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HUBERTO ROHDEN
O HOMEMSUA NATUREZA, SUA ORIGEM E SUA EVOLUÇÃO
UNIVERSALISMO
ADVERTÊNCIA
A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar
é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento.
Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a
transição de uma existência para outra existência.
O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado.
Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores.
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se
aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa
mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer
convenções acadêmicas.
O HOMEM
Massas estrelares, galáxias, um planeta incandescente que se resfria e se
cobre de Vida – minerais, organismos vivos, células, vegetais, animais, e,
coroando tudo: o homem.
O homem é uma creatura singular. Um estupendo fenômeno. Um grande
enigma. Com o seu aparecimento, a natureza assinala o maior marco na sua
própria evolução.
O homem é uma “descontinuidade na continuidade” da Vida. É ele a única
creatura, capaz de creatividade. Somente ele possui faculdades e dons que o
tornam único entre as outras creaturas. Diferentemente dos animais, não é um
simples fato na paisagem em que vive, mas é um fator consciente que
transforma e inventa. É uma creatura creadora.
Entre o Homo erectus e o Homo sapiens, medeia uma grande escalada.
Desde que o homem assumiu a condição humana de andar ereto – que passou
da posição horizontal para a vertical –, há milhões da anos, e possivelmente
nas savanas africanas, às margens do rio Omo, iniciou ele sua maior aventura
cósmica, rumo a sua própria plenitude.
Este livro não é apenas uma brilhante narrativa da natureza, da origem e da
evolução do homem. Fundamentalmente é muito mais: é um verdadeiro tratado
de filosofia univérsica. Uma cosmovisão do homem integral e dos fenômenos
humanos, raramente atingida por outros pensadores.
Rohden, como pensador do futuro e historiador de idéias, centrando na sua
poderosa intuição, caminha, desde a concepção mitológica do homem, passa
pelo conceito zoológico e culmina na visão ontológica, que é uma síntese da
evolução biológica, histórica, cultural e metafísica do homem. Única visão que
dá “sentido de Vida” à nossa própria existência.
A solução rodheniana do problema é grandiosa e simples: creação e evolução
se harmonizam e se completam. O universo é uma unidade na diversidade. O
Uno, continuamente, se manifestando no Verso. A essência se revelando
como existência. A Vida Infinita se finitizando no vivo.
Rohden afirma: “Na realidade, o Universo seria incompleto sem o homem.
Faltaria o fator auto-determinante para completar os fatos alo-determinados,
extra-hominais. No homem converge a pirâmide cósmica num ápice
culminante.”
PREFÁCIO
Quase todos os livros que tratam do homem limitam-se a focalizar a sua
evolução multimilenar – desde os tempos remotos em que ele vivia, como
quadrúmano trepador, nas florestas primevas, de cujos frutos se nutria – até ao
homem da Era Atômica e Cosmonáutica, que chegou à conquista da lua.
Esses livros tratam da evolução física-mental do homem, mas passam em
silêncio a sua origem metafísica-racional; falam dos canais, mas nada dizem da
fonte.
A ciência integral dos nossos dias exige uma base metafísica para todas as
coisas físicas, porque, segundo Einstein, “do mundo dos fatos não conduz
nenhum caminho para o mundo dos valores; porque estes vêm de outra
região”.
Os valores da metafísica não podem ser derivados dos fatos da física, mas têm
a sua origem “em outra região”, no mundo metafísico. Os fatos são analisáveis
pela inteligência, ao passo que os valores são intuídos pela razão espiritual, a
que Einstein se refere muitas vezes: “As leis fundamentais do cosmos não
podem ser descobertas pela lógica, mas somente pela intuição”.
Esta síntese de fatos físicos e valores metafísicos formam a ciência integral de
nossos dias.
Os que falam apenas da condição histórica do homem através de sucessivas
potencialidades não fazem jus da ciência integral, que inclui também a
Potência, de que derivam todas as potencialidades.
O homem só pode ser compreendido quando visualizado à luz da sua realidade
integral, como um fato físico e como um fator metafísico, como frisam Albert
Einstein, Victor Frankl e outros representantes da ciência integral. Com a
ciência parcial aceitamos que o homem tenha vindo através de diversas formas
e potencialidades históricas (Darwin afirma que o homem é mesmo anterior aos
símios) – com os expoentes da ciência integral admitimos que todas as
potencialidades são canais que provêm de uma fonte ou Potência; o homem
físico supõe logicamente uma fonte ou causa metafísica. Do contrário uma
potencialidade menor (forma animal) não poderia desenvolver-se numa
potencialidade maior (homem), porque o maior não está contido no menor, e
dele não pode sair. Diz a lógica e o bom senso da matemática que um efeito
não pode ser maior do que sua causa, mas pode servir-se duma condição ou
canal menor através do qual flui.
Nenhum homem sensato admite a teoria mitológica de certos teólogos,
segundo a qual o primeiro homem teria aparecido na terra como homem
perfeito, que depois se teria tornado imperfeito por intervenção de uma
entidade antidivina. A história sabe que o homem surgiu com o mínimo grau de
perfeição, mas era dotado de perfectibilidade, que lhe veio da própria Potência
inicial, que se manifesta através de potencialidades várias, através da
evolução. A evolvibilidade deriva da Potência inicial, e essa evolvibilidade se
manifesta gradualmente, no tempo e no espaço, através de potencialidades
sucessivas.
A expressão de Moisés, no Gênesis, de que o corpo do homem é feito de
“substância da terra”, é cientificamente exata, quando se considera que nada
há no corpo humano que não exista nos elementos da natureza. A idéia de que
Deus tenha feito um boneco de barro é uma falsa interpretação duma grande
realidade, de que Moisés sabia.
Com a admissão de uma Potência como causa ou fonte de todas as
potencialidades evolutivas enfrentamos o ponto nevrálgico do problema, que
divide a meneia integral dos grandes gênios, da ciência parcial dos talentos
medíocres. Já no seu tempo, século 17, escrevia René Descartes, que nada
pode ser provado analiticamente se não supuser algo como um postulado
intuitivo.
A intuição não é uma hipótese, vaga e incerta, mas é uma evidência imediata e
certa. Exemplifiquemos: um cano de meia polegada e poucos metros de
comprimento emite milhares de toneladas de água, que não se esgotam
jamais; ninguém dirá que esta enorme quantidade de água tenha estado
contida no encanamento, ou mesmo na caixa de água ligada a esse; todo o
homem sensato admite que essas toneladas inesgotáveis de água vêm de uma
fonte perene, não situada nas ruas da cidade, mas em alguma serra longínqua,
donde a água é canalizada; a água vem da fonte e flue através dos
encanamentos. E embora os habitantes da cidade não tenham visto jamais
essa fonte longínqua, todos supõem, consciente ou inconscientemente, sua
existência, como um postulado certo, e não como uma hipótese mais ou menos
provável.
Aplicando ao homem esse símile, os gênios da ciência integral admitem como
postulado uma Potência inicial, da qual derivam as potencialidades, como os
canais derivam de sua fonte. Os representantes da ciência parcial se
contentam com a análise dos canais ou potencialidades físicas, ao passo que
os gênios da ciência integral sabem intuitivamente que qualquer canal repleto
de água supõe como certo uma fonte de águas perenes, uma Potência como
causa de todos os efeitos ou potencialidades. Quem nada supõe como
postulado nada pode provar – assim como o arquiteto não pode construir um
edifício sem supor a terra; mas essa terra não é obra dele; é um postulado,
uma evidência imediata para o construtor.
Neste livro admitimos todos os fatos históricos que a ciência provou como
etapas evolutivas do homem, mesmo os fatos anteriores à própria
hominalidade; mas além desses tatos históricos afirmamos a inelutável
necessidade de uma Potência que justifique essas potencialidades. E
admitimos esse postulado intuitivo não em virtude de uma tal ou qual crença
religiosa, mas como o imperativo categórico da ciência integral, que não admite
efeitos, menores ou maiores, sem admitir uma causa máxima, como fonte ou
Potência. É pelo bom senso da lógica e matematicidade que somos obrigados
a aceitar esse postulado intuitivo como base indispensável para a ciência
analítica.
Este livro, portanto, não se baseia em nenhuma teoria mitológica, nem numa
teoria zoológica, mas sim na tese cosmológica da própria realidade integral. O
homem não pode ser compreendido a não ser à luz da ciência integral.
Há quem tente invalidar este argumento alegando que duma causa menor
pode vir um efeito maior, como provam os fatos da natureza. Pois, não é a
planta maior que a semente? E não é a ave mais perfeita que o ovo de que
nasceu?
Respondemos: No mundo orgânico nada prospera sem certas condições, como
água e luz, umidade e calor. Uma semente sem água e calor não brota; um ovo
sem umidade e calor morre sem eclodir em ave. Disto sabe até a galinha,
quando esquenta os ovos com o seu corpo, e deixa umidecê-los abandonando-
os periodicamente, a fim de provocar umidade pelo revezamento de calor e frio;
também o criador de aves por incubadeira elétrica sabe disto; por isto mantém
o calor e umidade na incubadeira.
Água e luz, umidade e calor, são as Potências Cósmicas que se servem da
semente e do ovo para os transformar em planta e ave. A semente e o ovo
funcionam como condições, de que a causa das Forças Cósmicas se servem
para produzir o efeito.
As Forças Cósmicas são de ilimitada potência, que como causa necessitam de
condições limitadas para produzir seus efeitos.
Também o homem é um efeito da Potência Cósmica que se revela em
potencialidades telúricas.
Não estranhe o leitor se, nas páginas deste livro encontrar repetidas certas
verdades fundamentais. Estas reiterações, em formas várias, são propositais,
porque sendo o homem o fenômeno menos compreendido, somos obrigados a
iluminar esse mistério de todos os lados, a fim de induzir o leitor a uma auto-
compreensão.
Repetimos que não nos guiamos por nenhuma das teorias tradicionais sobre a
origem do homem, nem mitológica, nem zoológica, mas remontamos a uma
tese cosmológica, talvez de difícil compreensão, mas de absoluta verdade.
O HOMEM COMO PARTE
INTEGRANTE DO UNIVERSO
Um dos equívocos tradicionais que tornam incompreensível o homem é a teoria
de que ele não seja um fator integrante do cosmos, mas sim elemento
adventício e heterogêneo.
Na realidade, porém, o Universo seria incompleto sem o homem. Faltaria o
fator auto-determinante para completar os fatos alo-determinados, extra-
hominais. No homem converge a pirâmide cósmica num ápice culminante.
A origem do homem não marca uma descontinuidade no fluxo geral da
continuidade vital dos seres terrestres; a vitalidade marcada pelo homem não é
uma heterogeneidade, mas uma fase avançada da homogeneidade vital do
Universo. Não houve, com o advento do homem, uma intervenção
extemporânea nos acontecimentos cósmicos, mas sim a mais alta eclosão do
Uno do Universo no plano horizontal do Verso.
O homem não marca um novo início absoluto, mas apenas um início relativo,
uma continuação da creatividade universal.
Com o advento do homem, a entropia da degenerescência energética do
cosmos creou o pólo complementar da ectropia da sua intensificação
energética, o que levou Teilhard de Chardin a afirmar que o homem é “o ponto
ômega do Universo”.
Nem a teoria mitológica da teologia, nem a teoria zoológica do darwinismo
fazem jus ao fenômeno homem; somente a tese cosmológica justifica
integralmente a realidade humana. O homem de hoje estava, desde o início do
Universo, contido potencialmente na Potência inicial, donde fluiram (mais tarde)
todas as potencialidades do mundo mineral, vegetal, animal, culminando no
homem. Todos os canais existenciais do Verso brotaram, através dos períodos
cósmicos, da única fonte do Uno; todos os finitos emanaram do Infinito.
Nenhum finito veio de outro finito, mas todos de fluiram através de finitos
anteriores. É lógica e matematicamente impossível que um menor seja causa
de um maior; mas é admissível que um menor tenha servido de canal e veículo
para um maior.
É fora de dúvida, e historicamente provado, que o corpo humano fluiu através
de organismos infra-hominais – animais, vegetais e minerais – mas é
logicamente impossível que o não-homem tenha sido causa e fonte do homem.
O que nos proíbe de aceitar um fator não-humano, como causa do homem, não
é nenhuma crença ou dogma religioso, mas é a inexorável matematicidade da
lógica e do bom senso.
O homem é parte integrante do Universo, porque todos os efeitos finitos vêm
necessariamente de uma causa infinita; todas as potencialidades derivadas
nascem de uma Potência original inderivada.
Através de milhões de anos, o homem, graças à Potência original, atingiu o
nível em que hoje se acha; fluiu, como escreveu Teilhard de Chardin, através
da hilosfera (material), pela biosfera (vida) e se acha agora na noosfera
(inteligência), podendo traçar o seu itinerário ascensional até a logosfera
(razão).
No estado atual da evolução, o homem da noosfera se acha em conflito com a
biosfera, pervertendo instinto vital da natureza, pelo intelecto; mas, quando o
homem atingir a logosfera, a racionalidade deste nível, estabelecerá a paz e a
harmonia entre o instinto do bios e o intelecto do nóos. O homem integral –
vital-mental-racional – proclamará o grande tratado de paz entre todas as
faculdades humanas.
Esta pacificação universal, porém, depende da função do livre-arbítrio humano,
que pode também provocar o contrário. Onde há livre-arbítrio nada é previsível,
porque o homem é auto-determinante e não alo-determinado, como a natureza
inferior.
O poder da auto-determinação não destrói a ordem do Universo, mas realiza
ou frustra o destino do homem individual. O homem, realizado ou frustrado, em
nada afeta a ordem cósmica do Universo, como o monismo sabe.
Verdade é que, segundo a ideologia primária do monoteísmo, que vê em Deus
uma pessoa, a realização ou frustração do homem afetaria a própria Divindade
e a ordem cósmica.
O homem é uma parte integrante do Universo, seja na sua função positiva de
realização, seja na sua função negativa de frustração. O mosaico cósmico é
feito de pedras brancas e pedras pretas. A integração universal é cósmica, mas
o aspecto da integração individual depende do homem.
A NATUREZA INTEGRAL
DO HOMEM
A natureza humana pode ser considerada como um composto orgânico de três
componentes fundamentais: 1) vida, 2) intelecto, 3) razão, ou usando a antiga
terminologia grega: bios, nóos, e lógos.
O intelecto (nóos) e a razão (lógos) são os elementos tipicamente hominais. A
vida (bios) é o elemento comum a todos os seres vivos. E, na realidade, tudo é
vivo, mesmo os minerais.
Os seres vivos são a manifestação existencial da Vida, que constitui a
Essência do Universo. O Uno do Universo é a Vida, a Essência, o Absoluto; e o
Verso são os vivos, as existências, os relativos.
Entre os vivos há inumeráveis diferenças de grau ou perfeição, segundo a
consciência de cada um. Há quem identifique o mundo mineral com o
inconsciente, o mundo vegetal com o subconsciente, o animal com o semi-
consciente, e o hominal com o ego-consciente, podendo este evolver para o
auto-consciente ou Eu-consciente.
Segundo Teilhard de Chardin, o homem se acha atualmente no plano da
noosfera intelectual, em demanda da logosfera racional. O nóos intelectual é a
natureza periférica do homem, ao passo que o lógos racional forma o seu
centro.
Na noosfera predomina a análise intelectual, ao passo que na logosfera domina
a intuição racional.
O nóos intelectual do homem se manifesta como seu ego periférico, que
Moisés, no Gênesis, simboliza pela serpente; o lógos racional (espiritual) se
manifesta como o Eu central da natureza humana, simbolizado como o sopro
de Deus.
O grosso da humanidade se acha atualmente no nível da noosfera intelectual,
e tenta substituir a biosfera da natureza instintiva.
Essa luta entre a inteligência humana e a vida instintiva da natureza é
responsável pelas doenças que afligem a nossa humanidade.
Enquanto o homem racional não completar o homem intelectual haverá conflito
entre o intelecto humano e o instinto da natureza, e haverá doenças.
O nóos do homem intelectual não somente entra em conflito com o bios da
natureza, mas também com o lógos da razão; sibilo da serpente versus sopro
de Deus. É esta luta anti-racional que o Gênesis chama “pecado”, e o hino
pascal do “Exultet” denomina “o pecado realmente necessário” e “a culpa feliz”.
Como é que um pecado pode ser necessário? E como é que uma culpa pode
ser feliz?
O hino místico do “Exultet” se refere à lei necessária da antítese, que deve
culminar na felicidade da síntese, sob os auspícios do livre-arbítrio humano,
porque sem resistência não há evolução.
A humanidade de hoje ainda se acha em plena luta contra duas frentes, contra
a natureza do bios e contra o lógos do espírito. Quando o homem passar do
nóos do intelecto para o lógos da razão cessará a luta do intelecto contra a
razão, e com isto cessará também o pecado; cessará também a luta do
intelecto contra a natureza, e com isto cessarão os males e as doenças.
Jesus de Nazaré não tinha pecado e não teve doença; nem maldades nem
males, porque estava perfeitamente harmonizado, tanto com o mundo espiritual
(lógos) como com o mundo natural (bios); ele era o próprio Lógos (Verbo),
como diz o quarto Evangelho; nele “habitava corporalmente toda a plenitude de
Deus”, no dizer de Paulo de Tarso. Em Jesus a natureza humana havia
atingido a sua evolução integral, sob os auspícios da razão espiritual do Lógos.
Em outros homens, como Moisés, a evolução chegou a grandes alturas, tanto
assim que Moisés nunca esteve doente, nem morreu, mas, aos 120 anos,
transformou o seu corpo material num corpo astral, e 1.500 anos mais tarde
reaparece, em corpo astral, no Tabor, ao lado de Jesus transfigurado.
Quanto mais o homem evolve na sua evolução rumo à harmonização pelo
Lógos da razão, tanto mais ele se aproxima da sua perfeição, realizando o
homem integral: bios, nóos, lógos, ou seja, vida e intelecto sob os auspícios da
razão.
A humanidade de hoje está ainda no início da sua evolução, dominada
unilateralmente pelo intelecto em luta com a razão e hostil à natureza.
Deus e o diabo nada têm que ver com isto; é simples questão de livre-arbítrio.
O livre-arbítrio é o poder que pode provocar tanto a evolução como a involução
do homem; tanto a sua realização como a sua frustração.
O empenho de todos os mestres espirituais da humanidade sempre consistiu
em promover a evolução ou a auto-realização do homem, mostrando que toda
a evolução e toda a felicidade do homem consiste no fato de ele fazer triunfar a
razão sobre o intelecto, e assim estabelecer a perfeita harmonia entre todos os
fatores componentes da natureza humana.
POR QUE É O HOMEM
UM ENIGMA?
Muitos escritores afirmam que o homem é um enigma, um paradoxo, um
desconhecido, como diz Alexis Carrel.
Se a ciência desvenda cada vez mais os mistérios da natureza, por que
continua o homem a ser um eterno X, uma incógnita sem solução?
Existem numerosos livros sobre o homem, livros de antropologia, de fisiologia,
de psicologia – e por que nenhum deles desvenda o enigma homem?
Se o homem fosse apenas um objeto da natureza, a ciência já teria uma
resposta satisfatória para a pergunta: Que é o homem? Assim como tem
resposta para perguntas sobre átomos e astros, sobre minerais, vegetais e
animais.
Acontece, porém, que há no homem um fator que não se encontra na natureza
fora dele.
Que fator enigmático é este?
O homem, sobretudo quando chegado à plenitude da sua hominalidade, não
obedece integralmente ao impacto do alo-determinismo automático, que rege
todos os seres da natureza. Quanto mais o homem na sua ascensional se
distancia do plano horizontal, que rege o mundo extra-hominal, tanto menos
prevalece nele o fator do alo-determinismo passivo, e tanto mais se revela nele
o fator tipicamente hominal da auto-determinação ativa, que a ciência não
conhece. A palavra tradicional e corriqueira para esse fator determinante e
ativo é “livre-arbítrio”, que alguns identificam com ausência de causalidade.
Entretanto, o fator ativo da auto-determinação ou liberdade não é ausência de
causalidade; é uma causalidade, ou causação, que reside no próprio homem.
Esse fator interno é idêntico à consciência, ao Eu central do homem. Nada no
Universo acontece sem causa; a lei de causa e efeito rege todos os fenômenos
da natureza, sem excluir o homem.
Acontece, porém, que há causas externas, e há causa interna. Designamos o
primeiro grupo de causalidade com o nome de alo-determinismo, e o segundo
pela palavra auto-determinação. Mas tanto esta como aquele fazem parte da
causalidade: os objetos extra-hominais obedecem a uma causa extrínseca,
alheia, ao passo que o homem, quando da evolução avançada, se guia por
uma causa intrínseca e própria. Alo-determinismo é obediência automática a
uma causa alheia, ao passo que auto-determinação é atuação de uma causa
própria, um fator que faz parte da intrínseca natureza humana. Poderíamos dar
ao alo-determinismo o nome de causalidade transcendente, e à auto-
determinação o nome de causalidade imanente. Quem é alo-determinado
obedece a uma compulsão externa, heterogênea, alheia; quem é auto
determinante guia-se por um impulso interno, homogêneo, imanente.
Há filósofos e escritores que negam a existência de uma auto-determinação,
que eles identificam erroneamente com ausência de causalidade, ou liberdade
incausal. Possivelmente, as experiências desses cientistas foram realizadas
unilateralmente com cobaias humanas de baixa evolução, tipo que prevalece
na grande massa da humanidade, que é, de fato, mais um objeto de causas
alheias do que um sujeito de causa própria. Se pelo gabinete de experiências
desses pesquisadores passasse um Buda, um Jesus, um Gandhi, um
Schweitzer, um Einstein, ou outro representante da humanidade-elite, bem
diferente seria o resultado das suas pesquisas “científicas”. É um erro
fundamental de lógica fazer experiências com algumas centenas ou mesmo
milhares de cobaias humanas, e depois concluir para a totalidade do gênero
humano, passando em silêncio precisamente a parcela mais genuinamente
hominal.
Devido a esse fator ativo e intrínseco da auto-determinação, continua o homem
a ser um enigma, um paradoxo, um desconhecido, para a ciência que só
conhece alo-determinismo. Onde impera exclusivamente o fator do alo-
determinismo pode a ciência determinar a causa deste ou daquele efeito; mas
onde funciona o fator da auto-determinação, ali termina toda a lei de cálculo e
previsão. Um ato procedente do fator da auto-determinação é imprevisível,
porque o seu agir não é unilinear ou uniforme, como no alo-determinismo, mas
é de caráter esférico ou oniforme, por assim dizer.
Na zona do alo-determinismo vigora pura creaturidade, ao passo que nas
alturas da auto-determinação manifesta-se o fenômeno misterioso da
creatividade.
A ciência humana sente-se segura no plano linear da creaturidade, mas fica
desnorteada na dimensão esférica da creatividade. Muitos escritores tentam
desvendar a esfinge homem, mas só conhecem uma ciência analítica e
intelectual, ignorando a sapiência intuitiva e racional. Nenhum pensador
simplesmente ego-pensante está em condições de compreender a natureza do
homem integral, que age impelido por um fator cosmo-pensado.
O ego-pensante é intelectual.
O cosmo-pensado é racional.
A análise é unilateral.
A intuição é onilateral.
Apenas uma pequenina elite da humanidade chegou às alturas duma evolução
racional e intuitiva, ao passo que as massas se movem nas baixadas de uma
evolução intelectual e analítica. Quem é apenas ego-pensante, ego-agente,
ego-vivente, não compreende o homem cosmo-pensado, cosmo-agido, cosmo-
vivido. Já no primeiro século escrevia Paulo de Tarso: “O homem intelectual
não compreende as coisas do espírito, que lhe parecem estultícia, nem as
pode compreender, porque as coisas do espírito devem ser compreendidas
espiritualmente”.
