do mal e a vida”. G.H faz clara alusão a
passagem: “A árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do
bem e do mal” (Gn, 2,9) (Grifos meus)
      Vai e volta percorrendo, em sua visão infinita, cenários bíblicos: “Olhando-a,
eu via a vastidão do deserto da Líbia, nas proximidades de Elschele. [...] eu já era
capaz de ver ao longe Damasco, a cidade mais velha da terra” (Lispector. 1998.
p.109).
      “Vejo uma noite na Galiléia. A noite na Galiléia é como se no escuro o
tamanho do deserto andasse” (PSGH p. 109).
14

      Além das oposições que se constroem gradativamente na narrativa, a partir
das decisões que são tomadas passo a passo pela protagonista.
      Perder/ Achar Mt 10,39: “Quem procura conservar a própria vida, vai perdê-
la. E quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”
      Perder-se/encontrar-se; ganhar/perder:


                             “É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei
                     depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a
                     mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e
                     nela me engastar [...]”.
                             “No entanto na infância as descobertas terão sido como num
                     laboratório onde se acha o que se achar? [...] Mas como adulto terei a
                     coragem infantil de me perder? Perder-se significa ir achando e nem saber
                     o que fazer do que se for achando”.
                             “Todo momento de achar é um perder–se a si próprio”.
                             “Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei”. (PSGH. p.17)


      João 12,25: “Quem tem apego à sua vida vai perdê-la; quem despreza a
sua vida neste mundo, vai conservá-la para a vida eterna”.
      Vida/Morte:
                              “[...] por um átimo experimentei a vivificadora morte. A fina morte
                     que me fez manusear o proibido tecido da vida. É proibido dizer o nome da
                     vida. E eu quase o disse. Quase não me pude desembaraçar de seu
                     tecido, o que seria a destruição dentro de mim de minha época”. (PSGH.
                     p.11-12)


      Mateus 16,25: “Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas quem
perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”.
      E migra, frequentemente, do deserto ao dilúvio, de um a outro oposto: “E
então vai acontecer numa rocha nua e seca do deserto da Líbia, vai acontecer o
amor de duas baratas. [...] Sobre a rocha, cujo dilúvio há milênios já secou, duas
baratas secas” (PSGH p. 109).
      Nessa paródia à provação cristã, encontramos também uma transfiguração
do deserto:
                     “E na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu
                     estava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava
                     como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E
                     ia para essa loucura promissora”. (PSGH.p.56)
15

      O deserto é uma das categorias bíblicas mais férteis: local de rituais de
passagem traz a ambivalência de separação/ proximidade de Deus, os judeus, por
exemplo, denominam o deserto como ambivalente: posto que, se por um lado ele
é experiência de um tempo rude, árido, por outro é tempo em que se experimenta
a maior intimidade com Deus, a cerca disso se remetem no Antigo Testamento,
principalmente os livros de Êxodo e Deuteronômio. Já no Novo Testamento outro
significado atribuído ao deserto está no livro de Mateus, onde é narrada a tentação
de Cristo por Satanás.
      O sofrimento de GH, sua provação, é ter que se deparar com a miséria,
com a pobreza, com o sujo, com o feio, enfim com o contrário ao seu mundo
puramente estético, comum. A comunhão com a barata é portanto, a revelação de
uma nova verdade, um encontro com o mundo que ela sempre quisera ignorar.
GH percebe que tanto ela quanto, Janair e a barata são feitas do “mesmo pó” e só
por mera criação humana é que se crêem distintas.
      A barata é o objeto transposto da figura do Bom Pastor, que é o caminho
para a Vida: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo; entrará e sairá
e encontrará pastagem” (Jo 10, 9). Mt 11,12: “[...] o Reino dos céus sofre violência
dos que querem entrar e violentos se apoderam dele”.Que, em G.H., ecoará:
“Tenho que me violentar para precisar mais” (PSGH, 97).
      “A entrada para este quarto só tinha uma passagem, a estreita: pela barata”
(PSGH, p. 39).
      Transposição do texto bíblico: “Entrai pela porta estreita, porque larga é a
porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição. E muitos são os que entram
por ele. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho que conduz à Vida. E
poucos são os que o encontram” (Mt 7, 13-14).
      G.H passa pela provação de aceitar e reconhecer a vida em todas as
formas, de passar pelo sofrimento da despersonalização e o reconhecimento de
uma condição de vida totalmente avessa à sua concepção de mundo organizado.
É através dessa provação que, G.H revela seu verdadeiro caráter humano, o que
a levará a cometer o pecado.
16



      PECADO


                     Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu
                     depois não pudesse talvez mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a
                     partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos
                     meus próprios olhos nem aos olhos do que é Deus.(PSGH p.77)


      Historicamente a noção de pecado está associada a contextos religiosos,
correspondendo a qualquer ato de desobediência à vontade de Deus, toda ação,
palavra ou cobiça cometida contra as leis divinas. Na perspectiva judaico-cristã, o
pecado é uma violação de um mandamento divino, que não está necessariamente
ligada a uma falta de moral.
      Para os cristãos, o pecado revela nossa natureza fraca, nossa inclinação
para o Mal.
      G.H comete o pecado através do ritual, da manducação da gosma da
barata (isto é, provar do impuro) e consequentemente, prova da experiência de
transcendência para o mundo então, inumano.
      Após prender a barata sob o guarda-roupa para matá-la, vive uma
experiência de aversão e sedução, náusea e fascínio, são esses sentimentos que
a farão abandonar sua vida cotidiana e reverter esse espaço também cotidiano
numa paisagem onírica. Este é, portanto, o ponto de extrusão entre GH e esse
“mundo cotidiano”.
      G.H passa a reconhecer a barata como algo familiar, passa a perceber a
barata como um ser comum a ela: “Era isso era isso então. É que eu olhara a
barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda”. Essa
percepção desperta a curiosidade, G.H precisa saber, haveria vida na barata?
Essa vida é feita da mesma matéria que G.H? Ela também faria parte da barata?.
      “Eu tinha que cair na danação da minha alma, a curiosidade me consumia”
(PSGH p.55).
      Mas, para obter resposta a essa curiosidade G.H teria primeiro que
abandonar o mundo como lhe era conhecido, abandonar a ordem. Para obter essa
resposta precisaria estará altura da natureza mais primitiva, humilhar-se ceder aos
17

seus instintos ignorados, teria que conhecer a vida através do extremo: a morte da
barata.
      G.H entrega-se ao ritual, a experiência de comunhão a ingestão sacrílega
da barata que remete ao ritual católico da eucaristia. A partir desse momento, G.H
revive a origem do mundo e se une à divindade.
      A santa Eucaristia conclui a iniciação cristã. Os que foram elevados à
dignidade do sacerdócio régio pelo Batismo e configurados mais profundamente a
Cristo pela Confirmação, estes, por meio da Eucaristia, participam com toda a
comunidade do próprio sacrifício do Senhor. Os cristão recebem o pão
(representado pela hóstia) e o vinho, repetindo os atos que Cristo fez na última
Ceia. A ingestão do pão representa o corpo de Cristo concebido sem pecado, o
vinho é a representação do sangue para remissão de nossos pecados na Paixão.
Na última ceia, na noite em que foi entregue, nosso Salvador institui o Sacrifício
eucarístico de seu Corpo e Sangue:

                      "Durante a refeição, Jesus tomou o pão e, depois de o benzer, partiu-o e
                      deu-lhe, dizendo: 'Tomai, isto é o meu corpo'. Em seguida, tomou o cálice
                      em suas mãos, deu graças e o apresentou, e todos deles beberam. E
                      disse-lhes: 'Isto é o meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança que
                      será derramado por vós e por todos. Em verdade eu vos digo: já não
                      bebereis do fruto da videira, até aquele dia em que o beberei de novo no
                      Reino de Deus'" (Mc 14, 22-25)

"Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crê em
mim jamais terá sede" (Jo 6, 35).
A Eucaristia representa o sacrifício de Cristo na cruz.
      Enquanto na Bíblia temos as passagens: “Se não comerdes a carne do
Filho do Homem e não beberdes o seu sangue não tereis a vida em vós”, e ainda:
“Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue tem a vida eterna” (Jó 6, 53-
54). G.H., no entanto, comete o “ato ínfimo”, come da massa insípida, neutra,
numa experiência de vômito e náusea:

                      Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca,
                      e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa
                      alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase adocicado
                      como o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma – eu cuspia a mim
                      mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido
                      minha alma toda. “ – – – porque não és nem frio nem quente, porque és
18

                          morno, eu te vomitarei da minha boca”, era Apocalipse segundo são João,
                          e a frase que devia se referir a outras coisas das quais eu já não me
                          lembrava mais, a frase me veio do fundo da memória, servindo para o
                          insípido do que eu comera – e eu cuspia.
                          O que era difícil: pois a coisa neutra é extremamente enérgica, eu cuspia e
                          ela continuava eu. (PSGH p. 162)

        A desleitura do rito da comunhão implica, pois, a opção de G.H. pela
imanência e não pela transcendência. Os rituais, de G.H. e o do cristão,
apresentam efeitos opostos, como observa Olga de Sá:

                          O cristão é assimilado pelo Corpo de Cristo e Nele se transforma. Se Ele é
                          Deus, como disse, e como crê o cristianismo, transcende o homem.
                          Portanto, pela manducação da hóstia, o cristão é alçado, na medida em
                          que lha é permitido, à comunhão com Deus. Na experiência de G.H., a
                          manducação da barata, protótipo da matéria-prima do mundo, produz pelo
                          mesmo efeito de transformação, mas invertido, a redução da
                          personalidade de G.H. ao nível da pura matéria viva. Há a
                          “despersonalização”, isto é, G.H. se perde como pessoa, para alcançar-se
                          como ser e encontrar sua identidade ao nível do puramente vivo. 5


        G.H rompe com sua condição prévia através do nojo repugnante e do
reconhecimento de si na figura da barata. Posteriormente a essa fase se dá o
inicio da própria existência simbólica, na qual a representação se dá na ingestão
da matéria de dentro da barata e corresponde a perda da identidade de G.H como
antes era conhecida.
        Benedito Nunes6 aponta que a experiência de desapossamento da
individualidade, de perda da identidade só se dá com a ingestão da barata. G.H
quer se livrar de todo acréscimo e para isso precisa redimir-se na própria coisa
numa espécie de comunhão negra, sacrílega e primitivista em que assimila a vida
divina na própria matéria viva:
                          O único destino com que nascemos é o do ritual. Eu chamava ‘máscara’ de
                          mentira, e não era: era a essencial máscara da solenidade.
                          Teríamos de pôr máscaras de ritual para nos amarmos (...). Pelo pecado
                          original, nós perdemos a nossa máscara. (PSGH p.112)5

5–
 Sá, Olga: Paródia e Metafísica In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Ed. crítica. Benedito
Nunes, coord. Florianópolis: 1988.
        6 - Nunes, Benedito: O Itinerário místico de G.H. In: O drama da Linguagem, p. 65.


        7 – é, pois, uma representação às avessas da Eucaristia, o animal imundo e impuro
representando aquilo que é Sagrado: o corpo de Cristo.
19

       O pecado de G.H consiste fundamentalmente em provar da matéria
expelida pelo corpo da barata, contrariando a proibição bíblica de tocar no imundo.
Pode-se assinalar também que além da transgressão a uma interdição bíblica, a
narrativa de G.H também representa a realização de um ritual místico às avessas
em que o imundo é objeto de comunhão7.
       Nos é sabido desde os tempos da criação que o ser humano é apontado
como criatura que falha e pecam, somos naturalmente incitados a fazer o mal,
embora tenhamos o livre-arbítrio em optar por não fazê-lo.
       A decorrência imediata do pecado é a culpa e o sofrimento, há, no entanto,
outros tipos de punição que é dada de acordo com a gravidade do ato cometido. A
mais severa das punições impostas ao homem é a danação, que corresponde à
condenação da alma ao Inferno. E segundo a perspectiva cristã, a única forma
para o homem livrar-se dessas penas é o arrependimento, a confissão como
forma de unir-se novamente à divindade.
       Conforme já fora dito, segundo a ortodoxia cristã, o pecado constitui um ato
consciente e voluntário de desobediência às leis divinas. A ação cometida por G.H
caracteriza-se como pecado, portanto, por se opor diretamente ao texto do
Levítico:


                     “Tudo o que anda sobre o ventre ou que caminha sobre quatro ou mais
                     patas, isto é todos os répteis que rastejam pelo chão, nenhum deles é
                     comestível, porque são imundos.
                     Não se tornem imundos com nenhum desses répteis que rastejam. Não se
                     contaminem com eles e não sejam contaminados por eles “. (Lev.
                     11:42-43) (Grifos meus)”.


Segundo a escritura o homem é, portanto proibido de provar, tocar ou alimentar-se
dos seres ditos imundos. A barata não fora aí explicitamente citada, no entanto
podemos enquadrá-la na ordem dos animais que rastejam e que andam sob o
próprio ventre, assim como a serpente, seres imundos.
Mas contrariamente ao que supõe a ortodoxia cristã a respeito das conseqüências
do pecado, o que se observa na ação de G.H não é o arrependimento ou a culpa,
mas sim uma revelação: G.H ao provar da gosma da barata descobre o que o
imundo não é imundo e tudo que é vivo é feito do mesmo.
20

Ao provar da barata, G.H toma consciência de si mesma, outra vez aludindo a
Adão e Eva, através da prova do fruto proibido que se chegará ao conhecimento:


                     “Já então eu talvez soubesse que não me referia ao que eu fizera à barata
                     mas sim a: que fizera eu de mim? É que nesses instantes, de olhos
                     fechados, eu tomava consciência de mim assim como se toma
                     consciência de um sabor: eu toda estava com sabor de aço e azinhavre,
                     eu toda era ácida como um metal na língua, como planta verde esmagada,
                     meu sabor me veio todo à boca” (PSGH p.49) (Grifos meus).
Ao provar da gosma da barata G.H se coloca no mesmo nível desse ser, ambas
faziam parte do mesmo plano e não havia mais diferença entre ambas. Há,
portanto, a desumanização da antiga G.H para entrar no núcleo de uma outra
natureza. E entrar nessa nova natureza não era pecado, mas era a danação de
sua vida como era conhecida anteriormente:

                     Eu sabia que entrar não é pecado. Mas é arriscado como morrer. Assim
                     como se morre sem se saber para onde, e esta é a maior coragem de um
                     corpo.
                     Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu
                     depois não pudesse talvez mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a
                     partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos
                     meus próprios olhos nem aos olhos do que é Deus. (PSGH p.77)


O ritual da manducação é a tentativa de tornar a experiência de G.H uma espécie
de comunhão com Deus e de conhecer a si mesmo em essência.
      Na Bíblia ver é essencial para que se possa profetizar, Ex. 37, por exemplo:
      “Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode ver-me e
continuar vivendo” (Ex 33,18. 20). Assim também G.H. deseja ver a face de Deus,
mas teme (Lispector. 1998 p. 63), “[...] ai de mim, eu não estava à altura senão de
minha própria vida” (Lispector. 1998 p. 162). “[...] Mas eu bem sabia que não só
mulher que tem medo de ver, qualquer um tem medo de ver o que é Deus. Eu
tinha medo da face de Deus [...]” (Lispector. 1998 p. 93).

