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Irene, aos 23 anos de idade
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Às beneméritas apóstolas do Catecismo
em todos os Estados do Brasil, oferece
e dedica esta biografia duma exímia e
admirável catequista brasileira.
O AUTOR
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ALMA DE LUZ
Irmã do Salvador, no sofrimento,
Ria-se sempre, na tribulação...
E era tão grande o seu contentamento,
No princípio e no fim da Comunhão!
E Jesus era o seu doce alimento.
Veio ao mundo, de certo, p'ra ser boa...
Alma feita de luz e de piedade,
Legou tudo o que tinha à caridade;
E, ao receber dos anjos a coroa,
Na pátria além, na santa eternidade,
Terá seu prêmio a imagem da bondade,
E su'alma cantando aos astros voa.
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NOTAS PRÉVIAS
A expressão “santa” ou outras equivalentes, que empregamos nestas páginas
e em prospetos avulsos, para designar o caracter de Irene, devem ser entendidas
de conformidade com o espírito da igreja, a cujas decisões nos sujeitamos
incondicionalmente.
As seguintes notas biográficas baseiam-se sobre documentos originais
deixados por Irene – máxime os 10 volumes do seu “Diário de Amor” -
documentos postos gentilmente ao nosso alcance pela família da extinta. Item,
cartas do seu último diretor espiritual, bem como diversos apontamentos
particulares de antigas companheiras de Irene e de pessoas da sua família.
Nos pensamentos e colóquios de Irene, contidos nas seguintes páginas,
foram conscienciosamente respeitados os originais. Modificamos apenas a
ortografia e uma ou outra construção gramatical; por via de regra, a fraseologia
de Irene é correta, chegando, por vezes, a ser elegante e poética.
Pessoas que se recordarem de episódios da vida de Irene, dignos de serem
publicados, queiram comunicá-los, devidamente especificados à “Cruzada da
Boa Imprensa” - Caixa Postal 3.371 – Rio de Janeiro.
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1. ROMANCE OU VIDA DE SANTA?
Vicejam nas plagas tropicais do Brasil umas flores agrestes que, de tão
singelas e pequeninas, escapam à atenção dos homens da ciência e à
classificação dos profissionais; não figuram em nenhum tratado de Botânica;
não se encontram prensadas em nenhum herbário, nem mesmo são cultivadas
nas tépidas estufas da Europa, essas florzinhas anônimas.
Só as conhece o rude sertanejo, identificado com a Natureza virgem, aquele
herói incógnito que Euclides da Cunha tão admiravelmente fotografou na sua
obra imortal.
É duma dessas florzinhas silvestres, leitor amigo, que falam as páginas do
livrinho que tens entre as mãos – história de uma modesta florzinha humana,
bem nossa, bem brasileira.
*
* *
“Irene” não é romance nem vida de santa. É simplesmente a história ultra-
singela de uma menina brasileira, duma jovem cearense, que viveu três decênios
à sombra dos carnaubais, trabalhando e orando, sofrendo e sorrindo, cantando e
conversando ingenuamente com o seu “querido Jesus”, por entre o silêncio
nostálgico do sertão e o discreto marulhar das águas do Atlântico.
“Irene” narra as humildes grandezas duma donzela dos nossos dias que, na
espontânea naturalidade da sua grande alma, sacrificou os seus amores de moça
ao amor dum bando de crianças pobres, esfarrapadas, analfabetas, famintas do
pão de cada dia e sedentas do “Deus desconhecido”...
“Irene” é a silenciosa epopéia dum coração feminino que, por entre lágrimas
e sorrisos, renunciou à fundação do seu larzinho querido, afim de poder ser mãe
a centenas de alminhas órfãs e dar-lhes aquilo que uma sorte adversa lhes
negara.
É o drama duma alma cheia de idealismo que, como ela mesma diz no seu
“Diário”, “sacrificou a sua mocidade, os gozos do mundo, e escolheu o
isolamento do coração por amor de Jesus”.
Com esta breve notícia poderíamos encerrar a biografia de Irene.
Entretanto, força é que digamos mais um pouco dessa jovem cearense de olhos
clarividentes, que sempre pareciam contemplar alguma luminosa realidade para
além dos horizontes atingidos pelos outros mortais.
O que aí vai não é suficiente para saciar os leitores ávidos de sensações –
mas é talvez demais para a modéstia da biografada, que, qual Verônica, escolhia
sempre as penumbras do incógnito e o silêncio do esquecimento para praticar
os seus heroísmos anônimos.
Irene não viveu por entre as paredes protetoras dum convento. Passou a
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existência bem à beira da estrada, dessa prosaica e profana estrada de cada dia,
exposta a todas as intempéries, batida de todos os ventos, empoeirada pelas
areias do deserto, flagelada pelas tempestades do mundo.
E, no entanto, conservou a sua alma sempre esse fulgor divino que todos
admiram em silêncio, mas que ninguém compreende nem define.
É fácil, relativamente, ascender às culminâncias da espiritualidade por entre
os muros defensores dum claustro, auxiliado pela disciplina benéfica do
regulamento, amparado pela suave sugestão do silêncio, revigorado pela
meditação quotidiana; mas exige sobre-humano heroísmo levar uma vida
intensamente espiritual em plena sociedade, nas ruas e nos salões, no lar e na
escola, por entre as seduções dos homens e no meio das brilhantes misérias dos
escravos dos sentidos.