Para esta última classe deve o homem ser necessariamente um enigma, um
mistério sem solução.
A evolução da creatura humana é indefinida, sua personalidade é ilimitada; e
nesse plano há tantos estágios evolutivos quantas são as pessoas em
processo de evolução.
O homem racional, intuitivo, sabe o que é o homem, mas não de modo que o
possa definir analiticamente. O que se pode pensar e dizer não é a verdade
sobre o homem integral; a verdade não é pensável, nem dizível. Podemos
saber (saborear) a verdade, mas não podemos pensá-la nem verbalizá-la,
menos ainda escrevê-la definitivamente.
Se o homem não fosse um enigma, um paradoxo, um desconhecido, não seria
homem integral. O homem de baixa evolução não é um enigma; ele age e
reage como qualquer outro fenômeno da natureza, ódio versus ódio, violência
contra violência.
Mas o homem que se aproxima da sua realização é, por isto mesmo, um
enigma; pode opor não violência à violência, e pode mesmo ir além, podendo
opor amor ao ódio.
O Sermão da Montanha é um flagrante paradoxo e um enigma insolúvel para o
homem que não ultrapassou o nível horizontal da sua egoidade.
A sabedoria multimilenar da Bhagavad Gita diz: “O ego é o pior inimigo do Eu –
mas o Eu é o melhor amigo do ego”; “o ego é um péssimo senhor da nossa
vida, mas é um ótimo servidor”.
Quanto mais alguém é Eu, e quanto menos é ego, tanto mais enigmático se
torna. Todo o ego age e reage como qualquer fator físico, mas o Eu ultrapassa
toda a física e sobe às alturas da metafísica, desconhecida do ego analítico e
conhecida pelo Eu intuitivo. Quem pode opor não violência, ou até
benevolência, à violência, amor ao ódio, esse é necessariamente o enigma
para outros capazes somente de responder com violência à violência, com ódio
ao ódio.
O triunfo máximo do homem está na sua total libertação de qualquer alo-
determinismo escravizante e na proclamação de uma total auto-determinação.
PORQUE O ESPÍRITO
ENCARNA
Há estranhas teorias e hipóteses sobre o porquê do espírito individual,
emanação do Espírito Universal, encarna no homem.
Há quem pense que esta encarnação seja uma queda trágica, uma punição
imposta pela Divindade.
Outros pensam que a encarnação do espírito seja apenas temporária, que,
depois de certo tempo, o espírito se desprenda do corpo e volte a ser o que era
antes, puro espírito. Se assim fosse, teria o espírito perdido o seu tempo,
encerrando, depois de milhões de anos, o seu círculo vicioso.
As Leis Cósmicas são sábias, e nada fazem sem sabedoria e finalidade.
O espírito individual encarna voluntariamente, porque sabe e quer fazer-se
maior do que Deus o fez; quer realizar-se plenamente, porque é realizável. O
espírito sabe que é creador, e desce, impelido pelo impulso da sua auto-
creatividade. Todo o espírito é uma espécie de avatar, que procura resistência,
porque sabe que sem resistência não há evolução. Mas a evolução, a auto-
realização, é a Carta-Magna da constituição do Universo. O espírito encarna
porque sabe que deve universificar-se.
E o dever supera todo o seu querer.
Sabe que deve evolver, e por isto inicia o seu roteiro evolutivo.
Finalmente, quer o que deve.
O espírito não demanda a matéria como uma prisão, mas por colaboração. Não
forma com a matéria uma justa-posição mecânica, mas sim uma
interpenetração orgânica.
O homem é uma entidade inédita e original, que nunca deixa de ser homem. A
sua jornada evolutiva rumo à auto-realização é seu fim supremo e único. Ele
pode aproximar-se cada vez mais da sua meta, mas não pode jamais coincidir
ou identificar-se com o Infinito, porque entre qualquer finito e o Infinito medeia
sempre uma distância infinita. Pode a creatura integrar-se no Creador, mas não
pode dissolver-se nele.
O Cristo Cósmico, quando encarnou na pessoa humana de Jesus de Nazaré,
continuou a ser o Cristo; e, depois de regressar às regiões cósmicas, não
deixou de ser homem, O Cristo Cósmico era um encarnando, e Jesus, depois
da encarnação e ascensão, é um Jesus cristificado e cosmificado.
O corpo cosmificado continua a ser corpo, embora não material. Corpo é
individuação. O corpo não é necessariamente material, como atualmente, mas
continua a ser corpo, isto é, individuação, em qualquer forma de corporeidade,
mesmo depois da sua desmaterialização. O corpo cosmificado não está ligado
por tempo e espaço; pode estar presente em toda a parte, segundo as palavras
do Cristo: “Eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos...
Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles.”
Quanto mais nítida se tornar num espírito a consciência da sua essência divina,
tanto mais se alarga a sua presença corpórea. Nos seres altamente evolvidos
há uma espécie de pluri-presença simultânea, e não apenas sucessiva, porque
para eles o tempo e o espaço, o quando e o onde, não representam
obstáculos, como para a presença material, que é necessariamente limitada,
uni-local e uni-temporal.
Quando o espírito encarnado está em baixa evolução pode ele iluminar
unilateralmente o corpo material, assim como uma luz ilumina uma tábua opaca
por um lado, enquanto o outro lado continua escuro. Mas, quando o espírito
encarnado adquire alta potência de evolução, não somente ilumina
unilateralmente o corpo, mas o lucifica onilateralmente, penetra-o totalmente,
como a luz penetra e permeia um cristal. Neste caso, o corpo diáfano do cristal
não é mais um impecilho para a luz, e sim um auxílio e veículo para ela.
Através de um cristal, ou prisma, pode a luz incolor dispersar-se em luzes
multicores.
De modo análogo, pode o espírito lucificar um corpo a tal ponto que este se
transforma num maravilhoso prisma, fazendo aparecer o espírito incolor na
dispersão multicolor da creatura espiritualizada.
A encarnação, o espírito divino em forma de homem, é uma nova fase da
creatividade do Espírito Universal; é, por assim dizer, uma cosmificação
multicolor da Divindade incolor a monarquia do Creador se manifesta numa
cosmocracia creatural.
Esta espiritualização da matéria é possível, porque o pleni-consciente do
espírito tem poder sobre o semi-consciente ou inconsciente da matéria.
No primeiro século, escreveu Paulo de Tarso que o corpo podia assumir muitos
aspectos, o aspecto material e também o aspecto espiritual, e muitos outros.
Em pleno século XX da Era Atômica e Cosmonáutica ensina Einstein que a
matéria é energia congelada, e que a energia é luz condensada, assim como a
luz é energia descondensada. A matéria não é uma realidade autônoma e fixa;
não passa de um fenômeno da energia cósmica invisível, que se manifesta de
mil modos visíveis.
Com esta desmaterialização científica da matéria, os cultores da deusa matéria
devem ter entrado em apuros, porque a deusa matéria desapareceu dos seus
altares, e os seus adoradores ficaram ajoelhados ao pé de um altar vazio. É
sabido que a Rússia soviética cultora do “materialismo dialético”, ficou
decepcionada com as experiências desmaterializantes da Era Atômica, e não
se conforma com um materialismo sem matéria.
O homem, uma vez corporeificado, nunca deixará de ter corpo, nunca voltará a
ser puro espírito; mas pode e deve potencializar indefinidamente a
materialidade do seu corpo, tornando-o altamente energético “astral”, e mesmo
luminoso e lucificado.
Se é verdade que a luz é a mais alta forma da energia cósmica, então
podemos supor que o corpo-luz seja o corpo definitivo do espírito, o corpo
imortal. É um erro generalizado que somente a alma, o espírito, seja imortal.
Na realidade, o próprio homem é imortal, ou melhor, imortalizável, e deve
tornar-se imortal, lucificando totalmente a natureza do seu corpo pela luz do
espírito.
As disciplinas éticas pré-místicas (os yamas da filosofia oriental) têm a missão
de lucificar e imortalizar cada vez mais o corpo material até o converter num
cristal e prisma diáfano do espírito.
É este o porquê da encarnação do espírito em forma humana.
LIBERDADE, ESCRAVIDÃO
– LIBERTAÇÃO
Todas as teologias ocidentais giram em torno do binômio gozo-sofrimento. O
homem deve fazer tudo para gozar eternamente; o gozo sem fim é o seu
verdadeiro destino, o seu céu.
A filosofia oriental gira em torno do binômio liberdade-libertação. O homem
creado livre por Deus deve tornar-se liberto por si mesmo. O céu, para o
oriental, não é um lugar de gozo eterno, mas um processo de libertação, em
sânscrito kaivalya, que significa literalmente “nudez”; a finalidade do homem
está em ele se auto-libertar cada vez mais e mais, despojando-se cada vez
mais das roupagens do ego ilusório e escravizante.
Mas, como o ego faz parte integrante da natureza humana, essa nudez não
consiste em que o homem se separe do ego, que seria um atrofiamento ou
mutilação da natureza humana; consiste em tornar o seu ego opaco cada vez
mais transparente pela penetração e permeação da luz do Eu. As roupagens
do ego ilusório e escravizante devem ser cada vez mais diafanizadas pela luz
do Eu, – isto é libertação, nudez, kaivalya.
Essa total diafanização do ego opaco pela luz do Eu supõe que este Eu
intensifique cada vez mais a sua luz; do contrário, não poderia diafanizar
totalmente a opacidade do ego. O Eu deve não somente iluminar o ego, como
uma tábua batida unilateralmente por uma luz; mas deve lucificar totalmente o
ego, assim como um cristal é diafanizado por uma luz extremamente intensa.
Se o espírito do homem é uma emanação individual do Espírito Universal da
Divindade, e, como tal, necessariamente livre, por que deve o homem livre
libertar-se? Não supõe isto que ele seja escravo?
O espírito é livre; mas, como ser consciente e livre, percebe ele que é também
creador, e pode pôr em atuação a sua creatividade. E, como toda a creatura é
finita, e, portanto ulteriormente evolvível, o espírito emanado da Divindade vê
que deve continuar a sua evolução herdada por uma evolução adquirida.
Por esta razão, o espírito livre se encarna na matéria do corpo; escraviza-se
voluntariamente, porque vê que sem resistência não há evolução. A matéria do
corpo é necessariamente uma resistência para o espírito. Mas não é
propriamente a matéria do corpo que oferece resistência ao espírito; o que
oferece resistência é a mente, o aspecto consciente e ativo da matéria, a
matéria mental, a mente materialista.
Uma vez revestido desta matéria mental, chamada ego, o espírito inicia a sua
luta contra a resistência, o seu sofrimento, a sua evolução rumo à libertação.
Todo o roteiro da encarnação terrestre não é outra coisa senão: liberdade
herdada, livremente escravizada, para conseguir a libertação.
Esta auto-libertação é algo tipicamente humano, maior do que a liberdade dada
por Deus; é uma auto-libertação maior que a Teo-liberdade, porque, como
disse alguém, Deus creou o homem o menos possível para que o homem se
pudesse crear o mais possível. Deus creou o espírito livre, para que este,
encarnado como homem, pudesse adquirir a sua auto-libertação.
A encarnação no corpo material é, provavelmente, o estágio número um da
libertação do homem, cujo processo libertador tem de continuar em outros
corpos e em outras regiões do Universo. A libertação não é um estado
definitivo, mas um processo indefinidamente continuável.
Esse indefinido processo de libertação é o que, realmente, se deve entender
por céu, ou vida eterna, que não é, em primeiro lugar, um lugar de gozo, mas
sim um processo de libertação cada vez maior, uma sinfonia inacabada.
Na terceira parte do seu livro monumental “Der Yoga”, J. W. Hauer, reproduz o
diálogo entre dois yogues hindus, que gira em torno do tema “gozo ou
libertação”. E, por fim, um dos yogues, que havia percorrido séculos e milênios
de gozo, em todos os céus do Universo, declara que toda essa imensa
gozação celeste havia sido uma imensa cadeia de escravidões gozadas, e só
no fim do ciclo evolutivo ele atingira a libertação, além de todos os gozos e
desgozos; entrara na linha reta da kaivalya, da nudez; do despojamento de
todas as roupagens da ilusão pela visão da verdade libertadora sobre si
mesmo.
Quando o homem revestido de corpo e mente, conscientiza nitidamente “Eu
sou o espírito”, que tem um corpo e uma mente, então se liberta ele das
deslumbrantes roupagens do ego ilusório, que a sua encarnação terrestre lhe
fornecera.
Neste sentido, diz o maior dos Mestres a seus discípulos: “Conhecereis a
verdade – e a verdade vos libertará”.
A libertação conquistada pela verdade não pode, naturalmente, deixar de ser
felicidade – felicidade da liberdade pela verdade.
DO CAOS AO COSMOS –
NO MACROCOSMO E
NO MICROCOSMO
Segundo a ciência, o Universo macrocósmico evolveu do caos ao cosmos, da
desordem das potencialidades para a ordem da atualidade. O cosmos de hoje
é o resultado do caos de ontem.
Esta transição da potencialidade para a atualidade obedece a uma Inteligência
Cósmica, que abrange tanto o ontem do caos como o hoje do cosmos.
O microcosmo hominal obedece às mesmas leis do macrocosmo mundial –
com a diferença de que, no homem, a inteligência é individualmente dirigida,
quando no Universo é cosmo-consciente.
No microcosmo hominal o caos inicial é formado pelo ego intelectual; é o
estado primitivo de todo homem, antes que o Eu racional transforme em
cosmos esse caos.
O Gênesis de Moisés joga simbolicamente com esses dois elementos da
natureza humana, comparando o caos intelectual com a voz da serpente e o
subsequente cosmos racional com a imagem e semelhança de Deus, vitória
definitiva do sopro de Deus sobre o sibilo da serpente.
Esta transição do caos intelectual para o cosmos racional se realiza sob os
auspícios do poder creador do livre-arbítrio humano destinado a fazer do caos
microcósmico um cosmos microcósmico.
O estado do caos hominal é chamado “pecado” por Moisés, pecado que,
segundo a mística do “Exultet”, é um “pecado necessário”, e uma “culpa feliz”,
e culminou no cosmos da grande solenidade que o Evangelho descreve
festivamente na história do Filho Pródigo: o ego caótico se realizou no Eu
cósmico.
A idéia tradicional de que Deus, com a creação do homem, tenha sido
derrotado por um anti-deus (diabo) resultou de urna visão unilateral e
incompleta do drama caos-cosmos, que rege todo o Universo, mundial e
hominal.
O drama caos-cosmos, ego-Eu, ainda está no seu início, na primeira fase da
sua evolução, no mundo da humanidade; tudo parece caótico, nada cósmico,
porque a humanidade ainda se debate no período caótico da noosfera, e não
atingiu ainda o plano cósmico da logosfera, no dizer de Teilhard de Chardin.
Mas o drama do Universo não falha, nem no setor macrocósmico nem no setor
microcósmico, embora esse drama leve milênios e eons.
A idéia de “queda e redenção” do homem, no sentido teológico, não tem
cabimento na filosofia cosmológica do Universo, onde tudo se realiza segundo
leis imutáveis e inexoráveis, sem ou com a intervenção do livre-arbítrio
humano. O livre-arbítrio não pode modificar o drama da ordem univérsica,
embora possa afetar o destino do homem individual. A ordem cósmica se
realiza independentemente do destino do homem, com, sem ou contra o livre-
arbítrio individual.
Toda a dificuldade e confusão no tocante à história da humanidade, nasce do
equívoco tradicional de um suposto Deus pessoal que presida ao drama do
macrocosmo e do microcosmo de cima ou de fora do Universo, idéia básica do
monoteísmo teológico.
Com a passagem da concepção monoteísta de um Deus individual para a
concepção monista de uma Divindade universal, desaparece a dificuldade da
compreensão. A idéia da Divindade segundo a concepção de todos os gênios e
místicos, é a própria alma ou essência do Universo. Se a Divindade, segundo
Spinoza e Einstein é a alma do Universo, e se o mundo é o corpo do Universo,
então o corpo visível da existência não pode contradizer a alma invisível da
essência do Universo; o Verso é necessariamente a manifestação do Uno.
Esta cosmovisão do universo integral é a chave de todos os enigmas que
atormentam a humanidade.
O HOMEM EM LUTA
CONSIGO MESMO
O homem é, evidentemente, a única creatura do planeta terra que sofre de
doenças permanentes e quase universais. Qualquer animal selvagem goza de
saúde normal; só alguns animais domésticos, confinados em pastos e
estábulos, sofrem de doenças semelhantes às do homem porque vivem num
ambiente desnatural e são alimentados artificialmente. E as doenças de que
sofre o homem têm origem na maior parte, na discórdia em que ele vive
consigo mesmo. É que nenhum homem ego-consciente pode viver em paz
consigo mesmo, mas em luta permanente consigo.
Freud chegou à ingenuidade de escrever que o homem que tem problemas
íntimos é um neurótico.
O mineral, o vegetal e o animal vivem sem problemas, mas o homem que
entrou na zona da ilusória ego-consciência, entra em luta consigo mesmo.
Esta luta do homem consigo mesmo não é uma tragédia nem fracasso da
creação; é da íntima natureza do homem. O homem é a única creatura
terrestre inacabável, jamais plenamente realizada. Disse alguém que Deus fez
o homem o menos possível para que ele se possa fazer o mais possível. Entre
esse menos e esse mais se alarga o campo de batalha da vida humana.
O homem não é só uma creatura creada, mas também uma creatura creadora;
e entre a sua creaturidade e sua creatividade está o Kurukshetra onde Arjuna
enfrenta os Devas e os Kurus da sua própria natureza. O homem realizável e
realizando deve tornar-se um homem realizado – e isto é luta, luta evolutiva.
Faz parte dos mais antigos equívocos da teologia afirmar que Deus creou o
homem perfeito, e que o diabo reduziu o homem a um ser imperfeito; nem
mesmo o prometido redentor conseguiu fazer o homem perfeito.
O homem é por sua própria natureza imperfeito, mas perfectível. Com o
advento do homem iniciaram as Leis Cósmicas uma fase de creação
inteiramente nova, um ser não no estado rígido de alo-realizado, com os seres
da natureza, mas no estado elástico auto-realizável.
Esta auto-realização, porém, exige necessariamente o estado de antítese, ou
luta, capaz de realizar a sua própria síntese, ou tratado de paz.
Paulo de Tarso geme: “O bem que eu quero fazer não o faço, mas sim o mal
que não quero fazer... Há em mim duas leis, a lei do bem e a lei do mal... Infeliz
de mim...!! Quem me libertará deste corpo mortífero?”
O próprio Jesus sentiu estas duas leis da sua natureza quando, nas sombras
do Getsêmane, pedia para ser preservado do sofrimento, e, nos ardores do
Gólgota clamava “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” Mas
tanto aqui como acolá o Nazareno, sob os auspícios do seu Cristo, proclama a
vitória do seu Eu divino, sob o seu ego humano, sentiu a luta, mas cantou
vitória.
É esta a condição de todo o homem avançado em sua evolução: luta sem
derrota. O homem de evolução inferior sente essa luta, sabe que seu Eu
superior, às vezes, vence e, às vezes, é derrotado pelo ego inferior. Esses dois
pólos da antítese do homem são elementos autônomos da natureza humana;
não vieram de fora dele, mas de dentro dele mesmo. Ao homem compete
transformar essas antíteses em síntese, proclamar um tratado de paz em pleno
campo de batalha.
Esse tratado de paz não é o fim da luta, mas uma luta em perfeita harmonia
com a sua natureza integral, a integração do pólo negativo no pólo positivo, e
não a extinção daquele por este, que seria o atrofiamento da natureza humana.
Todas as vezes que nas páginas do Evangelho, o Cristo se encontra com o
Anticristo não lhe dá ordem que se retire, e sim que se ponha na retaguarda,
como seguidor, e não na vanguarda como senhor.
Os pólos da antítese da natureza humana não são contrários um ao outro, mas
sim complementares; um não pode substituir o outro, mas um deve integrar-se
no outro.
O homem é o único ser da terra que deve e pode realizar-se plenamente,
depois de ser creado realizável; a sua auto-realização é o fim supremo da sua
existência terrestre.
Não há evolução sem resistência.
A resistência ou luta é um meio para a vitória, para a auto-realização.
Na natureza do homem as leis cósmicas revelam a sua mais alta sabedoria.
TEORIAS SOBRE A ORIGEM
DO HOMEM
O que dificulta grandemente a noção exata sobre a origem do homem são duas
teorias, uma antiquíssima, outra recente: a teoria mitológica da teologia e a
hipótese zoológica da ciência.
A teoria mitológica, defendida por certas teologias, se baseia numa
interpretação errônea e analítica da visão intuitiva que Moisés teve da origem
do Universo e do homem. É inevitável que qualquer análise intelectual de uma
intuição cósmica, como a do Gênesis, resulte errônea, porque, como já
escrevia Paulo de Tarso, no primeiro século, “o homem intelectual (psychikos)
não compreende as coisas do espírito, que lhe parecem estultícia, nem as
pode compreender, porque as coisas do espírito devem ser interpretadas
espiritualmente”.
Sabia Moisés que no corpo humano não existe nada que não tenha vindo da
natureza; por isto disse ele que o corpo do homem foi feito da substância da
terra, como diz o texto grego da Septuaginta, tradução feita do original hebraico
por 70 Judeus de Alexandria, três séculos antes da Era Cristã. Deduzir daí que
Deus tenha feito um boneco de barro, é infantilismo ridículo. '
O espírito do homem não podia vir de outra fonte senão do Espírito Universal
da Divindade, donde emanam todas as existências finitas, com a diferença de
que nos outros seres essa emanação era inconsciente, e no homem apareceu
pela primeira vez como consciente.
O equívoco mais funesto da teoria mitológica é a idéia de que o homem teria
aparecido na superfície da terra com um homem perfeito e plenamente
realizado por Deus, quando ele apareceu no ínfimo grau de perfeição hominal,
mas perfectível e ulteriormente realizável, graças ao poder do livre-arbítrio, em
que foi creado.
Um homem 100% perfeito que tivesse caído dessa perfeição para o grau 1 de
imperfeição suporia um poder anti-divino maior que o próprio Deus.
O homem, imperfeito, mas perfectível, foi creado “o menos possível”, como diz
um pensador moderno, para que ele se pudesse crear “o mais possível”,
iniciando assim uma nova fase creadora, uma creatura creadora no meio de
creaturas apenas creadas. O Creador conferiu ao homem, por assim dizer,
uma parcela da sua creatividade divina, tornando-o evolvível e responsável por
sua evolução ulterior; do marco 1 devia o homem evolver para o marco 100, e
além.
De resto, no roteiro multimilenar da história humana não há o menor indício de
que o homem pré-histórico tivesse sido mais perfeito do que o homem de hoje.
A evolução vai do mínimo ao máximo, e se processa com passos mínimos em
espaços máximos.
Um poder supra-divino que tivesse destruído a obra humana de Deus seria a
negação de um Poder Supremo e Onipotente.
No século 19, surgiu a hipótese darwinista ou zoológica, que deriva do animal a
origem do homem.
Esta hipótese peca por um ilogismo flagrantemente anti-matemático, admitindo
que do homem-zero possa ter vindo o homem-um, que o não-homem possa ter
causado o homem.
Alegam os darwinistas que o animal era potencialmente homem, e dessa
potencialidade humana tenha vindo a atualidade humana.
Que quer dizer potencial?
O potencial é real, latentemente real, que pode tornar-se manifestamente real.