                     O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com
                     olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para
                     depois de minha morte — é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora
                     de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho
                     coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo.
                     [...] E se a pessoa vê essa atualidade, ela se queima como se visse o
                     Deus. A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima”.
                     (PSGH. p. 97.)
21



O pecado, portanto, representa uma possibilidade de redenção. Provar da gosma
branca da barata é a possibilidade de arrependimento:


                    - Então - então pela porta da danação, eu comi a vida e fui comida pela
                    vida. Eu entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo
                    lado do inferno em mim. Pois em mim mesma eu vi como é o inferno.
                    (PSGH p.115)




      DANAÇÃO


      Ao provar da massa da barata G.H está consciente de que será condenada
ao inferno, a danação é, portanto, a consequência do pecado cometido por G.H. O
inferno de G.H é a aceitação da dor, a falta de piedade pelo destino humano, o
que de certa forma faz desse inferno não uma punição, mas a nossa própria
condição consciente de existência.


                    A tentação do prazer. A tentação é comer direto na fonte. A tentação é
                    comer direto na lei. E o castigo é não querer mais parar de comer, e
                    comer-se a si próprio que sou matéria igualmente comível. E eu procurava
                    a danação como uma alegria. Eu procurava o mais orgíaco de mim
                    mesma. Eu nunca mais repousaria: eu havia roubado o cavalo de caçada
                    de um rei da alegria. Eu era agora pior do que eu mesma Nunca mais
                    repousarei [...] (PSGH p.123)


      Esta experiência de danação vivida pela narradora é um misto de gozo e
dor, riso e pranto que pode em síntese ser apontado como a negação da
esperança e da humanização, para afirmar a realidade da condição humana que
nada mais é que nossa sujeição à dor:
                    Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de
                    humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o
                    homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla,
                    mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora
                    também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se
                    transformar em “pureza”, nossas mãos que são grossas e cheias de
                    palavras [...]
                    [...].
22

                                O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes me teria chocado: no
                                mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da
                                bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus
                                é maior que a bondade com a sua beleza. (PSGH.p.154)


           Temos aí outra inversão importante das escrituras:

                                 “Enquanto, segundo o cristianismo, é pelo amor que os homens podem
                                realizar o melhor de si mesmos, para G.H. é pela ausência de sentimentos,
                                pela redução da vida humana à sensação, à vida física e material, ao
                                ‘mundo da coisa’, que o homem alcança a plenitude. Sem beleza, sem
                                amor. Apenas a monotonia do ser, a ausência do gosto, a violência do
                                neutro”. 8

      8
       Benedito Nunes9 aponta que na maioria das religiões Deus e o homem ocupam
necessariamente, planos ontológicos distintos. Onde o homem é marcado pela
carência, pela falta e está num plano inferior, enquanto que a divindade,
representa a promessa de uma nova vida e da salvação e está sempre num plano
superior. Ao contrário desse plano de ascensão, no entanto, o que G.H
experimenta com a manducação é uma grande indiferença. A experiência de
comunhão de sua alma com Deus resultam na percepção de que o que se que é
apenas uma divindade humana. Não precisamos de alma. Deus que não é nem
bom, nem mal, é apenas indiferente. Deus é a vida que segue seu rumo
interessado somente em caminhar.

                                Dói em ti que a bondade do Deus seja neutramente contínua e
                                continuamente neutra? Mas o que eu antes queria como milagre, o que eu
                                chamava de milagre, era na verdade um desejo de descontinuidade e de
                                interrupção, o desejo de uma anomalia: eu chamava de milagre
                                exatamente o momento em que o verdadeiro milagre contínuo do processo
                                se interrompia. Mas a bondade neutra do Deus é ainda mais apelável
                                do que se não fosse neutra: é só ir e ter, é só pedir e ter. (PSGH p)
                                (Grifos meus)

           Depois do mergulho na consciência, da perda da identidade através da
realização do ritual, o que acontece apenas é o retorno do cotidiano, a danação
experimentada pela narradora, deste modo, não representa a condenação ou


8
    – Emília   Amaral O leitor segundo G.H. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

           9-    Benedito Nunes, O itinerário místico de G.H. In: O drama da linguagem. P. 37.
23

punição, mas ao contrário, se converte em redenção e a paixão passa ser a única
marca da existência humana.
      A experiência mística por qual passa G.H não leva a sua alma à comunhão
com Deus como relata as escrituras, mas ao seu encontro com as coisas que
compõem o real, o presente humano. Esta experiência não é algo transcendente,
mas que se realiza na prática diária e cotidiana, através do reconhecimento da
vida e do divino. O divino para G.H é o real. Não há alma imaterial.



      PAIXÃO OU O GOLPE DA GRAÇA


                              Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.
                     O que estou sentindo agora é uma alegria. Através da barata viva estou
                     entendendo que também eu sou o que é vivo. Ser vivo é um estágio muito
                     alto, é alguma coisa que só agora alcancei. É um tal alto equilíbrio instável
                     que sei que não vou poder ficar sabendo desse equilíbrio por muito tempo
                     a graça da paixão é curta. (PSGH p.167)



      Na perspectiva cristã a Paixão de Jesus narrada segundo Mateus, Marcos,
Lucas e João é o máximo do sofrimento experimentado pelo Filho de Deus para a
redenção da humanidade. Será recompensada pela Ressurreição. A Paixão de
G.H. se dá numa via sacra profana que a leva do entender ao não entender, do
pensar ao adorar; em todo caso, da morte à vida tendo suposto um defrontar-se
com o mais alto grau de prazer e martírio. “A via-crucis não é um descaminho, é
a passagem única, não se chega senão através dela e com ela.” (PSGH. p. 172).
A isto ela chama paixão: “E é aceita a nossa condição como a única possível, já
que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição
humana é a paixão de Cristo”.(PSGH. p.171).
       Há uma oração feita por Jesus logo antes de sua Paixão, segundo João
(17, 11d, 12c.21bc.22-23)


                             Pai santo,
                             guarda-os em teu nome
                             que me deste,
                             para que sejam um como nós.
                             Quando eu estava com eles,
24

                            eu os guardava em teu nome
                            que me deste;
                            [...]
                            Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti,
                            que eles estejam em nós.
                            [...]
                            Eu lhes dei a glória que me deste
                            para que sejam um, como nós somos um:
                            Eu neles e tu em mim,
                            para que sejam perfeitos na unidade
                            e para que o mundo reconheça que me enviaste
                            e os amaste como amaste a mim.


      Na narrativa de GH, encontramos o contrário do texto anterior, que se
constrói a partir da repetição e a transposição de certas expressões bíblicas:


                            Meu Deus, dá-me o que fizeste. Ou já me deste? e sou eu que não
                     posso dar o passo que me dará o que já fizeste? O que fizeste sou eu? e
                     não consigo dar o passo para mim, mim que és Coisa e Tu. Dá-me o que
                     és em mim. Dá-me o que és nos outros, Tu és o ele, eu sei, eu sei porque
                     quando toco eu vejo o ele. Mas o ele, o homem, cuida do que lhe deste e
                     envolve-se num invólucro feito especialmente para eu tocar e ver. E eu
                     quero mais do que o invólucro que também amo. Eu quero o que eu Te
                     amo. (PSGH p. 133).


      Na paixão o pecado também leva à danação, porém a perda da graça
divina, a experiência do inferno, mais uma vez, ao contrario do que relata as
escrituras, é percebida como algo positivo e revelador. G.H não quer mais ser
interprete de uma relação com o divino, na qual é baseada apenas na esperança
da transcendência, e que não reconhece a condição real de nossa existência. A
perda da graça divina é o reconhecimento de Deus simplesmente no real.


                     Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na
                     desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor
                     é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar
                     pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de
                     amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza. Deus é o que
                     existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O
                     contradizem.
                     Ah, em mim toda está doendo largar o que me era o mundo. Largar é uma
                     atitude tão áspera e agressiva que a pessoa que abrisse a boca para falar
                     em largar deveria ser presa e mantida incomunicável - eu mesma prefiro
                     me considerar temporariamente fora de mim, a ter a coragem de achar que
                     tudo isso é uma verdade.(PSGH p.154)
25

Para G.H., “Deus já é.”G.H. redimensiona sua maneira de relacionar-se com Deus.
Há, com isso, uma nova forma de acreditar no divino; por conseguinte, G.H.
anseia incessantemente a presença “do Deus”, não apenas pela promessa e
esperança de um reino distante, num plano ontológico distinto. Conforme afirma
G.H.:

                     eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua
                     promessa! A notícia que estou recebendo de mim mesma me soa
                     cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é só por medo. É medo.
                     Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e
                     não apenas me prometer a vida. E este é o maior susto que se pode ter.
                     Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou. (PSGH p.
                     143)



O drama da paixão assemelha-se à narrativa dos Evangelhos do Novo
Testamento; no entanto, quem a protagoniza não é o filho de Deus do
Cristianismo, mas o mesmo sujeito que a relata, como designa Emília Amaral,
acerca da narradora personagem. Ela é G.H.: uma mulher cujo nome se confunde
com as suas iniciais e que, à primeira vista, não parece possuir a exemplaridade
dos evangelistas, os seres escolhidos para revelar o divino, na medida em que se
trata de um eu mutilado, de uma personificação do ser humano retificado. No
entanto, é uma mulher quem substitui não apenas os evangelistas, mas a própria
figura de Jesus Cristo, ocupando espaço do sujeito que se deixou atravessar pelo
sagrado, que provou o conhecimento da divindade e que se reconheceu como
fruto/parte dela.
        Segundo Emília Amaral, Clarice Lispector “desloca a paixão de Cristo do
plano da transcendência para o da imanência”, ou seja, “segue um modelo bíblico,
mas o reverte, frequentemente, na construção de seu próprio itinerário”.

                     “Enquanto as narrativas bíblicas constituem partes dos Evangelhos que
                     relatam os sofrimentos de Cristo como foram vistos ou conhecidos por
                     seus discípulos, em PSGH a paixão é vivida e narrada pela protagonista”.
                     Assim, a autora diferencia a paixão de G.H. da paixão segundo G.H. Se a
                     primeira é uma “experiência-limite”, “porque a manducação da barata
                     levara G.H. à renúncia de sua vida pessoal, de seu ser como linguagem”, a
                     segunda também o é, na medida em que “atinge a natureza do ser
                     produtor de linguagem: o escritor”.
26

                         A obra estrutura-se, portanto, entre o silêncio da imanência que será
                         conquistada pela personagem G.H. e a transcendência da linguagem com
                         a qual este silêncio será relatado pela narradora G.H. Trata-se de uma
                         ontologia, uma metafísica empiricamente construída para “desvelar o ser
                         contra a linguagem (fazendo linguagem), contra a razão que o encobre,
                         contra a transcendência, que, segundo a narradora, o ultrapassa. A Paixão
                         é dor contra o hábito, que insensibiliza. É a vida, a totalidade, contra o ‘eu’,
                         o puramente psicológico”. 10 (Amaral . 2005 p. 36)


       Ainda nessa perspectiva de reversão as escrituras na qual se constrói a
narrativa há algumas transposições feitas por G.H no “golpe da paixão”: “A
revelação do amor é uma revelação de carência “Bem-aventurados os pobres de
espírito porque deles é o dilacerante reino da vida” (Lispector. p. 148 ). Enquanto
que nas escrituras temos: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles
é o Reino dos Céus” (Mt 5,3)
       Dentre as transposições mais expressivas, ainda que apareça fragmentada
ao longo do texto, está a oração “Ave Maria”. Constituída de duas partes, a
primeira é uma junção de dois versículos bíblicos, saudação do anjo Gabriel:
“Alegra-te (ave), [Maria,] cheia de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1,28)
acrescido da exclamação de Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o
fruto de teu ventre!” (Lc 1, 42).
       A segunda parte é uma súplica dos fiéis: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai
por nós pecadores agora e na hora de nossa morte. Amém!” Como é comum aos
cristãos que rezam a Ave Maria dirigirem-se à mãe de Jesus com a expressão
“minha mãe”, também ela será retomada aqui como uma transposição:
       10

                                 “Santa Maria, mãe de Deus, ofereço-vos a minha vida em troca
                         de não ser verdade aquele momento de ontem” (Lispector. 1998p.72).
                                 “ e eu também sabia que na hora de minha morte eu também
                         não seria traduzível por palavra (Lispector.p. 74).

                                 “Reza por mim, minha mãe, pois não transcender é um sacrifício”
                                 “O que sai da barata é: “hoje”, bendito o fruto de teu ventre”
                                 “ [...] porque, minha mãe, eu me habituei” [...] (PSGH, 79).

                                 “Mãe: matei uma vida, e não há braços que me recebam agora e
                         na hora do nosso deserto, amém. Mãe, tudo agora tornou-se de ouro
                         duro.
                                 Interrompi uma coisa organizada, mãe, e isso é pior que matar,
                         isso me fez

10
        - AMARAL, Emília. O leitor segundo G.H. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005
27

                           entrar por uma brecha [...] estou com medo de minha rouquidão,
                    mãe.
                           A barata é de verdade, mãe.
                           Mãe, eu só fiz querer matar, mas olha o que quebrei: quebrei um
                           invólucro! [...]De dentro do invólucro está saindo um coração
                    grosso e branco e vivo como pus, mãe, bendita sois entre as baratas,
                    agora e na hora desta tua minha morte, barata e jóia (PSGH 90. Grifos
                    meus).


      Transposição relativa ao Reino de Deus. Excepcionalmente ao que se
refere aqui, claramente, à resposta dada a Pilatos por Jesus, em sua paixão: “O
meu reino não é deste mundo” (Jo 18, 36):
      “ Então pela porta da danação eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu
entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do inferno
em mim” (PSGH, 115). (Grifos meus)


                    “Porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos
                    céus já é (PSGH, 143)”.
                    (...) E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua
                    promessa. [...] Mas o Deus é hoje e seu reino já começou.
                    (...) “E seu reino, meu amor, também é deste mundo”.
                    “ Meu reino é deste mundo... e meu reino não era apenas humano. Eu
                    sabia. Mas saber disso espalharia a vida-morte, e um filho no meu ventre
                    estaria ameaçado de ser comido pela própria vida-morte, e sem que uma
                    palavra cristã tivesse sentido... Mas é que há tantos filhos no ventre que
                    parece uma prece” (PSGH, 143. Grifos meus).


      Por analogia, associa-se, logo o gosto quase nulo da massa branca da
barata à hóstia. É a própria narradora quem o diz: “Ah, as tentativas de
experimentar a hóstia.” (PSGH. p. 149).
      Olga de Sá comenta essa analogia:

                              “Um fenômeno místico. O cristão é assimilado pelo Corpo de
                    Cristo e Nele se transforma. Se Ele é Deus, como disse, e como crê o
                    cristianismo, transcende o homem”. Portanto, pela Eucaristia,
                    “manducação da hóstia”, o cristão é alçado à comunhão com Deus. Com
                    G.H. dá-se o mesmo efeito de transformação, só que às avessas.
                              A manducação da barata, protótipo da matéria-*prima do mundo”,
                    produz “a redução da personalidade de G.H. ao nível da pura matéria
                    viva.” Assim G.H. se despersonaliza, “se perde como pessoa, para
28

                          alcançar-se como ser e encontrar sua identidade ao nível do puramente
                          vivo”.
                                  (...)“porque para a manducação da barata, G.H. renunciou à sua
                          vida pessoal, a seu ser como linguagem” 11


 G.H nega a idéia tradicional de existência de um Deus providencial, pessoal e
transcendente. Deus é o que existe, não é nome próprio, mas, substantivo comum
e é por esse motivo que a partir de sua experiência irá se referir a Ele como “o
Deus”, artigo definido:


                          “o Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é, e nunca pára de
                          ser. Somos nós que não agüentamos esta luz sempre atual, e então a
                          prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O
                          presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida
                          mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos
                          Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - é por
                          astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que
                          não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente
                          sonhar quando estou dormindo”. (Lispector. 1998 p.142-143).