Irene passou a sua breve existência como Maria Santíssima, como Salomé,
como Marta e Maria, como Madalena, como Verônica, como tantas outras
discípulas do Nazareno, que não abandonaram o mundo para servir a Deus.
É humano viver para a sociedade e esquecer-se de Deus.
É belo abandonar a sociedade e viver para Deus.
É heróico viver em plena sociedade e ser todo de Deus, afim de erguer os
homens à altura da Divindade.
Irene soube realizar em sua vida este estranho paradoxo: ser toda de Deus e
toda do próximo.
O seu “reino”, embora estivesse no mundo, não era deste mundo.
Toda serafim do amor de Deus – e toda querubim da caridade humana.
Toda mística – e toda apostólica.
Toda contemplativa – e toda ativa.
Toda introspectiva – e toda social.
Toda Maria – e toda Marta.
Irene é bem a “santa Teresinha” e a “Maggy” do Brasil – contemplativa
como aquela, como esta dinâmica.
Essa jovem cearense, aureolada duma risonha espiritualidade, sentia-se tão
bem no meio da algazarra dum bando de crianças como na sugestiva penumbra
da capelinha do Santíssimo.
Só o Tabernáculo lhe tornava suportável a sociedade – e só a caridade social
justificava o seu amor a Jesus-Hóstia.
Lecionava dactilografia na “Escola Remington Oficial”; batia as fazendas e
os arredores do Aracati e Fortaleza, à procura de alminhas infantis – mas o seu
coração ardia sempre ao lado da lâmpada do Sacrário...
Irene, pode-se dizer, passou pelo mundo incompreendida, como um ser de
outro planeta, como um espírito de outros mundos menos imundos que o
nosso. Sempre com um abismo de martírios dentro da alma – e sempre com
uma primavera de sorrisos à flor dos lábios.
A exemplo de Santa Teresinha do Menino Jesus, não abria mão do
Evangelho. Era-lhe o inseparável complemento da Eucaristia. O Cristo
histórico do Evangelho e o Cristo eucarístico do Sacrário – eis os dois pólos
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sobre os quais girava toda a espiritualidade dessa alma privilegiada. A Eucaristia
vivificando as páginas do Evangelho – e o Evangelho esclarecendo o silêncio do
Tabernáculo. Receber o corpo de Cristo à Mesa Sagrada e beber o espírito de
Cristo nas páginas bíblicas – eis o que Irene considerava vida cristã completa,
profunda, feliz.
*
* *
Não se pode propriamente escrever uma biografia de Irene. Vai através de
toda a sua vida um grande mistério. Atraída por duas forças antagônicas,
oscilava a sua alma, incerta, até que, nos últimos anos, encontrou sossego
definitivo, experimentando em si mesma a profunda verdade deste suspiro
metafísico de Santo Agostinho: “Fizeste-nos para vós, Senhor, e irrequieto está
o nosso coração até que descanse em vós”...
*
* *
Irene usava sempre aliança de noiva – e, no entanto, nunca foi noiva, por
mais numerosos que fossem os seus pretendentes. Porque? para despistar os
rapazes?...
Vai um quê de graça e beleza nas árduas renúncias dessa jovem...
Certo dia, na “Escola Remington”, que ela fundara e dirigia com grande
competência, um estudante, vendo o anel no dedo de Irene, perguntou-lhe
ingenuamente:
– D. Irene, o seu noivo mora aqui?
– Mora, sim – respondeu ela, sorrindo.
– E como é que eu nunca o vi?
– Oh! o sr. não conhece meu noivo? ele não sai do meu lado...
E mostrou-lhe, com ares de mistério, a aliança, que levava gravadas as
palavras: “Jesus Cristo”.
– Ah! - disse o rapaz – eu logo pensei... Só mesmo Este...
*
* *
Passava a jovem, um dia, pelas ruas de Fortaleza, quando viu, numa altura,
um lindo bungalow a branquejar no meio de espessa ramaria e com uns ares tão
alvissareiros, que Irene parou por uns momentos, embebida na contemplação
daquele sonho de fadas – e duas lágrimas indiscretas lhe rolaram pelas faces...
Não revelou a ninguém o motivo dessa subitânea emoção, mas foi à igreja,
ajoelhou à penumbra da capelinha do Santíssimo e fez a Jesus esta singela
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confidência: “Meu querido Jesus. Passei hoje pela rua tal e vi uma linda casinha
– e chorei... Tu sabes porque... Podia ser minha...”
Era o larzinho de um dos ex-pretendentes de Irene, cujo amor ela sacrificara
por causa daquele bando de crianças maltrapilhas que tinham tanta sede de
Jesus e não contavam senão com ela para as conduzir ao divino amigo de
infância.
São encantadoras certas páginas do seu “Diário de Amor”1
, onde ela se
entretém com Jesus e lhe fala das “nossas crianças”.
Certo domingo, aparece-lhe em casa um dos seus pretendentes mais
pertinazes. Queria que Irene ficasse conversando com ele. A jovem escusou-se
delicadamente, porque, nessa tarde, tinha que atender a umas aulas de
Catecismo, no fundo das caatingas e mangueiras do litoral. Agastou-se o rapaz e
fez acerbas recriminações à mãe sobre o gênio esquisito da filha. Irene, depois
de terminar o Catecismo, vai ter com Jesus e lhe diz: “Imagina, meu querido
Jesus, hoje esteve em nossa casa fulano e queria conversar comigo sobre
casamento. Ele é muito bom rapaz, bem colocado, piedoso e simpático; mas
que seria das nossas crianças, Jesus, se eu fosse dele?”...