Ora, se havia um animal potencialmente homem, é claro que esse animal era
realmente homem, embora latentemente, ainda em forma animal. E, neste
caso, o homem não veio do animal, mas o homem latente e realmente homem
passou a ser um homem abertamente. Não houve transição de um homem
irreal para um homem real, mas sim a continuação do homem real em homem
real, do homem potencialmente real para o homem atualmente real.
Ninguém se torna o que não é; ninguém se torna explicitamente o que não é
implicitamente. Um coco não se tornaria coqueiro, se não fosse coqueiro em
forma de coco; o coco é potencialmente (realmente) o que o coqueiro é
atualmente (realmente); a transição não é de um não-coqueiro para um
coqueiro, mas de um coqueiro latentemente real (coco) para um coqueiro
abertamente real.
O homem primitivo era realmente homem, essencialmente homem, embora por
fora ainda fosse animal. O homem não veio do animal, mas veio através do
animal.
O maior não vem do menor, mas pode vir através do menor; mas ambos, o
maior e o menor, vieram do máximo.
Todas as potencialidades, pequenas e grandes, vêm da Potência, e é por isto
que pode aparecer em atualidade.
Se ligarmos um cano de meia polegada a uma fonte de águas perenes, podem
fluir através desse cano 10, 100, 1000, e mais toneladas de água; mas não
podemos dizer que essas toneladas de água tenham vindo do encanamento de
meia polegada; devemos dizer que vieram da fonte e fluiram através desse
cano.
Todas as potencialidades, pequenas e grandes, vêm da Potência – assim
como todas as águas do encanamento vêm necessariamente duma fonte,
embora através dos canos.
A Potência de que derivam todas as potencialidades é uma só, e, em última
análise, deve ser infinitamente grande, inesgotável, para produzir
potencialidades de qualquer tamanho e número.
A transição da Potência para a potencialidade, do Infinito para o finito, se
chama creação, ao passo que a transição de uma potencialidade para outra
potencialidade se chama evolução.
Toda a evolução supõe necessariamente a evolução, assim como a água do
cano supõe a fonte.
Crear não quer dizer fazer “Algo” do “Nada”, mas sim fazer “Algo” do “Todo”,
manifestar um finito vindo do Infinito.
O advento do homem na terra não é nenhum fenômeno sobrenatural; está em
harmonia com as leis cósmicas, cuja Essência Infinita se revela sempre de
novo em Existências Finitas, desde o inconsciente e semi-consciente até ao
consciente e pleni-consciente. O aparecimento do homem designa uma fase
superior da atuação do Uno (Creador) a manifestar-se no Verso (creatura). O
Uno oniconsciente da Essência Infinita se manifesta no Verso inconsciente,
semi-consciente e pleni-consciente das Existências Finitas.
O homem ocupa atualmente o ponto culminante dessa progressiva
manifestação da Essência Infinita em Existências Finitas. O homem é, por ora,
no planeta terra, a única creatura que participa, conscientemente, da
Oniconsciência do Infinito; e sua missão está em realizar cada vez mais
perfeitamente esta sua evolução ascensional.
A Essência Creadora está presente – inconsciente, semi-consciente ou pleni-
consciente – em todas as Existências Creadas.
É este o grande monismo cósmico do Universo.
Em resumo: a origem do homem não é mitológica, nem zoológica, mas
cosmológica. O homem, como todas as coisas, veio da alma ou Essência do
Universo, embora sua figura humana de hoje, a sua existência, tenha surgido
mais tarde. A essência do homem é eterna, a sua existência é temporária. Do
Uno da Fonte brota todo o Verso dos Canais, inclusive o homem. O homem
veio da essência ou fonte do Uno, embora o seu Verso existencial tenha fluido
através de muitos canais históricos. O homem histórico eclodiu, depois de uma
longa incubação em forma pré-hominal – e o homem atual ainda fluirá por
muitos canais, até chegar às alturas do homem integral.
GRÁFICOS ILUSTRATIVOS
SOBRE A ORIGEM
DO HOMEM
Este gráfico ilustra como a teoria mitológica concebe o advento do homem. Os
defensores desta teoria admitem que tanto a natureza (linha horizontal) como o
homem (linha vertical) tenham vindo do Infinito (∞), mas entendem que o
homem não fluiu através da linha horizontal dos organismos inferiores da
natureza, mas que seja uma creação direta do próprio Infinito; que tenha
havido uma intervenção direta da Divindade para produzir o homem, cujo corpo
teria sido moldado de barro e cujo espírito foi insuflado por Deus.
Respondemos que tanto o corpo como o espírito do homem vieram da
Potência Infinita, como aliás todas as Existências Finitas emanaram da
Essência Infinita.
Este ato de emanação, ou creação, não se deu sucessivamente no tempo e no
espaço, mas simultaneamente, antes de qualquer sucessividade temporal ou
espacial, na eternidade, como costumamos dizer. A eternidade não é a soma
total dos tempos (como o Infinito não é a soma total dos espaços), mas é a
negação total de qualquer sucessividade espacial; na eternidade não há anos,
meses, dias, horas, minutos, segundos, não há sucessividade alguma, mas
absoluta simultaneidade, o Absoluto, Eterno (agora).
Todo o Verso da sucessividade temporal está contido no Uno da
simultaneidade Eterna, Una e única. Causalmente, todas as creaturas são
eternas, embora não efeitualmente. A creação simultânea se desdobra na
evolução sucessiva.
Desde o início da Creação se originou o homem, corpo e espírito, mas,
segundo as leis cósmicas, a sua manifestação hominal se deu no tempo
adequado. O homem estava como que incubado na Creação Eterna, e dela
eclodiu em tempo, segundo as leis cósmicas, quando o substrato manifestativo
do corpo se achava em condições de servir de veículo ao espírito.
Quando o homem potencial passou a ser o homem atual; quando a incubação
se revelou em eclosão, então apareceu o homem como homem na face da
terra.
Diz o Gênesis que isto se deu no fim do sexto e último yom, ou período
creador, isto é, depois que o substrato material do organismo havia atingido o
máximo da evolução para servir de veículo manifestativo do espírito.
O mais perfeito veículo corporal era o corpo dos mamíferos superiores, dos
chamados primates, que recebeu o “sopro de Deus”.
O Apocalipse afirma explicitamente que o sopro de Deus foi insuflado a um
animal, que veio do mar. Nas águas, como já dizia o filósofo grego Thales de
Mileto, se originaram todos os seres vivos.
A nossa ciência de hoje sabe que a vida dos seres vivos da terra resulta da
união de água e luz, como até hoje acontece, quando a luz solar se une à
água, na clorofila das plantas, transformando os minerais da terra em
substância viva.
Quer dizer que os elementos do homem já pré-existiam ao aparecimento dele
como homem; emanaram da Essência Infinita desde a Eternidade, e se
tornaram existência finita, quando o homem apareceu na terra como homem,
mesmo como homem potencial em organismo infra-hominal.
Não há nada de “sobrenatural” na origem do homem. O sobrenatural não existe
ontologicamente, na ordem do Ser; só existe logicamente, isto é, na ordem do
nosso conhecer. O que ultrapassa ao alcance da nossa inteligência é
sobrenatural para nós, mas natural em si. Deus é infinitamente natural em si,
mas sobrenatural para nós, devido à finitude do nosso conhecimento.
Este desenho ilustra a teoria zoológica ou darwinista sobre a origem do
homem. No princípio das duas linhas está o sinal “?”, que simboliza a
ignorância ou incógnito tanto da natureza como do homem. A idéia da
“creação” não faz parte da ciência intelectual, que só se ocupa da evolução.
Segundo a teoria zoológica, o homem é uma transformação do animal; o não-
homem pré-histórico se tornou o homem histórico.
Como já vimos, esta teoria é inadmissível à luz da lógica e da matemática. O
não, o zero, não se podem converter no sim, no algo. Ninguém se torna o que
não é.
Este desenho simboliza o processo real da origem do homem. No princípio de
tudo está o Infinito (∞), que, através de tempo e espaço, se manifesta em
inumeráveis finitos, como minerais, vegetais, animais e hominais.
Tudo flui da fonte única, mas derivou através de canais múltiplos. Tudo veio do
Infinito e tudo fluiu e flui através de canais finitos.
O homem é, até hoje, o canal mais perfeito que fluiu da Fonte do Infinito.
A perfeição típica do homem consiste no fato de ser ele o único ser da terra
que possui em si o poder de determinar o próprio roteiro da sua evolução, de
se tornar maior ou menor pelo poder do seu livre-arbítrio.
O SOPRO DE DEUS E O
SIBILO DA SERPENTE
No início do Gênesis, fala Moisés de dois fatores, aparentemente antagônicos,
mas realmente complementares: o sopro de Deus e a voz da serpente; ou, em
nossa linguagem moderna, o espírito do Eu e a inteligência do ego.
O Gênesis foi escrito, provavelmente, nas estepes da Arábia, onde Moisés
viveu como pastor, entre os 40 e 80 anos da sua vida. Como todos os livros de
inspiração cósmica são dificilmente compreensíveis à luz da análise intelectual,
essas palavras de Moisés têm sido objeto de milênios de controvérsia,
suscitando a idéia de uma antítese na própria Divindade creadora.
Moisés se serviu do símbolo de “sopro de Deus” para indicar o espírito, e da
expressão “voz da serpente” para designar a inteligência do homem. Em todos
os tempos, tem a serpente servido como símbolo da inteligência; o próprio
Jesus se utiliza desse símbolo, quando diz a seus discípulos: “Sede
inteligentes como a serpente”.
Também as nossas farmácias e drogarias colocam na sua fachada a figura da
serpente, para significar a inteligência como protetora de saúde e vida.
O espírito e o intelecto são as duas faculdades da natureza humana, que
regem todos os eventos da sua vida. O espírito, ou razão, que a filosofia grega
chamava lógos; e o intelecto, que os gregos denominavam nóos, são, por
assim dizer, os dois pólos da natureza humana. O intelecto é a manifestação
do ego periférico do homem, ao passo que o espírito, ou razão, é a
manifestação do seu Eu central.
A sabedoria milenar da Bhagavad Gita diz que o ego é o pior inimigo do Eu, ao
passo que este é o melhor amigo daquele. Diz ainda que o ego é um péssimo
senhor da nossa vida, mas que é um ótimo servidor.
Paulo de Tarso escreveu aos cristãos de Corinto: “O homem intelectual não
compreende as coisas do espírito, que lhe parecem estultícia; nem as pode
compreender, porque as coisas do espírito têm de ser compreendidas
espiritualmente”.
Sendo que o homem não apareceu como homem perfeito, mas sim perfectível,
em pleno processo evolutivo, era necessário que nele atuassem duas forças
antitéticas destinadas a se conciliarem na síntese da sua plenitude.
Um relojoeiro que fabrica um relógio de alta precisão é um talento; mas, se ele
fosse capaz de jogar sobre a mesa apenas as peças e desse ordem para elas
se comporem num relógio, seria um gênio.
No homem existem apenas os componentes para um homem integral, e
compete ao próprio homem realizar a composição harmoniosa e o
funcionamento de todas essas peças em forma de um todo harmonioso.
Se, segundo a Bhagavad Gita, o ego intelectual do homem é inimigo do seu Eu
racional, não haveria a menor esperança de uma síntese harmoniosa; mas,
como o Eu racional, dele, é amigo do ego intelectual, pode haver um tratado de
paz entre os componentes da natureza humana, aparentemente antagônicos,
mas realmente complementares.
Faz parte do plano cósmico que haja luta na natureza humana, porque sem
resistência não há evolução. O homem é o único ser auto-realizável da terra,
quando os outros seres são alo-realizados. O homem é a única creatura
creadora, quando as outras são apenas creaturas creadas.
Teilhard de Chardin, como já mencionamos, conduz a evolução do homem da
hilosfera, através da biosfera, até a noosfera e, daqui futuramente, para a
logosfera. Esta longa evolução ascensional, naturalmente, não é possível sem
muitas quedas e muitos surtos, sem o conflito entre duas forças, à primeira
vista adversas e inconciliáveis, mas cuja finalidade é uma grande síntese,
como já fez ver Orígenes de Alexandria, no terceiro século, quando escreveu o
seu livro monumental Apokatástasis (Conciliação).
Quem contempla o drama da humanidade unilateral e parcialmente, não pode
deixar de ver no ego intelectual o adversário irreconciliável do Eu espiritual; e
não é prudente dizer ao homem primitivo que há a possibilidade de uma
síntese entre essas duas antíteses.
Até hoje, o grosso da humanidade está na noosfera do ego mental, interessado
unicamente pelos objetos externos e indiferente ao sujeito interno; apenas uma
pequena elite atingiu a logosfera, que se interessa vivamente pelo Eu central.
Einstein escreveu que o homem intelectual descobre os fatos da natureza, a
passo que o homem racional crea valores no seu próprio interior; o homem
intelectual, o erudito, descobre aquilo que já existe, ao passo que o homem de
evolução superior realiza em sua consciência valores que ainda não existiam,
mas que ele faz existir. “Do mundo dos fatos não conduz nenhum caminho
para o mundo dos valores, porque estes vêm de outra região”.
Tanto o sopro de Deus como o sibilo da serpente vêm das Potências
Creadoras, do Infinito – mas compete ao homem realizar a grande síntese
entre essas antíteses complementares. É precisamente nesta realização que
consiste a grandiosa tarefa do homem. Um único homem, plenamente auto-
realizado é uma obra mais maravilhosa do que todo o Universo alo-realizado.
O SENTIDO DA VIDA,
SEGUNDO MOISÉS,
BUDA, CRISTO
Qual o sentido da vida humana, a razão-de-ser da sua existência?
Todos os gênios da humanidade respondem o mesmo: o sentido da vida do
homem é a sua auto-realização. E essa realização supõe, acima de tudo, o
conhecimento da verdadeira natureza do homem.
Cerca de seis séculos antes da Era Cristã, vivia na Índia um príncipe real
chamado Gautama Siddhartha. Pouco depois do seu casamento abandonou
ele, clandestinamente, o Palácio Real e foi peregrinar pelas florestas da Índia,
durante 16 anos, meditando, meditando e jejuando. Queria descobrir uma
resposta definitiva ao tenebroso mistério do sofrimento universal da
humanidade. Os animais selvagens não sofriam, e por que devia o homem,
coroa da creação, viver em sofrimento permanente? Certo dia, estava o
príncipe sentado à sombra de uma árvore, mergulhado em profunda
meditação. Quando despertou do seu prolongado samadhi, proferiu quatro
palavras – e os discípulos dele, sentados em derredor, exclamaram: Buda!
Buda! isto é: acordou, acordou.
O peregrino real dormira toda a vida o sono da ilusão sobre si mesmo,
identificando-se com o seu ego mental; de repente, despertou para a vigília da
verdade – da verdade libertadora sobre si mesmo. Os discípulos dele
resumiram a sabedoria do Mestre nas chamadas “quatro verdades nobres de
Buda”.
O que Buda disse, depois de despertar para a luz da verdade, foram as
palavras seguintes:
1) a vida humana é essencialmente sofrimento,
2) a causa deste sofrimento universal é a ilusão em que o homem vive sobre si
mesmo,
3) com a transformação da ilusão em verdade sobre si mesmo, termina a culpa
do sofrimento,
4) o meio para o conhecimento da verdade é a profunda meditação sobre si
mesmo.
Cerca de mil anos antes de Buda dissera Moisés, com outras palavras, estas
mesmas verdades: “Maldita seja a terra por tua causa”, disseram os Elohim ao
primeiro homem, porque este se identificava com o seu ego ilusório, aberrando
da verdade libertadora sobre a sua verdadeira natureza. E esta ilusão funesta
provocou sua auto-expulsão do paraíso e o início do sofrimento Universal.
Cerca de mil e quinhentos anos depois de Moisés e seiscentos anos depois de
Buda apareceu o maior gênio humano sobre a face da terra, Jesus de Nazaré,
que cristalizou numa parábola esta mesma verdade: que o homem que vive e
age na ilusão sobre si mesmo é um “servo mau e preguiçoso” e perde até a
sua natureza humana, ao passo que o homem que conhece e vive a verdade
sobre si mesmo é um “servo bom e fiel”, que entra no gozo da verdade
libertadora.
Esta verdade cósmica, reduzida a termos modernos, resulta nas palavras
seguintes: quem pode, deve; e quem pode e deve, e não faz, cria débito – e
todo o débito gera sofrimento.
Quando as eternas leis cósmicas dão a uma creatura uma potencialidade,
esperam delas a atualização dessa potencialidade. Se o homem faz o que
pode e deve, ele se realiza, faz a sua realização existencial; mas, quando o
homem não faz o que pode e deve, sucumbe ele à sua frustração existencial.
Sendo o homem essencialmente o seu Eu racional (espiritual), ele pode e deve
realizar esse Eu divino, esse seu Logos; é esta a sua realização existencial,
que as leis cósmicas esperam dele. O homem é, potencialmente, o “sopro de
Deus”, diz o Gênesis, que pode e deve atualizar-se na “imagem e semelhança
de Deus”; esta realização é a razão-de-ser da sua existência. O homem é
dotado do poder do livre-arbítrio, e não há evolução sem resistência; por isto
crearam as leis cósmicas no homem o ego mental, que o Gênesis chama a
serpente, que deve manifestar-se e ser superado para que o homem se realize
plenamente pelo poder do seu livre-arbítrio. Deus creou o homem o menos
possível (sopro divino), creou o homem perfectível, para que o homem se
possa crear o mais possível (imagem e semelhança de Deus) no estado do
homem perfeito.
Enquanto o homem não atualizar a sua potencialidade, está ele sujeito ao
sofrimento, porque não faz o que pode e deve; torna-se devedor e culpado em
face das leis cósmicas. E a reação dessas leis contra o culpado é o sofrimento.
Até hoje, quase toda a humanidade é culpada perante as leis cósmicas, porque
todos os homens são realizáveis, e poucos são realizados. A humanidade sofre
porque é culpada e devedora em face das eternas leis do Universo, e sofrerá
sempre, enquanto não estiver quite com as leis da justiça cósmica.
Enquanto o servo não duplicar os talentos recebidos, as potencialidades que
de Deus recebeu, continua ele devedor e sofredor, porque as leis cósmicas não
distribuem potencialidade a esmo, mas exigem que o homem duplique por
esforço próprio o que recebeu; quem apenas devolve o que recebeu é um
servo mau e preguiçoso.
O homem que apenas desenvolve o seu ego mental, e não o seu Eu racional
(espiritual), vive numa frustração existencial, e não pode deixar de ser sofredor,
por ser devedor e culpado da sua não-realização existencial.
Nos últimos tempos, a medicina conseguiu aumentar a longevidade da vida
humana, por meio de medicamentos – mas não diminuiu os sofrimentos
humanos porque essa longevidade artificial é um prolongamento da agonia do
homem, que continua a ser culpado.
Enquanto o homem não se realizar, de acordo com as imutáveis leis cósmicas,
não deixará ele de ser um sofredor, a despeito de todos os paliativos e
camuflagens da medicina. Somente a realização existencial pode pôr termo ao
sofrimento compulsório do homem.
Depois de deixar de ser devedor culpado perante as leis cósmicas, pode o
homem continuar a sofrer algum tempo por seus débitos passados (karma), ou
mesmo por culpa de seus companheiros ainda devedores. Só quando toda a
humanidade estiver sem culpa, deixará o homem de ser um sofredor
compulsório.
O sofrimento por débitos próprios é vergonhoso – mas o sofrimento por débitos
alheios é glorioso.
Somente os grandes avatares da humanidade, isentos de sofrimentos
compulsórios, podem, querer sofrer voluntariamente, porque sabem que sem
resistência não há evolução – e eles são desejosos de evolução ulterior e auto-
realização cada vez maior.
Nesse caso estava Jesus, que não sofreu por débito próprio, nem alheio, como
ele mesmo diz, mas “para entrar em sua glória”. O seu sofrimento voluntário foi
um sofrimento crédito, a serviço da sua evolução superior, e não um sofrimento
débito.
O grosso da humanidade vive no sofrimento débito, que pode converter-se em
sofrimento crédito.
Somente a nova humanidade, liberta de débitos, estará liberta de sofrimento
débito, e pode iniciar a gloriosa humanidade dos avatares, de que o Cristo foi o
precursor.
“Haverá um novo céu e uma nova terra, e o Reino de Deus será proclamado
sobre a face da terra”.
AS MALDIÇÕES DOS ELOHIM
O que há de mais estranho, e mesmo incompreensível, no Gênesis, são as três
terríveis maldições lançadas pelos Elohim à serpente, à mulher e ao homem.
Mas, se os Elohim são os autores da natureza humana, e esta natureza se
revela necessariamente como sopro de Deus e sibilo da serpente, como razão
e intelecto, como Eu e ego – não era vontade das Potências Creadoras que
essas antíteses entrassem em conflito entre si, a fim de realizarem a síntese do
homem perfeito?
Por que então os Elohim amaldiçoam a sua própria obra?
Resposta: Essas maldições não se referem à natureza humana como tal, que é
obra dos Elohim, mesmo na sua forma antitética. As maldições se referem à
rebeldia contra as leis cósmicas, de que os Elohim são locutores; referem-se à
possibilidade de o homem agir contra as leis da natureza; de ele não realizar a
grande síntese do homem perfeito, mas preferir uma das antíteses do homem
imperfeito; de o homem não evolver, mas involver, e assim frustrar em si as leis
cósmicas.
Quer dizer que essas maldições são auto-maldições do homem involutivo; elas
só têm valor no caso de que o homem perfectível não se torne homem perfeito,
frustrando assim a finalidade da sua existência.
Sendo que o homem é, aqui na terra, a única creatura creadora, se ele não
realizar essa sua creatividade, o homem se maldiz a si mesmo. O que é
realizável e não se realiza, se desrealiza.
Quem pode, deve; e quem pode e deve, e não faz, cria débito – e todo o débito
gera sofrimento, gera auto-maldição, gera auto-destruição.
Deus, diz Einstein, é a Lei. A Lei funciona automaticamente; quem se opõe à
Lei Cósmica, se maldiz, se aniquila a si mesmo.
Isto nada tem que ver com um Deus pessoal, com um Deus emocional, que se
possa irritar.
Na Lei não há amor nem ódio, no sentido humano; a Lei é essencialmente
neutra. A creatura que harmoniza com a Lei, goza; a creatura que se opõe à
Lei, sofre.
A melhor ilustração para esta auto-maldição é a história do terceiro servo da
parábola dos talentos: esse servo, que recebera um talento, uma
potencialidade evolutiva, não obedeceu à Lei Cósmica, que exige evolução;
estagnou na sua potencialidade, sem passar à atualização evolutiva, e assim
se auto-puniu com a perda da sua potencialidade; deixou de ser homem livre,
perdeu a sua natureza hominal e se deshomificou. “Quem não tem
(atualização) perderá até aquilo que tem (potencialidade)”.
O Gênesis de Moisés é um livro da mais alta intuição cósmica. Com o advento
do livre-arbítrio, Moisés previu a possibilidade de uma estagnação, e até de
uma involução, de uma desrealização, em lugar duma auto-realização.
E essa involução, ou desrealização, é uma auto-maldição, uma auto-
degradação, de um auto-aniquilamento.
O homem é o autor do seu céu ou do seu inferno, da sua vida eterna ou da sua
morte eterna.
A nossa ideologia monoteísta sobre um Deus pessoal, um Deus antropomorfo,
torna impossível a concepção monista de um Deus impessoal, de um Deus-Lei,
de uma Divindade ultra-personal, Universal, de uma Consciência Cósmica.
Por causa desse antropomorfismo de Deus, atribuímos a Deus o que é do
homem, imaginamos uma Teo-maldição em vez de uma ântropo-maldição.