A G.H só lhe foi possível saber o que é Deus através de um eu desapossado de si
mesmo, no qual a narradora o identifica por “mim”: “Eu não sou Tu, mas mim és
Tu. Só por isso jamais poderei Te sentir direto: porque és mim”. (Lispector.p.126).
Para G.H só ao sujeito despido de identidade, de construção humana é capaz de
sentir o que é Deus.11
Para Reis12, o esmagar da barata corresponde, para G.H., a deixar-se esmagar. E
tal identidade entre ambas torna o ritual da comunhão, presente na obra, “uma
paráfrase ao gesto ensinado pelo Deus que se fez homem”. Ou seja: assim como
Cristo bebeu o próprio sangue na Eucaristia, G.H. realiza o equivalente a beber o
próprio sangue, desta forma alcançando, simbolicamente, um outro estágio, no
qual apreende a dimensão da natureza humana e “conhece o sofrimento, num
modo que significa a conquista do Ser”.
11
         -   SÁ, Olga. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão
Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 5-12.
        12 - Luzia de Maria de Rodrigues Reis, “O Trágico da Paixão: Uma Leitura de PSGH” . 1981.
p.148 -151
29

      Para G.H nossa relação com Deus é guiada excepcionalmente pela
necessidade: a Fé e a Fome. O próprio Cristianismo nasce a partir da Fé na
Ressurreição de Cristo, após sua Paixão.
Nossa carência determina o quanto de Deus teremos “minha exigência é o meu
tamanho, meu vazio é a minha medida”:

                     (...)E eu tenho. Eu sempre terei. É só precisar, que eu tenho. Precisar
                     não acaba nunca pois precisar é a inerência de meu neutro. Aquilo que
                     eu fizer do pedido e da carência esta será a vida que terei feito de
                     minha vida. Não se colocar em face da esperança não é a destruição do
                     pedido! e não é abster-se da carência. Ah, é aumentá-la, é aumentar
                     infinitamente o pedido que nasce da carência. (...)
                     (...)E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele, extraímos. (Não sei
                     o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos
                     muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o
                     que fatalmente nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (A
                     nostalgia não é do Deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que
                     não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível - minha
                     atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.)
                     Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para
                     sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome
                     maior. (Lispector . 1998. p.145-146) (Grifos meus).



      Deus nos usa, pois ele precisa ser amado e para que amemos é necessário
precisar de tudo, estar vazio. Essa é, portanto a clave da paixão.
      G.H conclui, por fim que tudo está e assim, por exemplo, o que ainda não
descobrimos é porque certamente ainda não precisamos.
      A revelação do amor é também uma revelação de carência. Abdicando a
esperança, G.H celebra a própria carência, assume sua falta em ultima instancia a
sua condição de vida:


                     (...)minha vida antiga me era necessária porque era exatamente o seu mal
                     que me fazia usufruir da imaginação de uma esperança que, sem essa
                     vida que eu levava, eu não conheceria.
                     E agora estou arriscando toda uma esperança acomodada, em prol de
                     uma realidade tão maior que cubro os olhos com o braço por não poder
                     encarar de frente uma esperança que se cumpre tão já - e mesmo antes
                     de eu morrer! (PSGH p.155)


      G.H precisou passar pelo inferno da existência para poder reconhecer que
há um modo muito mais profundo de amar que prescinde desse plano estético:
30



                     eu me queimo nesta descoberta: a de que existe uma moral em que a
                     beleza é de uma grande superficialidade medrosa. Agora aquilo que me
                     apela e me chama é o neutro. Não tenho palavras para exprimir, e falo
                     então em neutro. Tenho apenas esse êxtase, que também não é mais o
                     que chamávamos de êxtase, pois não é culminância. Mas esse êxtase sem
                     culminância exprime o neutro de que falo. (PSGH. p.155)


      Temos na narrativa de G.H então, dois tempos de sua experiência
existencial: anterior e posterior à epifania, A Paixão Segundo G.H. O próprio tema
“paixão” tem sua fundamentação na linguagem contraditória. Lida de um ângulo
cristão, a paixão leva indubitavelmente à ressurreição. A vida nova supõe o
abandono completo até a morte.


                     Desde a pré-história eu havia começado a minha marcha pelo deserto, e
                     sem estrela para me guiar, só a perdição me guiando, só o descaminho me
                     guiando até que morta pelo êxtase do cansaço, iluminada de paixão, eu
                     enfim encontrara o escrínio. E no escrínio, a faiscar de glória, o segredo
                     escondido. [...]
                     Dentro do escrínio o segredo:
                     Um pedaço de coisa.
                     Um pedaço de ferro, uma antena de barata, uma caliça de parede.
                     Minha exaustão se prostrava aos pés do pedaço de coisa, adorando
                     infernalmente. (PSGH. p. 131)


      E como o Rei crucificado, que deu a vida livremente (Jo 10,17-18), G.H.
afirma: “para ter esse segredo [...] de novo eu daria a minha vida”. [...] “A mim me
fora dado demais. Que faria eu com o que me fora dado? ‘Que não se dê aos cães
a coisa santa’.” (PSGH p. 89). Essas palavras bíblicas, recordadas pela narradora,
no contexto do Evangelho de Mateus (7,6) podem se referir à Eucaristia que não
deve ser dada aos indignos dela.
      A narradora reconhece através da danação que sua vida anterior é que era
o seu mal, posto que era apenas a imaginação vivida de uma esperança de algo
melhor, era preciso encontrar a redenção, mas esta redenção deveria ser
encontrada no real, no cotidiano de sua existência.
      Na ortodoxia Cristã temos a redenção pelo sangue de Jesus, a remissão
das ofensas, segundo as riquezas da sua graça,” (Ef 1:7); “O qual nos tirou da
potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu amor; Em
31

quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos pecados” (Cl
1:13-14). Mas, ao contrário desta, a redenção de G.H se constitui na “própria coisa
E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata”.
(Lispector. 1998 p.)
      A náusea, o nojo seria como negar a sua primeira vida. G.H transcende ao
próprio ato de comer a barata, acreditando que com isso teria a maior
transmutação de si em si mesma. A esse ato G.H dá uma máxima valoração,
quando na verdade percebe que não esta preparada para admitir uma vida maior
que a sua e, acaba por tentar cuspir o corpo ingerido, constatando que está
preparada apenas para a vida humana.
      A experiência de G.H é, portanto, uma experiência de sofrimento de
perda/busca de identidade da narradora que reinterpreta a história cristã da
Paixão de Cristo. Reconstruída, no entanto, às avessas de toda a ciência
convencional de princípios e moralidade, essa narrativa afirma que a Paixão, o
sofrimento, a falta é em essência a condição humana.


                       E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que
                       existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana
                       é a paixão de Cristo. (PSGH p. 171)


      Nesse sentido a Paixão de Cristo representa o sofrimento de Jesus a
propósito de salvar a humanidade, Cristo é, portanto, a promessa à realização,
através de sua morte e de seu sofrimento ele nos salva, mas para isso ele
precisara aguentar a todo suplicio.
      A personagem do Romance também experimenta a Paixão, mas, em
oposição a Cristo que vive a paixão porque chega ao extremo do amor (Jô 13,1:
Antes da festa da Páscoa, Jesus sabia que tinha chegado sua hora. A hora de
passar deste mundo para o Pai. Ele que tinha amado os seus que estavam no
mundo amou-os até o fim). (Grifos meus). GH defronta-se com a vida na sua
totalidade, esgotada, que já nem é vida, é morte. Então se torna possível “o
apreender a vida em si, na sua imanência, com horror e encantamento”, não o
transcender, porque “a transcendência é uma transgressão” (PSGH p. 54).
32

                                 Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer,
                          e também o meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente
                          me pareceu que seria o antipecado, pecado assassino de mim mesma.
                                 O antipecado. Mas a que preço. Ao preço de atravessar uma
                          sensação de morte. Levantei-me e avancei de um passo, com a
                          determinação não de uma suicida mas de uma assassina de mim mesma.
                          (PSGH, 158)


        Gotlib13 sustenta: “a história da paixão é a história da vida crua, sangrando,
no que tem de mais pungente: toda a sua grandeza e toda a sua miséria”.
Portanto, parábola que se inscreve sobre a Paixão de Cristo.
        Perdendo o próprio nome, G.H. identifica-se com todos os seres. As iniciais
G.H. encobrem-lhe o verdadeiro nome. Falta-lhe a identidade, já que é a partir do
nome que se tem a identidade.
        Portar um nome é, segundo a Bíblia, estar apto a exercer a missão que o
nome carrega. Abrão, ao ser chamado a ser “pai de uma multidão”, passa a ser
denominado Abraão (Gn 32,27-28).
        A própria ausência do nome insinua-se como busca de sua identidade.
        É o sofrimento de buscar a própria identidade e, depois, de narrar a busca
feita que culmina desistência, ápice da Revelação:13
                                   A paixão visa à posse do ser, à posse da identidade última,
                          perseguida em páginas de uma escritura arfante, em que o texto respira e
                          transpira esse itinerário do indizível. Paixão do homem, sua via-crucis, a
                          insistência busca a desistência final, como glória e prêmio. Desistir é
                          revelação última, a epifania das contradições entre ser e linguagem. (grifos
                          da autora) 14


        G.H. narra ao leitor o caminho árduo e conflituoso percorrido o caminho que
compreende a saída de seu bem-estar, conforto e organização, para o ingresso no
caótico desconhecido. Irá passar nessa transgressão por um longo caminho de
perda/busca de identidade, no qual irá sofrer, se despersonalizará, por fim, irá
construir todo um caminho até chegar à conclusão de que apenas a mudez é
capaz de revelar o que viveu, sendo assim será a desistência a sua última
revelação:

13      -
        Nádia Gotilib. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão
Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1990. p.06
33



                              é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz
                              diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a
                              trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em
                              matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um
                              descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com
                              ela. A insistência é o
                              nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se
                              experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se
                              a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha
                              mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só
                              esta é a glória própria de minha condição.
                              A desistência é uma revelação. (PSGH p.173)




14




           CONCLUSÃO




14         -
               Olga de Sá. Paródia e Metafísica. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Ed.
crítica.
           Benedito Nunes, coord. Florianópolis: 1988. p. 213.
34

        Conforme se pretendeu evidenciar no presente trabalho, a obra de Clarice
Lispector pode ser lida como uma experiência mística individual, uma releitura
bíblica, ou no mínimo uma obra que dialoga com a escritura cristã.
        A narrativa de Lispector, subverte ironicamente o sentido cristão de
padecimento imposto para nos testar, impondo a GH a tentação através da barata.
        Percebemos que a utilização da paródia como recurso da narrativa nesta
obra, não se dá no sentido mais tradicional do termo que comumente é associado
ao cômico burlesco, ao contrario é através de uma reelaboração irônica séria a
temas, conceitos e princípios religiosos que são fundadores da moralidade e
ortodoxia cristã que se constitui a paródia na obra.
        Gotilib analisa o texto como uma parábola, o próprio título já nos alerta para
a perspectiva da paixão da narração (“A Paixão Segundo G.H.”) que se dá
concomitantemente à narração da paixão. Nos evangelhos, a paixão de Jesus é
narrada segundo a perspectiva de Mateus, Marcos, Lucas e João e é o máximo do
sofrimento experimentado pelo Filho de Deus para a redenção da humanidade. O
Cristo se humaniza ao extremo da paixão.


                                  “Porque, entre tantas paixões, esta história também pode ser a
                          paixão místico-religiosa do Cristo que, pela via-crucis, passa pela dor e
                          pelo prazer de redimir a humanidade e reintegrá-la a todas as coisas e a
                          Deus”. Isso justificaria apresentar o romance tal como um evangelho,
                          agora segundo G.H. 15


        A Paixão de G.H., avessa à experiência cristã, experimenta a dupla paixão:
a de viver e a de relatar o que viveu, se dá numa via-sacra profana; em todo caso,
da morte à vida tendo suposto um defrontar-se com o mais alto grau de prazer e
martírio, desumanizando-se, igualando-se a todo e qualquer ser.15G.H. narra a

15      -
         Nádia Gotilib. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão
        Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p.7.

        16 – NUNES, Benedito. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da
Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. p. 270

        17 – Benedito Nunes. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da
Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. p. 271
35

própria paixão ela própria conduz à perspectiva teológica e, no narrar,
experimenta nova paixão. Aqui, esse termo ganha amplitude semântica: a paixão
“pode ser igualmente força de escrita” como quer Benedito Nunes: “Passional e
apaixonante, esse texto de nossa autora mergulha em veios arqueológicos, em
camadas afetivas culturalmente soterradas da sensibilidade humana”.
                             O curso histórico da palavra ‘paixão’ atesta a perda da riqueza
                     cumulativa dos significados distintos e correlatos que se constelaram no
                     termo grego pathos, do qual se originou. Filosoficamente, a avaliação do
                     conceito respectivo – passividade do sujeito, experiência infligida, sofrida,
                     dominadora, irracional – por oposição a logos ou a phronesis, que
                     significam pensamento lúcido e conduta esclarecida; variou da posição
                     problematizante dos filósofos gregos da época clássica – Sócrates, Platão
                     e Aristóteles – à posição negativa dos filósofos estóicos e de seus
                     descendentes no início da época moderna, Descartes e Espinosa.
                             “O grego sempre viu”, afirma Dodds, “na experiência de uma
                     paixão, algo de misterioso e assustador, a experiência de uma força que
                     está dentro dele, que o possui em lugar de ser por ele possuída”. A própria
                     palavra pathos o testemunha; do mesmo modo que seu equivalente latino
                     passio, significa aquilo que acontece a “um homem, aquilo de que ele é a
                     vítima passiva” 16


      O mesmo autor atesta que o relato do transe, ao qual se entremeia a
compreensão que G.H. vai adquirindo de si própria, à medida que interpreta a sua
experiência — uma experiência já vivida, no dia anterior e por isso narrável —, se
assemelha a uma “transposição da via mística se não for a sua réplica
parodística”.
                             “ao misticismo stricto sensu, diferente da piedade religiosa, que se
                     desenvolveu em todas as culturas segundo padrões distintos e, às vezes,
                     à margem da religião institucionalizada: o caminho individual de acesso” à
                     divindade, através de uma experiência prática da qual resultará um
                     desprender-se de si mesmo e da realidade. Acesso que é tanto
                     conhecimento interno, contemplativo, quanto união e desprendimento.
                     “União amorosa para os cristãos, na base da crença de um deus pessoal,
                     liberação bramânica da verdadeira natureza divina do homem e liberação
                     budista da existência ilusória” 17


                     “A escala dos sentimentos contrários que acompanham o transe — amor e
                     ódio, desespero e esperança, alegria e dor — nos é apresentada como
                     uma trajetória espiritual através de figuras teológicas e religiosas” sempre
36

                         contraditórias: “santidade e pecado, salvação e danação, pureza e
                         impureza, inferno e paraíso. Repulsiva e atraente, ominosa e numinosa, a
                         barata assume as proporções de uma teofania; é um numem, uma forma
                         primitiva, interdita do sagrado”. 18


       Não sem propósito, a narrativa começa no caos, ou seja, com uma
desarticulação tanto do discurso, quanto das idéias que através das paródias e
representações nos remetem diretamente a idéia de Caos Cristão.
       Determinada a organizar esse caos em linguagem, G.H dá inicio então ao
relato de sua experiência. Apenas provando o imundo é que G.H poderá se
libertar de sua pureza fácil, artificialmente construída. Será preciso que ela se
perca, para que então possa se encontrar. É por isso que ela afirma que cometeu
o antipecado, o ato necessário para se aproximar de uma realidade na humana,
mas que é viva e que assume nosso caráter de falta, de carência.
       A narradora pede auxilio; traz o leitor para dentro de sua paixão implicando-
o na dor da travessia que se faz; então, segura a mão de seu interlocutor para
auxiliá-la ao longo da narrativa, a fim de que seja capaz de suportar relatar o
ocorrido. “Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar
que alguém me está dando a mão” Lispector. 1998. p. 13).
       Isso faz com que se recorde do início da paixão de Jesus, no Getsêmani,
quando, em extrema angústia, também tem um interlocutor, que o auxilia:
(“Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava”. Lc 22,44).
       “O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado[...]. Falta apenas o golpe
da graça que se chama paixão” (PSGH, 167).