Irene, depois de vencido o seu período de mundanismo, tornou-se uma
dessas almas peregrinas para as quais o mundo do espírito é mais real e palpável
que o mundo da matéria. Realizou dentro do seu Eu uma completa inversão de
valores: o espiritual é tudo, ao passo que o material não passa duma sombra
vaga e sem importância, “um punhado de lixo”, como diria o apóstolo Paulo.
Conversava com Jesus, tratando-o sempre por tu, com a mesma naturalidade
como se fala com um amigo visivelmente presente.
Se Irene não tivesse levado uma vida tão intensamente apostólica e não fosse
triturada no lagar de acerbos sofrimentos, teria talvez a sua ascese degenerado
em sentimentalismo estéril, ou até numa espécie de erotismo ascético, como
acontece a tantas almas femininas.
Irene, felizmente, nunca chegou a esses piedosos excessos. Não obstante a
grande familiaridade com que trata a Jesus, não se esquece jamais de que ele é
nosso Senhor e Soberano, ao qual compete infinito respeito. Os trabalhos e as
dores preservaram-na dessas funestas aberrações sentimentais.
*
* *
Agora sabes, leitor amigo, se este livro é um romance ou uma vida de santa.
1 “Diário de Amor” são 10 volumesinhos, de umas 200 páginas cada um, escritos à mão, que encerram as
confidências íntimas de Irene com Jesus-Hóstia. Escreveu-as nos últimos anos da sua vida. Não se destinavam
ao público, esses livrinhos; mas o seu diretor espiritual, ao qual Irene os entregou pouco antes da morta,
confiou-mos para conhecer o espírito dessa jovem e extrair deles o que possa ser de proveito para outras almas.
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2. QUEM ERA IRENE?
Investigar a genealogia, esmiuçar os dados biográficos duma pessoa é
sempre tarefa ingrata e amesquinha, não raro, a grandeza real do biografado. A
parte externa, o ambiente histórico duma personalidade humana é para seu
verdadeiro Eu o que os andaimes são para um edifício. Não atingem o valor
interno da pessoa.
Entretanto, força é que bosquejemos ligeiramente a história da nossa
heroína.
*
* *
Irene Costa Lima Valente, abriu os olhos à luz da vida na cidade de Aracati,
litoral do Ceará, no dia 8 de Maio de 1906. Foram seus pais Alfredo Gurgel de
Lima Valente e Maria Costa Lima Valente.
Não consta que o seu nascimento tenha sido assinalado de fenômenos
preternaturais, como se lê nas crônicas de certos servos de Deus. Ninguém
enxergou misteriosos clarões sobre a casa paterna. Nenhum enxame de abelhas
se lembrou de construir na mãozinha da recém-nascida um doce favo de mel.
Nem Irene recusava o alimento em dia de sexta-feira ou sábado, em honra da
paixão de Cristo ou da Virgem Santíssima.
Nada disso aconteceu. A nossa nenezinha chorava e ria, comia e esperneava
como todas as demais filhas d'Eva, nessa quadra inerme da sua existência.
*
* *
Quarenta dias depois do seu nascimento físico – no dia 18 de junho –
resolveram os pais e padrinhos levar a pequena à igreja de Nossa Senhora dos
Prazeres, da mesma cidade, para que recebesse aquela vida nova da qual o
divino Mestre deu tão profunda instrução ao doutor da lei, Nicodemos, naquele
memorável colóquio noturno em Jerusalém:
“Quem não nascer de novo pela água e pelo Espírito Santo não pode entrar
no reino de Deus”...
Foi oficiante no ato do batismo Mons. João Luís Santiago, Vigário de São
Bernardo das Russas, que nessa ocasião se encontrava em Aracati.
*
* *
Decorreu a infância de Irene como a da maior parte das crianças. Passava
11
todos os anos alguns meses no sítio “São José”, propriedade de seu avô
materno.
No dia 26 de Dezembro de 1913 passaram seus pais a residir na fazenda do
“Cajueiro”. Nessa época já tinha Irene dois irmãozinhos: Laís e Alfredo.
Mas, antes de continuarmos a falar em Irene, convém que demos um giro
pela magnífica fazenda do “Cajueiro”.
Propriedade dos antepassados da família Costa Valente, pertence hoje aos
pais de Irene. Situada à margem do Jaguaribe, perto do antigo Fortim, dista de
Aracati uns 15 quilômetros e oferece uma vista deslumbrante sobre o mar. Uma
estrada de automóvel atravessa grande parte do terreno, passando por uma
extensa ponte de carnaúba. É a conhecida “ponte de Canavieira”. Em quadra de
inverno rigoroso, tornam-se intransitáveis os caminhos, e viaja-se então de
canoa ou jangada pelo rio Jaguaribe.
Numa das fotografias deste livro (fl. 33) aparece Irene, já moça, em pé numa
canoa, empunhando o pesado remo, disposta a lutar com as águas barrentas
que, numa das grandes “cheias” do inverno, se arrojam impetuosamente às
ondas do Atlântico.
O “Cajueiro” era, e é ainda hoje uma verde solidão, sítio, fazenda e casa de
campo, possuindo vasto carnaubal, como também um terreno próprio para
salinas.