* * *
Há na história milenar da humanidade duas rebeldias fundamentais contra as
leis cósmicas: a luxúria e a ganância, e ambos geram auto-punição, ou auto-
maldição. O uso correto do sexo e da propriedade é harmonia com a Lei – o
abuso do sexo (luxúria) e o abuso da propriedade (ganância) são rebeldias
anti-cósmicas, e geram desarmonia, sofrimento, auto-maldição.
O Gênesis frisa com veemência a luxúria, ao passo que o Evangelho focaliza
sobretudo a ganância como rebeldia anti-cósmica.
Moisés e Jesus são, possivelmente, os maiores gênios cosmo-videntes da
história. Ambos exigem harmonia com a natureza humana reflexo da Lei
Cósmica; ambos amaldiçoam a desarmonia com as Leis Cósmicas.
Ai de vós, escravos da luxúria!
Ai de vós, escravos da ganância!
ROTEIRO EVOLUTIVO DA
HORIZONTAL PARA A
VERTICAL
Tentaremos concretizar esse roteiro do homem por meio do gráfico seguinte:
O homem de evolução primitiva se acha na linha horizontal marcada com “0”.
Vive na consciência da animalidade.
Desta horizontal “0” começa ele a sua evolução hominal rumo à vertical
marcada com “90”, representando um ângulo reto.
Mas esta jornada, de “0” para “90”, tem numerosas linhas ascensionais, que
representam a ética pré-mística. O princípio desta ética ascensional é difícil,
porque a lei da gravidade atua fortemente para baixo.
Esta fase é chamada pelo Cristo “caminho estreito e porta apertada, que
conduzem ao Reino dos Céus”.
Mas, na medida que o homem avança através desta ética rumo à mística, a
tendência gravitacional diminui paulatinamente; no ponto “45”, meio ângulo
reto, já é mais fácil subir e há menos tendência de recair.
Quando o homem se aproxima da linha vertical do ângulo reto, verifica ele que
a subida é, na linguagem do Cristo, “julgo suave e peso leve”. E, quando atinge
a vertical, a sua ética coincide com a mística, e então cessa qualquer
dificuldade e perigo de recair. O querer do ego coincide com o dever do Eu; o
homem assim realizado quer o que deve, e deve o que quer, conciliando o ego
do querer com o Eu do dever.
Este estado de auto-realização é chamado nos Evangelhos “entrada no Reino
dos Céus”, e na filosofia oriental “nirvana”, onde não há mais luta, mas paz e
felicidade.
Depois de entrar nesta linha reta de auto-realização, do Reino dos Céus, do
Nirvana, o homem não pára, porque a evolução não conhece chegada final;
mas somente jornada contínua.
Deste ponto em diante o homem progride verticalmente, por toda a eternidade,
numa evolução indefinida.
Daqui por diante, não há mais sofrimento necessário, mas pode haver
sofrimento voluntário, se o homem quiser. Os grandes avatares fazem então a
sua antidromia, descendo voluntariamente à regiões de evolução inferior, onde
encontram resistência, luta, sofrimento. Eles sabem que sem resistência não
há evolução; mas, como querem acelerar a sua evolução superior, vão em
busca de resistência, para a sua auto-realização em evolução indefinida.
O fim primário desta antidromia e desses sofrimentos voluntários é a evolução,
mas como toda a evolução transborda necessariamente, esse transbordamento
da plenitude beneficia os seres inferiores – suposto que estes tenham abertura
e receptividade para este transbordamento da plenitude do avatar.
“Da sua plenitude todos nós recebemos, graça e mais graça”, diz João no
Evangelho, referindo-se à plenitude do Cristo.
Todo o avatar é um benfeitor de outras creaturas, se estas forem receptivas.
Disto sabia Mahatma Gandhi, quando escrevia: “Quando um único homem
chega à plenitude do amor, neutraliza o ódio de muitos milhões”. E quando,
pouco antes da morte violenta de Gandhi, o chefe de polícia o acompanhava
com um revólver na pasta, Gandhi, que isto suspeitava, disse: “Enquanto um
homem ainda deve matar outros homens, eu não cumpri a minha missão”.
O exemplo clássico desta voluntária antidromia de um avatar é a encarnação e
morte do Cristo, que, como ele diz, sofreu tudo isto para entrar em sua glória.
Mas, como as igrejas cristãs, em 2.000 anos, não foram capazes de
compreender este elevado motivo de evolução, ensinam até hoje que Jesus
nasceu, sofreu e morreu para pagar os pecados da humanidade a um Deus
ofendido. Essa teologia peca por diversos absurdos, para não dizer blasfêmias;
supõe que Deus possa ser ofendido, como se fosse um pobre ego não
realizado; admite o absurdo de que Deus exija o sofrimento de um inocente
para pagar os débitos dos culpados.
Tomás de Aquino, que foi o principal promotor desta teologia eclesiástica,
revogou tudo que escreveu depois de uma visão mística, dizendo: “Tudo que
escrevi é palha”. Infelizmente até hoje os seminários e igrejas mandam ruminar
esta palha teológica, sem mencionar a expressa condenação feita pelo próprio
autor.
A evolução ascensional do homem passa através do querer do ego rumo ao
dever do Eu e, quando o querer coincide com o dever, então o homem entra no
Reino dos Céus.
A filosofia oriental enumera cinco éticas (ou yamas) principais, pelas quais o
homem; deve passar para entrar no Nirvana; mas há numerosas outras
disciplinas menores, que abrem o caminho para o Reino dos Céus.
Não há alo-redenção, como pensam certos teólogos; há tão-somente auto-
redenção: o dever do Eu deve redimir o homem do querer do ego, realizando o
grande tratado de paz da natureza humana.
A auto-redenção está em que o homem faça coincidir o querer do ego com o
dever do Eu, não pela extinção do ego, mas pela total integração e
harmonização do ego com o Eu, harmonização que os Mestres chamam
“egocídio”: “Se o grão de trigo não morrer, ficará estéril; mas se morrer
produzirá muito fruto”. “Eu morro todos os dias, e é por isso que eu vivo”.
As cinco éticas pré-místicas da filosofia oriental que realizam esta conciliação
do ego com o Eu são, em língua sânscrita, as seguintes:
1 – ahimsa (não violência)
2 – satya (verdade)
3 – asteya (não furtar)
4 – aparigraha (não apego)
5 – brahmacharya (disciplina sexual)
Toda a dificuldade de realizar a harmonização do ego com o Eu está no fato de
ser o ego o pior inimigo do Eu, como diz a Bhagavad Gita. Mas, sendo o Eu o
melhor amigo do ego, a harmonização pode efetuar-se, partindo do amor do Eu
para com o ego. O Eu divino no homem pode a tal ponto amar o ego humano
que “neutralize” o ódio deste, preparando assim o caminho para o grande
tratado de paz.
Como já dissemos, os dois pólos da antítese são complementares, não iguais
nem contrários; e assim o pólo positivo do Eu pode preparar o pólo negativo do
ego para a grande síntese da conciliação.
Paulo de Tarso, após a sua dramática conversão às portas de Damasco, ouviu
as palavras misteriosas “duro te é recalcitrar contra o aguilhão”. O aguilhão, o
impulso do Eu, não destrói a liberdade do ego, mas fá-lo sofrer ate que ele
resolva livremente harmonizar o seu querer rebelde com o dever, preparando
assim o tratado de paz com o Eu, a auto-redenção.
O sofrimento do ego é um fator importante no processo da harmonização com
o Eu. Sem resistência não há evolução – resistência voluntariamente aceita e
corajosamente superada.
É este o roteiro evolutivo da horizontal para a vertical através das dolorosas
ascensionais da ética pré-mística.
O ROTEIRO HUMANO
ATRAVÉS DO BIOS, DO
NÓOS, RUMO AO LÓGOS
Quando o bios (vida) atingiu a sua perfeição máxima, no organismo do animal,
eclodiu nele o nóos (inteligência) e, mais tarde, o lógos (razão).
Mas a natureza típica do homem consiste na inteligência da noosfera e na
razão da logosfera; ou, segundo o Gênesis, no sibilo da serpente e no sopro de
Deus.
Estas duas consciências, a inteligência do ego e a razão do Eu; nasceram com
a origem do homem; antes disto só havia biosfera.
A inteligência do ego nasceu pleniconsciente de si, em estado acordado – ao
passo que a razão do Eu continuava semi-consciente, em estado de
dormência, como continua até hoje na maioria dos homens.
Em face desse despertamento do ego e dessa dormência do Eu, era inevitável
que este fosse derrotado por aquele.
Nessa derrota do lógos e nessa vitória do nóos consiste o que os teólogos
denominam a queda do homem, queda que é o prelúdio da sua evolução
posterior, feita duma longa cadeia de quedas e de surtos, porque Deus creou o
homem o menos possível, para que o homem se pudesse crear o mais
possível.
Quando o ego consciente da inteligência despertou no homem, no homem da
biosfera animal, entrou em conflito o intelecto com o instinto, o nóos com o
bios.
Toda a biosfera da vitalidade conhece a libido do sexo, que é um meio
necessário para a procriação, que é a finalidade do sexo. O instinto sexual do
animal funciona infalivelmente em harmonia com as Leis Cósmicas. Todo o
animal usa a libido como um meio e nunca como um fim, porque a natureza do
animal está em sintonia automática com as leis cósmicas.
Mas, quando apareceu o nóos da inteligência hominal, entrou ele em conflito
com o bios do instinto animal e perverteu as Leis Cósmicas, usando a libido
como um fim, e não simplesmente como um meio para um fim superior. A
inteligência descobriu que se pode gozar a libido por causa da libido, o prazer
sexual por causa de si mesmo, independente da sua finalidade natural.
Nasceu assim a primeira rebeldia duma creatura contra a Lei da natureza, que
é a porta-voz das Leis Cósmicas. Nasceu a luxúria, a libido pervertida,
falsificada.
A inteligência perverteu o instinto.
O nóos perverteu o bios.
Foi, esta a primeira rebeldia do livre-arbítrio, recém-eclodido no homem
primitivo.
E esta desarmonia, intelecto versus instinto, não pode ser rearmonizada
enquanto não despertar no homem o lógos da razão, único fator capaz de
realizar um tratado de paz entre o nóos do intelecto e o bios do instinto.
Até hoje, continua essa guerra entre o intelecto e o instinto, essa falsificação do
bios pelo nóos, ainda que, por vezes, essa guerra apareça como armistício.
Armistício é uma trégua entre duas guerras, mas não é um tratado de paz.
Somente o pleno despertamento da razão pode realizar um verdadeiro tratado
de paz entre os dois beligerantes, intelecto e instinto.
Enquanto o intelecto se servir do sexo como luxúria, e não como procriação, a
vida humana será guerra ou armistício, mas não será paz.
É esta a situação da humanidade até hoje – e por isto perdura a tríplice
maldição da inteligência, da mulher e do homem, de que fala o Gênesis. O
homem se acha ainda no primeiro estágio evolutivo, rebeldia do intelecto contra
o instinto.
E este estado primitivo de discórdia prosseguirá enquanto não despertar a
razão como supremo árbitro e pacificador nesse campo de batalha, e realizar o
grande tratado de paz.
Somente a vitória do sopro de Deus sobre o sibilo da serpente poderá levar o
homem do seu atual estágio evolutivo para um estágio superior de evolução –
o estado do homem cósmico, do homem integral.
Quanto mais a libido se converter em amor, tanto mais o semi-homem se
converterá num pleni-homem.
É possível mesmo que cesse totalmente a libido e reine soberanamente o amor
– e então, surgirá a alvorada de uma nova humanidade: haverá creação pelo
lógos, em vez de procriação pelo bios-nóos.
E, por fim, culminará toda a procriação racial em pura creação individual; a
vasta horizontal de creaturas de procriações raciais culminará na alta vertical
da creação individual – o “Filho do Homem”.
É este o roteiro multimilenar do homem, desde o Alfa até ao ômega, desde a
sua primitiva perfectibilidade até à sua final perfeição.
Os planos cósmicos da Divindade se cumprirão infalivelmente – com, sem ou
contra as veleidades humanas.
Da libido sem amor – ao amor sem libido.
OS ALBORES DE UMA NOVA
HUMANIDADE
Há, no Gênesis de Moisés, umas palavras alvissareiras jamais compreendidas
no sentido de uma longínqua cosmo-visão da humanidade.
Dizem os Elohim, as Potências Creadoras, de que Moisés era fiel locutor, que
porão inimizade entre a serpente e sua geração e entre a mulher e sua
geração; o descendente da mulher esmagará a cabeça da serpente, e a
serpente armará ciladas ao calcanhar do vencedor.
Em linguagem não simbólica, diríamos:
Há, de momento, amizade entre a humanidade e a inteligência; mas chegará o
dia em que essa amizade acabará em inimizade; o descendente duma mulher,
no futuro, derrotará a inteligência, que atualmente, até agora, domina a
humanidade, descendente daquela mulher, que fez amizade com a inteligência.
Mas, apesar de derrotada, a inteligência continuará a hostilizar o vencedor,
embora não o possa mais derrotar como antes; mesmo de cabeça esmagada
pelo vencedor, a inteligência armará ciladas ao calcanhar do vencedor; não o
enfrentará mais frente a frente, porque está derrotada, mas rastejará atrás do
vencedor para ver se, pelo menos, o consegue morder pelo calcanhar.
Esta é a misteriosa visão de uma humanidade que superou a atual humanidade
dominada e tiranizada pela inteligência analítica, que, segundo a Bhagavad
Gita, é irreconciliável inimiga da razão intuitiva. A visão alude à vitória do lógos
sobre o nóos, como diria Teilhard de Chardin, usando as palavras de alta
precisão da filosofia grega: nóos, a inteligência; e lógos, a razão. Infelizmente,
a nossa linguagem revela tão pouca acribia que confunde inteligência com
razão, dificultando enormemente uma filosofia exata.
Se Moisés tivesse escrito em grego, poderia ter falado na vitória da razão sobre
a inteligência; se tivesse escrito em sânscrito, poderia ter falado do aham (ego)
que sempre hostiliza o atman (Eu).
Nestas palavras, alude Moisés – ou melhor, aludem os Elohim – a uma
humanidade superior àquela que conhecemos, a uma humanidade de
racionalidade cósmica, distante da nossa humanidade de intelectualidade
telúrica.
“Poremos inimizade entre ti (serpente) e a mulher; entre tua descendência e o
descendente dela”.
Evidentemente, aqui os Elohim se referem a uma mulher que não sucumbiu à
sugestão da antiga serpente, mãe da nossa humanidade do nóos intelectual;
refere-se a uma mulher com a qual começa a nova humanidade do lógos
racional.
Lógos é o nome que o quarto Evangelho dá ao Cristo: “No princípio era o
lógos...”
É sabido que Nostradamus e outros videntes do futuro – sem excetuar o
próprio Cristo – vaticinaram a destruição da nossa humanidade, na “plenitude
dos tempos”. O povo entende que essa catástrofe se dará no fim do segundo
milênio, atribuindo a Jesus as palavras: “De mil anos passarás – a dois mil não
chegarás”.
A julgar pelos indícios, a atual humanidade está preparando gradualmente o
seu suicídio coletivo, não só pelo desencadeamento das forças nucleares, mas
ainda mais pela crescente rebeldia contra as leis cósmicas que deviam
governar os mananciais biológicos da vida humana.
Entretanto, esse fim da nossa humanidade não coincide com o fim da
humanidade em si. Uma elite não contaminada pelo sibilo da antiga serpente
servirá de semente para a nova humanidade.
Os planos cósmicos dos Elohim não podem falhar; se eles, fizeram do homem
a obra-prima da creação telúrica, esses planos se cumprirão infalivelmente.
Mas o quando e o como desse cumprimento depende da creatividade do
próprio homem.
Quem pode, deve; e quem pode e deve e não faz, cria débito – e todo o débito
gera sofrimento. Esta frase concretiza em sua precisão lapidar, toda a lógica e
matematicidade da Constituição Cósmica do Universo.
A nossa humanidade pôde realizar-se, mas não o fez. Por isto, é devedora
perante a justiça do Universo – e todo o débito gera sofrimento.
Esses sofrimentos da nossa humanidade devedora são inevitáveis, porque são
a reação automática contra a ação do devedor.
Mas, uma vez purificada por sofrimentos sem precedentes, a humanidade
sobrevivente entrará num novo estágio evolutivo: do nóos para o lógos, da
inteligência para a razão, do ego para o Eu.
O descendente da nova Eva esmagará a cabeça do descendente da velha Eva.
Estranhamente disse o Gênesis que a antiga serpente, mesmo derrotada, não
deixará de hostilizar o seu vencedor, embora apenas disfarçada e
sorrateiramente.
Estas últimas palavras revelam uma cosmo-visão de grande alcance, fazem ver
que haverá sempre hostilidade entre o sibilo da serpente e o sopro de Deus,
entre o ego e o Eu, entre o anticristo e o Cristo, como já fez ver Orígenes de
Alexandria no seu livro Apokatástasis, porque a evolução continuará
indefinidamente, uma vez que sem resistência não ha evolução.
Na vida de Jesus temos a incessante tentativa do ego contra o Eu; mas, ao
mesmo tempo, uma incessante vitória do Eu sobre o ego. Num estágio de
avançada evolução, não pode haver derrota do superior pelo inferior, mas
haverá, e deverá haver, uma luta permanente entre o ego e o Eu, porque sem
essa luta não haveria mais evolução – e todo o mundo das creaturas é uma
evolução sem fim.
A evolução ascensional vai rumo ao Infinito, sem jamais coincidir com o Infinito
– a involução descensional vai rumo ao nada existencial. A existência creatural
pode deixar de ser esta existência, mas sua essência não pode deixar de ser
essência, que é una e eterna.
A nova humanidade orientada pelo lógos da razão não será mais quantificante
pela pro-creação sexual, mas será qualitativa pela auto-creação individual; a
erótica horizontal será superada pela mística vertical.
Esta existência mística será como uma vertical sem fim, uma sinfonia
inacabada.
A atual existência erótica é como um ziguezague no plano horizontal,
quantitativo, que culminará na linha reta da vertical qualitativa.
A quantidade temporária serve de base à qualidade eterna – assim como a
base de uma pirâmide é necessária para o cume dela.
As Leis Cósmicas, sobretudo no setor hominal, são nitidamente verticalizantes,
embora baseadas na horizontalidade.
O espírito divino, que após a encarnação se chama alma, necessita da
horizontal do corpo para se poder verticalizar por esforço próprio; herdou a
liberdade e deve adquirir a libertação. Do Infinito recebeu o homem a sua
liberdade, através do finito do corpo deve ele adquirir a sua libertação.
Quem não se liberta não é plenamente livre; uma liberdade apenas herdada é
uma semi-liberdade, para não dizer uma pseudo-liberdade; somente uma
liberdade adquirida por esforço próprio, uma libertação, é liberdade em toda a
sua plenitude.
A única tarefa do homem, aqui na terra e em todas as existências cósmicas do
futuro, é a sua auto-libertação.
Os avatares, possuidores de alta liberdade, sentem a necessidade de se
libertarem cada vez mais; por esta razão procuram resistência, luta, sofrimento,
porque sabem que somente assim podem ultrapassar o nível da sua evolução
atual.
A humanidade telúrica que perde a visão da sua evolução cósmica entra em
estagnação e toda a estagnação, cedo ou tarde, desce para a involução – e
toda a involução descensional termina necessariamente no nada existencial.
O homem com os olhos fitos na sua evolução cósmica está na linha reta da
verdade, seja qual for a sua distância do Infinito. A vida eterna não é uma
chegada final – é uma jornada certa sem fim.
A ILUSÃO SEPARATISTA E A
VERDADE UNITIVA
Com a origem do homem iniciou o Uno do Universo uma nova forma das suas
manifestações: Verso – apareceu uma creatura dotada da consciência da sua
alteridade. Todas as outras creaturas só têm consciência da sua identidade
com o Todo, mesmo inconscientemente.
Nasceu a alteridade ou egoidade do homem.
O ego se contemplou, e viu que não era idêntico ao Uno ou Todo do Infinito.
Contemplou-se na sua ego-alteridade. Despontou nessa creatura a
personalidade, a ilusão do separatismo.
Cheio de surpresa e entusiasmo se mirou o ego narcisisticamente e se adorou
no espelho da sua ilusória personalidade.
E, como ainda era fraca essa consciência recém-eclodida da ego-
personalidade, o homem fez o possível para reforçar essa consciência da sua
alteridade. E, de tanto afirmar a sua diversidade, o ego chegou a hipertrofiar a
alteridade e esquecer-se da identidade com o Todo. Caiu na ilusão de que ele
pudesse existir separado do Infinito.
Nasceu então o que os teólogos chamam “pecado original”.
O ego personal sucumbiu à ilusão do separatismo – e até hoje todo o homem
nasce nesta ilusão de separação do Todo.
Esta ilusão da personalidade separada é, até hoje, o presente de berço de toda
a creatura humana, e nessa ilusão continua a viver o homem enquanto não
conquistar a consciência da sua união com o Todo. Nenhum batismo o pode
libertar desse “pecado original”. Somente a Iuz da verdade pode dissipar a
treva dessa ilusão.
Essa ilusão do ego era necessária para iniciar a evolução do homem; do
contrário não teria havido evolução, que só se origina em face de uma
resistência. A ilusão inicial é necessária para conseguir a auto-libertação.
O conflito entre a ilusão do ego e a verdade do Eu formam o campo de batalha
da evolução ascensional do homem. A liberdade herdada deve ser
transformada pelo homem numa liberdade adquirida, numa auto-libertação.
Quem não se libertou por esforço próprio não é plenamente livre.
A alteridade do ego se refere apenas à sua existência, ao passo que na sua
essência há identidade com o Todo do Infinito; mas o ego não enxerga essa
identidade.
Na síntese da alteridade existencial com a identidade essencial consiste toda a
missão terrestre do homem e sua auto-realização. Quem não realizar essa
grande síntese entre o Ser do Eu e o Existir do Ego não realizou o porquê da
sua existência terrestre. A sua realização existencial acabará em frustração
existencial.
Quem fizer a grande síntese entre a diversidade existencial e a identidade
essencial, esse realizou a verdade libertadora.
Tudo que o ego faz por amor a esse ego separatista é ilusão. O ego só
conhece um falso agir, um agir por amor dos objetos externos, e nada sabe de
um reto agir, por amor ao sujeito interno.
O longo diálogo que, na Bhagavad Gita, Krishna mantém com Arjuna, gira em
torno desse assunto fundamental: a luta pela auto-libertação, ou auto-
realização.
São possíveis três atitudes do homem em face do sujeito e objetos:
1 – O homem profano, espiritualmente analfabeto, só se interessa pelos
objetos do seu ego ilusório, os sentidos e a mente,
2 – O homem místico descobriu o seu sujeito real e, de tão encantado,
abandonou todos os objetos fictícios; é um iniciado na verdade libertadora,
3 – O homem cósmico descobriu o seu sujeito real e, mais do que isto, verificou
que pode intensificar cada vez mais a consciência desta verdade se se servir
dos objetos sem ser por eles dominado, se agir intensamente, em qualquer
setor da vida, sem se apegar a nenhum objeto, mas realizar todas as suas
atividades unicamente por amor ao seu verdadeiro sujeito Eu; esse homem é
um auto-realizado.
E, como toda a creatura auto-consciente é ulteriormente realizável, o homem
cósmico continua a sua evolução ascensional, realizando cada vez mais o seu
Eu central através das atividades do seu ego periférico, tornando-se assim um
homem integral.
Neste homem, a consciência da sua Essência Eu permeia todas as existências
do seu ego, assim como a luz permeia totalmente um cristal transparente, de
modo que dificilmente se possa distinguir um do outro, a luz e o cristal.