                                 18


                                Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos
                         sempre salvos.
                                Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada
                         pela doçura quando percebe que está em estado de graça, sentir que se
                         está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si.
                         Mas não há perigo de
                                Perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente. (PSGH. 140-
                         141)


18      -
         Benedito Nunes. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da
Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. p. 276-277
37

      A Paixão Segundo G.H. é, portanto, a construção de uma narrativa de
estrutura circular: não começa, continua; não termina, aponta para a continuidade.
Rompe com a tradição, com o enredo factual. A própria estrutura é um convite à
reflexão, posto que, enquanto obra aberta, deixa espaço para que nela se penetre
não sem partilhar também da paixão e saia livremente, porém carregando as
marcas de quem “vive” o romance. Foi assim com o Jesus Cristo crucificado;
também saiu carregando as marcas da Paixão. Aliás, através delas é que foi
reconhecido depois de ressuscitado.
      G.H na sua superficialidade era “a imagem do que não era”; daí deduz: “eu
tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o ‘não’, tinha o meu oposto” (PSGH p.
28). Entra no quarto-minarete, que reverbera em luz e que é o “retrato de um
estômago vazio”.
      O quarto é o avesso de sua casa, cheia de sombras e umidade: “O quarto
era o oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que
resultara de meu talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha
ironia serena, de minha doce e isenta ironia: era uma violação das minhas aspas”
(PSGH, 28). “Entra” enfim, na barata “ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso.”
“Era uma máscara” (PSGH.p.73). (Grifos meus).
      A barata é pelo avesso e, como G.H. tem que passar pela barata, sua
narrativa também atravessa o avesso, o reverso da mística e da Escritura
Bíblica. Assim é que Clarice constrói sua obra através de uma desconstrução
anterior, por sobreposição, ou, como quer G.H., ela “decalca”.
      Assim, Clarice comunica a experiência de G.H., personagem e narradora, e
a sua própria ao seu leitor ideal: “pessoas de alma já formada”, capazes também
de atravessar o deserto, refazer a PAIXÃO, porque “sabem que a aproximação,
do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente atravessando
inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar”




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
38

ALTER, Robert, Kermode Frank. Guia Literário da Bíblia. Editora Unesp.

AMARAL, Emília. O leitor segundo G.H. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005

BÍBLIA SAGRADA. Edição pastoral. Paulus - 1990

BORELLI, Olga A difícil definição, In: LISPECTOR, C. A paixão Segundo GH Ed.
Critica Coord. Benedito Nunes. Madrid, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo,
Lima, Guatemala, San José da Costa Rica, Santiago de Chile: Allca XX, 1988.
(Coleção Archivos, 13), Florianópolis, Editora UFSC, 1988


CÂNDIDO Antonio .No raiar de Clarice Lispector. In: Vários Escritos. São Paulo:
Duas Cidades, 1970


Gotilib, Nádia. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice.
A Paixão Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p.5-12.


HUTCHELON, Linda. Uma teoria da paródia. Trad. Teresa Louro Pérez. Lisboa:
Edições 70


KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector: do biográfico ao
literário. São Paulo: EDUC/Limiar, 2003.


LISPECTOR, Clarice A Paixão Segundo G. H. Romance Rocco. Rio de Janeiro
1998.


NUNES, Benedito. “ O drama da Linguagem: uma leitura de Clarice Lispector.
São Paulo Atica, 1989


NUNES, Benedito. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os
sentidos da paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. pp.
269-281.
39

ROSEMBAUM, Yudith. Clarice Lispector. Publifolha. 1ª Edição, 2002


SÁ, Olga de Clarice Lispector . A travessia do Oposto. São Paulo: Annablume,
1993.


________.    Paródia   e   Metafísica.   Ed   Critica.   Benedito   Nunes,   Coord.
Florianópolis: 1988.

SANT’ANNA. Afonso Romano de. O ritual epifânico do texto. In: LISPECTOR,
Clarice. A Paixão Segundo G.H. Edição crítica. Coord. de Benedito Nunes. 2ª
ed. Madrid – São Paulo: ALLCAXX – Scipione Cultural,1997.

Weitere ähnliche Inhalte

Was ist angesagt?

Parnasianismo e Simbolismo 2021
Parnasianismo e Simbolismo 2021Parnasianismo e Simbolismo 2021
Parnasianismo e Simbolismo 2021CrisBiagio
 
Naturalismo pdf.pdf
Naturalismo pdf.pdfNaturalismo pdf.pdf
Naturalismo pdf.pdfSil Queiroz
 
3373897 literatura-aula-26-modernismo-no-brasil-3-fase
3373897 literatura-aula-26-modernismo-no-brasil-3-fase3373897 literatura-aula-26-modernismo-no-brasil-3-fase
3373897 literatura-aula-26-modernismo-no-brasil-3-fasejacsonufcmestrado
 
A terceira geração modernista brasileira (1945 1980)
A terceira geração modernista brasileira (1945 1980)A terceira geração modernista brasileira (1945 1980)
A terceira geração modernista brasileira (1945 1980)Tatiana Pontes
 
Exercícios de metrificação
Exercícios de metrificaçãoExercícios de metrificação
Exercícios de metrificaçãoma.no.el.ne.ves
 
Prosa romântica brasileira
Prosa romântica brasileiraProsa romântica brasileira
Prosa romântica brasileiraSeduc/AM
 
Modernismo no Brasil - Literatura
Modernismo no Brasil - LiteraturaModernismo no Brasil - Literatura
Modernismo no Brasil - LiteraturaCarlos Eduardo
 
Romantismo - As 3 gerações - Resumo Completo
Romantismo - As 3 gerações - Resumo CompletoRomantismo - As 3 gerações - Resumo Completo
Romantismo - As 3 gerações - Resumo CompletoFaell Vasconcelos
 
Terceira geração modernista
Terceira geração modernista Terceira geração modernista
Terceira geração modernista Claudio Soares
 

Was ist angesagt? (20)

Parnasianismo e Simbolismo 2021
Parnasianismo e Simbolismo 2021Parnasianismo e Simbolismo 2021
Parnasianismo e Simbolismo 2021
 
Auto da Compadecida
Auto da CompadecidaAuto da Compadecida
Auto da Compadecida
 
Naturalismo pdf.pdf
Naturalismo pdf.pdfNaturalismo pdf.pdf
Naturalismo pdf.pdf
 
3373897 literatura-aula-26-modernismo-no-brasil-3-fase
3373897 literatura-aula-26-modernismo-no-brasil-3-fase3373897 literatura-aula-26-modernismo-no-brasil-3-fase
3373897 literatura-aula-26-modernismo-no-brasil-3-fase
 
Parnasianismo
ParnasianismoParnasianismo
Parnasianismo
 
A terceira geração modernista brasileira (1945 1980)
A terceira geração modernista brasileira (1945 1980)A terceira geração modernista brasileira (1945 1980)
A terceira geração modernista brasileira (1945 1980)
 
Exercícios de metrificação
Exercícios de metrificaçãoExercícios de metrificação
Exercícios de metrificação
 
Prosa romântica brasileira
Prosa romântica brasileiraProsa romântica brasileira
Prosa romântica brasileira
 
Realismo Português
Realismo PortuguêsRealismo Português
Realismo Português
 
Literatura portuguesa barroco
Literatura portuguesa barrocoLiteratura portuguesa barroco
Literatura portuguesa barroco
 
Parnasianismo
ParnasianismoParnasianismo
Parnasianismo
 
Gênero lírico
Gênero líricoGênero lírico
Gênero lírico
 
O primo Basílio
O primo BasílioO primo Basílio
O primo Basílio
 
Modernismo no Brasil - Literatura
Modernismo no Brasil - LiteraturaModernismo no Brasil - Literatura
Modernismo no Brasil - Literatura
 
Barroco
BarrocoBarroco
Barroco
 
Barroco no brasil
Barroco no brasilBarroco no brasil
Barroco no brasil
 
Romantismo - As 3 gerações - Resumo Completo
Romantismo - As 3 gerações - Resumo CompletoRomantismo - As 3 gerações - Resumo Completo
Romantismo - As 3 gerações - Resumo Completo
 
A hora da estrela
A hora da estrelaA hora da estrela
A hora da estrela
 
Terceira geração modernista
Terceira geração modernista Terceira geração modernista
Terceira geração modernista
 
Romantismo
RomantismoRomantismo
Romantismo
 

Ähnlich wie A-construcao-parodica-–-biblica-na-obra-a-paixao-segundo-gh-de-clarice-lispector

Narrativas erodidas: os usos de si como estratégia poética.
Narrativas erodidas: os usos de si como estratégia poética.Narrativas erodidas: os usos de si como estratégia poética.
Narrativas erodidas: os usos de si como estratégia poética.Priscilla Menezes
 
O que é emerso (1)
O que é emerso (1)O que é emerso (1)
O que é emerso (1)Frank Junior
 
Felicidade clandestina.pptx
Felicidade clandestina.pptxFelicidade clandestina.pptx
Felicidade clandestina.pptxssuser0bb0ae
 
[1960] Clarice Lispector LaçOs De FamíLia
[1960] Clarice Lispector   LaçOs De FamíLia[1960] Clarice Lispector   LaçOs De FamíLia
[1960] Clarice Lispector LaçOs De FamíLiaMara Virginia
 
Spinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristaisSpinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristaisAndrelinoFilho
 
Spinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristaisSpinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristaisAndrelinoFilho
 
Historia e utopia emil cioran
Historia e utopia   emil cioranHistoria e utopia   emil cioran
Historia e utopia emil cioranMarioFinottiSilva
 
O caso qorpo santo - escrita e loucura
O caso qorpo santo -  escrita e loucuraO caso qorpo santo -  escrita e loucura
O caso qorpo santo - escrita e loucuraGladis Maia
 
Monografia A eterna busca do Ideal em Florbela espanca
Monografia A eterna busca do Ideal em Florbela espanca Monografia A eterna busca do Ideal em Florbela espanca
Monografia A eterna busca do Ideal em Florbela espanca Fernanda Pantoja
 
O Ovo E A Galinha Da PercepçãO à Inautenticidade Do Ser
O Ovo E A Galinha Da PercepçãO à Inautenticidade Do SerO Ovo E A Galinha Da PercepçãO à Inautenticidade Do Ser
O Ovo E A Galinha Da PercepçãO à Inautenticidade Do SerDR Educação Cristã
 
3ª fase do modernismo - Clarice Lispector
3ª fase do modernismo - Clarice Lispector3ª fase do modernismo - Clarice Lispector
3ª fase do modernismo - Clarice LispectorColégio Santa Luzia
 

Ähnlich wie A-construcao-parodica-–-biblica-na-obra-a-paixao-segundo-gh-de-clarice-lispector (20)

Narrativas erodidas: os usos de si como estratégia poética.
Narrativas erodidas: os usos de si como estratégia poética.Narrativas erodidas: os usos de si como estratégia poética.
Narrativas erodidas: os usos de si como estratégia poética.
 
O que é emerso (1)
O que é emerso (1)O que é emerso (1)
O que é emerso (1)
 
Barroco (paulo monteiro)
Barroco (paulo monteiro)Barroco (paulo monteiro)
Barroco (paulo monteiro)
 
Felicidade clandestina.pptx
Felicidade clandestina.pptxFelicidade clandestina.pptx
Felicidade clandestina.pptx
 
[1960] Clarice Lispector LaçOs De FamíLia
[1960] Clarice Lispector   LaçOs De FamíLia[1960] Clarice Lispector   LaçOs De FamíLia
[1960] Clarice Lispector LaçOs De FamíLia
 
Imagina8
Imagina8Imagina8
Imagina8
 
Scena Crítica, n. 03, ano 1.pdf
Scena Crítica, n. 03, ano 1.pdfScena Crítica, n. 03, ano 1.pdf
Scena Crítica, n. 03, ano 1.pdf
 
Spinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristaisSpinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristais
 
Spinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristaisSpinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristais
 
Oficialmente Velho
Oficialmente VelhoOficialmente Velho
Oficialmente Velho
 
Historia e utopia emil cioran
Historia e utopia   emil cioranHistoria e utopia   emil cioran
Historia e utopia emil cioran
 
Monografia rosseau versão final
Monografia rosseau versão finalMonografia rosseau versão final
Monografia rosseau versão final
 
35461206
3546120635461206
35461206
 
Mistica linguagem, filosofia
Mistica linguagem, filosofiaMistica linguagem, filosofia
Mistica linguagem, filosofia
 
O caso qorpo santo - escrita e loucura
O caso qorpo santo -  escrita e loucuraO caso qorpo santo -  escrita e loucura
O caso qorpo santo - escrita e loucura
 
Monografia A eterna busca do Ideal em Florbela espanca
Monografia A eterna busca do Ideal em Florbela espanca Monografia A eterna busca do Ideal em Florbela espanca
Monografia A eterna busca do Ideal em Florbela espanca
 
O Ovo E A Galinha Da PercepçãO à Inautenticidade Do Ser
O Ovo E A Galinha Da PercepçãO à Inautenticidade Do SerO Ovo E A Galinha Da PercepçãO à Inautenticidade Do Ser
O Ovo E A Galinha Da PercepçãO à Inautenticidade Do Ser
 
3ª fase do modernismo - Clarice Lispector
3ª fase do modernismo - Clarice Lispector3ª fase do modernismo - Clarice Lispector
3ª fase do modernismo - Clarice Lispector
 
Osho a harmonia oculta
Osho   a harmonia ocultaOsho   a harmonia oculta
Osho a harmonia oculta
 
O InefáVel Sentido Da Vida
O InefáVel Sentido Da VidaO InefáVel Sentido Da Vida
O InefáVel Sentido Da Vida
 

Mehr von Vanessa Aparecida R Anastacio

Mehr von Vanessa Aparecida R Anastacio (10)

COMPROMETIMENTO
COMPROMETIMENTOCOMPROMETIMENTO
COMPROMETIMENTO
 
Manhãs
Manhãs Manhãs
Manhãs
 
O que o professor de língua portuguesa necessita fazer para desenvolver escr...
O que o professor de língua portuguesa necessita fazer para desenvolver  escr...O que o professor de língua portuguesa necessita fazer para desenvolver  escr...
O que o professor de língua portuguesa necessita fazer para desenvolver escr...
 