A casa é grande, antiga, do tipo daquelas confortáveis vivendas rústicas de
outrora, quando a espontânea liberdade do homem ainda não se cultivara ao
ponto de se engaiolar na civilizada estreiteza dum palacete, bungalow ou
apartamento de dois metros. Localizada entre o rio e os morros, estava a casa da
fazenda toda cercada de mangueiras, cajueiros, sapotizeiros, coqueiros, etc. Mais
além, verdejava uma extensa plantação de cana de açúcar, com o tradicional
engenho à entrada.
Pertencem à propriedade cinco ilhas, situadas na foz do Jaguaribe. Chamam-
se: Ilha Grande, Mosqueiro, Emas, Molungú e Caldeireiro. Fica esta última
completamente isolada, ao passo que as outras se ligam por pontes à terra
firme.
Todas as ilhas oferecem ótimo terreno para plantação, sobretudo para
verduras, hortaliças, etc. As ilhas Grande e Caldeireiro são destinadas à criação
de gado.
O “Cajueiro” e arredores veio tornar-se um dos cenários das silenciosas
proezas apostólicas e humanitárias de Irene.
*
* *
Em 1913, aos 7 anos de idade, começou a menina a penetrar pela porta do
abc nos mistérios da literatura. Não frequentava escola, nesse tempo, mas
estudava em casa, com a mãe. Afirmam os que nesse tempo a conheceram que
Irene era uma criança muito sensata, obediente e cumpridora dos seus pequenos
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deveres. Gostava imenso da vida do campo. Era amiga da natureza, das aves,
das flores, dos bichinhos. Nunca, nos anos posteriores, foi esta predileção pelo
ambiente rural suplantada pelo gosto da vida citadina.
Irene andava sempre alegre e bem humorada, embora gozasse de saúde
precária. Propensa para as coisas espirituais – e onde se viu cearense que o não
fosse? - encontrava singular satisfação em acompanhar os atos religiosos,
sobretudo a solenidade do mês de Maio, que se celebrava com grande fervor na
fazenda do “Cajueiro”.
*
* *
No dia 24 de Fevereiro de 1920, com quase 13 anos de idade, fez a sua
primeira Comunhão, na capela do Fortim, em companhia de seus dois irmãos,
Laís e Alfredo. Foi a mãe que os preparou para esse ato solene, precedido de
um Retiro Espiritual de três dias, pregado por Mons. Bruno Figueiredo, Vigário
de Aracati, que para lá fora com este fim.
Entretanto, não se pode afirmar que a vida eucarística de Irene date desta
época. A sua alma, parece, dormia ainda para as grandes realidades do “Deus
em nós”. Só daí a cinco anos é que devia despertar definitivamente do seu semi-
consciente letargo – letargo do qual muitas moças não despertam nem à hora da
morte...
*
* *
Em Janeiro de 1921, com 14 anos, veio Irene para Fortaleza em companhia
de sua irmã Laís, afim de se matricularem no “Colégio Imaculada Conceição”,
dos Irmãos de São Vicente de Paulo. Laís internou-se, ao passo que Irene,
devido ao seu estado de saúde, ficou residindo em casa de seu avô paterno,
Pompeu Ferreira da Costa Lima.
Passados alguns meses, voltou para a fazenda do “Cajueiro”, onde
continuou os seus estudos.
Tinha então mais dois irmãos: Marisa e Dario.
Em fins de 1922 passaram seus pais a residir na cidade de Aracati, e Irene
começou a lecionar como professora particular em casa de D. Francisca
Clotilde.
Contava 15 anos. Era moça. E, como todas as moças, começou a frequentar
a sociedade, em companhia de seus pais e de sua irmã Laís, quando esta vinha
passar as férias em casa.
Por esse tempo, teve Irene o seu primeiro romance, que parece ter
empolgado com bastante veemência a alma sensível da jovem. Novos mundos
descortinaram-se-lhe aos olhos... Horizontes ignotos abriam os seus mistérios...
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Não tardou, porém, a entrar em conflito com seus pais, por causa desse
namoro.
E a resistência de Irene acabou, finalmente, em desistência...
Teve ainda nos anos subsequentes diversos amores, alguns deles bem de
molde a levá-la ao paraíso da felicidade, humanamente falando. Não parece,
todavia, ter pensado seriamente em casar. Uma voz misteriosa lhe dizia que o
seu “lar” seria diferente dos lares que suas companheiras iam fundando, cheias
de otimismo e de fagueiras esperanças...
Já nesse tempo, começou Irene a sentir, embora vagamente, a existência de
dois mundos dentro de si, duas forças antagônicas que se digladiavam nesse
silencioso campo de batalha e fariam do resto da sua vida um drama de estranha
beleza e enigmática incompreensibilidade...
Toda alma humana é um microcosmo, um universo por si, um mundo
original, uma obra inédita, um cosmos mais vasto e misterioso do que as
incomensuráveis regiões que se espraiam para além dos espaços sidéreos da via-
lactea...
Não existem duas almas inteiramente iguais, e por isso é impossível que uma
compreenda cabalmente a outra. As obras de Deus são todas originais inéditos.
Deus não fabrica mercadorias em série como os homens. Não faz cópias ou
duplicatas. A sua inteligência é assaz poderosa para conceber sempre novos
modelos numa variedade infinita; e o seu poder é bastante grande para realizar
de modo original e único as suas idéias.