O homem integral é pois um homem cuja essência divina essencializou toda a
existência humana. Por vezes esta permeação espiritual-material chega ao
ponto de se tornar perceptível até no corpo, que perde a sua opacidade e
gravidade, diafanizando-se e desponderando-se, como acontecia com o corpo
de Jesus, no Tabor e alhures.
O homem cósmico auto-realizado, espiritual-corporal realizou a grande síntese,
harmonizando as antíteses complementares do sujeito-Eu e do objeto-ego.
O roteiro evolutivo do homem é pois este: antes da encarnação terrestre, existe
o puro espírito, emanação individual do Espírito Universal; este espírito,
sabendo-se realizável, mas ainda não realizado, vai em demanda da matéria a
fim de sofrer resistência, porque sabe que sem resistência não há evolução.
Encarnado no corpo material, o espírito atua como alma como anima,
amimando a matéria corporal.
Daqui por diante há duas alternativas: ou a alma se realiza através do corpo,
ou a alma é dominada pelo corpo, e inicia a sua involução negativa, que pode
descer ao zero da existência hominal, des-homificando-se, e perdendo a sua
natureza humana.
Alternativa do espírito encarnado é ou uma evolução ascendente e sem fim –
ou então uma involução descendente, que desrealiza a encarnação espírito-
matéria, extinguindo assim a natureza humana.
São estas as opções do livre-arbítrio.
É este o roteiro evolutivo, onde o Alfa inicial pode atingir o Ômega final.
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  • 1. HUBERTO ROHDEN O HOMEMSUA NATUREZA, SUA ORIGEM E SUA EVOLUÇÃO UNIVERSALISMO
  • 2. ADVERTÊNCIA A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.
  • 3. O HOMEM Massas estrelares, galáxias, um planeta incandescente que se resfria e se cobre de Vida – minerais, organismos vivos, células, vegetais, animais, e, coroando tudo: o homem. O homem é uma creatura singular. Um estupendo fenômeno. Um grande enigma. Com o seu aparecimento, a natureza assinala o maior marco na sua própria evolução. O homem é uma “descontinuidade na continuidade” da Vida. É ele a única creatura, capaz de creatividade. Somente ele possui faculdades e dons que o tornam único entre as outras creaturas. Diferentemente dos animais, não é um simples fato na paisagem em que vive, mas é um fator consciente que transforma e inventa. É uma creatura creadora. Entre o Homo erectus e o Homo sapiens, medeia uma grande escalada. Desde que o homem assumiu a condição humana de andar ereto – que passou da posição horizontal para a vertical –, há milhões da anos, e possivelmente nas savanas africanas, às margens do rio Omo, iniciou ele sua maior aventura cósmica, rumo a sua própria plenitude. Este livro não é apenas uma brilhante narrativa da natureza, da origem e da evolução do homem. Fundamentalmente é muito mais: é um verdadeiro tratado de filosofia univérsica. Uma cosmovisão do homem integral e dos fenômenos humanos, raramente atingida por outros pensadores. Rohden, como pensador do futuro e historiador de idéias, centrando na sua poderosa intuição, caminha, desde a concepção mitológica do homem, passa pelo conceito zoológico e culmina na visão ontológica, que é uma síntese da evolução biológica, histórica, cultural e metafísica do homem. Única visão que dá “sentido de Vida” à nossa própria existência. A solução rodheniana do problema é grandiosa e simples: creação e evolução se harmonizam e se completam. O universo é uma unidade na diversidade. O Uno, continuamente, se manifestando no Verso. A essência se revelando como existência. A Vida Infinita se finitizando no vivo. Rohden afirma: “Na realidade, o Universo seria incompleto sem o homem. Faltaria o fator auto-determinante para completar os fatos alo-determinados, extra-hominais. No homem converge a pirâmide cósmica num ápice culminante.”
  • 4. PREFÁCIO Quase todos os livros que tratam do homem limitam-se a focalizar a sua evolução multimilenar – desde os tempos remotos em que ele vivia, como quadrúmano trepador, nas florestas primevas, de cujos frutos se nutria – até ao homem da Era Atômica e Cosmonáutica, que chegou à conquista da lua. Esses livros tratam da evolução física-mental do homem, mas passam em silêncio a sua origem metafísica-racional; falam dos canais, mas nada dizem da fonte. A ciência integral dos nossos dias exige uma base metafísica para todas as coisas físicas, porque, segundo Einstein, “do mundo dos fatos não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores; porque estes vêm de outra região”. Os valores da metafísica não podem ser derivados dos fatos da física, mas têm a sua origem “em outra região”, no mundo metafísico. Os fatos são analisáveis pela inteligência, ao passo que os valores são intuídos pela razão espiritual, a que Einstein se refere muitas vezes: “As leis fundamentais do cosmos não podem ser descobertas pela lógica, mas somente pela intuição”. Esta síntese de fatos físicos e valores metafísicos formam a ciência integral de nossos dias. Os que falam apenas da condição histórica do homem através de sucessivas potencialidades não fazem jus da ciência integral, que inclui também a Potência, de que derivam todas as potencialidades. O homem só pode ser compreendido quando visualizado à luz da sua realidade integral, como um fato físico e como um fator metafísico, como frisam Albert Einstein, Victor Frankl e outros representantes da ciência integral. Com a ciência parcial aceitamos que o homem tenha vindo através de diversas formas e potencialidades históricas (Darwin afirma que o homem é mesmo anterior aos símios) – com os expoentes da ciência integral admitimos que todas as potencialidades são canais que provêm de uma fonte ou Potência; o homem físico supõe logicamente uma fonte ou causa metafísica. Do contrário uma potencialidade menor (forma animal) não poderia desenvolver-se numa potencialidade maior (homem), porque o maior não está contido no menor, e dele não pode sair. Diz a lógica e o bom senso da matemática que um efeito
  • 5. não pode ser maior do que sua causa, mas pode servir-se duma condição ou canal menor através do qual flui. Nenhum homem sensato admite a teoria mitológica de certos teólogos, segundo a qual o primeiro homem teria aparecido na terra como homem perfeito, que depois se teria tornado imperfeito por intervenção de uma entidade antidivina. A história sabe que o homem surgiu com o mínimo grau de perfeição, mas era dotado de perfectibilidade, que lhe veio da própria Potência inicial, que se manifesta através de potencialidades várias, através da evolução. A evolvibilidade deriva da Potência inicial, e essa evolvibilidade se manifesta gradualmente, no tempo e no espaço, através de potencialidades sucessivas. A expressão de Moisés, no Gênesis, de que o corpo do homem é feito de “substância da terra”, é cientificamente exata, quando se considera que nada há no corpo humano que não exista nos elementos da natureza. A idéia de que Deus tenha feito um boneco de barro é uma falsa interpretação duma grande realidade, de que Moisés sabia. Com a admissão de uma Potência como causa ou fonte de todas as potencialidades evolutivas enfrentamos o ponto nevrálgico do problema, que divide a meneia integral dos grandes gênios, da ciência parcial dos talentos medíocres. Já no seu tempo, século 17, escrevia René Descartes, que nada pode ser provado analiticamente se não supuser algo como um postulado intuitivo. A intuição não é uma hipótese, vaga e incerta, mas é uma evidência imediata e certa. Exemplifiquemos: um cano de meia polegada e poucos metros de comprimento emite milhares de toneladas de água, que não se esgotam jamais; ninguém dirá que esta enorme quantidade de água tenha estado contida no encanamento, ou mesmo na caixa de água ligada a esse; todo o homem sensato admite que essas toneladas inesgotáveis de água vêm de uma fonte perene, não situada nas ruas da cidade, mas em alguma serra longínqua, donde a água é canalizada; a água vem da fonte e flue através dos encanamentos. E embora os habitantes da cidade não tenham visto jamais essa fonte longínqua, todos supõem, consciente ou inconscientemente, sua existência, como um postulado certo, e não como uma hipótese mais ou menos provável. Aplicando ao homem esse símile, os gênios da ciência integral admitem como postulado uma Potência inicial, da qual derivam as potencialidades, como os canais derivam de sua fonte. Os representantes da ciência parcial se contentam com a análise dos canais ou potencialidades físicas, ao passo que os gênios da ciência integral sabem intuitivamente que qualquer canal repleto de água supõe como certo uma fonte de águas perenes, uma Potência como causa de todos os efeitos ou potencialidades. Quem nada supõe como
  • 6. postulado nada pode provar – assim como o arquiteto não pode construir um edifício sem supor a terra; mas essa terra não é obra dele; é um postulado, uma evidência imediata para o construtor. Neste livro admitimos todos os fatos históricos que a ciência provou como etapas evolutivas do homem, mesmo os fatos anteriores à própria hominalidade; mas além desses tatos históricos afirmamos a inelutável necessidade de uma Potência que justifique essas potencialidades. E admitimos esse postulado intuitivo não em virtude de uma tal ou qual crença religiosa, mas como o imperativo categórico da ciência integral, que não admite efeitos, menores ou maiores, sem admitir uma causa máxima, como fonte ou Potência. É pelo bom senso da lógica e matematicidade que somos obrigados a aceitar esse postulado intuitivo como base indispensável para a ciência analítica. Este livro, portanto, não se baseia em nenhuma teoria mitológica, nem numa teoria zoológica, mas sim na tese cosmológica da própria realidade integral. O homem não pode ser compreendido a não ser à luz da ciência integral. Há quem tente invalidar este argumento alegando que duma causa menor pode vir um efeito maior, como provam os fatos da natureza. Pois, não é a planta maior que a semente? E não é a ave mais perfeita que o ovo de que nasceu? Respondemos: No mundo orgânico nada prospera sem certas condições, como água e luz, umidade e calor. Uma semente sem água e calor não brota; um ovo sem umidade e calor morre sem eclodir em ave. Disto sabe até a galinha, quando esquenta os ovos com o seu corpo, e deixa umidecê-los abandonando- os periodicamente, a fim de provocar umidade pelo revezamento de calor e frio; também o criador de aves por incubadeira elétrica sabe disto; por isto mantém o calor e umidade na incubadeira. Água e luz, umidade e calor, são as Potências Cósmicas que se servem da semente e do ovo para os transformar em planta e ave. A semente e o ovo funcionam como condições, de que a causa das Forças Cósmicas se servem para produzir o efeito. As Forças Cósmicas são de ilimitada potência, que como causa necessitam de condições limitadas para produzir seus efeitos. Também o homem é um efeito da Potência Cósmica que se revela em potencialidades telúricas. Não estranhe o leitor se, nas páginas deste livro encontrar repetidas certas verdades fundamentais. Estas reiterações, em formas várias, são propositais, porque sendo o homem o fenômeno menos compreendido, somos obrigados a
  • 7. iluminar esse mistério de todos os lados, a fim de induzir o leitor a uma auto- compreensão. Repetimos que não nos guiamos por nenhuma das teorias tradicionais sobre a origem do homem, nem mitológica, nem zoológica, mas remontamos a uma tese cosmológica, talvez de difícil compreensão, mas de absoluta verdade.
  • 8. O HOMEM COMO PARTE INTEGRANTE DO UNIVERSO Um dos equívocos tradicionais que tornam incompreensível o homem é a teoria de que ele não seja um fator integrante do cosmos, mas sim elemento adventício e heterogêneo. Na realidade, porém, o Universo seria incompleto sem o homem. Faltaria o fator auto-determinante para completar os fatos alo-determinados, extra- hominais. No homem converge a pirâmide cósmica num ápice culminante. A origem do homem não marca uma descontinuidade no fluxo geral da continuidade vital dos seres terrestres; a vitalidade marcada pelo homem não é uma heterogeneidade, mas uma fase avançada da homogeneidade vital do Universo. Não houve, com o advento do homem, uma intervenção extemporânea nos acontecimentos cósmicos, mas sim a mais alta eclosão do Uno do Universo no plano horizontal do Verso. O homem não marca um novo início absoluto, mas apenas um início relativo, uma continuação da creatividade universal. Com o advento do homem, a entropia da degenerescência energética do cosmos creou o pólo complementar da ectropia da sua intensificação energética, o que levou Teilhard de Chardin a afirmar que o homem é “o ponto ômega do Universo”. Nem a teoria mitológica da teologia, nem a teoria zoológica do darwinismo fazem jus ao fenômeno homem; somente a tese cosmológica justifica integralmente a realidade humana. O homem de hoje estava, desde o início do Universo, contido potencialmente na Potência inicial, donde fluiram (mais tarde) todas as potencialidades do mundo mineral, vegetal, animal, culminando no homem. Todos os canais existenciais do Verso brotaram, através dos períodos cósmicos, da única fonte do Uno; todos os finitos emanaram do Infinito. Nenhum finito veio de outro finito, mas todos de fluiram através de finitos anteriores. É lógica e matematicamente impossível que um menor seja causa de um maior; mas é admissível que um menor tenha servido de canal e veículo para um maior. É fora de dúvida, e historicamente provado, que o corpo humano fluiu através de organismos infra-hominais – animais, vegetais e minerais – mas é
  • 9. logicamente impossível que o não-homem tenha sido causa e fonte do homem. O que nos proíbe de aceitar um fator não-humano, como causa do homem, não é nenhuma crença ou dogma religioso, mas é a inexorável matematicidade da lógica e do bom senso. O homem é parte integrante do Universo, porque todos os efeitos finitos vêm necessariamente de uma causa infinita; todas as potencialidades derivadas nascem de uma Potência original inderivada. Através de milhões de anos, o homem, graças à Potência original, atingiu o nível em que hoje se acha; fluiu, como escreveu Teilhard de Chardin, através da hilosfera (material), pela biosfera (vida) e se acha agora na noosfera (inteligência), podendo traçar o seu itinerário ascensional até a logosfera (razão). No estado atual da evolução, o homem da noosfera se acha em conflito com a biosfera, pervertendo instinto vital da natureza, pelo intelecto; mas, quando o homem atingir a logosfera, a racionalidade deste nível, estabelecerá a paz e a harmonia entre o instinto do bios e o intelecto do nóos. O homem integral – vital-mental-racional – proclamará o grande tratado de paz entre todas as faculdades humanas. Esta pacificação universal, porém, depende da função do livre-arbítrio humano, que pode também provocar o contrário. Onde há livre-arbítrio nada é previsível, porque o homem é auto-determinante e não alo-determinado, como a natureza inferior. O poder da auto-determinação não destrói a ordem do Universo, mas realiza ou frustra o destino do homem individual. O homem, realizado ou frustrado, em nada afeta a ordem cósmica do Universo, como o monismo sabe. Verdade é que, segundo a ideologia primária do monoteísmo, que vê em Deus uma pessoa, a realização ou frustração do homem afetaria a própria Divindade e a ordem cósmica. O homem é uma parte integrante do Universo, seja na sua função positiva de realização, seja na sua função negativa de frustração. O mosaico cósmico é feito de pedras brancas e pedras pretas. A integração universal é cósmica, mas o aspecto da integração individual depende do homem.
  • 10. A NATUREZA INTEGRAL DO HOMEM A natureza humana pode ser considerada como um composto orgânico de três componentes fundamentais: 1) vida, 2) intelecto, 3) razão, ou usando a antiga terminologia grega: bios, nóos, e lógos. O intelecto (nóos) e a razão (lógos) são os elementos tipicamente hominais. A vida (bios) é o elemento comum a todos os seres vivos. E, na realidade, tudo é vivo, mesmo os minerais. Os seres vivos são a manifestação existencial da Vida, que constitui a Essência do Universo. O Uno do Universo é a Vida, a Essência, o Absoluto; e o Verso são os vivos, as existências, os relativos. Entre os vivos há inumeráveis diferenças de grau ou perfeição, segundo a consciência de cada um. Há quem identifique o mundo mineral com o inconsciente, o mundo vegetal com o subconsciente, o animal com o semi- consciente, e o hominal com o ego-consciente, podendo este evolver para o auto-consciente ou Eu-consciente. Segundo Teilhard de Chardin, o homem se acha atualmente no plano da noosfera intelectual, em demanda da logosfera racional. O nóos intelectual é a natureza periférica do homem, ao passo que o lógos racional forma o seu centro. Na noosfera predomina a análise intelectual, ao passo que na logosfera domina a intuição racional. O nóos intelectual do homem se manifesta como seu ego periférico, que Moisés, no Gênesis, simboliza pela serpente; o lógos racional (espiritual) se manifesta como o Eu central da natureza humana, simbolizado como o sopro de Deus. O grosso da humanidade se acha atualmente no nível da noosfera intelectual, e tenta substituir a biosfera da natureza instintiva. Essa luta entre a inteligência humana e a vida instintiva da natureza é responsável pelas doenças que afligem a nossa humanidade.
  • 11. Enquanto o homem racional não completar o homem intelectual haverá conflito entre o intelecto humano e o instinto da natureza, e haverá doenças. O nóos do homem intelectual não somente entra em conflito com o bios da natureza, mas também com o lógos da razão; sibilo da serpente versus sopro de Deus. É esta luta anti-racional que o Gênesis chama “pecado”, e o hino pascal do “Exultet” denomina “o pecado realmente necessário” e “a culpa feliz”. Como é que um pecado pode ser necessário? E como é que uma culpa pode ser feliz? O hino místico do “Exultet” se refere à lei necessária da antítese, que deve culminar na felicidade da síntese, sob os auspícios do livre-arbítrio humano, porque sem resistência não há evolução. A humanidade de hoje ainda se acha em plena luta contra duas frentes, contra a natureza do bios e contra o lógos do espírito. Quando o homem passar do nóos do intelecto para o lógos da razão cessará a luta do intelecto contra a razão, e com isto cessará também o pecado; cessará também a luta do intelecto contra a natureza, e com isto cessarão os males e as doenças. Jesus de Nazaré não tinha pecado e não teve doença; nem maldades nem males, porque estava perfeitamente harmonizado, tanto com o mundo espiritual (lógos) como com o mundo natural (bios); ele era o próprio Lógos (Verbo), como diz o quarto Evangelho; nele “habitava corporalmente toda a plenitude de Deus”, no dizer de Paulo de Tarso. Em Jesus a natureza humana havia atingido a sua evolução integral, sob os auspícios da razão espiritual do Lógos. Em outros homens, como Moisés, a evolução chegou a grandes alturas, tanto assim que Moisés nunca esteve doente, nem morreu, mas, aos 120 anos, transformou o seu corpo material num corpo astral, e 1.500 anos mais tarde reaparece, em corpo astral, no Tabor, ao lado de Jesus transfigurado. Quanto mais o homem evolve na sua evolução rumo à harmonização pelo Lógos da razão, tanto mais ele se aproxima da sua perfeição, realizando o homem integral: bios, nóos, lógos, ou seja, vida e intelecto sob os auspícios da razão. A humanidade de hoje está ainda no início da sua evolução, dominada unilateralmente pelo intelecto em luta com a razão e hostil à natureza. Deus e o diabo nada têm que ver com isto; é simples questão de livre-arbítrio. O livre-arbítrio é o poder que pode provocar tanto a evolução como a involução do homem; tanto a sua realização como a sua frustração. O empenho de todos os mestres espirituais da humanidade sempre consistiu em promover a evolução ou a auto-realização do homem, mostrando que toda
  • 12. a evolução e toda a felicidade do homem consiste no fato de ele fazer triunfar a razão sobre o intelecto, e assim estabelecer a perfeita harmonia entre todos os fatores componentes da natureza humana.
  • 13. POR QUE É O HOMEM UM ENIGMA? Muitos escritores afirmam que o homem é um enigma, um paradoxo, um desconhecido, como diz Alexis Carrel. Se a ciência desvenda cada vez mais os mistérios da natureza, por que continua o homem a ser um eterno X, uma incógnita sem solução? Existem numerosos livros sobre o homem, livros de antropologia, de fisiologia, de psicologia – e por que nenhum deles desvenda o enigma homem? Se o homem fosse apenas um objeto da natureza, a ciência já teria uma resposta satisfatória para a pergunta: Que é o homem? Assim como tem resposta para perguntas sobre átomos e astros, sobre minerais, vegetais e animais. Acontece, porém, que há no homem um fator que não se encontra na natureza fora dele. Que fator enigmático é este? O homem, sobretudo quando chegado à plenitude da sua hominalidade, não obedece integralmente ao impacto do alo-determinismo automático, que rege todos os seres da natureza. Quanto mais o homem na sua ascensional se distancia do plano horizontal, que rege o mundo extra-hominal, tanto menos prevalece nele o fator do alo-determinismo passivo, e tanto mais se revela nele o fator tipicamente hominal da auto-determinação ativa, que a ciência não conhece. A palavra tradicional e corriqueira para esse fator determinante e ativo é “livre-arbítrio”, que alguns identificam com ausência de causalidade. Entretanto, o fator ativo da auto-determinação ou liberdade não é ausência de causalidade; é uma causalidade, ou causação, que reside no próprio homem. Esse fator interno é idêntico à consciência, ao Eu central do homem. Nada no Universo acontece sem causa; a lei de causa e efeito rege todos os fenômenos da natureza, sem excluir o homem. Acontece, porém, que há causas externas, e há causa interna. Designamos o primeiro grupo de causalidade com o nome de alo-determinismo, e o segundo pela palavra auto-determinação. Mas tanto esta como aquele fazem parte da causalidade: os objetos extra-hominais obedecem a uma causa extrínseca,
  • 14. alheia, ao passo que o homem, quando da evolução avançada, se guia por uma causa intrínseca e própria. Alo-determinismo é obediência automática a uma causa alheia, ao passo que auto-determinação é atuação de uma causa própria, um fator que faz parte da intrínseca natureza humana. Poderíamos dar ao alo-determinismo o nome de causalidade transcendente, e à auto- determinação o nome de causalidade imanente. Quem é alo-determinado obedece a uma compulsão externa, heterogênea, alheia; quem é auto determinante guia-se por um impulso interno, homogêneo, imanente. Há filósofos e escritores que negam a existência de uma auto-determinação, que eles identificam erroneamente com ausência de causalidade, ou liberdade incausal. Possivelmente, as experiências desses cientistas foram realizadas unilateralmente com cobaias humanas de baixa evolução, tipo que prevalece na grande massa da humanidade, que é, de fato, mais um objeto de causas alheias do que um sujeito de causa própria. Se pelo gabinete de experiências desses pesquisadores passasse um Buda, um Jesus, um Gandhi, um Schweitzer, um Einstein, ou outro representante da humanidade-elite, bem diferente seria o resultado das suas pesquisas “científicas”. É um erro fundamental de lógica fazer experiências com algumas centenas ou mesmo milhares de cobaias humanas, e depois concluir para a totalidade do gênero humano, passando em silêncio precisamente a parcela mais genuinamente hominal. Devido a esse fator ativo e intrínseco da auto-determinação, continua o homem a ser um enigma, um paradoxo, um desconhecido, para a ciência que só conhece alo-determinismo. Onde impera exclusivamente o fator do alo- determinismo pode a ciência determinar a causa deste ou daquele efeito; mas onde funciona o fator da auto-determinação, ali termina toda a lei de cálculo e previsão. Um ato procedente do fator da auto-determinação é imprevisível, porque o seu agir não é unilinear ou uniforme, como no alo-determinismo, mas é de caráter esférico ou oniforme, por assim dizer. Na zona do alo-determinismo vigora pura creaturidade, ao passo que nas alturas da auto-determinação manifesta-se o fenômeno misterioso da creatividade. A ciência humana sente-se segura no plano linear da creaturidade, mas fica desnorteada na dimensão esférica da creatividade. Muitos escritores tentam desvendar a esfinge homem, mas só conhecem uma ciência analítica e intelectual, ignorando a sapiência intuitiva e racional. Nenhum pensador simplesmente ego-pensante está em condições de compreender a natureza do homem integral, que age impelido por um fator cosmo-pensado. O ego-pensante é intelectual. O cosmo-pensado é racional.