Proposta o-ensino-da-gramatica-em-lingua-portuguesa
Proposta o-ensino-da-gramatica-em-lingua-portuguesaProposta o-ensino-da-gramatica-em-lingua-portuguesa
Proposta o-ensino-da-gramatica-em-lingua-portuguesa
 
Abordagem dos-classicos-no-ensino-de-literatura
Abordagem dos-classicos-no-ensino-de-literaturaAbordagem dos-classicos-no-ensino-de-literatura
Abordagem dos-classicos-no-ensino-de-literatura
 
Articulação entre conteúdos e competências contextualizados à prática pedagógica
Articulação entre conteúdos e competências contextualizados à prática pedagógicaArticulação entre conteúdos e competências contextualizados à prática pedagógica
Articulação entre conteúdos e competências contextualizados à prática pedagógica
 
Competências da escrita
Competências da escritaCompetências da escrita
Competências da escrita
 
Características dos gêneros uso e adequação
Características dos gêneros uso e adequaçãoCaracterísticas dos gêneros uso e adequação
Características dos gêneros uso e adequação
 
Leitura de textos imagéticos
Leitura de textos imagéticosLeitura de textos imagéticos
Leitura de textos imagéticos
 
A concepção da linguagem como espaço de interação
A concepção da linguagem como espaço de interaçãoA concepção da linguagem como espaço de interação
A concepção da linguagem como espaço de interação
 