Neste mesmo ano começou Irene a ser um enigma para a sociedade e até
para pessoas da sua família. Eram os prelúdios da futura espiritualidade. Os
prelúdios, porque não se pode dizer que Irene fosse propriamente espiritual,
embora acompanhasse, como a maior parte das jovens católicas, os atos
cultuais, frequentasse os Sacramentos, assistisse à Missa e fizesse o seu Retiro
anual. Todos esses atos externos não excluem necessariamente a rotina e
superficialidade religiosa a que muitas pessoas chamam “religião”. Pode-se
acompanhar externamente esse “catolicismo”, e não possuir a alma do
Cristianismo. A milhares de “católicos” - por mais paradoxal que isso pareça – a
religiosidade dificulta a prática da Religião...
Só no dia e na hora em que a alma vive o seu encontro pessoal com Deus é
que principia propriamente a sua vida espiritual. O homem que ainda não viveu
e sofreu a sua “hora de Damasco” ignora o que seja religião, por mais
numerosos que sejam os livros piedosos que tenha lido.
Para Irene não tinha soado ainda a hora bendita do seu “encontro pessoal
com Deus”.
*
* *
No ano 1925, sentindo-se melhor, veio para Fortaleza, onde passou três
anos, residindo em casa de sua avó paterna e aperfeiçoando os estudos.
14
Ensinava de graça as primeiras letras a numerosas crianças pobres. Gostava
muito de dar aulas de Catecismo. Filha da “terra da luz”, parecia predestinada a
espargir por toda a parte abundância de luzes intelectuais e espirituais.
Era também muito hábil em trabalhos manuais e lavores artísticos:
bordados, pinturas, croché. Confeccionava todos os anos grande número de
vestidinhos para crianças pobres. Pelo Natal armava lindos presépios e achava
imenso prazer em oferecer uma farta mesa de doces e presentinhos aos garotos
que não figuravam na lista de visitas de Papai Noel.
Já nesse tempo se acentuava a nefrite crônica, que, daí por diante, nunca
mais abandonaria o corpo de Irene.
Data de 1925 a alvorada espiritual dessa alma – e principia também neste
mesmo ano o seu Calvário de cada dia.
Parece que vigora uma secreta relação entre a espiritualidade e a dor. Paulo
de Tarso, mal chega a conhecer a Cristo e abrasar-se do seu amor, tem de ouvir
logo essas palavras: “Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer por meu
nome”...
O homem que pouco pensa e pouco ama – pouco sofre.
O sofrimento cresce na razão direta da compreensão e do amor das coisas
de Deus.
Contudo, é um sofrimento suave e mil vezes mais digno do homem do que
todos os prazeres do mundo.
É uma doce amargura – uma amarga doçura...
“Ano Santo” é o título que a Igreja deu ao ano jubilar de 1925 – e Irene o
apelida de “ano santo” em virtude da sua conversão da matéria para o espírito.
Só Deus sabe o que, nesse ano, se passou na alma da jovem. O seu “Diário”
reflete um quê dessa primeira etapa da sua espiritualidade, mas não nos diz
tanto quanto desejaríamos saber.
Até então costumava Irene vestir com vaidade, e, não raro, com falta de
decência cristã. Gostava de saias curtas, grandes decotes, ausência de mangas,
etc. Monsenhor Liberato, seu tio, chamou-lhe um dia a atenção para essas
inconveniências; mas a sua “maneira estrompa” (expressão de Irene) irritou a
mocinha em vez de corrigi-la; só o amor, como ela dizia à sua amiga Celita
Gurgel1
, é que era capaz de a converter.
1 Historiando a vida de Irene Valente, não podemos deixar de dizer duas palavras da sua mais íntima amiga e
inseparável companheira – Celita Gurgel, que tantas vezes aparece nas páginas deste livro. A exemplo de Irene,
sacrificou também Celita a sua saúde e mocidade, o seu tempo e os seus recursos, à grande causa do
apostolado da infância.
Foi Celita que, em fins de 1937, me acompanhou à casa da mãe de Irene (o pai já faleceu), em Fortaleza, à rua
Senador Pompeu. Acompanhou-me, mas quase em silêncio. De luto permanente pela morte de amiga,
caminhava ao meu lado, ensimesmada, abstrata, como se nada mais a prendesse a este mundo. Falei
longamente com a mãe de Irene e com uma irmã dela.
D. Maria, senhora distintíssima, calma e espiritual como Irene, pode considerar-se feliz por ter dado ao Ceará,
ao Brasil e ao céu uma filha como essa.
A ela e à heróica Celita, os mais efusivos parabéns e sinceros agradecimentos do autor deste livro.
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Mas ainda no mesmo ano, no dizer de Celita, Irene “sepultou os seus
defeitos”. Dera-se o “encontro pessoal” entre Deus e a alma de Irene...
O resto é mistério...
Não se modificou, com essa mudança interna, a vida externa da jovem.
Apenas começou a enxergar todas as coisas sub specie aeternitatis, como dizem os
ascetas.
Propensa aos trabalhos literários, como é, geralmente, o nordestino,
intensificou ainda mais os seus estudos. Teve um ótimo professor de português
na pessoa do Dr. Antônio Augusto, ao qual, como ela diz, “deve todo o seu
saber”.
Irene era muito benquista na melhor sociedade de Fortaleza. Tinha
numerosas amiguinhas, graças a seu gênio alegre e divertido. A sua jornada
ascensional, das planícies da humana mediocridade para as montanhas de Deus,
em nada lhe prejudicou a natural jovialidade.