  • 15. A análise é unilateral. A intuição é onilateral. Apenas uma pequenina elite da humanidade chegou às alturas duma evolução racional e intuitiva, ao passo que as massas se movem nas baixadas de uma evolução intelectual e analítica. Quem é apenas ego-pensante, ego-agente, ego-vivente, não compreende o homem cosmo-pensado, cosmo-agido, cosmo- vivido. Já no primeiro século escrevia Paulo de Tarso: “O homem intelectual não compreende as coisas do espírito, que lhe parecem estultícia, nem as pode compreender, porque as coisas do espírito devem ser compreendidas espiritualmente”. Para esta última classe deve o homem ser necessariamente um enigma, um mistério sem solução. A evolução da creatura humana é indefinida, sua personalidade é ilimitada; e nesse plano há tantos estágios evolutivos quantas são as pessoas em processo de evolução. O homem racional, intuitivo, sabe o que é o homem, mas não de modo que o possa definir analiticamente. O que se pode pensar e dizer não é a verdade sobre o homem integral; a verdade não é pensável, nem dizível. Podemos saber (saborear) a verdade, mas não podemos pensá-la nem verbalizá-la, menos ainda escrevê-la definitivamente. Se o homem não fosse um enigma, um paradoxo, um desconhecido, não seria homem integral. O homem de baixa evolução não é um enigma; ele age e reage como qualquer outro fenômeno da natureza, ódio versus ódio, violência contra violência. Mas o homem que se aproxima da sua realização é, por isto mesmo, um enigma; pode opor não violência à violência, e pode mesmo ir além, podendo opor amor ao ódio. O Sermão da Montanha é um flagrante paradoxo e um enigma insolúvel para o homem que não ultrapassou o nível horizontal da sua egoidade. A sabedoria multimilenar da Bhagavad Gita diz: “O ego é o pior inimigo do Eu – mas o Eu é o melhor amigo do ego”; “o ego é um péssimo senhor da nossa vida, mas é um ótimo servidor”. Quanto mais alguém é Eu, e quanto menos é ego, tanto mais enigmático se torna. Todo o ego age e reage como qualquer fator físico, mas o Eu ultrapassa toda a física e sobe às alturas da metafísica, desconhecida do ego analítico e conhecida pelo Eu intuitivo. Quem pode opor não violência, ou até benevolência, à violência, amor ao ódio, esse é necessariamente o enigma
  • 16. para outros capazes somente de responder com violência à violência, com ódio ao ódio. O triunfo máximo do homem está na sua total libertação de qualquer alo- determinismo escravizante e na proclamação de uma total auto-determinação.
  • 17. PORQUE O ESPÍRITO ENCARNA Há estranhas teorias e hipóteses sobre o porquê do espírito individual, emanação do Espírito Universal, encarna no homem. Há quem pense que esta encarnação seja uma queda trágica, uma punição imposta pela Divindade. Outros pensam que a encarnação do espírito seja apenas temporária, que, depois de certo tempo, o espírito se desprenda do corpo e volte a ser o que era antes, puro espírito. Se assim fosse, teria o espírito perdido o seu tempo, encerrando, depois de milhões de anos, o seu círculo vicioso. As Leis Cósmicas são sábias, e nada fazem sem sabedoria e finalidade. O espírito individual encarna voluntariamente, porque sabe e quer fazer-se maior do que Deus o fez; quer realizar-se plenamente, porque é realizável. O espírito sabe que é creador, e desce, impelido pelo impulso da sua auto- creatividade. Todo o espírito é uma espécie de avatar, que procura resistência, porque sabe que sem resistência não há evolução. Mas a evolução, a auto- realização, é a Carta-Magna da constituição do Universo. O espírito encarna porque sabe que deve universificar-se. E o dever supera todo o seu querer. Sabe que deve evolver, e por isto inicia o seu roteiro evolutivo. Finalmente, quer o que deve. O espírito não demanda a matéria como uma prisão, mas por colaboração. Não forma com a matéria uma justa-posição mecânica, mas sim uma interpenetração orgânica. O homem é uma entidade inédita e original, que nunca deixa de ser homem. A sua jornada evolutiva rumo à auto-realização é seu fim supremo e único. Ele pode aproximar-se cada vez mais da sua meta, mas não pode jamais coincidir ou identificar-se com o Infinito, porque entre qualquer finito e o Infinito medeia sempre uma distância infinita. Pode a creatura integrar-se no Creador, mas não pode dissolver-se nele.
  • 18. O Cristo Cósmico, quando encarnou na pessoa humana de Jesus de Nazaré, continuou a ser o Cristo; e, depois de regressar às regiões cósmicas, não deixou de ser homem, O Cristo Cósmico era um encarnando, e Jesus, depois da encarnação e ascensão, é um Jesus cristificado e cosmificado. O corpo cosmificado continua a ser corpo, embora não material. Corpo é individuação. O corpo não é necessariamente material, como atualmente, mas continua a ser corpo, isto é, individuação, em qualquer forma de corporeidade, mesmo depois da sua desmaterialização. O corpo cosmificado não está ligado por tempo e espaço; pode estar presente em toda a parte, segundo as palavras do Cristo: “Eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos... Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles.” Quanto mais nítida se tornar num espírito a consciência da sua essência divina, tanto mais se alarga a sua presença corpórea. Nos seres altamente evolvidos há uma espécie de pluri-presença simultânea, e não apenas sucessiva, porque para eles o tempo e o espaço, o quando e o onde, não representam obstáculos, como para a presença material, que é necessariamente limitada, uni-local e uni-temporal. Quando o espírito encarnado está em baixa evolução pode ele iluminar unilateralmente o corpo material, assim como uma luz ilumina uma tábua opaca por um lado, enquanto o outro lado continua escuro. Mas, quando o espírito encarnado adquire alta potência de evolução, não somente ilumina unilateralmente o corpo, mas o lucifica onilateralmente, penetra-o totalmente, como a luz penetra e permeia um cristal. Neste caso, o corpo diáfano do cristal não é mais um impecilho para a luz, e sim um auxílio e veículo para ela. Através de um cristal, ou prisma, pode a luz incolor dispersar-se em luzes multicores. De modo análogo, pode o espírito lucificar um corpo a tal ponto que este se transforma num maravilhoso prisma, fazendo aparecer o espírito incolor na dispersão multicolor da creatura espiritualizada. A encarnação, o espírito divino em forma de homem, é uma nova fase da creatividade do Espírito Universal; é, por assim dizer, uma cosmificação multicolor da Divindade incolor a monarquia do Creador se manifesta numa cosmocracia creatural. Esta espiritualização da matéria é possível, porque o pleni-consciente do espírito tem poder sobre o semi-consciente ou inconsciente da matéria. No primeiro século, escreveu Paulo de Tarso que o corpo podia assumir muitos aspectos, o aspecto material e também o aspecto espiritual, e muitos outros. Em pleno século XX da Era Atômica e Cosmonáutica ensina Einstein que a matéria é energia congelada, e que a energia é luz condensada, assim como a
  • 19. luz é energia descondensada. A matéria não é uma realidade autônoma e fixa; não passa de um fenômeno da energia cósmica invisível, que se manifesta de mil modos visíveis. Com esta desmaterialização científica da matéria, os cultores da deusa matéria devem ter entrado em apuros, porque a deusa matéria desapareceu dos seus altares, e os seus adoradores ficaram ajoelhados ao pé de um altar vazio. É sabido que a Rússia soviética cultora do “materialismo dialético”, ficou decepcionada com as experiências desmaterializantes da Era Atômica, e não se conforma com um materialismo sem matéria. O homem, uma vez corporeificado, nunca deixará de ter corpo, nunca voltará a ser puro espírito; mas pode e deve potencializar indefinidamente a materialidade do seu corpo, tornando-o altamente energético “astral”, e mesmo luminoso e lucificado. Se é verdade que a luz é a mais alta forma da energia cósmica, então podemos supor que o corpo-luz seja o corpo definitivo do espírito, o corpo imortal. É um erro generalizado que somente a alma, o espírito, seja imortal. Na realidade, o próprio homem é imortal, ou melhor, imortalizável, e deve tornar-se imortal, lucificando totalmente a natureza do seu corpo pela luz do espírito. As disciplinas éticas pré-místicas (os yamas da filosofia oriental) têm a missão de lucificar e imortalizar cada vez mais o corpo material até o converter num cristal e prisma diáfano do espírito. É este o porquê da encarnação do espírito em forma humana.
  • 20. LIBERDADE, ESCRAVIDÃO – LIBERTAÇÃO Todas as teologias ocidentais giram em torno do binômio gozo-sofrimento. O homem deve fazer tudo para gozar eternamente; o gozo sem fim é o seu verdadeiro destino, o seu céu. A filosofia oriental gira em torno do binômio liberdade-libertação. O homem creado livre por Deus deve tornar-se liberto por si mesmo. O céu, para o oriental, não é um lugar de gozo eterno, mas um processo de libertação, em sânscrito kaivalya, que significa literalmente “nudez”; a finalidade do homem está em ele se auto-libertar cada vez mais e mais, despojando-se cada vez mais das roupagens do ego ilusório e escravizante. Mas, como o ego faz parte integrante da natureza humana, essa nudez não consiste em que o homem se separe do ego, que seria um atrofiamento ou mutilação da natureza humana; consiste em tornar o seu ego opaco cada vez mais transparente pela penetração e permeação da luz do Eu. As roupagens do ego ilusório e escravizante devem ser cada vez mais diafanizadas pela luz do Eu, – isto é libertação, nudez, kaivalya. Essa total diafanização do ego opaco pela luz do Eu supõe que este Eu intensifique cada vez mais a sua luz; do contrário, não poderia diafanizar totalmente a opacidade do ego. O Eu deve não somente iluminar o ego, como uma tábua batida unilateralmente por uma luz; mas deve lucificar totalmente o ego, assim como um cristal é diafanizado por uma luz extremamente intensa. Se o espírito do homem é uma emanação individual do Espírito Universal da Divindade, e, como tal, necessariamente livre, por que deve o homem livre libertar-se? Não supõe isto que ele seja escravo? O espírito é livre; mas, como ser consciente e livre, percebe ele que é também creador, e pode pôr em atuação a sua creatividade. E, como toda a creatura é finita, e, portanto ulteriormente evolvível, o espírito emanado da Divindade vê que deve continuar a sua evolução herdada por uma evolução adquirida. Por esta razão, o espírito livre se encarna na matéria do corpo; escraviza-se voluntariamente, porque vê que sem resistência não há evolução. A matéria do corpo é necessariamente uma resistência para o espírito. Mas não é propriamente a matéria do corpo que oferece resistência ao espírito; o que
  • 21. oferece resistência é a mente, o aspecto consciente e ativo da matéria, a matéria mental, a mente materialista. Uma vez revestido desta matéria mental, chamada ego, o espírito inicia a sua luta contra a resistência, o seu sofrimento, a sua evolução rumo à libertação. Todo o roteiro da encarnação terrestre não é outra coisa senão: liberdade herdada, livremente escravizada, para conseguir a libertação. Esta auto-libertação é algo tipicamente humano, maior do que a liberdade dada por Deus; é uma auto-libertação maior que a Teo-liberdade, porque, como disse alguém, Deus creou o homem o menos possível para que o homem se pudesse crear o mais possível. Deus creou o espírito livre, para que este, encarnado como homem, pudesse adquirir a sua auto-libertação. A encarnação no corpo material é, provavelmente, o estágio número um da libertação do homem, cujo processo libertador tem de continuar em outros corpos e em outras regiões do Universo. A libertação não é um estado definitivo, mas um processo indefinidamente continuável. Esse indefinido processo de libertação é o que, realmente, se deve entender por céu, ou vida eterna, que não é, em primeiro lugar, um lugar de gozo, mas sim um processo de libertação cada vez maior, uma sinfonia inacabada. Na terceira parte do seu livro monumental “Der Yoga”, J. W. Hauer, reproduz o diálogo entre dois yogues hindus, que gira em torno do tema “gozo ou libertação”. E, por fim, um dos yogues, que havia percorrido séculos e milênios de gozo, em todos os céus do Universo, declara que toda essa imensa gozação celeste havia sido uma imensa cadeia de escravidões gozadas, e só no fim do ciclo evolutivo ele atingira a libertação, além de todos os gozos e desgozos; entrara na linha reta da kaivalya, da nudez; do despojamento de todas as roupagens da ilusão pela visão da verdade libertadora sobre si mesmo. Quando o homem revestido de corpo e mente, conscientiza nitidamente “Eu sou o espírito”, que tem um corpo e uma mente, então se liberta ele das deslumbrantes roupagens do ego ilusório, que a sua encarnação terrestre lhe fornecera. Neste sentido, diz o maior dos Mestres a seus discípulos: “Conhecereis a verdade – e a verdade vos libertará”. A libertação conquistada pela verdade não pode, naturalmente, deixar de ser felicidade – felicidade da liberdade pela verdade.
  • 22. DO CAOS AO COSMOS – NO MACROCOSMO E NO MICROCOSMO Segundo a ciência, o Universo macrocósmico evolveu do caos ao cosmos, da desordem das potencialidades para a ordem da atualidade. O cosmos de hoje é o resultado do caos de ontem. Esta transição da potencialidade para a atualidade obedece a uma Inteligência Cósmica, que abrange tanto o ontem do caos como o hoje do cosmos. O microcosmo hominal obedece às mesmas leis do macrocosmo mundial – com a diferença de que, no homem, a inteligência é individualmente dirigida, quando no Universo é cosmo-consciente. No microcosmo hominal o caos inicial é formado pelo ego intelectual; é o estado primitivo de todo homem, antes que o Eu racional transforme em cosmos esse caos. O Gênesis de Moisés joga simbolicamente com esses dois elementos da natureza humana, comparando o caos intelectual com a voz da serpente e o subsequente cosmos racional com a imagem e semelhança de Deus, vitória definitiva do sopro de Deus sobre o sibilo da serpente. Esta transição do caos intelectual para o cosmos racional se realiza sob os auspícios do poder creador do livre-arbítrio humano destinado a fazer do caos microcósmico um cosmos microcósmico. O estado do caos hominal é chamado “pecado” por Moisés, pecado que, segundo a mística do “Exultet”, é um “pecado necessário”, e uma “culpa feliz”, e culminou no cosmos da grande solenidade que o Evangelho descreve festivamente na história do Filho Pródigo: o ego caótico se realizou no Eu cósmico. A idéia tradicional de que Deus, com a creação do homem, tenha sido derrotado por um anti-deus (diabo) resultou de urna visão unilateral e incompleta do drama caos-cosmos, que rege todo o Universo, mundial e hominal.
  • 23. O drama caos-cosmos, ego-Eu, ainda está no seu início, na primeira fase da sua evolução, no mundo da humanidade; tudo parece caótico, nada cósmico, porque a humanidade ainda se debate no período caótico da noosfera, e não atingiu ainda o plano cósmico da logosfera, no dizer de Teilhard de Chardin. Mas o drama do Universo não falha, nem no setor macrocósmico nem no setor microcósmico, embora esse drama leve milênios e eons. A idéia de “queda e redenção” do homem, no sentido teológico, não tem cabimento na filosofia cosmológica do Universo, onde tudo se realiza segundo leis imutáveis e inexoráveis, sem ou com a intervenção do livre-arbítrio humano. O livre-arbítrio não pode modificar o drama da ordem univérsica, embora possa afetar o destino do homem individual. A ordem cósmica se realiza independentemente do destino do homem, com, sem ou contra o livre- arbítrio individual. Toda a dificuldade e confusão no tocante à história da humanidade, nasce do equívoco tradicional de um suposto Deus pessoal que presida ao drama do macrocosmo e do microcosmo de cima ou de fora do Universo, idéia básica do monoteísmo teológico. Com a passagem da concepção monoteísta de um Deus individual para a concepção monista de uma Divindade universal, desaparece a dificuldade da compreensão. A idéia da Divindade segundo a concepção de todos os gênios e místicos, é a própria alma ou essência do Universo. Se a Divindade, segundo Spinoza e Einstein é a alma do Universo, e se o mundo é o corpo do Universo, então o corpo visível da existência não pode contradizer a alma invisível da essência do Universo; o Verso é necessariamente a manifestação do Uno. Esta cosmovisão do universo integral é a chave de todos os enigmas que atormentam a humanidade.
  • 24. O HOMEM EM LUTA CONSIGO MESMO O homem é, evidentemente, a única creatura do planeta terra que sofre de doenças permanentes e quase universais. Qualquer animal selvagem goza de saúde normal; só alguns animais domésticos, confinados em pastos e estábulos, sofrem de doenças semelhantes às do homem porque vivem num ambiente desnatural e são alimentados artificialmente. E as doenças de que sofre o homem têm origem na maior parte, na discórdia em que ele vive consigo mesmo. É que nenhum homem ego-consciente pode viver em paz consigo mesmo, mas em luta permanente consigo. Freud chegou à ingenuidade de escrever que o homem que tem problemas íntimos é um neurótico. O mineral, o vegetal e o animal vivem sem problemas, mas o homem que entrou na zona da ilusória ego-consciência, entra em luta consigo mesmo. Esta luta do homem consigo mesmo não é uma tragédia nem fracasso da creação; é da íntima natureza do homem. O homem é a única creatura terrestre inacabável, jamais plenamente realizada. Disse alguém que Deus fez o homem o menos possível para que ele se possa fazer o mais possível. Entre esse menos e esse mais se alarga o campo de batalha da vida humana. O homem não é só uma creatura creada, mas também uma creatura creadora; e entre a sua creaturidade e sua creatividade está o Kurukshetra onde Arjuna enfrenta os Devas e os Kurus da sua própria natureza. O homem realizável e realizando deve tornar-se um homem realizado – e isto é luta, luta evolutiva. Faz parte dos mais antigos equívocos da teologia afirmar que Deus creou o homem perfeito, e que o diabo reduziu o homem a um ser imperfeito; nem mesmo o prometido redentor conseguiu fazer o homem perfeito. O homem é por sua própria natureza imperfeito, mas perfectível. Com o advento do homem iniciaram as Leis Cósmicas uma fase de creação inteiramente nova, um ser não no estado rígido de alo-realizado, com os seres da natureza, mas no estado elástico auto-realizável. Esta auto-realização, porém, exige necessariamente o estado de antítese, ou luta, capaz de realizar a sua própria síntese, ou tratado de paz.
  • 25. Paulo de Tarso geme: “O bem que eu quero fazer não o faço, mas sim o mal que não quero fazer... Há em mim duas leis, a lei do bem e a lei do mal... Infeliz de mim...!! Quem me libertará deste corpo mortífero?” O próprio Jesus sentiu estas duas leis da sua natureza quando, nas sombras do Getsêmane, pedia para ser preservado do sofrimento, e, nos ardores do Gólgota clamava “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” Mas tanto aqui como acolá o Nazareno, sob os auspícios do seu Cristo, proclama a vitória do seu Eu divino, sob o seu ego humano, sentiu a luta, mas cantou vitória. É esta a condição de todo o homem avançado em sua evolução: luta sem derrota. O homem de evolução inferior sente essa luta, sabe que seu Eu superior, às vezes, vence e, às vezes, é derrotado pelo ego inferior. Esses dois pólos da antítese do homem são elementos autônomos da natureza humana; não vieram de fora dele, mas de dentro dele mesmo. Ao homem compete transformar essas antíteses em síntese, proclamar um tratado de paz em pleno campo de batalha. Esse tratado de paz não é o fim da luta, mas uma luta em perfeita harmonia com a sua natureza integral, a integração do pólo negativo no pólo positivo, e não a extinção daquele por este, que seria o atrofiamento da natureza humana. Todas as vezes que nas páginas do Evangelho, o Cristo se encontra com o Anticristo não lhe dá ordem que se retire, e sim que se ponha na retaguarda, como seguidor, e não na vanguarda como senhor. Os pólos da antítese da natureza humana não são contrários um ao outro, mas sim complementares; um não pode substituir o outro, mas um deve integrar-se no outro. O homem é o único ser da terra que deve e pode realizar-se plenamente, depois de ser creado realizável; a sua auto-realização é o fim supremo da sua existência terrestre. Não há evolução sem resistência. A resistência ou luta é um meio para a vitória, para a auto-realização. Na natureza do homem as leis cósmicas revelam a sua mais alta sabedoria.
  • 26. TEORIAS SOBRE A ORIGEM DO HOMEM O que dificulta grandemente a noção exata sobre a origem do homem são duas teorias, uma antiquíssima, outra recente: a teoria mitológica da teologia e a hipótese zoológica da ciência. A teoria mitológica, defendida por certas teologias, se baseia numa interpretação errônea e analítica da visão intuitiva que Moisés teve da origem do Universo e do homem. É inevitável que qualquer análise intelectual de uma intuição cósmica, como a do Gênesis, resulte errônea, porque, como já escrevia Paulo de Tarso, no primeiro século, “o homem intelectual (psychikos) não compreende as coisas do espírito, que lhe parecem estultícia, nem as pode compreender, porque as coisas do espírito devem ser interpretadas espiritualmente”. Sabia Moisés que no corpo humano não existe nada que não tenha vindo da natureza; por isto disse ele que o corpo do homem foi feito da substância da terra, como diz o texto grego da Septuaginta, tradução feita do original hebraico por 70 Judeus de Alexandria, três séculos antes da Era Cristã. Deduzir daí que Deus tenha feito um boneco de barro, é infantilismo ridículo. ' O espírito do homem não podia vir de outra fonte senão do Espírito Universal da Divindade, donde emanam todas as existências finitas, com a diferença de que nos outros seres essa emanação era inconsciente, e no homem apareceu pela primeira vez como consciente. O equívoco mais funesto da teoria mitológica é a idéia de que o homem teria aparecido na superfície da terra com um homem perfeito e plenamente realizado por Deus, quando ele apareceu no ínfimo grau de perfeição hominal, mas perfectível e ulteriormente realizável, graças ao poder do livre-arbítrio, em que foi creado. Um homem 100% perfeito que tivesse caído dessa perfeição para o grau 1 de imperfeição suporia um poder anti-divino maior que o próprio Deus. O homem, imperfeito, mas perfectível, foi creado “o menos possível”, como diz um pensador moderno, para que ele se pudesse crear “o mais possível”, iniciando assim uma nova fase creadora, uma creatura creadora no meio de creaturas apenas creadas. O Creador conferiu ao homem, por assim dizer,
  • 27. uma parcela da sua creatividade divina, tornando-o evolvível e responsável por sua evolução ulterior; do marco 1 devia o homem evolver para o marco 100, e além. De resto, no roteiro multimilenar da história humana não há o menor indício de que o homem pré-histórico tivesse sido mais perfeito do que o homem de hoje. A evolução vai do mínimo ao máximo, e se processa com passos mínimos em espaços máximos. Um poder supra-divino que tivesse destruído a obra humana de Deus seria a negação de um Poder Supremo e Onipotente. No século 19, surgiu a hipótese darwinista ou zoológica, que deriva do animal a origem do homem. Esta hipótese peca por um ilogismo flagrantemente anti-matemático, admitindo que do homem-zero possa ter vindo o homem-um, que o não-homem possa ter causado o homem. Alegam os darwinistas que o animal era potencialmente homem, e dessa potencialidade humana tenha vindo a atualidade humana. Que quer dizer potencial? O potencial é real, latentemente real, que pode tornar-se manifestamente real. Ora, se havia um animal potencialmente homem, é claro que esse animal era realmente homem, embora latentemente, ainda em forma animal. E, neste caso, o homem não veio do animal, mas o homem latente e realmente homem passou a ser um homem abertamente. Não houve transição de um homem irreal para um homem real, mas sim a continuação do homem real em homem real, do homem potencialmente real para o homem atualmente real. Ninguém se torna o que não é; ninguém se torna explicitamente o que não é implicitamente. Um coco não se tornaria coqueiro, se não fosse coqueiro em forma de coco; o coco é potencialmente (realmente) o que o coqueiro é atualmente (realmente); a transição não é de um não-coqueiro para um coqueiro, mas de um coqueiro latentemente real (coco) para um coqueiro abertamente real. O homem primitivo era realmente homem, essencialmente homem, embora por fora ainda fosse animal. O homem não veio do animal, mas veio através do animal. O maior não vem do menor, mas pode vir através do menor; mas ambos, o maior e o menor, vieram do máximo.