A-construcao-parodica-–-biblica-na-obra-a-paixao-segundo-gh-de-clarice-lispector

  • 1. Vanessa Aparecida Ricardo Anastacio UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS – LICENCIATURA EM PORTUGUÊS A Construção Paródica – Bíblica na obra: “A Paixão Segundo GH” de Clarice Lispector Piracicaba – SP Maio 2011
  • 2. Vanessa Aparecida Ricardo Anastacio UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS – LICENCIATURA EM PORTUGUÊS A Construção Paródica – Bíblica na obra: “A Paixão Segundo GH” de Clarice Lispector Projeto apresentado ao Curso de Licenciatura em Português, como requisito parcial para obtenção da Licenciatura em Letras - Português, sob orientação da Professora Josiane Maria de Souza. PIRACICABA - SP Maio 2011
  • 3. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, meus familiares, amigos e entes queridos que, ainda muitos sem saber, me ajudaram a caminhar passo a passo e alcançar a este meu objetivo que a principio era tão distante. Aos professores por tudo que me foi ensinado e, a minha orientadora por fazer caminho comigo.
  • 4. RESUMO Este trabalho é um estudo sobre o papel da paródia na obra de Lispector “A Paixão Segundo GH” (1964), sobre como se constrói a reinterpretação da história bíblica de maneira contundente e questionadora a Paixão de Cristo aqui é reconstruída em novo sentido e a paródica se dá, sobretudo, a partir do reaproveitamento de temas da Paixão de Cristo e da Criação, os quais são retiradas do contexto religioso cristão e colocadas numa situação cotidiana, uma mulher em um apartamento com uma barata. Palavras chaves: paixão, reconstrução, paródica, barata, bíblia.
  • 5. 4
  • 6. 5 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................... 06 CAOS .................................................................................................................... 10 PROVAÇÃO ......................................................................................................... 12 PECADO ............................................................................................................... 16 DANAÇÃO ............................................................................................................ 21 PAIXÃO OU O GOLPE DA GRAÇA .................................................................... 23 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 34 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 39
  • 7. 6 INTRODUÇÃO A paixão segundo G.H. é construída através de um enredo corriqueiro, banal. Após mandar embora a empregada, G.H resolve fazer uma faxina no quarto da serviçal. Ao começar a limpeza, se depara com uma barata. Tomada pelo susto que, manifesta o grito, o nojo, GH esmaga a barata contra a porta do armário. A partir desse momento a personagem entrará no fluxo de perda/busca da identidade pessoal, posto que numa espécie bárbara de “rito”, decide provar da gosma da barata morta. Ao provar desta gosma, G.H opera-se em uma revelação. A barata repentina em meio à rotina de G.H, entre a casa, os filhos lançou-a para um universo fora do humano, onde a personagem inicia um longo processo de perda/busca da identidade. Esse anseio de encontrar os restos do homem quando a linguagem se esgota é o que move a literatura de Clarice Lispector. Esta literatura, portanto, não é de fácil interpretação, acerca disso Clarice mesmo afirma: A obra clariceana não é de fácil assimilação, pois exige demais do leitor, descentrando-o constantemente, questionando-o, abalando seu sistema de referência... incluindo o de leitura. Ou seja, diante de sua obra, os modelos tradicionais de interpretação de texto parecem falhos, como se o tempo todo algo ficasse de fora ¾ e fica. Clarice já havia percebido isso em relação à sua obra e em várias ocasiões comentou o fato, como podemos conferir no trecho a seguir: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais’”(Lispector, 1973, p.14).¹ Muito já fora produzido a cerca das escritas de Clarice Lispector, inclusive de sua obra “A Paixão Segundo GH” (1964). Assim como toda a escrita de caráter introspectivo de Clarice Lispector, “A paixão Segundo GH” (1964) é o relato de uma experiência pessoal onde a personagem G.H passa por um processo de perda/busca de sua identidade pessoal. O que se pretende neste trabalho é mostrar como a autora constrói este processo de perda/busca da identidade da personagem “G.H”, através da 1 1 - KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector: do biográfico ao literário. São Paulo: EDUC/Limiar.
  • 8. 7 reconstrução paródica da história de Cristo, da Criação e da Paixão. Durante toda a construção da obra observamos transposições, citações ou alusões aos textos bíblicos, desde ao título até o “caminho” de identidade pessoal que percorre G.H. São variadas as possibilidades de compreensão abertas pelo texto literário. O estudo do tema levará em conta apresentar e explicar que a paródia - intertextual que constrói Clarice Lispector “nada tem de cômico, ao contrario, apresenta um forte tom irônico e questionador”2, a experiência de perda/busca da identidade pessoal que passa a narradora-personagem, os momentos de caos, provação, redenção até a construção final: a Paixão. Discutir conceitualmente uma obra de arte implica tomá-la numa certa perspectiva necessariamente, em certo sentido, destruí-la enquanto obra. Uma das únicas formas de falar de modo artístico de arte é compondo uma outra obra que dialogue com ela, comparando -as. O tema escolhido justifica-se na apresentação da reconstrução paródica - intertextual de Clarice Lispector que, utiliza fragmentos modificados dos textos bíblicos, rompe com a tradição, com o enredo e constrói sua obra através de uma desconstrução anterior, por sobreposição, na transposição de textos tanto do Antigo quanto do Novo testamento no uso da inclusão dos dualismos e paradoxos, nas alusões implícitas ou explicitas. O critico Benedito Nunes em O Drama da Linguagem, Uma Leitura de Clarice Lispector (1995), dedica uma parte à análise do romance “A paixão Segundo G.H”, onde nos conta que a personagem G.H: (...) fascinada pela barata que simultaneamente a repugna e atrai, experimenta inicialmente uma náusea seca, que é seguida por um êxtase selvagem em que ela se vê sendo vista, esvaziada de sua vida pessoal . No estado de êxtase, as oposições inconciliáveis da existência se confundem diante de G.H, numa visão abissal que reduz as diferenças e tenta supri-las. Nesta perspectiva a personagem passa por um processo de conversão radical, em que a experiência do sacrifício da identidade pessoal a leva à dolorosa sabedoria da renuncia. Esta sabedoria é paradoxal, pois a perda de G.H se transforma em ganho: através da negação de si mesma, ela atinge a realidade autentica. A descida em direção a esta existência impessoal constitui uma verdadeira ascese, em que G.H se desliga do mundo e experimenta a perda do eu.
  • 9. 8 Ora, as correntes místicas do Oriente e do Ocidente convergem na visão do ascetismo como uma prática negativa de pregação e desnudamento da alma. O ascetismo é um método que visa ao sacrifício do eu. O processo só se completa quando o individuo supera suas limitações egoísticas que o separam da totalidade do real. Neste sentido, a purgação ascética constituiria uma antecipação da morte. A fim de ultimar a experiência de perda da individualidade, a personagem ingere a massa branca da barata esmagada, tentando assumir redimir- se na e com a própria coisa que participa: " é uma espécie de comunhão negra, sacrílega e primitivista, que ritualiza o sacrifício consumado". Este gesto de extremo desprezo à própria pessoa, contudo, gera um acesso incoercível de nojo, tal como no começo. E G.H, que saíra de seu mundo pela repugnância, a ele retorna também pela repugnância. Mas a personagem que retorna ao mundo não é mais a mesma que dele saíra. A trajetória seguida por G.H acompanha, muito de perto, a via mística, reproduzindo as suas limagens típicas do deslocamento espacial (saída/entrada), do deserto (aridez, secura, solidão, silêncio) e da contraditória visão do inefável (realidade primária, núcleo, nada, glória). ² ( Grifos meus) Ainda de acordo com que expõe Benedito Nunes, podemos distinguir duas pautas no discurso de A Paixão Segundo G.H. A primeira delas diz respeito ao tema da arte e da linguagem; a outra, transversal a anterior, possui caráter paleológico e contém a prática meditativa sobre Deus e a existência. Esta última corresponde à via mística e, a primeira indica o movimento da narrativa em direção ao inexpressivo, figurado pela realidade nua, vazia e silenciosa da vida divida 4. O que, conseqüentemente gera um processo discursivo peculiar, envolvendo o sujeito da narrativa e a própria narrativa, que Benedito Nunes descreve assim: Na trajetória da ascese, que levaria do pessoal ao impessoal, o eu sacrificado da personagem, como sujeito de uma experiência de natureza mística, é o mesmo eu como sujeito emissor da narração, uma vez que nesse romance em primeira pessoa o narrador e a personagem formam uma só e mesma instância. O sujeito que narra é o sujeito que se desagrega. E à medida que narra a sua desagregação, e se desagrega enquanto narra, o sentido de sua narrativa vai se tornando fugidio. A metamorfose de G.H, que ela própria relata, é concomitantemente a metamorfose da narrativa. A primeira metamorfose, no rumo da experiência mística, se dá como inexpressivo impõe, dá-se como perda de identidade da própria narrativa. Ambas se produzem como um esvaziamento - esvaziamento da alma e da narrativa: a alma desapossada do eu e a narrativa, de seu objeto ³. (Grifos meus)2 2 - Olga de Sá, “Paródia e Metafísica”. Lispector, Clarice. A paixão Segundo GH. Scipione, 1997. 3 - Nunes, Benedito. O Drama da Linguagem - Uma Leitura de Clarice Lispector. 2 ed. São Paulo: Ed. Ática S.A, 1995. Série Temas, Vol 12, p. 75.
  • 10. 9 Já fora dito que o objetivo desse trabalho é examinar a reconstrução da história Bíblica da Paixão de Cristo através da narrativa cotidiana da obra de Lispector, o percurso dessa reconstrução a ser apresentado no trabalho se dará pelos seguintes processos: caos, resignação e provação, a redenção e o caminho final onde se dá o encontro da identidade através da busca: a Paixão.
  • 11. 10 CAOS O caos se instaura na narrativa, através da dificuldade do narrador em proferir um discurso sobre a experiência vivida: “Só posso compreender o que me aconteceu, mas só me aconteceu o que eu compreendo - que sei do resto? O resto não existiu (Lispector. 1998. p.10)” Inicialmente com a incompreensão de G.H a respeito de sua própria vida: Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização (Lispector. 1998. p.07) (...) Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana (...) E - e se a realidade é mesmo que nada existiu?! (...) Quem sabe nada me aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo - que sei do resto? O resto não existiu (...) (PSGH p.10) 4 Ao entrar no quarto da empregada o susto de G.H com o aparecimento da barata, simultaneamente a “desorganização das idéias”, o questionamento de sua identidade, o caos: a desordem dos pensamentos de G.H que, sabe que algo lhe acontecerá depois do susto, no entanto ainda não é capaz de compreender. A respeito dessa experiência da qual G.H não entende e não quer explicação, que busca sem sucesso o recurso da linguagem para “dar forma” a experiência: Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. (PSGH. P.17 ) A paródia inicial do caos é construída através da criação de um plano narrativo embasado. Na incompreensão, da entrega da personagem G.H à confusão a desordem e a impossibilidade de transformar essa experiência, de transmiti-la pra o plano da linguagem, o que nos permite aludir aos caos cristão narrado no livro de Gênesis , o vazio que antecede a criação:4 4 - Lispector, Clarice, A paixão Segundo GH. Todas as referências a essa obra a serem citadas daqui a diante serão feitas pela abreviação PSGH.
  • 12. 11 No principio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas. Deus disse: “ Que exista a luz!” (...) Deus disse:” Que exista um firmamento no meio das águas para separar águas de águas!” (Gênesis 1: 1-3; 6) A construção de toda a criação do mundo é, portanto, através das palavras proferidas por Deus, ou seja, a partir da linguagem, a mesma idéia é sustentada no livro de João: “No principio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada do que foi feito se fez. (João 1: 1-3) É nítida a narrativa de incompreensão, de entrega da personagem à desordem. A impossibilidade de transformar a experiência vivida em linguagem, nos remetendo a idéia caótica de um mundo primitivo, sem formas nem linguagem, também ao que se narra em Gênesis: “E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz. E houve luz. (Gen 1: 2-3) A narrativa parte então do principio do Caos para a tentativa de um discurso que possa, ao menos em parte, dar conta do vivido, a esse discurso será dado o nome de Provação, onde a personagem passará pelo sofrimento ao provar da barata morta. A narrativa nos remete ironicamente o sentido Cristão de agonia que é justamente imposto para nos testar, como seres humanos e, em G.H esta provação é imposta pela barata.
  • 13. 12 PROVAÇÃO “Provação. Agora entendo o que é provação. Provação: significa que a vida está me provando. Mas provação: significa que eu também estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável”. (PSGH p.125) De acordo com a liturgia Cristã, as provas são instrumentos utilizados por Deus para revelar nosso verdadeiro caráter, nesse sentido as provações são uma maneira de sofrimento, na qual Deus nos testa nos experimenta nos conhece. Ainda na mesma perspectiva cristã, são muitas as provas a que podemos ser submetidos por Deus, dentre elas estão, as doenças, as perseguições e as tentações. No livre de Gênesis, que narra a criação do mundo, temos a narração da primeira provação imposta ao homem: a tentação do paraíso, Deus coloca no jardim do Éden o primeiro homem e a primeira mulher, para gozo do paraíso, restringindo apenas a que comam o fruto da árvore da sabedoria. E, é justamente sobre essa tentação que se transpõe à narrativa de Lispector. Em G.H o pecado se constitui a partir da idéia do pecado original contida em Gênesis que em síntese é o desejo de provar pelo gosto de algo proibido. G.H passa pela experiência da provação em dois sentidos, a primeira, o ato de provar, de sentir o gosto da “gosma da barata” e a segunda de experimentar o sofrimento, de dar prova e testemunho dessa realidade. Temos uma retomada ao livro de Gênesis, onde a idéia da provação é representada através da prova do “sabor proibido”. A massa branca da barata é, pois, uma alusão a Adão e Eva que viviam no paraíso, antes de provarem do fruto da arvore do conhecimento, cometendo o pecado original. Assim como na escritura, na vida da narradora, ao provar do fruto então proibido há a revelação de uma nova verdade. Em Gênesis também, a referência à serpente, na qual a barata se transforma. Tocar na barata é, portanto, tocar no impuro, segundo o que a escritura nos diz em Levitico 11: a lei que ensina a separar o impuro do puro, os animais
  • 14. 13 Deuteronômio 14, 11-19 das aves impuras, Mateus 15, 1-11 da desobediência dos mandamentos de Deus. A narradora acaba, portanto, de “entrar no inferno da matéria viva, cair na danação de [sua] alma” para fugir da rotina supérflua até então estabelecida do ser organizado e comungar com o nada, tocando, em ato sacrílego, no imundo. Para construir uma alma possível uma alma cuja cabeça não devore a própria cauda a lei manda que só se fique com o que é disfarçadamente vivo. E a lei manda que, quem comer do imundo, que o coma sem saber. Pois quem comer do imundo sabendo que é imundo também saberá que o imundo não é imundo. É isso? “E tudo o que anda de rastos e tem asas será impuro, e não se comerá”. (PSGH p. 69). A barata ser impuro, “ser empoeirado”, “um bicho de cisterna seca” A barata como já fora dito, é a transfiguração da serpente, o animal que impede G.H a realizar o ato proibido, a prova do interdito, do imundo através de sua sedução: “A barata que enchia o quarto de vibração enfim aberta, as vibrações de seus guizos de cascavel no deserto” (PSGH. p.55) É que assim como a serpente do paraíso fizera com Eva, o inseto seduz G.H. que provará do fruto proibido: o de dentro da mesma barata. Assim como a serpente a barata é pura sedução. “Cílios, cílios pestanejando que chamam. [...] E neste deserto de grandes seduções, as criaturas: eu e a barata viva “(PSGH. p.56)”. “A verdade é o que é [...] assim, pois entende? Por que teria eu medo de comer o bem e o mal? (PSGH.p.140) Se eles existem é porque é isto que existe”. E depois dessa justificativa, interpela seu interlocutor: “Lembra-te que eu comi do fruto proibido. O conhecimento do bem e do mal e a vida”. G.H faz clara alusão a passagem: “A árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn, 2,9) (Grifos meus) Vai e volta percorrendo, em sua visão infinita, cenários bíblicos: “Olhando-a, eu via a vastidão do deserto da Líbia, nas proximidades de Elschele. [...] eu já era capaz de ver ao longe Damasco, a cidade mais velha da terra” (Lispector. 1998. p.109). “Vejo uma noite na Galiléia. A noite na Galiléia é como se no escuro o tamanho do deserto andasse” (PSGH p. 109).
  • 15. 14 Além das oposições que se constroem gradativamente na narrativa, a partir das decisões que são tomadas passo a passo pela protagonista. Perder/ Achar Mt 10,39: “Quem procura conservar a própria vida, vai perdê- la. E quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” Perder-se/encontrar-se; ganhar/perder: “É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar [...]”. “No entanto na infância as descobertas terão sido como num laboratório onde se acha o que se achar? [...] Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder? Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando”. “Todo momento de achar é um perder–se a si próprio”. “Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei”. (PSGH. p.17) João 12,25: “Quem tem apego à sua vida vai perdê-la; quem despreza a sua vida neste mundo, vai conservá-la para a vida eterna”. Vida/Morte: “[...] por um átimo experimentei a vivificadora morte. A fina morte que me fez manusear o proibido tecido da vida. É proibido dizer o nome da vida. E eu quase o disse. Quase não me pude desembaraçar de seu tecido, o que seria a destruição dentro de mim de minha época”. (PSGH. p.11-12) Mateus 16,25: “Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”. E migra, frequentemente, do deserto ao dilúvio, de um a outro oposto: “E então vai acontecer numa rocha nua e seca do deserto da Líbia, vai acontecer o amor de duas baratas. [...] Sobre a rocha, cujo dilúvio há milênios já secou, duas baratas secas” (PSGH p. 109). Nessa paródia à provação cristã, encontramos também uma transfiguração do deserto: “E na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora”. (PSGH.p.56)
  • 16. 15 O deserto é uma das categorias bíblicas mais férteis: local de rituais de passagem traz a ambivalência de separação/ proximidade de Deus, os judeus, por exemplo, denominam o deserto como ambivalente: posto que, se por um lado ele é experiência de um tempo rude, árido, por outro é tempo em que se experimenta a maior intimidade com Deus, a cerca disso se remetem no Antigo Testamento, principalmente os livros de Êxodo e Deuteronômio. Já no Novo Testamento outro significado atribuído ao deserto está no livro de Mateus, onde é narrada a tentação de Cristo por Satanás. O sofrimento de GH, sua provação, é ter que se deparar com a miséria, com a pobreza, com o sujo, com o feio, enfim com o contrário ao seu mundo puramente estético, comum. A comunhão com a barata é portanto, a revelação de uma nova verdade, um encontro com o mundo que ela sempre quisera ignorar. GH percebe que tanto ela quanto, Janair e a barata são feitas do “mesmo pó” e só por mera criação humana é que se crêem distintas. A barata é o objeto transposto da figura do Bom Pastor, que é o caminho para a Vida: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10, 9). Mt 11,12: “[...] o Reino dos céus sofre violência dos que querem entrar e violentos se apoderam dele”.Que, em G.H., ecoará: “Tenho que me violentar para precisar mais” (PSGH, 97). “A entrada para este quarto só tinha uma passagem, a estreita: pela barata” (PSGH, p. 39). Transposição do texto bíblico: “Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição. E muitos são os que entram por ele. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho que conduz à Vida. E poucos são os que o encontram” (Mt 7, 13-14). G.H passa pela provação de aceitar e reconhecer a vida em todas as formas, de passar pelo sofrimento da despersonalização e o reconhecimento de uma condição de vida totalmente avessa à sua concepção de mundo organizado. É através dessa provação que, G.H revela seu verdadeiro caráter humano, o que a levará a cometer o pecado.