*
* *
Por algum tempo, no primeiro fervor da espiritualidade, pensou em
abandonar a sociedade e entrar para o claustro. Em Guaramiranga, onde esteve
alguns dias a passeio, têm as Irmãs Franciscanas um convento, no qual uma
prima de Irene fazia o noviciado. Aquela vida tranquila e contemplativa
afigurava-se-lhe o céu na terra.
Quem contempla de longe uma roseira florida não lhe enxerga senão a
magnificência das flores, e nada percebe dos agudos espinhos que andam
ocultos por entre as belezas...
Muita jovem encanta-se pelo ramalhete de rosas brancas e vermelhas que a
santinha de Lisieux aperta ao coração – e muitas se esquecem de que no meio
das flores negreja um crucifixo de ares dolentes...
Entretanto, não foi por medo das dificuldades inerentes à vida claustral que
Irene deixou de tomar o véu de freira. Deus conduziu-a insensivelmente por
outros caminhos. Queria-a como apóstola em pleno mundo, como Verônica a
meio caminho do Calvário. “Verônica” era precisamente o nome que Irene
escolhera dantemão para o caso de professar na vida religiosa. Achava lindo este
nome: Irmã Verônica. Vai também nisto um delicado simbolismo da sua alma: a
Verônica do Evangelho – ou antes da via-sacra – é a personificação da caridade
ativa, humilde, despretensiosa, que só quer prestar benefícios sem se deliciar nos
elogios do mundo. A caridade, quando genuína, é, por assim dizer, anônima,
como anônima é aquela grande e corajosa benfeitora do divino Mártir, à meia
altura do Gólgota; “Verônica” é apenas um apelido que lhe deram, ao passo que
o nome próprio dessa mulher nos é desconhecido.
Era, pois, este o ideal de Irene: a caridade ativa, humilde, anônima.
16
*
* *
Em 1927, com 20 anos, regressou para Aracati, a que ela chamava “terra do
exílio”. Lecionava aulas particulares - “Escola Santa Irene”, como a crismou.
Fundou em Aracati a “Escola Remington Oficial”, onde conferiu diploma
de dactilógrafa a numerosas alunas. A “festa da formatura” era sempre uma
grande solenidade. (Veja-se a fotografia na fl. 72).
Passava as férias em Fortaleza, e em dezembro de 1932 veio morar em casa
duma sua tia, na capital, donde não mais voltou.
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3. O CARÁTER E OS IDEAIS DE IRENE
É costume entre as moças do Ceará organizarem questionários – ou, se
quiserem, testes – sobre certos pontos de interesse e apresentar às suas amigas
esses formulários para as competentes respostas.
Entre os manuscritos deixados por Irene, encontram-se nada menos de três
desses questionários. Um é de 1924, outro de 1931, e o terceiro de 1932.
Em muitos pontos coincidem esses documentos, divergindo em outros.
Representam os referidos testes preciosos subsídios para caraterizar a índole e
as aspirações da sua autora.
Vamos transcrever, na íntegra, o primeiro desses formulários, datado de 7 de
agosto de 1924, quando Irene tinha 17 anos, último ano da sua “vida profana”:
“Qual a tua divisa? Ser simples.
A tua paixão dominante? O mar.1
O teu sonho de felicidade? A felicidade dos meus.
Qual seria a tua maior desventura? Ver alguém infeliz por minha causa.
O que quiseras ser? Imortal nos corações dos amigos.
Como quiseras viver? Sendo útil a todos.
Como quiseras morrer? Em estado de graça.
A tua ocupação favorita? Ler.
A tua principal qualidade? A discrição.
O teu principal defeito? Não saber dissimular.
O que mais detestas? A falsidade.
O que mais te entristece? As despedidas.
O que te falta? Atualmente nada.2
O país onde quiseras viver?^Este, que é meu.
És feliz? A felicidade é uma quimera.
És sincera? Penso que já tenho dado provas disto.
Tens amigos? Tenho.
A qualidade que preferes no homem? O caráter a par da delicadeza.
A qualidade que preferes na mulher? A meiguice e a bondade.
O tipo masculino que mais te agrada? Moreno claro, olhos e cabelos negros.
O tipo feminino que mais te agrada? Esbelto e louro.
Os olhos que mais aprecias? Negros e ternos.
Os erros que merecem a tua indulgência? Os do coração.
Quais são os heróis que mais admiras? A vítima do dever.
Qual festa que te fez saudades? O pique-nique de 16 de dezembro de 1923.
O amor existe? “Perfeito” - só na flor.3
Que pensas do flirt? Ridículo.
1 “Paixão dominante”, em linguagem ascética, quer dizer, o defeito principal; Irene, porém, a toma no sentido
de: entusiasmo mais forte.
2 E, no entanto, estava ela quase sempre adoentada e acabava de sofrer a sua primeira decepção amorosa.
3 Engenhoso jogo de palavras sobre o “amor-perfeito”, uma das flores da sua predileção.
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Que dizes do beijo? A mais doce carícia.
Que dizes do ciúme? É um estado doentio da alma.
Devemos perdoar? Perdoar, sim, esquecer, nunca.
Pensas em casar? Não há tempo para isso.1
Os teus escritores prediletos? Os que fazem pensar.
Os teus poetas prediletos? Os que tocam o coração.
A tua poesia predileta? “O Palhaço”.