  • 28. Todas as potencialidades, pequenas e grandes, vêm da Potência, e é por isto que pode aparecer em atualidade. Se ligarmos um cano de meia polegada a uma fonte de águas perenes, podem fluir através desse cano 10, 100, 1000, e mais toneladas de água; mas não podemos dizer que essas toneladas de água tenham vindo do encanamento de meia polegada; devemos dizer que vieram da fonte e fluiram através desse cano. Todas as potencialidades, pequenas e grandes, vêm da Potência – assim como todas as águas do encanamento vêm necessariamente duma fonte, embora através dos canos. A Potência de que derivam todas as potencialidades é uma só, e, em última análise, deve ser infinitamente grande, inesgotável, para produzir potencialidades de qualquer tamanho e número. A transição da Potência para a potencialidade, do Infinito para o finito, se chama creação, ao passo que a transição de uma potencialidade para outra potencialidade se chama evolução. Toda a evolução supõe necessariamente a evolução, assim como a água do cano supõe a fonte. Crear não quer dizer fazer “Algo” do “Nada”, mas sim fazer “Algo” do “Todo”, manifestar um finito vindo do Infinito. O advento do homem na terra não é nenhum fenômeno sobrenatural; está em harmonia com as leis cósmicas, cuja Essência Infinita se revela sempre de novo em Existências Finitas, desde o inconsciente e semi-consciente até ao consciente e pleni-consciente. O aparecimento do homem designa uma fase superior da atuação do Uno (Creador) a manifestar-se no Verso (creatura). O Uno oniconsciente da Essência Infinita se manifesta no Verso inconsciente, semi-consciente e pleni-consciente das Existências Finitas. O homem ocupa atualmente o ponto culminante dessa progressiva manifestação da Essência Infinita em Existências Finitas. O homem é, por ora, no planeta terra, a única creatura que participa, conscientemente, da Oniconsciência do Infinito; e sua missão está em realizar cada vez mais perfeitamente esta sua evolução ascensional. A Essência Creadora está presente – inconsciente, semi-consciente ou pleni- consciente – em todas as Existências Creadas. É este o grande monismo cósmico do Universo. Em resumo: a origem do homem não é mitológica, nem zoológica, mas cosmológica. O homem, como todas as coisas, veio da alma ou Essência do
  • 29. Universo, embora sua figura humana de hoje, a sua existência, tenha surgido mais tarde. A essência do homem é eterna, a sua existência é temporária. Do Uno da Fonte brota todo o Verso dos Canais, inclusive o homem. O homem veio da essência ou fonte do Uno, embora o seu Verso existencial tenha fluido através de muitos canais históricos. O homem histórico eclodiu, depois de uma longa incubação em forma pré-hominal – e o homem atual ainda fluirá por muitos canais, até chegar às alturas do homem integral.
  • 30. GRÁFICOS ILUSTRATIVOS SOBRE A ORIGEM DO HOMEM Este gráfico ilustra como a teoria mitológica concebe o advento do homem. Os defensores desta teoria admitem que tanto a natureza (linha horizontal) como o homem (linha vertical) tenham vindo do Infinito (∞), mas entendem que o homem não fluiu através da linha horizontal dos organismos inferiores da natureza, mas que seja uma creação direta do próprio Infinito; que tenha havido uma intervenção direta da Divindade para produzir o homem, cujo corpo teria sido moldado de barro e cujo espírito foi insuflado por Deus. Respondemos que tanto o corpo como o espírito do homem vieram da Potência Infinita, como aliás todas as Existências Finitas emanaram da Essência Infinita. Este ato de emanação, ou creação, não se deu sucessivamente no tempo e no espaço, mas simultaneamente, antes de qualquer sucessividade temporal ou espacial, na eternidade, como costumamos dizer. A eternidade não é a soma total dos tempos (como o Infinito não é a soma total dos espaços), mas é a negação total de qualquer sucessividade espacial; na eternidade não há anos, meses, dias, horas, minutos, segundos, não há sucessividade alguma, mas absoluta simultaneidade, o Absoluto, Eterno (agora). Todo o Verso da sucessividade temporal está contido no Uno da simultaneidade Eterna, Una e única. Causalmente, todas as creaturas são
  • 31. eternas, embora não efeitualmente. A creação simultânea se desdobra na evolução sucessiva. Desde o início da Creação se originou o homem, corpo e espírito, mas, segundo as leis cósmicas, a sua manifestação hominal se deu no tempo adequado. O homem estava como que incubado na Creação Eterna, e dela eclodiu em tempo, segundo as leis cósmicas, quando o substrato manifestativo do corpo se achava em condições de servir de veículo ao espírito. Quando o homem potencial passou a ser o homem atual; quando a incubação se revelou em eclosão, então apareceu o homem como homem na face da terra. Diz o Gênesis que isto se deu no fim do sexto e último yom, ou período creador, isto é, depois que o substrato material do organismo havia atingido o máximo da evolução para servir de veículo manifestativo do espírito. O mais perfeito veículo corporal era o corpo dos mamíferos superiores, dos chamados primates, que recebeu o “sopro de Deus”. O Apocalipse afirma explicitamente que o sopro de Deus foi insuflado a um animal, que veio do mar. Nas águas, como já dizia o filósofo grego Thales de Mileto, se originaram todos os seres vivos. A nossa ciência de hoje sabe que a vida dos seres vivos da terra resulta da união de água e luz, como até hoje acontece, quando a luz solar se une à água, na clorofila das plantas, transformando os minerais da terra em substância viva. Quer dizer que os elementos do homem já pré-existiam ao aparecimento dele como homem; emanaram da Essência Infinita desde a Eternidade, e se tornaram existência finita, quando o homem apareceu na terra como homem, mesmo como homem potencial em organismo infra-hominal. Não há nada de “sobrenatural” na origem do homem. O sobrenatural não existe ontologicamente, na ordem do Ser; só existe logicamente, isto é, na ordem do nosso conhecer. O que ultrapassa ao alcance da nossa inteligência é sobrenatural para nós, mas natural em si. Deus é infinitamente natural em si, mas sobrenatural para nós, devido à finitude do nosso conhecimento.
  • 32. Este desenho ilustra a teoria zoológica ou darwinista sobre a origem do homem. No princípio das duas linhas está o sinal “?”, que simboliza a ignorância ou incógnito tanto da natureza como do homem. A idéia da “creação” não faz parte da ciência intelectual, que só se ocupa da evolução. Segundo a teoria zoológica, o homem é uma transformação do animal; o não- homem pré-histórico se tornou o homem histórico. Como já vimos, esta teoria é inadmissível à luz da lógica e da matemática. O não, o zero, não se podem converter no sim, no algo. Ninguém se torna o que não é. Este desenho simboliza o processo real da origem do homem. No princípio de tudo está o Infinito (∞), que, através de tempo e espaço, se manifesta em inumeráveis finitos, como minerais, vegetais, animais e hominais.
  • 33. Tudo flui da fonte única, mas derivou através de canais múltiplos. Tudo veio do Infinito e tudo fluiu e flui através de canais finitos. O homem é, até hoje, o canal mais perfeito que fluiu da Fonte do Infinito. A perfeição típica do homem consiste no fato de ser ele o único ser da terra que possui em si o poder de determinar o próprio roteiro da sua evolução, de se tornar maior ou menor pelo poder do seu livre-arbítrio.
  • 34. O SOPRO DE DEUS E O SIBILO DA SERPENTE No início do Gênesis, fala Moisés de dois fatores, aparentemente antagônicos, mas realmente complementares: o sopro de Deus e a voz da serpente; ou, em nossa linguagem moderna, o espírito do Eu e a inteligência do ego. O Gênesis foi escrito, provavelmente, nas estepes da Arábia, onde Moisés viveu como pastor, entre os 40 e 80 anos da sua vida. Como todos os livros de inspiração cósmica são dificilmente compreensíveis à luz da análise intelectual, essas palavras de Moisés têm sido objeto de milênios de controvérsia, suscitando a idéia de uma antítese na própria Divindade creadora. Moisés se serviu do símbolo de “sopro de Deus” para indicar o espírito, e da expressão “voz da serpente” para designar a inteligência do homem. Em todos os tempos, tem a serpente servido como símbolo da inteligência; o próprio Jesus se utiliza desse símbolo, quando diz a seus discípulos: “Sede inteligentes como a serpente”. Também as nossas farmácias e drogarias colocam na sua fachada a figura da serpente, para significar a inteligência como protetora de saúde e vida. O espírito e o intelecto são as duas faculdades da natureza humana, que regem todos os eventos da sua vida. O espírito, ou razão, que a filosofia grega chamava lógos; e o intelecto, que os gregos denominavam nóos, são, por assim dizer, os dois pólos da natureza humana. O intelecto é a manifestação do ego periférico do homem, ao passo que o espírito, ou razão, é a manifestação do seu Eu central. A sabedoria milenar da Bhagavad Gita diz que o ego é o pior inimigo do Eu, ao passo que este é o melhor amigo daquele. Diz ainda que o ego é um péssimo senhor da nossa vida, mas que é um ótimo servidor. Paulo de Tarso escreveu aos cristãos de Corinto: “O homem intelectual não compreende as coisas do espírito, que lhe parecem estultícia; nem as pode compreender, porque as coisas do espírito têm de ser compreendidas espiritualmente”. Sendo que o homem não apareceu como homem perfeito, mas sim perfectível, em pleno processo evolutivo, era necessário que nele atuassem duas forças antitéticas destinadas a se conciliarem na síntese da sua plenitude.
  • 35. Um relojoeiro que fabrica um relógio de alta precisão é um talento; mas, se ele fosse capaz de jogar sobre a mesa apenas as peças e desse ordem para elas se comporem num relógio, seria um gênio. No homem existem apenas os componentes para um homem integral, e compete ao próprio homem realizar a composição harmoniosa e o funcionamento de todas essas peças em forma de um todo harmonioso. Se, segundo a Bhagavad Gita, o ego intelectual do homem é inimigo do seu Eu racional, não haveria a menor esperança de uma síntese harmoniosa; mas, como o Eu racional, dele, é amigo do ego intelectual, pode haver um tratado de paz entre os componentes da natureza humana, aparentemente antagônicos, mas realmente complementares. Faz parte do plano cósmico que haja luta na natureza humana, porque sem resistência não há evolução. O homem é o único ser auto-realizável da terra, quando os outros seres são alo-realizados. O homem é a única creatura creadora, quando as outras são apenas creaturas creadas. Teilhard de Chardin, como já mencionamos, conduz a evolução do homem da hilosfera, através da biosfera, até a noosfera e, daqui futuramente, para a logosfera. Esta longa evolução ascensional, naturalmente, não é possível sem muitas quedas e muitos surtos, sem o conflito entre duas forças, à primeira vista adversas e inconciliáveis, mas cuja finalidade é uma grande síntese, como já fez ver Orígenes de Alexandria, no terceiro século, quando escreveu o seu livro monumental Apokatástasis (Conciliação). Quem contempla o drama da humanidade unilateral e parcialmente, não pode deixar de ver no ego intelectual o adversário irreconciliável do Eu espiritual; e não é prudente dizer ao homem primitivo que há a possibilidade de uma síntese entre essas duas antíteses. Até hoje, o grosso da humanidade está na noosfera do ego mental, interessado unicamente pelos objetos externos e indiferente ao sujeito interno; apenas uma pequena elite atingiu a logosfera, que se interessa vivamente pelo Eu central. Einstein escreveu que o homem intelectual descobre os fatos da natureza, a passo que o homem racional crea valores no seu próprio interior; o homem intelectual, o erudito, descobre aquilo que já existe, ao passo que o homem de evolução superior realiza em sua consciência valores que ainda não existiam, mas que ele faz existir. “Do mundo dos fatos não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores, porque estes vêm de outra região”. Tanto o sopro de Deus como o sibilo da serpente vêm das Potências Creadoras, do Infinito – mas compete ao homem realizar a grande síntese entre essas antíteses complementares. É precisamente nesta realização que consiste a grandiosa tarefa do homem. Um único homem, plenamente auto-
  • 36. realizado é uma obra mais maravilhosa do que todo o Universo alo-realizado.
  • 37. O SENTIDO DA VIDA, SEGUNDO MOISÉS, BUDA, CRISTO Qual o sentido da vida humana, a razão-de-ser da sua existência? Todos os gênios da humanidade respondem o mesmo: o sentido da vida do homem é a sua auto-realização. E essa realização supõe, acima de tudo, o conhecimento da verdadeira natureza do homem. Cerca de seis séculos antes da Era Cristã, vivia na Índia um príncipe real chamado Gautama Siddhartha. Pouco depois do seu casamento abandonou ele, clandestinamente, o Palácio Real e foi peregrinar pelas florestas da Índia, durante 16 anos, meditando, meditando e jejuando. Queria descobrir uma resposta definitiva ao tenebroso mistério do sofrimento universal da humanidade. Os animais selvagens não sofriam, e por que devia o homem, coroa da creação, viver em sofrimento permanente? Certo dia, estava o príncipe sentado à sombra de uma árvore, mergulhado em profunda meditação. Quando despertou do seu prolongado samadhi, proferiu quatro palavras – e os discípulos dele, sentados em derredor, exclamaram: Buda! Buda! isto é: acordou, acordou. O peregrino real dormira toda a vida o sono da ilusão sobre si mesmo, identificando-se com o seu ego mental; de repente, despertou para a vigília da verdade – da verdade libertadora sobre si mesmo. Os discípulos dele resumiram a sabedoria do Mestre nas chamadas “quatro verdades nobres de Buda”. O que Buda disse, depois de despertar para a luz da verdade, foram as palavras seguintes: 1) a vida humana é essencialmente sofrimento, 2) a causa deste sofrimento universal é a ilusão em que o homem vive sobre si mesmo, 3) com a transformação da ilusão em verdade sobre si mesmo, termina a culpa do sofrimento,
  • 38. 4) o meio para o conhecimento da verdade é a profunda meditação sobre si mesmo. Cerca de mil anos antes de Buda dissera Moisés, com outras palavras, estas mesmas verdades: “Maldita seja a terra por tua causa”, disseram os Elohim ao primeiro homem, porque este se identificava com o seu ego ilusório, aberrando da verdade libertadora sobre a sua verdadeira natureza. E esta ilusão funesta provocou sua auto-expulsão do paraíso e o início do sofrimento Universal. Cerca de mil e quinhentos anos depois de Moisés e seiscentos anos depois de Buda apareceu o maior gênio humano sobre a face da terra, Jesus de Nazaré, que cristalizou numa parábola esta mesma verdade: que o homem que vive e age na ilusão sobre si mesmo é um “servo mau e preguiçoso” e perde até a sua natureza humana, ao passo que o homem que conhece e vive a verdade sobre si mesmo é um “servo bom e fiel”, que entra no gozo da verdade libertadora. Esta verdade cósmica, reduzida a termos modernos, resulta nas palavras seguintes: quem pode, deve; e quem pode e deve, e não faz, cria débito – e todo o débito gera sofrimento. Quando as eternas leis cósmicas dão a uma creatura uma potencialidade, esperam delas a atualização dessa potencialidade. Se o homem faz o que pode e deve, ele se realiza, faz a sua realização existencial; mas, quando o homem não faz o que pode e deve, sucumbe ele à sua frustração existencial. Sendo o homem essencialmente o seu Eu racional (espiritual), ele pode e deve realizar esse Eu divino, esse seu Logos; é esta a sua realização existencial, que as leis cósmicas esperam dele. O homem é, potencialmente, o “sopro de Deus”, diz o Gênesis, que pode e deve atualizar-se na “imagem e semelhança de Deus”; esta realização é a razão-de-ser da sua existência. O homem é dotado do poder do livre-arbítrio, e não há evolução sem resistência; por isto crearam as leis cósmicas no homem o ego mental, que o Gênesis chama a serpente, que deve manifestar-se e ser superado para que o homem se realize plenamente pelo poder do seu livre-arbítrio. Deus creou o homem o menos possível (sopro divino), creou o homem perfectível, para que o homem se possa crear o mais possível (imagem e semelhança de Deus) no estado do homem perfeito. Enquanto o homem não atualizar a sua potencialidade, está ele sujeito ao sofrimento, porque não faz o que pode e deve; torna-se devedor e culpado em face das leis cósmicas. E a reação dessas leis contra o culpado é o sofrimento. Até hoje, quase toda a humanidade é culpada perante as leis cósmicas, porque todos os homens são realizáveis, e poucos são realizados. A humanidade sofre
  • 39. porque é culpada e devedora em face das eternas leis do Universo, e sofrerá sempre, enquanto não estiver quite com as leis da justiça cósmica. Enquanto o servo não duplicar os talentos recebidos, as potencialidades que de Deus recebeu, continua ele devedor e sofredor, porque as leis cósmicas não distribuem potencialidade a esmo, mas exigem que o homem duplique por esforço próprio o que recebeu; quem apenas devolve o que recebeu é um servo mau e preguiçoso. O homem que apenas desenvolve o seu ego mental, e não o seu Eu racional (espiritual), vive numa frustração existencial, e não pode deixar de ser sofredor, por ser devedor e culpado da sua não-realização existencial. Nos últimos tempos, a medicina conseguiu aumentar a longevidade da vida humana, por meio de medicamentos – mas não diminuiu os sofrimentos humanos porque essa longevidade artificial é um prolongamento da agonia do homem, que continua a ser culpado. Enquanto o homem não se realizar, de acordo com as imutáveis leis cósmicas, não deixará ele de ser um sofredor, a despeito de todos os paliativos e camuflagens da medicina. Somente a realização existencial pode pôr termo ao sofrimento compulsório do homem. Depois de deixar de ser devedor culpado perante as leis cósmicas, pode o homem continuar a sofrer algum tempo por seus débitos passados (karma), ou mesmo por culpa de seus companheiros ainda devedores. Só quando toda a humanidade estiver sem culpa, deixará o homem de ser um sofredor compulsório. O sofrimento por débitos próprios é vergonhoso – mas o sofrimento por débitos alheios é glorioso. Somente os grandes avatares da humanidade, isentos de sofrimentos compulsórios, podem, querer sofrer voluntariamente, porque sabem que sem resistência não há evolução – e eles são desejosos de evolução ulterior e auto- realização cada vez maior. Nesse caso estava Jesus, que não sofreu por débito próprio, nem alheio, como ele mesmo diz, mas “para entrar em sua glória”. O seu sofrimento voluntário foi um sofrimento crédito, a serviço da sua evolução superior, e não um sofrimento débito. O grosso da humanidade vive no sofrimento débito, que pode converter-se em sofrimento crédito.
  • 40. Somente a nova humanidade, liberta de débitos, estará liberta de sofrimento débito, e pode iniciar a gloriosa humanidade dos avatares, de que o Cristo foi o precursor. “Haverá um novo céu e uma nova terra, e o Reino de Deus será proclamado sobre a face da terra”.
  • 41. AS MALDIÇÕES DOS ELOHIM O que há de mais estranho, e mesmo incompreensível, no Gênesis, são as três terríveis maldições lançadas pelos Elohim à serpente, à mulher e ao homem. Mas, se os Elohim são os autores da natureza humana, e esta natureza se revela necessariamente como sopro de Deus e sibilo da serpente, como razão e intelecto, como Eu e ego – não era vontade das Potências Creadoras que essas antíteses entrassem em conflito entre si, a fim de realizarem a síntese do homem perfeito? Por que então os Elohim amaldiçoam a sua própria obra? Resposta: Essas maldições não se referem à natureza humana como tal, que é obra dos Elohim, mesmo na sua forma antitética. As maldições se referem à rebeldia contra as leis cósmicas, de que os Elohim são locutores; referem-se à possibilidade de o homem agir contra as leis da natureza; de ele não realizar a grande síntese do homem perfeito, mas preferir uma das antíteses do homem imperfeito; de o homem não evolver, mas involver, e assim frustrar em si as leis cósmicas. Quer dizer que essas maldições são auto-maldições do homem involutivo; elas só têm valor no caso de que o homem perfectível não se torne homem perfeito, frustrando assim a finalidade da sua existência. Sendo que o homem é, aqui na terra, a única creatura creadora, se ele não realizar essa sua creatividade, o homem se maldiz a si mesmo. O que é realizável e não se realiza, se desrealiza. Quem pode, deve; e quem pode e deve, e não faz, cria débito – e todo o débito gera sofrimento, gera auto-maldição, gera auto-destruição. Deus, diz Einstein, é a Lei. A Lei funciona automaticamente; quem se opõe à Lei Cósmica, se maldiz, se aniquila a si mesmo. Isto nada tem que ver com um Deus pessoal, com um Deus emocional, que se possa irritar. Na Lei não há amor nem ódio, no sentido humano; a Lei é essencialmente neutra. A creatura que harmoniza com a Lei, goza; a creatura que se opõe à Lei, sofre.
  • 42. A melhor ilustração para esta auto-maldição é a história do terceiro servo da parábola dos talentos: esse servo, que recebera um talento, uma potencialidade evolutiva, não obedeceu à Lei Cósmica, que exige evolução; estagnou na sua potencialidade, sem passar à atualização evolutiva, e assim se auto-puniu com a perda da sua potencialidade; deixou de ser homem livre, perdeu a sua natureza hominal e se deshomificou. “Quem não tem (atualização) perderá até aquilo que tem (potencialidade)”. O Gênesis de Moisés é um livro da mais alta intuição cósmica. Com o advento do livre-arbítrio, Moisés previu a possibilidade de uma estagnação, e até de uma involução, de uma desrealização, em lugar duma auto-realização. E essa involução, ou desrealização, é uma auto-maldição, uma auto- degradação, de um auto-aniquilamento. O homem é o autor do seu céu ou do seu inferno, da sua vida eterna ou da sua morte eterna. A nossa ideologia monoteísta sobre um Deus pessoal, um Deus antropomorfo, torna impossível a concepção monista de um Deus impessoal, de um Deus-Lei, de uma Divindade ultra-personal, Universal, de uma Consciência Cósmica. Por causa desse antropomorfismo de Deus, atribuímos a Deus o que é do homem, imaginamos uma Teo-maldição em vez de uma ântropo-maldição. * * * Há na história milenar da humanidade duas rebeldias fundamentais contra as leis cósmicas: a luxúria e a ganância, e ambos geram auto-punição, ou auto- maldição. O uso correto do sexo e da propriedade é harmonia com a Lei – o abuso do sexo (luxúria) e o abuso da propriedade (ganância) são rebeldias anti-cósmicas, e geram desarmonia, sofrimento, auto-maldição. O Gênesis frisa com veemência a luxúria, ao passo que o Evangelho focaliza sobretudo a ganância como rebeldia anti-cósmica. Moisés e Jesus são, possivelmente, os maiores gênios cosmo-videntes da história. Ambos exigem harmonia com a natureza humana reflexo da Lei Cósmica; ambos amaldiçoam a desarmonia com as Leis Cósmicas. Ai de vós, escravos da luxúria! Ai de vós, escravos da ganância!