  • 17. 16 PECADO Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu depois não pudesse talvez mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos meus próprios olhos nem aos olhos do que é Deus.(PSGH p.77) Historicamente a noção de pecado está associada a contextos religiosos, correspondendo a qualquer ato de desobediência à vontade de Deus, toda ação, palavra ou cobiça cometida contra as leis divinas. Na perspectiva judaico-cristã, o pecado é uma violação de um mandamento divino, que não está necessariamente ligada a uma falta de moral. Para os cristãos, o pecado revela nossa natureza fraca, nossa inclinação para o Mal. G.H comete o pecado através do ritual, da manducação da gosma da barata (isto é, provar do impuro) e consequentemente, prova da experiência de transcendência para o mundo então, inumano. Após prender a barata sob o guarda-roupa para matá-la, vive uma experiência de aversão e sedução, náusea e fascínio, são esses sentimentos que a farão abandonar sua vida cotidiana e reverter esse espaço também cotidiano numa paisagem onírica. Este é, portanto, o ponto de extrusão entre GH e esse “mundo cotidiano”. G.H passa a reconhecer a barata como algo familiar, passa a perceber a barata como um ser comum a ela: “Era isso era isso então. É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda”. Essa percepção desperta a curiosidade, G.H precisa saber, haveria vida na barata? Essa vida é feita da mesma matéria que G.H? Ela também faria parte da barata?. “Eu tinha que cair na danação da minha alma, a curiosidade me consumia” (PSGH p.55). Mas, para obter resposta a essa curiosidade G.H teria primeiro que abandonar o mundo como lhe era conhecido, abandonar a ordem. Para obter essa resposta precisaria estará altura da natureza mais primitiva, humilhar-se ceder aos
  • 18. 17 seus instintos ignorados, teria que conhecer a vida através do extremo: a morte da barata. G.H entrega-se ao ritual, a experiência de comunhão a ingestão sacrílega da barata que remete ao ritual católico da eucaristia. A partir desse momento, G.H revive a origem do mundo e se une à divindade. A santa Eucaristia conclui a iniciação cristã. Os que foram elevados à dignidade do sacerdócio régio pelo Batismo e configurados mais profundamente a Cristo pela Confirmação, estes, por meio da Eucaristia, participam com toda a comunidade do próprio sacrifício do Senhor. Os cristão recebem o pão (representado pela hóstia) e o vinho, repetindo os atos que Cristo fez na última Ceia. A ingestão do pão representa o corpo de Cristo concebido sem pecado, o vinho é a representação do sangue para remissão de nossos pecados na Paixão. Na última ceia, na noite em que foi entregue, nosso Salvador institui o Sacrifício eucarístico de seu Corpo e Sangue: "Durante a refeição, Jesus tomou o pão e, depois de o benzer, partiu-o e deu-lhe, dizendo: 'Tomai, isto é o meu corpo'. Em seguida, tomou o cálice em suas mãos, deu graças e o apresentou, e todos deles beberam. E disse-lhes: 'Isto é o meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vós e por todos. Em verdade eu vos digo: já não bebereis do fruto da videira, até aquele dia em que o beberei de novo no Reino de Deus'" (Mc 14, 22-25) "Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede" (Jo 6, 35). A Eucaristia representa o sacrifício de Cristo na cruz. Enquanto na Bíblia temos as passagens: “Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue não tereis a vida em vós”, e ainda: “Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue tem a vida eterna” (Jó 6, 53- 54). G.H., no entanto, comete o “ato ínfimo”, come da massa insípida, neutra, numa experiência de vômito e náusea: Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase adocicado como o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma – eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda. “ – – – porque não és nem frio nem quente, porque és
  • 19. 18 morno, eu te vomitarei da minha boca”, era Apocalipse segundo são João, e a frase que devia se referir a outras coisas das quais eu já não me lembrava mais, a frase me veio do fundo da memória, servindo para o insípido do que eu comera – e eu cuspia. O que era difícil: pois a coisa neutra é extremamente enérgica, eu cuspia e ela continuava eu. (PSGH p. 162) A desleitura do rito da comunhão implica, pois, a opção de G.H. pela imanência e não pela transcendência. Os rituais, de G.H. e o do cristão, apresentam efeitos opostos, como observa Olga de Sá: O cristão é assimilado pelo Corpo de Cristo e Nele se transforma. Se Ele é Deus, como disse, e como crê o cristianismo, transcende o homem. Portanto, pela manducação da hóstia, o cristão é alçado, na medida em que lha é permitido, à comunhão com Deus. Na experiência de G.H., a manducação da barata, protótipo da matéria-prima do mundo, produz pelo mesmo efeito de transformação, mas invertido, a redução da personalidade de G.H. ao nível da pura matéria viva. Há a “despersonalização”, isto é, G.H. se perde como pessoa, para alcançar-se como ser e encontrar sua identidade ao nível do puramente vivo. 5 G.H rompe com sua condição prévia através do nojo repugnante e do reconhecimento de si na figura da barata. Posteriormente a essa fase se dá o inicio da própria existência simbólica, na qual a representação se dá na ingestão da matéria de dentro da barata e corresponde a perda da identidade de G.H como antes era conhecida. Benedito Nunes6 aponta que a experiência de desapossamento da individualidade, de perda da identidade só se dá com a ingestão da barata. G.H quer se livrar de todo acréscimo e para isso precisa redimir-se na própria coisa numa espécie de comunhão negra, sacrílega e primitivista em que assimila a vida divina na própria matéria viva: O único destino com que nascemos é o do ritual. Eu chamava ‘máscara’ de mentira, e não era: era a essencial máscara da solenidade. Teríamos de pôr máscaras de ritual para nos amarmos (...). Pelo pecado original, nós perdemos a nossa máscara. (PSGH p.112)5 5– Sá, Olga: Paródia e Metafísica In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Ed. crítica. Benedito Nunes, coord. Florianópolis: 1988. 6 - Nunes, Benedito: O Itinerário místico de G.H. In: O drama da Linguagem, p. 65. 7 – é, pois, uma representação às avessas da Eucaristia, o animal imundo e impuro representando aquilo que é Sagrado: o corpo de Cristo.
  • 20. 19 O pecado de G.H consiste fundamentalmente em provar da matéria expelida pelo corpo da barata, contrariando a proibição bíblica de tocar no imundo. Pode-se assinalar também que além da transgressão a uma interdição bíblica, a narrativa de G.H também representa a realização de um ritual místico às avessas em que o imundo é objeto de comunhão7. Nos é sabido desde os tempos da criação que o ser humano é apontado como criatura que falha e pecam, somos naturalmente incitados a fazer o mal, embora tenhamos o livre-arbítrio em optar por não fazê-lo. A decorrência imediata do pecado é a culpa e o sofrimento, há, no entanto, outros tipos de punição que é dada de acordo com a gravidade do ato cometido. A mais severa das punições impostas ao homem é a danação, que corresponde à condenação da alma ao Inferno. E segundo a perspectiva cristã, a única forma para o homem livrar-se dessas penas é o arrependimento, a confissão como forma de unir-se novamente à divindade. Conforme já fora dito, segundo a ortodoxia cristã, o pecado constitui um ato consciente e voluntário de desobediência às leis divinas. A ação cometida por G.H caracteriza-se como pecado, portanto, por se opor diretamente ao texto do Levítico: “Tudo o que anda sobre o ventre ou que caminha sobre quatro ou mais patas, isto é todos os répteis que rastejam pelo chão, nenhum deles é comestível, porque são imundos. Não se tornem imundos com nenhum desses répteis que rastejam. Não se contaminem com eles e não sejam contaminados por eles “. (Lev. 11:42-43) (Grifos meus)”. Segundo a escritura o homem é, portanto proibido de provar, tocar ou alimentar-se dos seres ditos imundos. A barata não fora aí explicitamente citada, no entanto podemos enquadrá-la na ordem dos animais que rastejam e que andam sob o próprio ventre, assim como a serpente, seres imundos. Mas contrariamente ao que supõe a ortodoxia cristã a respeito das conseqüências do pecado, o que se observa na ação de G.H não é o arrependimento ou a culpa, mas sim uma revelação: G.H ao provar da gosma da barata descobre o que o imundo não é imundo e tudo que é vivo é feito do mesmo.
  • 21. 20 Ao provar da barata, G.H toma consciência de si mesma, outra vez aludindo a Adão e Eva, através da prova do fruto proibido que se chegará ao conhecimento: “Já então eu talvez soubesse que não me referia ao que eu fizera à barata mas sim a: que fizera eu de mim? É que nesses instantes, de olhos fechados, eu tomava consciência de mim assim como se toma consciência de um sabor: eu toda estava com sabor de aço e azinhavre, eu toda era ácida como um metal na língua, como planta verde esmagada, meu sabor me veio todo à boca” (PSGH p.49) (Grifos meus). Ao provar da gosma da barata G.H se coloca no mesmo nível desse ser, ambas faziam parte do mesmo plano e não havia mais diferença entre ambas. Há, portanto, a desumanização da antiga G.H para entrar no núcleo de uma outra natureza. E entrar nessa nova natureza não era pecado, mas era a danação de sua vida como era conhecida anteriormente: Eu sabia que entrar não é pecado. Mas é arriscado como morrer. Assim como se morre sem se saber para onde, e esta é a maior coragem de um corpo. Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu depois não pudesse talvez mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos meus próprios olhos nem aos olhos do que é Deus. (PSGH p.77) O ritual da manducação é a tentativa de tornar a experiência de G.H uma espécie de comunhão com Deus e de conhecer a si mesmo em essência. Na Bíblia ver é essencial para que se possa profetizar, Ex. 37, por exemplo: “Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode ver-me e continuar vivendo” (Ex 33,18. 20). Assim também G.H. deseja ver a face de Deus, mas teme (Lispector. 1998 p. 63), “[...] ai de mim, eu não estava à altura senão de minha própria vida” (Lispector. 1998 p. 162). “[...] Mas eu bem sabia que não só mulher que tem medo de ver, qualquer um tem medo de ver o que é Deus. Eu tinha medo da face de Deus [...]” (Lispector. 1998 p. 93). O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte — é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo. [...] E se a pessoa vê essa atualidade, ela se queima como se visse o Deus. A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima”. (PSGH. p. 97.)
  • 22. 21 O pecado, portanto, representa uma possibilidade de redenção. Provar da gosma branca da barata é a possibilidade de arrependimento: - Então - então pela porta da danação, eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do inferno em mim. Pois em mim mesma eu vi como é o inferno. (PSGH p.115) DANAÇÃO Ao provar da massa da barata G.H está consciente de que será condenada ao inferno, a danação é, portanto, a consequência do pecado cometido por G.H. O inferno de G.H é a aceitação da dor, a falta de piedade pelo destino humano, o que de certa forma faz desse inferno não uma punição, mas a nossa própria condição consciente de existência. A tentação do prazer. A tentação é comer direto na fonte. A tentação é comer direto na lei. E o castigo é não querer mais parar de comer, e comer-se a si próprio que sou matéria igualmente comível. E eu procurava a danação como uma alegria. Eu procurava o mais orgíaco de mim mesma. Eu nunca mais repousaria: eu havia roubado o cavalo de caçada de um rei da alegria. Eu era agora pior do que eu mesma Nunca mais repousarei [...] (PSGH p.123) Esta experiência de danação vivida pela narradora é um misto de gozo e dor, riso e pranto que pode em síntese ser apontado como a negação da esperança e da humanização, para afirmar a realidade da condição humana que nada mais é que nossa sujeição à dor: Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas mãos que são grossas e cheias de palavras [...] [...].
  • 23. 22 O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes me teria chocado: no mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade com a sua beleza. (PSGH.p.154) Temos aí outra inversão importante das escrituras: “Enquanto, segundo o cristianismo, é pelo amor que os homens podem realizar o melhor de si mesmos, para G.H. é pela ausência de sentimentos, pela redução da vida humana à sensação, à vida física e material, ao ‘mundo da coisa’, que o homem alcança a plenitude. Sem beleza, sem amor. Apenas a monotonia do ser, a ausência do gosto, a violência do neutro”. 8 8 Benedito Nunes9 aponta que na maioria das religiões Deus e o homem ocupam necessariamente, planos ontológicos distintos. Onde o homem é marcado pela carência, pela falta e está num plano inferior, enquanto que a divindade, representa a promessa de uma nova vida e da salvação e está sempre num plano superior. Ao contrário desse plano de ascensão, no entanto, o que G.H experimenta com a manducação é uma grande indiferença. A experiência de comunhão de sua alma com Deus resultam na percepção de que o que se que é apenas uma divindade humana. Não precisamos de alma. Deus que não é nem bom, nem mal, é apenas indiferente. Deus é a vida que segue seu rumo interessado somente em caminhar. Dói em ti que a bondade do Deus seja neutramente contínua e continuamente neutra? Mas o que eu antes queria como milagre, o que eu chamava de milagre, era na verdade um desejo de descontinuidade e de interrupção, o desejo de uma anomalia: eu chamava de milagre exatamente o momento em que o verdadeiro milagre contínuo do processo se interrompia. Mas a bondade neutra do Deus é ainda mais apelável do que se não fosse neutra: é só ir e ter, é só pedir e ter. (PSGH p) (Grifos meus) Depois do mergulho na consciência, da perda da identidade através da realização do ritual, o que acontece apenas é o retorno do cotidiano, a danação experimentada pela narradora, deste modo, não representa a condenação ou 8 – Emília Amaral O leitor segundo G.H. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. 9- Benedito Nunes, O itinerário místico de G.H. In: O drama da linguagem. P. 37.
  • 24. 23 punição, mas ao contrário, se converte em redenção e a paixão passa ser a única marca da existência humana. A experiência mística por qual passa G.H não leva a sua alma à comunhão com Deus como relata as escrituras, mas ao seu encontro com as coisas que compõem o real, o presente humano. Esta experiência não é algo transcendente, mas que se realiza na prática diária e cotidiana, através do reconhecimento da vida e do divino. O divino para G.H é o real. Não há alma imaterial. PAIXÃO OU O GOLPE DA GRAÇA Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão. O que estou sentindo agora é uma alegria. Através da barata viva estou entendendo que também eu sou o que é vivo. Ser vivo é um estágio muito alto, é alguma coisa que só agora alcancei. É um tal alto equilíbrio instável que sei que não vou poder ficar sabendo desse equilíbrio por muito tempo a graça da paixão é curta. (PSGH p.167) Na perspectiva cristã a Paixão de Jesus narrada segundo Mateus, Marcos, Lucas e João é o máximo do sofrimento experimentado pelo Filho de Deus para a redenção da humanidade. Será recompensada pela Ressurreição. A Paixão de G.H. se dá numa via sacra profana que a leva do entender ao não entender, do pensar ao adorar; em todo caso, da morte à vida tendo suposto um defrontar-se com o mais alto grau de prazer e martírio. “A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela.” (PSGH. p. 172). A isto ela chama paixão: “E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo”.(PSGH. p.171). Há uma oração feita por Jesus logo antes de sua Paixão, segundo João (17, 11d, 12c.21bc.22-23) Pai santo, guarda-os em teu nome que me deste, para que sejam um como nós. Quando eu estava com eles,
  • 25. 24 eu os guardava em teu nome que me deste; [...] Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós. [...] Eu lhes dei a glória que me deste para que sejam um, como nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e para que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste como amaste a mim. Na narrativa de GH, encontramos o contrário do texto anterior, que se constrói a partir da repetição e a transposição de certas expressões bíblicas: Meu Deus, dá-me o que fizeste. Ou já me deste? e sou eu que não posso dar o passo que me dará o que já fizeste? O que fizeste sou eu? e não consigo dar o passo para mim, mim que és Coisa e Tu. Dá-me o que és em mim. Dá-me o que és nos outros, Tu és o ele, eu sei, eu sei porque quando toco eu vejo o ele. Mas o ele, o homem, cuida do que lhe deste e envolve-se num invólucro feito especialmente para eu tocar e ver. E eu quero mais do que o invólucro que também amo. Eu quero o que eu Te amo. (PSGH p. 133). Na paixão o pecado também leva à danação, porém a perda da graça divina, a experiência do inferno, mais uma vez, ao contrario do que relata as escrituras, é percebida como algo positivo e revelador. G.H não quer mais ser interprete de uma relação com o divino, na qual é baseada apenas na esperança da transcendência, e que não reconhece a condição real de nossa existência. A perda da graça divina é o reconhecimento de Deus simplesmente no real. Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza. Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem. Ah, em mim toda está doendo largar o que me era o mundo. Largar é uma atitude tão áspera e agressiva que a pessoa que abrisse a boca para falar em largar deveria ser presa e mantida incomunicável - eu mesma prefiro me considerar temporariamente fora de mim, a ter a coragem de achar que tudo isso é uma verdade.(PSGH p.154)
  • 26. 25 Para G.H., “Deus já é.”G.H. redimensiona sua maneira de relacionar-se com Deus. Há, com isso, uma nova forma de acreditar no divino; por conseguinte, G.H. anseia incessantemente a presença “do Deus”, não apenas pela promessa e esperança de um reino distante, num plano ontológico distinto. Conforme afirma G.H.: eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua promessa! A notícia que estou recebendo de mim mesma me soa cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas me prometer a vida. E este é o maior susto que se pode ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou. (PSGH p. 143) O drama da paixão assemelha-se à narrativa dos Evangelhos do Novo Testamento; no entanto, quem a protagoniza não é o filho de Deus do Cristianismo, mas o mesmo sujeito que a relata, como designa Emília Amaral, acerca da narradora personagem. Ela é G.H.: uma mulher cujo nome se confunde com as suas iniciais e que, à primeira vista, não parece possuir a exemplaridade dos evangelistas, os seres escolhidos para revelar o divino, na medida em que se trata de um eu mutilado, de uma personificação do ser humano retificado. No entanto, é uma mulher quem substitui não apenas os evangelistas, mas a própria figura de Jesus Cristo, ocupando espaço do sujeito que se deixou atravessar pelo sagrado, que provou o conhecimento da divindade e que se reconheceu como fruto/parte dela. Segundo Emília Amaral, Clarice Lispector “desloca a paixão de Cristo do plano da transcendência para o da imanência”, ou seja, “segue um modelo bíblico, mas o reverte, frequentemente, na construção de seu próprio itinerário”. “Enquanto as narrativas bíblicas constituem partes dos Evangelhos que relatam os sofrimentos de Cristo como foram vistos ou conhecidos por seus discípulos, em PSGH a paixão é vivida e narrada pela protagonista”. Assim, a autora diferencia a paixão de G.H. da paixão segundo G.H. Se a primeira é uma “experiência-limite”, “porque a manducação da barata levara G.H. à renúncia de sua vida pessoal, de seu ser como linguagem”, a segunda também o é, na medida em que “atinge a natureza do ser produtor de linguagem: o escritor”.
  • 27. 26 A obra estrutura-se, portanto, entre o silêncio da imanência que será conquistada pela personagem G.H. e a transcendência da linguagem com a qual este silêncio será relatado pela narradora G.H. Trata-se de uma ontologia, uma metafísica empiricamente construída para “desvelar o ser contra a linguagem (fazendo linguagem), contra a razão que o encobre, contra a transcendência, que, segundo a narradora, o ultrapassa. A Paixão é dor contra o hábito, que insensibiliza. É a vida, a totalidade, contra o ‘eu’, o puramente psicológico”. 10 (Amaral . 2005 p. 36) Ainda nessa perspectiva de reversão as escrituras na qual se constrói a narrativa há algumas transposições feitas por G.H no “golpe da paixão”: “A revelação do amor é uma revelação de carência “Bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilacerante reino da vida” (Lispector. p. 148 ). Enquanto que nas escrituras temos: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3) Dentre as transposições mais expressivas, ainda que apareça fragmentada ao longo do texto, está a oração “Ave Maria”. Constituída de duas partes, a primeira é uma junção de dois versículos bíblicos, saudação do anjo Gabriel: “Alegra-te (ave), [Maria,] cheia de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1,28) acrescido da exclamação de Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre!” (Lc 1, 42). A segunda parte é uma súplica dos fiéis: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte. Amém!” Como é comum aos cristãos que rezam a Ave Maria dirigirem-se à mãe de Jesus com a expressão “minha mãe”, também ela será retomada aqui como uma transposição: 10 “Santa Maria, mãe de Deus, ofereço-vos a minha vida em troca de não ser verdade aquele momento de ontem” (Lispector. 1998p.72). “ e eu também sabia que na hora de minha morte eu também não seria traduzível por palavra (Lispector.p. 74). “Reza por mim, minha mãe, pois não transcender é um sacrifício” “O que sai da barata é: “hoje”, bendito o fruto de teu ventre” “ [...] porque, minha mãe, eu me habituei” [...] (PSGH, 79). “Mãe: matei uma vida, e não há braços que me recebam agora e na hora do nosso deserto, amém. Mãe, tudo agora tornou-se de ouro duro. Interrompi uma coisa organizada, mãe, e isso é pior que matar, isso me fez 10 - AMARAL, Emília. O leitor segundo G.H. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005