O instrumento que preferes? O violino.
As flores que preferes? As que têm perfume.
A cor que preferes? O branco.
O esporte que mais te atrai? Observar as maravilhas da natureza.2
Que dizes da dança? Um bom exercício.
O animal que preferes? Os pássaros cantores.
A tua maior preocupação? Cumprir o meu dever.
O teu passatempo favorito? Relembrar o passado.
*
* *
O teste de 1931, isto é, o sexto ano após a sua compreensão espiritual, difere
em muitos pontos do anterior e revela interessantes faces do caráter de Irene,
sobretudo nos campos centrais da vida, onde se ferem as batalhas decisivas
entre o indivíduo e a personalidade.
O tipo feminino da sua predileção continua invariavelmente, como em 1924,
com um quezinho de sabor ariano: “esbelta e loura”, enquanto o tipo masculino
passou, de “moreno claro, olhos e cabelos negros”, para - “nenhum”...
O seu sonho de felicidade, que em 1924 era “a felicidade dos meus”,
cristalizou-se nesta frase digna duma Teresa d'Avila: “renunciar a tudo
serenamente”. “Serenamente” - é bem notável este advérbio!
Ao quesito: “qual o teu apelido?” deu ela esta encantadora resposta:
“Nazarena”. Com efeito, já nesse tempo vivia Irene mais em Nazaré, naquela
humilde oficina do divino adolescente, do que nas plagas do Ceará. É uma das
mais tristes verdades que as nossas moças de hoje – e fossem apenas elas! -
ignoram, por via de regra, os fatos íntimos do Evangelho, a vida de Jesus Cristo.
Irene é uma feliz exceção da regra. Faz lembrar Santa Teresinha do Menino
Jesus, que não passava um dia sem ler ao menos uma página do sagrado
Evangelho. Ninguém sabia como Irene contar as cenas maravilhosas de Belém,
de Nazaré, de Cafarnaum, do Genesaré, do Calvário. É neste conhecimento
profundo dos livros sagrados que está o segredo das suas catequeses, que eram
escutadas com avidez pelas crianças e pelos adultos. Irene vivia identificada
como a vida de Nosso Senhor, e por isso podia dar aos outros da abundância da
sua própria riqueza interior. Não podemos transmitir aos nossos semelhantes
1 Uma das frases que mais caracterizam o espírito de Irene.
2 Outra resposta bem de Irene.
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senão aquilo que possuímos vitalmente. Assim como a mãe não transmite ao
filho as qualidades superficialmente adquiridas – porque estas não têm base nas
células germinais – senão somente aquilo que é da sua íntima natureza humana
e feminina, assim também, na geração espiritual, não podemos dar aos nossos
filhos espirituais senão aquilo que é real e intimamente nosso. Não basta que
uma verdade religiosa seja pensada ou estudada; para poder ser comunicada,
tem de ser vivida e sofrida. Só o que eu vivi e sofri é o que está no centro do
meu Ser; o resto fica na periferia. É necessário que as verdades espirituais nos
penetrem a alma, mergulhem nas profundezas do nosso Eu, se abismem no
oceano da nossa psique pessoal, que vivam a nossa vida, que padeçam as nossas
mágoas, que solucem os nossos desenganos, que rejubilem com as nossas
alegrias, que amem com o nosso coração, que vibrem com os nossos nervos,
que estremeçam em as nossas angústias; - numa palavra, é mister que as aéreas e
longínquas realidades do espírito se encarnem dentro de nós e se personalizem
em o nosso Eu.
Os grandes heróis da vida religiosa, os homens de projeção secular, viviam e
sofriam as suas espiritualidades, e, uma vez firmados nesse “ponto de
Arquimedes”, situado fora do mundo material, movimentavam universos e
criavam maravilhas de grandeza e sublimidade.
Por esse tempo, começou Irene a viver e sofrer a sua fé – e foi precisamente
por isto que ela se tornou uma exímia catequista – por ser uma perfeita
“nazarena”.1
*
* *
Outra pergunta desse segundo questionário: “Como te desejarias chamar?”
Resposta: “Irmã Verônica”.
Como dissemos, Irene andava com a idéia de professar na congregação das
Irmãs Franciscanas de Guaramiranga, e já escolhera, para este caso, o lindo
nome “Verônica”. Queria, a exemplo daquela heroína do Calvário, enxugar a
face de Cristo, do Cristo padecente através dos séculos na pessoa de tantos
sofredores do corpo e ainda mais sofredores do espírito...
Bem compreendera Irene o sentido daquelas palavras: “O que fizerdes ao
menos dos meus irmãos, a mim é que o fareis”.
Mesmo sem o nome de “Verônica”, desempenhou mil vezes o papel de
Verônica do Gólgota, aliviando nos seus Calvários a tantos irmãos de Jesus
Cristo, prestes a desfalecer sob o peso da sua cruz...
1 Já se achava no prelo este livro sobre a heróica apóstola do Ceará, quando das plagas nordestinas nos veio a
alvissareira notícia de que o governo do Ceará baixara um decreto oficializando a leitura do Evangelho nos
estabelecimentos de ensino.
Ceará docet!
Não nos furtamos ao pensamento de que Irene, essa grande amiga e assídua leitora do Evangelho, lá das
regiões da Verdade e da Vida, esteja patrocinando a causa de Jesus Cristo na “terra da luz”. Deixaria ela de ser
apóstola do Evangelho no céu, quando o foi tão ardentemente na terra?...