  • 43. ROTEIRO EVOLUTIVO DA HORIZONTAL PARA A VERTICAL Tentaremos concretizar esse roteiro do homem por meio do gráfico seguinte: O homem de evolução primitiva se acha na linha horizontal marcada com “0”. Vive na consciência da animalidade. Desta horizontal “0” começa ele a sua evolução hominal rumo à vertical marcada com “90”, representando um ângulo reto. Mas esta jornada, de “0” para “90”, tem numerosas linhas ascensionais, que representam a ética pré-mística. O princípio desta ética ascensional é difícil, porque a lei da gravidade atua fortemente para baixo. Esta fase é chamada pelo Cristo “caminho estreito e porta apertada, que conduzem ao Reino dos Céus”. Mas, na medida que o homem avança através desta ética rumo à mística, a tendência gravitacional diminui paulatinamente; no ponto “45”, meio ângulo reto, já é mais fácil subir e há menos tendência de recair. Quando o homem se aproxima da linha vertical do ângulo reto, verifica ele que a subida é, na linguagem do Cristo, “julgo suave e peso leve”. E, quando atinge a vertical, a sua ética coincide com a mística, e então cessa qualquer dificuldade e perigo de recair. O querer do ego coincide com o dever do Eu; o homem assim realizado quer o que deve, e deve o que quer, conciliando o ego do querer com o Eu do dever.
  • 44. Este estado de auto-realização é chamado nos Evangelhos “entrada no Reino dos Céus”, e na filosofia oriental “nirvana”, onde não há mais luta, mas paz e felicidade. Depois de entrar nesta linha reta de auto-realização, do Reino dos Céus, do Nirvana, o homem não pára, porque a evolução não conhece chegada final; mas somente jornada contínua. Deste ponto em diante o homem progride verticalmente, por toda a eternidade, numa evolução indefinida. Daqui por diante, não há mais sofrimento necessário, mas pode haver sofrimento voluntário, se o homem quiser. Os grandes avatares fazem então a sua antidromia, descendo voluntariamente à regiões de evolução inferior, onde encontram resistência, luta, sofrimento. Eles sabem que sem resistência não há evolução; mas, como querem acelerar a sua evolução superior, vão em busca de resistência, para a sua auto-realização em evolução indefinida. O fim primário desta antidromia e desses sofrimentos voluntários é a evolução, mas como toda a evolução transborda necessariamente, esse transbordamento da plenitude beneficia os seres inferiores – suposto que estes tenham abertura e receptividade para este transbordamento da plenitude do avatar. “Da sua plenitude todos nós recebemos, graça e mais graça”, diz João no Evangelho, referindo-se à plenitude do Cristo. Todo o avatar é um benfeitor de outras creaturas, se estas forem receptivas. Disto sabia Mahatma Gandhi, quando escrevia: “Quando um único homem chega à plenitude do amor, neutraliza o ódio de muitos milhões”. E quando, pouco antes da morte violenta de Gandhi, o chefe de polícia o acompanhava com um revólver na pasta, Gandhi, que isto suspeitava, disse: “Enquanto um homem ainda deve matar outros homens, eu não cumpri a minha missão”. O exemplo clássico desta voluntária antidromia de um avatar é a encarnação e morte do Cristo, que, como ele diz, sofreu tudo isto para entrar em sua glória. Mas, como as igrejas cristãs, em 2.000 anos, não foram capazes de compreender este elevado motivo de evolução, ensinam até hoje que Jesus nasceu, sofreu e morreu para pagar os pecados da humanidade a um Deus ofendido. Essa teologia peca por diversos absurdos, para não dizer blasfêmias; supõe que Deus possa ser ofendido, como se fosse um pobre ego não realizado; admite o absurdo de que Deus exija o sofrimento de um inocente para pagar os débitos dos culpados. Tomás de Aquino, que foi o principal promotor desta teologia eclesiástica, revogou tudo que escreveu depois de uma visão mística, dizendo: “Tudo que escrevi é palha”. Infelizmente até hoje os seminários e igrejas mandam ruminar
  • 45. esta palha teológica, sem mencionar a expressa condenação feita pelo próprio autor. A evolução ascensional do homem passa através do querer do ego rumo ao dever do Eu e, quando o querer coincide com o dever, então o homem entra no Reino dos Céus. A filosofia oriental enumera cinco éticas (ou yamas) principais, pelas quais o homem; deve passar para entrar no Nirvana; mas há numerosas outras disciplinas menores, que abrem o caminho para o Reino dos Céus. Não há alo-redenção, como pensam certos teólogos; há tão-somente auto- redenção: o dever do Eu deve redimir o homem do querer do ego, realizando o grande tratado de paz da natureza humana. A auto-redenção está em que o homem faça coincidir o querer do ego com o dever do Eu, não pela extinção do ego, mas pela total integração e harmonização do ego com o Eu, harmonização que os Mestres chamam “egocídio”: “Se o grão de trigo não morrer, ficará estéril; mas se morrer produzirá muito fruto”. “Eu morro todos os dias, e é por isso que eu vivo”. As cinco éticas pré-místicas da filosofia oriental que realizam esta conciliação do ego com o Eu são, em língua sânscrita, as seguintes: 1 – ahimsa (não violência) 2 – satya (verdade) 3 – asteya (não furtar) 4 – aparigraha (não apego) 5 – brahmacharya (disciplina sexual) Toda a dificuldade de realizar a harmonização do ego com o Eu está no fato de ser o ego o pior inimigo do Eu, como diz a Bhagavad Gita. Mas, sendo o Eu o melhor amigo do ego, a harmonização pode efetuar-se, partindo do amor do Eu para com o ego. O Eu divino no homem pode a tal ponto amar o ego humano que “neutralize” o ódio deste, preparando assim o caminho para o grande tratado de paz. Como já dissemos, os dois pólos da antítese são complementares, não iguais nem contrários; e assim o pólo positivo do Eu pode preparar o pólo negativo do ego para a grande síntese da conciliação. Paulo de Tarso, após a sua dramática conversão às portas de Damasco, ouviu as palavras misteriosas “duro te é recalcitrar contra o aguilhão”. O aguilhão, o impulso do Eu, não destrói a liberdade do ego, mas fá-lo sofrer ate que ele
  • 46. resolva livremente harmonizar o seu querer rebelde com o dever, preparando assim o tratado de paz com o Eu, a auto-redenção. O sofrimento do ego é um fator importante no processo da harmonização com o Eu. Sem resistência não há evolução – resistência voluntariamente aceita e corajosamente superada. É este o roteiro evolutivo da horizontal para a vertical através das dolorosas ascensionais da ética pré-mística.
  • 47. O ROTEIRO HUMANO ATRAVÉS DO BIOS, DO NÓOS, RUMO AO LÓGOS Quando o bios (vida) atingiu a sua perfeição máxima, no organismo do animal, eclodiu nele o nóos (inteligência) e, mais tarde, o lógos (razão). Mas a natureza típica do homem consiste na inteligência da noosfera e na razão da logosfera; ou, segundo o Gênesis, no sibilo da serpente e no sopro de Deus. Estas duas consciências, a inteligência do ego e a razão do Eu; nasceram com a origem do homem; antes disto só havia biosfera. A inteligência do ego nasceu pleniconsciente de si, em estado acordado – ao passo que a razão do Eu continuava semi-consciente, em estado de dormência, como continua até hoje na maioria dos homens. Em face desse despertamento do ego e dessa dormência do Eu, era inevitável que este fosse derrotado por aquele. Nessa derrota do lógos e nessa vitória do nóos consiste o que os teólogos denominam a queda do homem, queda que é o prelúdio da sua evolução posterior, feita duma longa cadeia de quedas e de surtos, porque Deus creou o homem o menos possível, para que o homem se pudesse crear o mais possível. Quando o ego consciente da inteligência despertou no homem, no homem da biosfera animal, entrou em conflito o intelecto com o instinto, o nóos com o bios. Toda a biosfera da vitalidade conhece a libido do sexo, que é um meio necessário para a procriação, que é a finalidade do sexo. O instinto sexual do animal funciona infalivelmente em harmonia com as Leis Cósmicas. Todo o animal usa a libido como um meio e nunca como um fim, porque a natureza do animal está em sintonia automática com as leis cósmicas. Mas, quando apareceu o nóos da inteligência hominal, entrou ele em conflito com o bios do instinto animal e perverteu as Leis Cósmicas, usando a libido como um fim, e não simplesmente como um meio para um fim superior. A
  • 48. inteligência descobriu que se pode gozar a libido por causa da libido, o prazer sexual por causa de si mesmo, independente da sua finalidade natural. Nasceu assim a primeira rebeldia duma creatura contra a Lei da natureza, que é a porta-voz das Leis Cósmicas. Nasceu a luxúria, a libido pervertida, falsificada. A inteligência perverteu o instinto. O nóos perverteu o bios. Foi, esta a primeira rebeldia do livre-arbítrio, recém-eclodido no homem primitivo. E esta desarmonia, intelecto versus instinto, não pode ser rearmonizada enquanto não despertar no homem o lógos da razão, único fator capaz de realizar um tratado de paz entre o nóos do intelecto e o bios do instinto. Até hoje, continua essa guerra entre o intelecto e o instinto, essa falsificação do bios pelo nóos, ainda que, por vezes, essa guerra apareça como armistício. Armistício é uma trégua entre duas guerras, mas não é um tratado de paz. Somente o pleno despertamento da razão pode realizar um verdadeiro tratado de paz entre os dois beligerantes, intelecto e instinto. Enquanto o intelecto se servir do sexo como luxúria, e não como procriação, a vida humana será guerra ou armistício, mas não será paz. É esta a situação da humanidade até hoje – e por isto perdura a tríplice maldição da inteligência, da mulher e do homem, de que fala o Gênesis. O homem se acha ainda no primeiro estágio evolutivo, rebeldia do intelecto contra o instinto. E este estado primitivo de discórdia prosseguirá enquanto não despertar a razão como supremo árbitro e pacificador nesse campo de batalha, e realizar o grande tratado de paz. Somente a vitória do sopro de Deus sobre o sibilo da serpente poderá levar o homem do seu atual estágio evolutivo para um estágio superior de evolução – o estado do homem cósmico, do homem integral. Quanto mais a libido se converter em amor, tanto mais o semi-homem se converterá num pleni-homem. É possível mesmo que cesse totalmente a libido e reine soberanamente o amor – e então, surgirá a alvorada de uma nova humanidade: haverá creação pelo lógos, em vez de procriação pelo bios-nóos.
  • 49. E, por fim, culminará toda a procriação racial em pura creação individual; a vasta horizontal de creaturas de procriações raciais culminará na alta vertical da creação individual – o “Filho do Homem”. É este o roteiro multimilenar do homem, desde o Alfa até ao ômega, desde a sua primitiva perfectibilidade até à sua final perfeição. Os planos cósmicos da Divindade se cumprirão infalivelmente – com, sem ou contra as veleidades humanas. Da libido sem amor – ao amor sem libido.
  • 50. OS ALBORES DE UMA NOVA HUMANIDADE Há, no Gênesis de Moisés, umas palavras alvissareiras jamais compreendidas no sentido de uma longínqua cosmo-visão da humanidade. Dizem os Elohim, as Potências Creadoras, de que Moisés era fiel locutor, que porão inimizade entre a serpente e sua geração e entre a mulher e sua geração; o descendente da mulher esmagará a cabeça da serpente, e a serpente armará ciladas ao calcanhar do vencedor. Em linguagem não simbólica, diríamos: Há, de momento, amizade entre a humanidade e a inteligência; mas chegará o dia em que essa amizade acabará em inimizade; o descendente duma mulher, no futuro, derrotará a inteligência, que atualmente, até agora, domina a humanidade, descendente daquela mulher, que fez amizade com a inteligência. Mas, apesar de derrotada, a inteligência continuará a hostilizar o vencedor, embora não o possa mais derrotar como antes; mesmo de cabeça esmagada pelo vencedor, a inteligência armará ciladas ao calcanhar do vencedor; não o enfrentará mais frente a frente, porque está derrotada, mas rastejará atrás do vencedor para ver se, pelo menos, o consegue morder pelo calcanhar. Esta é a misteriosa visão de uma humanidade que superou a atual humanidade dominada e tiranizada pela inteligência analítica, que, segundo a Bhagavad Gita, é irreconciliável inimiga da razão intuitiva. A visão alude à vitória do lógos sobre o nóos, como diria Teilhard de Chardin, usando as palavras de alta precisão da filosofia grega: nóos, a inteligência; e lógos, a razão. Infelizmente, a nossa linguagem revela tão pouca acribia que confunde inteligência com razão, dificultando enormemente uma filosofia exata. Se Moisés tivesse escrito em grego, poderia ter falado na vitória da razão sobre a inteligência; se tivesse escrito em sânscrito, poderia ter falado do aham (ego) que sempre hostiliza o atman (Eu). Nestas palavras, alude Moisés – ou melhor, aludem os Elohim – a uma humanidade superior àquela que conhecemos, a uma humanidade de racionalidade cósmica, distante da nossa humanidade de intelectualidade telúrica.
  • 51. “Poremos inimizade entre ti (serpente) e a mulher; entre tua descendência e o descendente dela”. Evidentemente, aqui os Elohim se referem a uma mulher que não sucumbiu à sugestão da antiga serpente, mãe da nossa humanidade do nóos intelectual; refere-se a uma mulher com a qual começa a nova humanidade do lógos racional. Lógos é o nome que o quarto Evangelho dá ao Cristo: “No princípio era o lógos...” É sabido que Nostradamus e outros videntes do futuro – sem excetuar o próprio Cristo – vaticinaram a destruição da nossa humanidade, na “plenitude dos tempos”. O povo entende que essa catástrofe se dará no fim do segundo milênio, atribuindo a Jesus as palavras: “De mil anos passarás – a dois mil não chegarás”. A julgar pelos indícios, a atual humanidade está preparando gradualmente o seu suicídio coletivo, não só pelo desencadeamento das forças nucleares, mas ainda mais pela crescente rebeldia contra as leis cósmicas que deviam governar os mananciais biológicos da vida humana. Entretanto, esse fim da nossa humanidade não coincide com o fim da humanidade em si. Uma elite não contaminada pelo sibilo da antiga serpente servirá de semente para a nova humanidade. Os planos cósmicos dos Elohim não podem falhar; se eles, fizeram do homem a obra-prima da creação telúrica, esses planos se cumprirão infalivelmente. Mas o quando e o como desse cumprimento depende da creatividade do próprio homem. Quem pode, deve; e quem pode e deve e não faz, cria débito – e todo o débito gera sofrimento. Esta frase concretiza em sua precisão lapidar, toda a lógica e matematicidade da Constituição Cósmica do Universo. A nossa humanidade pôde realizar-se, mas não o fez. Por isto, é devedora perante a justiça do Universo – e todo o débito gera sofrimento. Esses sofrimentos da nossa humanidade devedora são inevitáveis, porque são a reação automática contra a ação do devedor. Mas, uma vez purificada por sofrimentos sem precedentes, a humanidade sobrevivente entrará num novo estágio evolutivo: do nóos para o lógos, da inteligência para a razão, do ego para o Eu. O descendente da nova Eva esmagará a cabeça do descendente da velha Eva.
  • 52. Estranhamente disse o Gênesis que a antiga serpente, mesmo derrotada, não deixará de hostilizar o seu vencedor, embora apenas disfarçada e sorrateiramente. Estas últimas palavras revelam uma cosmo-visão de grande alcance, fazem ver que haverá sempre hostilidade entre o sibilo da serpente e o sopro de Deus, entre o ego e o Eu, entre o anticristo e o Cristo, como já fez ver Orígenes de Alexandria no seu livro Apokatástasis, porque a evolução continuará indefinidamente, uma vez que sem resistência não ha evolução. Na vida de Jesus temos a incessante tentativa do ego contra o Eu; mas, ao mesmo tempo, uma incessante vitória do Eu sobre o ego. Num estágio de avançada evolução, não pode haver derrota do superior pelo inferior, mas haverá, e deverá haver, uma luta permanente entre o ego e o Eu, porque sem essa luta não haveria mais evolução – e todo o mundo das creaturas é uma evolução sem fim. A evolução ascensional vai rumo ao Infinito, sem jamais coincidir com o Infinito – a involução descensional vai rumo ao nada existencial. A existência creatural pode deixar de ser esta existência, mas sua essência não pode deixar de ser essência, que é una e eterna. A nova humanidade orientada pelo lógos da razão não será mais quantificante pela pro-creação sexual, mas será qualitativa pela auto-creação individual; a erótica horizontal será superada pela mística vertical. Esta existência mística será como uma vertical sem fim, uma sinfonia inacabada. A atual existência erótica é como um ziguezague no plano horizontal, quantitativo, que culminará na linha reta da vertical qualitativa. A quantidade temporária serve de base à qualidade eterna – assim como a base de uma pirâmide é necessária para o cume dela. As Leis Cósmicas, sobretudo no setor hominal, são nitidamente verticalizantes, embora baseadas na horizontalidade. O espírito divino, que após a encarnação se chama alma, necessita da horizontal do corpo para se poder verticalizar por esforço próprio; herdou a liberdade e deve adquirir a libertação. Do Infinito recebeu o homem a sua liberdade, através do finito do corpo deve ele adquirir a sua libertação. Quem não se liberta não é plenamente livre; uma liberdade apenas herdada é uma semi-liberdade, para não dizer uma pseudo-liberdade; somente uma liberdade adquirida por esforço próprio, uma libertação, é liberdade em toda a sua plenitude.
  • 53. A única tarefa do homem, aqui na terra e em todas as existências cósmicas do futuro, é a sua auto-libertação. Os avatares, possuidores de alta liberdade, sentem a necessidade de se libertarem cada vez mais; por esta razão procuram resistência, luta, sofrimento, porque sabem que somente assim podem ultrapassar o nível da sua evolução atual. A humanidade telúrica que perde a visão da sua evolução cósmica entra em estagnação e toda a estagnação, cedo ou tarde, desce para a involução – e toda a involução descensional termina necessariamente no nada existencial. O homem com os olhos fitos na sua evolução cósmica está na linha reta da verdade, seja qual for a sua distância do Infinito. A vida eterna não é uma chegada final – é uma jornada certa sem fim.
  • 54. A ILUSÃO SEPARATISTA E A VERDADE UNITIVA Com a origem do homem iniciou o Uno do Universo uma nova forma das suas manifestações: Verso – apareceu uma creatura dotada da consciência da sua alteridade. Todas as outras creaturas só têm consciência da sua identidade com o Todo, mesmo inconscientemente. Nasceu a alteridade ou egoidade do homem. O ego se contemplou, e viu que não era idêntico ao Uno ou Todo do Infinito. Contemplou-se na sua ego-alteridade. Despontou nessa creatura a personalidade, a ilusão do separatismo. Cheio de surpresa e entusiasmo se mirou o ego narcisisticamente e se adorou no espelho da sua ilusória personalidade. E, como ainda era fraca essa consciência recém-eclodida da ego- personalidade, o homem fez o possível para reforçar essa consciência da sua alteridade. E, de tanto afirmar a sua diversidade, o ego chegou a hipertrofiar a alteridade e esquecer-se da identidade com o Todo. Caiu na ilusão de que ele pudesse existir separado do Infinito. Nasceu então o que os teólogos chamam “pecado original”. O ego personal sucumbiu à ilusão do separatismo – e até hoje todo o homem nasce nesta ilusão de separação do Todo. Esta ilusão da personalidade separada é, até hoje, o presente de berço de toda a creatura humana, e nessa ilusão continua a viver o homem enquanto não conquistar a consciência da sua união com o Todo. Nenhum batismo o pode libertar desse “pecado original”. Somente a Iuz da verdade pode dissipar a treva dessa ilusão. Essa ilusão do ego era necessária para iniciar a evolução do homem; do contrário não teria havido evolução, que só se origina em face de uma resistência. A ilusão inicial é necessária para conseguir a auto-libertação. O conflito entre a ilusão do ego e a verdade do Eu formam o campo de batalha da evolução ascensional do homem. A liberdade herdada deve ser transformada pelo homem numa liberdade adquirida, numa auto-libertação.
  • 55. Quem não se libertou por esforço próprio não é plenamente livre. A alteridade do ego se refere apenas à sua existência, ao passo que na sua essência há identidade com o Todo do Infinito; mas o ego não enxerga essa identidade. Na síntese da alteridade existencial com a identidade essencial consiste toda a missão terrestre do homem e sua auto-realização. Quem não realizar essa grande síntese entre o Ser do Eu e o Existir do Ego não realizou o porquê da sua existência terrestre. A sua realização existencial acabará em frustração existencial. Quem fizer a grande síntese entre a diversidade existencial e a identidade essencial, esse realizou a verdade libertadora. Tudo que o ego faz por amor a esse ego separatista é ilusão. O ego só conhece um falso agir, um agir por amor dos objetos externos, e nada sabe de um reto agir, por amor ao sujeito interno. O longo diálogo que, na Bhagavad Gita, Krishna mantém com Arjuna, gira em torno desse assunto fundamental: a luta pela auto-libertação, ou auto- realização. São possíveis três atitudes do homem em face do sujeito e objetos: 1 – O homem profano, espiritualmente analfabeto, só se interessa pelos objetos do seu ego ilusório, os sentidos e a mente, 2 – O homem místico descobriu o seu sujeito real e, de tão encantado, abandonou todos os objetos fictícios; é um iniciado na verdade libertadora, 3 – O homem cósmico descobriu o seu sujeito real e, mais do que isto, verificou que pode intensificar cada vez mais a consciência desta verdade se se servir dos objetos sem ser por eles dominado, se agir intensamente, em qualquer setor da vida, sem se apegar a nenhum objeto, mas realizar todas as suas atividades unicamente por amor ao seu verdadeiro sujeito Eu; esse homem é um auto-realizado. E, como toda a creatura auto-consciente é ulteriormente realizável, o homem cósmico continua a sua evolução ascensional, realizando cada vez mais o seu Eu central através das atividades do seu ego periférico, tornando-se assim um homem integral. Neste homem, a consciência da sua Essência Eu permeia todas as existências do seu ego, assim como a luz permeia totalmente um cristal transparente, de modo que dificilmente se possa distinguir um do outro, a luz e o cristal.
  • 56. O homem integral é pois um homem cuja essência divina essencializou toda a existência humana. Por vezes esta permeação espiritual-material chega ao ponto de se tornar perceptível até no corpo, que perde a sua opacidade e gravidade, diafanizando-se e desponderando-se, como acontecia com o corpo de Jesus, no Tabor e alhures. O homem cósmico auto-realizado, espiritual-corporal realizou a grande síntese, harmonizando as antíteses complementares do sujeito-Eu e do objeto-ego. O roteiro evolutivo do homem é pois este: antes da encarnação terrestre, existe o puro espírito, emanação individual do Espírito Universal; este espírito, sabendo-se realizável, mas ainda não realizado, vai em demanda da matéria a fim de sofrer resistência, porque sabe que sem resistência não há evolução. Encarnado no corpo material, o espírito atua como alma como anima, amimando a matéria corporal. Daqui por diante há duas alternativas: ou a alma se realiza através do corpo, ou a alma é dominada pelo corpo, e inicia a sua involução negativa, que pode descer ao zero da existência hominal, des-homificando-se, e perdendo a sua natureza humana. Alternativa do espírito encarnado é ou uma evolução ascendente e sem fim – ou então uma involução descendente, que desrealiza a encarnação espírito- matéria, extinguindo assim a natureza humana. São estas as opções do livre-arbítrio. É este o roteiro evolutivo, onde o Alfa inicial pode atingir o Ômega final.