  • 28. 27 entrar por uma brecha [...] estou com medo de minha rouquidão, mãe. A barata é de verdade, mãe. Mãe, eu só fiz querer matar, mas olha o que quebrei: quebrei um invólucro! [...]De dentro do invólucro está saindo um coração grosso e branco e vivo como pus, mãe, bendita sois entre as baratas, agora e na hora desta tua minha morte, barata e jóia (PSGH 90. Grifos meus). Transposição relativa ao Reino de Deus. Excepcionalmente ao que se refere aqui, claramente, à resposta dada a Pilatos por Jesus, em sua paixão: “O meu reino não é deste mundo” (Jo 18, 36): “ Então pela porta da danação eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do inferno em mim” (PSGH, 115). (Grifos meus) “Porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus já é (PSGH, 143)”. (...) E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua promessa. [...] Mas o Deus é hoje e seu reino já começou. (...) “E seu reino, meu amor, também é deste mundo”. “ Meu reino é deste mundo... e meu reino não era apenas humano. Eu sabia. Mas saber disso espalharia a vida-morte, e um filho no meu ventre estaria ameaçado de ser comido pela própria vida-morte, e sem que uma palavra cristã tivesse sentido... Mas é que há tantos filhos no ventre que parece uma prece” (PSGH, 143. Grifos meus). Por analogia, associa-se, logo o gosto quase nulo da massa branca da barata à hóstia. É a própria narradora quem o diz: “Ah, as tentativas de experimentar a hóstia.” (PSGH. p. 149). Olga de Sá comenta essa analogia: “Um fenômeno místico. O cristão é assimilado pelo Corpo de Cristo e Nele se transforma. Se Ele é Deus, como disse, e como crê o cristianismo, transcende o homem”. Portanto, pela Eucaristia, “manducação da hóstia”, o cristão é alçado à comunhão com Deus. Com G.H. dá-se o mesmo efeito de transformação, só que às avessas. A manducação da barata, protótipo da matéria-*prima do mundo”, produz “a redução da personalidade de G.H. ao nível da pura matéria viva.” Assim G.H. se despersonaliza, “se perde como pessoa, para
  • 29. 28 alcançar-se como ser e encontrar sua identidade ao nível do puramente vivo”. (...)“porque para a manducação da barata, G.H. renunciou à sua vida pessoal, a seu ser como linguagem” 11 G.H nega a idéia tradicional de existência de um Deus providencial, pessoal e transcendente. Deus é o que existe, não é nome próprio, mas, substantivo comum e é por esse motivo que a partir de sua experiência irá se referir a Ele como “o Deus”, artigo definido: “o Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos esta luz sempre atual, e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo”. (Lispector. 1998 p.142-143). A G.H só lhe foi possível saber o que é Deus através de um eu desapossado de si mesmo, no qual a narradora o identifica por “mim”: “Eu não sou Tu, mas mim és Tu. Só por isso jamais poderei Te sentir direto: porque és mim”. (Lispector.p.126). Para G.H só ao sujeito despido de identidade, de construção humana é capaz de sentir o que é Deus.11 Para Reis12, o esmagar da barata corresponde, para G.H., a deixar-se esmagar. E tal identidade entre ambas torna o ritual da comunhão, presente na obra, “uma paráfrase ao gesto ensinado pelo Deus que se fez homem”. Ou seja: assim como Cristo bebeu o próprio sangue na Eucaristia, G.H. realiza o equivalente a beber o próprio sangue, desta forma alcançando, simbolicamente, um outro estágio, no qual apreende a dimensão da natureza humana e “conhece o sofrimento, num modo que significa a conquista do Ser”. 11 - SÁ, Olga. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 5-12. 12 - Luzia de Maria de Rodrigues Reis, “O Trágico da Paixão: Uma Leitura de PSGH” . 1981. p.148 -151
  • 30. 29 Para G.H nossa relação com Deus é guiada excepcionalmente pela necessidade: a Fé e a Fome. O próprio Cristianismo nasce a partir da Fé na Ressurreição de Cristo, após sua Paixão. Nossa carência determina o quanto de Deus teremos “minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é a minha medida”: (...)E eu tenho. Eu sempre terei. É só precisar, que eu tenho. Precisar não acaba nunca pois precisar é a inerência de meu neutro. Aquilo que eu fizer do pedido e da carência esta será a vida que terei feito de minha vida. Não se colocar em face da esperança não é a destruição do pedido! e não é abster-se da carência. Ah, é aumentá-la, é aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência. (...) (...)E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele, extraímos. (Não sei o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o que fatalmente nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (A nostalgia não é do Deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível - minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.) Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. (Lispector . 1998. p.145-146) (Grifos meus). Deus nos usa, pois ele precisa ser amado e para que amemos é necessário precisar de tudo, estar vazio. Essa é, portanto a clave da paixão. G.H conclui, por fim que tudo está e assim, por exemplo, o que ainda não descobrimos é porque certamente ainda não precisamos. A revelação do amor é também uma revelação de carência. Abdicando a esperança, G.H celebra a própria carência, assume sua falta em ultima instancia a sua condição de vida: (...)minha vida antiga me era necessária porque era exatamente o seu mal que me fazia usufruir da imaginação de uma esperança que, sem essa vida que eu levava, eu não conheceria. E agora estou arriscando toda uma esperança acomodada, em prol de uma realidade tão maior que cubro os olhos com o braço por não poder encarar de frente uma esperança que se cumpre tão já - e mesmo antes de eu morrer! (PSGH p.155) G.H precisou passar pelo inferno da existência para poder reconhecer que há um modo muito mais profundo de amar que prescinde desse plano estético:
  • 31. 30 eu me queimo nesta descoberta: a de que existe uma moral em que a beleza é de uma grande superficialidade medrosa. Agora aquilo que me apela e me chama é o neutro. Não tenho palavras para exprimir, e falo então em neutro. Tenho apenas esse êxtase, que também não é mais o que chamávamos de êxtase, pois não é culminância. Mas esse êxtase sem culminância exprime o neutro de que falo. (PSGH. p.155) Temos na narrativa de G.H então, dois tempos de sua experiência existencial: anterior e posterior à epifania, A Paixão Segundo G.H. O próprio tema “paixão” tem sua fundamentação na linguagem contraditória. Lida de um ângulo cristão, a paixão leva indubitavelmente à ressurreição. A vida nova supõe o abandono completo até a morte. Desde a pré-história eu havia começado a minha marcha pelo deserto, e sem estrela para me guiar, só a perdição me guiando, só o descaminho me guiando até que morta pelo êxtase do cansaço, iluminada de paixão, eu enfim encontrara o escrínio. E no escrínio, a faiscar de glória, o segredo escondido. [...] Dentro do escrínio o segredo: Um pedaço de coisa. Um pedaço de ferro, uma antena de barata, uma caliça de parede. Minha exaustão se prostrava aos pés do pedaço de coisa, adorando infernalmente. (PSGH. p. 131) E como o Rei crucificado, que deu a vida livremente (Jo 10,17-18), G.H. afirma: “para ter esse segredo [...] de novo eu daria a minha vida”. [...] “A mim me fora dado demais. Que faria eu com o que me fora dado? ‘Que não se dê aos cães a coisa santa’.” (PSGH p. 89). Essas palavras bíblicas, recordadas pela narradora, no contexto do Evangelho de Mateus (7,6) podem se referir à Eucaristia que não deve ser dada aos indignos dela. A narradora reconhece através da danação que sua vida anterior é que era o seu mal, posto que era apenas a imaginação vivida de uma esperança de algo melhor, era preciso encontrar a redenção, mas esta redenção deveria ser encontrada no real, no cotidiano de sua existência. Na ortodoxia Cristã temos a redenção pelo sangue de Jesus, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça,” (Ef 1:7); “O qual nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu amor; Em
  • 32. 31 quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos pecados” (Cl 1:13-14). Mas, ao contrário desta, a redenção de G.H se constitui na “própria coisa E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata”. (Lispector. 1998 p.) A náusea, o nojo seria como negar a sua primeira vida. G.H transcende ao próprio ato de comer a barata, acreditando que com isso teria a maior transmutação de si em si mesma. A esse ato G.H dá uma máxima valoração, quando na verdade percebe que não esta preparada para admitir uma vida maior que a sua e, acaba por tentar cuspir o corpo ingerido, constatando que está preparada apenas para a vida humana. A experiência de G.H é, portanto, uma experiência de sofrimento de perda/busca de identidade da narradora que reinterpreta a história cristã da Paixão de Cristo. Reconstruída, no entanto, às avessas de toda a ciência convencional de princípios e moralidade, essa narrativa afirma que a Paixão, o sofrimento, a falta é em essência a condição humana. E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo. (PSGH p. 171) Nesse sentido a Paixão de Cristo representa o sofrimento de Jesus a propósito de salvar a humanidade, Cristo é, portanto, a promessa à realização, através de sua morte e de seu sofrimento ele nos salva, mas para isso ele precisara aguentar a todo suplicio. A personagem do Romance também experimenta a Paixão, mas, em oposição a Cristo que vive a paixão porque chega ao extremo do amor (Jô 13,1: Antes da festa da Páscoa, Jesus sabia que tinha chegado sua hora. A hora de passar deste mundo para o Pai. Ele que tinha amado os seus que estavam no mundo amou-os até o fim). (Grifos meus). GH defronta-se com a vida na sua totalidade, esgotada, que já nem é vida, é morte. Então se torna possível “o apreender a vida em si, na sua imanência, com horror e encantamento”, não o transcender, porque “a transcendência é uma transgressão” (PSGH p. 54).
  • 33. 32 Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria o antipecado, pecado assassino de mim mesma. O antipecado. Mas a que preço. Ao preço de atravessar uma sensação de morte. Levantei-me e avancei de um passo, com a determinação não de uma suicida mas de uma assassina de mim mesma. (PSGH, 158) Gotlib13 sustenta: “a história da paixão é a história da vida crua, sangrando, no que tem de mais pungente: toda a sua grandeza e toda a sua miséria”. Portanto, parábola que se inscreve sobre a Paixão de Cristo. Perdendo o próprio nome, G.H. identifica-se com todos os seres. As iniciais G.H. encobrem-lhe o verdadeiro nome. Falta-lhe a identidade, já que é a partir do nome que se tem a identidade. Portar um nome é, segundo a Bíblia, estar apto a exercer a missão que o nome carrega. Abrão, ao ser chamado a ser “pai de uma multidão”, passa a ser denominado Abraão (Gn 32,27-28). A própria ausência do nome insinua-se como busca de sua identidade. É o sofrimento de buscar a própria identidade e, depois, de narrar a busca feita que culmina desistência, ápice da Revelação:13 A paixão visa à posse do ser, à posse da identidade última, perseguida em páginas de uma escritura arfante, em que o texto respira e transpira esse itinerário do indizível. Paixão do homem, sua via-crucis, a insistência busca a desistência final, como glória e prêmio. Desistir é revelação última, a epifania das contradições entre ser e linguagem. (grifos da autora) 14 G.H. narra ao leitor o caminho árduo e conflituoso percorrido o caminho que compreende a saída de seu bem-estar, conforto e organização, para o ingresso no caótico desconhecido. Irá passar nessa transgressão por um longo caminho de perda/busca de identidade, no qual irá sofrer, se despersonalizará, por fim, irá construir todo um caminho até chegar à conclusão de que apenas a mudez é capaz de revelar o que viveu, sendo assim será a desistência a sua última revelação: 13 - Nádia Gotilib. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1990. p.06
  • 34. 33 é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição. A desistência é uma revelação. (PSGH p.173) 14 CONCLUSÃO 14 - Olga de Sá. Paródia e Metafísica. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Ed. crítica. Benedito Nunes, coord. Florianópolis: 1988. p. 213.
  • 35. 34 Conforme se pretendeu evidenciar no presente trabalho, a obra de Clarice Lispector pode ser lida como uma experiência mística individual, uma releitura bíblica, ou no mínimo uma obra que dialoga com a escritura cristã. A narrativa de Lispector, subverte ironicamente o sentido cristão de padecimento imposto para nos testar, impondo a GH a tentação através da barata. Percebemos que a utilização da paródia como recurso da narrativa nesta obra, não se dá no sentido mais tradicional do termo que comumente é associado ao cômico burlesco, ao contrario é através de uma reelaboração irônica séria a temas, conceitos e princípios religiosos que são fundadores da moralidade e ortodoxia cristã que se constitui a paródia na obra. Gotilib analisa o texto como uma parábola, o próprio título já nos alerta para a perspectiva da paixão da narração (“A Paixão Segundo G.H.”) que se dá concomitantemente à narração da paixão. Nos evangelhos, a paixão de Jesus é narrada segundo a perspectiva de Mateus, Marcos, Lucas e João e é o máximo do sofrimento experimentado pelo Filho de Deus para a redenção da humanidade. O Cristo se humaniza ao extremo da paixão. “Porque, entre tantas paixões, esta história também pode ser a paixão místico-religiosa do Cristo que, pela via-crucis, passa pela dor e pelo prazer de redimir a humanidade e reintegrá-la a todas as coisas e a Deus”. Isso justificaria apresentar o romance tal como um evangelho, agora segundo G.H. 15 A Paixão de G.H., avessa à experiência cristã, experimenta a dupla paixão: a de viver e a de relatar o que viveu, se dá numa via-sacra profana; em todo caso, da morte à vida tendo suposto um defrontar-se com o mais alto grau de prazer e martírio, desumanizando-se, igualando-se a todo e qualquer ser.15G.H. narra a 15 - Nádia Gotilib. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p.7. 16 – NUNES, Benedito. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. p. 270 17 – Benedito Nunes. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. p. 271
  • 36. 35 própria paixão ela própria conduz à perspectiva teológica e, no narrar, experimenta nova paixão. Aqui, esse termo ganha amplitude semântica: a paixão “pode ser igualmente força de escrita” como quer Benedito Nunes: “Passional e apaixonante, esse texto de nossa autora mergulha em veios arqueológicos, em camadas afetivas culturalmente soterradas da sensibilidade humana”. O curso histórico da palavra ‘paixão’ atesta a perda da riqueza cumulativa dos significados distintos e correlatos que se constelaram no termo grego pathos, do qual se originou. Filosoficamente, a avaliação do conceito respectivo – passividade do sujeito, experiência infligida, sofrida, dominadora, irracional – por oposição a logos ou a phronesis, que significam pensamento lúcido e conduta esclarecida; variou da posição problematizante dos filósofos gregos da época clássica – Sócrates, Platão e Aristóteles – à posição negativa dos filósofos estóicos e de seus descendentes no início da época moderna, Descartes e Espinosa. “O grego sempre viu”, afirma Dodds, “na experiência de uma paixão, algo de misterioso e assustador, a experiência de uma força que está dentro dele, que o possui em lugar de ser por ele possuída”. A própria palavra pathos o testemunha; do mesmo modo que seu equivalente latino passio, significa aquilo que acontece a “um homem, aquilo de que ele é a vítima passiva” 16 O mesmo autor atesta que o relato do transe, ao qual se entremeia a compreensão que G.H. vai adquirindo de si própria, à medida que interpreta a sua experiência — uma experiência já vivida, no dia anterior e por isso narrável —, se assemelha a uma “transposição da via mística se não for a sua réplica parodística”. “ao misticismo stricto sensu, diferente da piedade religiosa, que se desenvolveu em todas as culturas segundo padrões distintos e, às vezes, à margem da religião institucionalizada: o caminho individual de acesso” à divindade, através de uma experiência prática da qual resultará um desprender-se de si mesmo e da realidade. Acesso que é tanto conhecimento interno, contemplativo, quanto união e desprendimento. “União amorosa para os cristãos, na base da crença de um deus pessoal, liberação bramânica da verdadeira natureza divina do homem e liberação budista da existência ilusória” 17 “A escala dos sentimentos contrários que acompanham o transe — amor e ódio, desespero e esperança, alegria e dor — nos é apresentada como uma trajetória espiritual através de figuras teológicas e religiosas” sempre
  • 37. 36 contraditórias: “santidade e pecado, salvação e danação, pureza e impureza, inferno e paraíso. Repulsiva e atraente, ominosa e numinosa, a barata assume as proporções de uma teofania; é um numem, uma forma primitiva, interdita do sagrado”. 18 Não sem propósito, a narrativa começa no caos, ou seja, com uma desarticulação tanto do discurso, quanto das idéias que através das paródias e representações nos remetem diretamente a idéia de Caos Cristão. Determinada a organizar esse caos em linguagem, G.H dá inicio então ao relato de sua experiência. Apenas provando o imundo é que G.H poderá se libertar de sua pureza fácil, artificialmente construída. Será preciso que ela se perca, para que então possa se encontrar. É por isso que ela afirma que cometeu o antipecado, o ato necessário para se aproximar de uma realidade na humana, mas que é viva e que assume nosso caráter de falta, de carência. A narradora pede auxilio; traz o leitor para dentro de sua paixão implicando- o na dor da travessia que se faz; então, segura a mão de seu interlocutor para auxiliá-la ao longo da narrativa, a fim de que seja capaz de suportar relatar o ocorrido. “Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão” Lispector. 1998. p. 13). Isso faz com que se recorde do início da paixão de Jesus, no Getsêmani, quando, em extrema angústia, também tem um interlocutor, que o auxilia: (“Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava”. Lc 22,44). “O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado[...]. Falta apenas o golpe da graça que se chama paixão” (PSGH, 167). 18 Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em estado de graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de Perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente. (PSGH. 140- 141) 18 - Benedito Nunes. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. p. 276-277
  • 38. 37 A Paixão Segundo G.H. é, portanto, a construção de uma narrativa de estrutura circular: não começa, continua; não termina, aponta para a continuidade. Rompe com a tradição, com o enredo factual. A própria estrutura é um convite à reflexão, posto que, enquanto obra aberta, deixa espaço para que nela se penetre não sem partilhar também da paixão e saia livremente, porém carregando as marcas de quem “vive” o romance. Foi assim com o Jesus Cristo crucificado; também saiu carregando as marcas da Paixão. Aliás, através delas é que foi reconhecido depois de ressuscitado. G.H na sua superficialidade era “a imagem do que não era”; daí deduz: “eu tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o ‘não’, tinha o meu oposto” (PSGH p. 28). Entra no quarto-minarete, que reverbera em luz e que é o “retrato de um estômago vazio”. O quarto é o avesso de sua casa, cheia de sombras e umidade: “O quarto era o oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara de meu talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha ironia serena, de minha doce e isenta ironia: era uma violação das minhas aspas” (PSGH, 28). “Entra” enfim, na barata “ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso.” “Era uma máscara” (PSGH.p.73). (Grifos meus). A barata é pelo avesso e, como G.H. tem que passar pela barata, sua narrativa também atravessa o avesso, o reverso da mística e da Escritura Bíblica. Assim é que Clarice constrói sua obra através de uma desconstrução anterior, por sobreposição, ou, como quer G.H., ela “decalca”. Assim, Clarice comunica a experiência de G.H., personagem e narradora, e a sua própria ao seu leitor ideal: “pessoas de alma já formada”, capazes também de atravessar o deserto, refazer a PAIXÃO, porque “sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar” REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  • 39. 38 ALTER, Robert, Kermode Frank. Guia Literário da Bíblia. Editora Unesp. AMARAL, Emília. O leitor segundo G.H. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005 BÍBLIA SAGRADA. Edição pastoral. Paulus - 1990 BORELLI, Olga A difícil definição, In: LISPECTOR, C. A paixão Segundo GH Ed. Critica Coord. Benedito Nunes. Madrid, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, San José da Costa Rica, Santiago de Chile: Allca XX, 1988. (Coleção Archivos, 13), Florianópolis, Editora UFSC, 1988 CÂNDIDO Antonio .No raiar de Clarice Lispector. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970 Gotilib, Nádia. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p.5-12. HUTCHELON, Linda. Uma teoria da paródia. Trad. Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70 KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector: do biográfico ao literário. São Paulo: EDUC/Limiar, 2003. LISPECTOR, Clarice A Paixão Segundo G. H. Romance Rocco. Rio de Janeiro 1998. NUNES, Benedito. “ O drama da Linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo Atica, 1989 NUNES, Benedito. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os sentidos da paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. pp. 269-281.
  • 40. 39 ROSEMBAUM, Yudith. Clarice Lispector. Publifolha. 1ª Edição, 2002 SÁ, Olga de Clarice Lispector . A travessia do Oposto. São Paulo: Annablume, 1993. ________. Paródia e Metafísica. Ed Critica. Benedito Nunes, Coord. Florianópolis: 1988. SANT’ANNA. Afonso Romano de. O ritual epifânico do texto. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Edição crítica. Coord. de Benedito Nunes. 2ª ed. Madrid – São Paulo: ALLCAXX – Scipione Cultural,1997.