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“Como quiseras morrer?” “Unida a Jesus e nos braços de Maria”.
A tua verdadeira vocação?” “Isto deve ficar em segredo”.
“Que pensas do flirt?” Em 1924 respondera simplesmente: “Ridículo”.
Agora, em 1931, escreve: “É uma prova de pouco juízo”.
De vez em quando vem uma sentença profundamente filosófica. À
pergunta: “Que é a vida?” dá Irene esta resposta de sabor platônico e espírito
pascalino: “É um bordado do qual nós vemos somente o avesso”.
Irene era mestra em bordados artísticos. Vê-se por esta sentença que,
enquanto os seus dedos manejavam a agulha e a linha, não lhe ficava inativo o
espírito, descobrindo maravilhosos simbolismos onde outras jovens nada
percebem.
“Que é o amor?” “É uma asa que nos leva até Deus”.
“O amor existe?” “Sim, tão certo como existe Deus”.
Por estas duas respostas se conclui que Irene, nesses cinco ou seis anos,
andara às voltas com os livros sagrados e lera nas Epístolas de São João esta
frase tão bela quão verdadeira: “Deus é amor”. Em 1924, interrogada se o amor
existia, respondera, com ares de pessimista desiludida: “perfeito – só na flor”.
Naquele tempo não conhecia outro amor senão esse pobre sentimento humano
que muda com a idade, os humores do sangue e as disposições dos nervos;
agora, porém, lhe despontou aos olhos um novo universo de luz: o amor
espiritual, o amor eterno, o amor de Deus.
“Que dizes da dança?” Da primeira vez achara-a “um bom exercício”, ao
passo que agora prefere responder: “Não digo nada, mas não gosto dela”.
“Qual a tua opinião sobre a moda?” “Preocupa-me pouco esta senhora”.
É bem o humorismo e o gênio alegre de Irene.
“Como achas mais suave viver?” “Servindo e amando a Deus”.
Eis a Irene espiritual e apostólica!
“És feliz?” Que distância enorme entre o doloroso suspiro
schopenhaueriano de 1924: “a felicidade é uma quimera”, e a jubilosa afirmação
cristã de 1932: “sou mais feliz do que mereço, graças a Deus”!
A maior desventura do homem, dentro do âmbito da vontade de Deus, é
sempre maior felicidade do que o máximo prazer fora dessa vontade – disto se
convencera Irene nos últimos anos, e por isso é que vivia sempre tão alegre no
meio dos seus sofrimentos e das incompreensões dos seus.
“Pensas em casar?” Daquela vez dera a jovem cearense uma resposta evasiva
a esse quesito: “não há tempo para isso”, ao passo que agora vem com uma
repulsa categórica: “não, Deus me livre de tal coisa!” É que, entrementes, lera e
meditara o capítulo VII da primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios e
penetrara no sentido profundo das palavras:
“Quanto às virgens, não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, um
conselho como quem merece confiança, por ser agraciado do Senhor. Entendo
que, por causa da presente tribulação, é bom elas ficarem assim (virgens)... A
mulher não casada e a virgem cuidam das coisas do Senhor e procuram ser
santas de corpo e alma; ao passo que a casada pensa nas coisas do mundo e
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procura agradar ao marido. Digo isto para o vosso bem, porque me interesso
pelos bons costumes e por uma desimpedida entrega ao Senhor”.
*
* *
O psicólogo não pode deixar de reconhecer, pelo cotejo dessas duas auto-
caracterizações, os rastos de uma incessante evolução em linha ascendente.
A acendrada espiritualidade de Irene do último decênio de sua vida é o fruto
maduro de um contínuo esforço e uma decidida educação de si mesma.
O santo não nasce – forma-se.
*
* *
Num terceiro questionário, de 20-7-1932, lemos estas frases, que projetam
luz abundante sobre o caráter e os ideais de sua autora.
“Qual a tua paixão dominante?” “A Eucaristia”. Vai enorme distância do
“mar” (resposta de 1924) à “Eucaristia”. A panteística enamorada da Natureza
tornou-se a cristianíssima adoradora do Deus do Universo, encerrado pelo
próprio amor na migalha infinita da Hóstia...
A partir daí, o “Diário de Amor” de Irene vem repleto de transcrições e
paráfrases dos livros: “Alma Eucarística”, “Albores Divinos” e “Poesia de
Jesus”1
, obras pelas quais ela costumava fazer as suas leituras e meditações
quotidianas.
À pergunta sobre a sua “ocupação favorita”, ela não dá mais, como anos
antes, esta resposta tão esteticamente humana: “ler”, mas, sim, a resposta
genuinamente apostólica: “ensinar o Catecismo”.
À interrogação romântica: “quais os olhos que mais aprecias?” dá uma
resposta igualmente romântica: “os que sabem falar”.
“Quais os músicos que preferes?” O leitor civilizado espera, naturalmente,
ouvir palavras de alta cultura, como Beethoven, Carlos Gomes ou Chopin.
Irene, porém, prefere aos músicos humanos os cantores de Deus, respondendo:
“Os pássaros do campo”.
“Qual o esporte que mais te atrai?” “Passeios à praia”.
As obras de Deus, as maravilhas da natureza, os trabalhos dos homens – é
nesta sucessão que Irene classifica os valores da vida, à luz da razão e da fé. E
não tinha razão?
1 Obras do P. Huberto Rohden. Nos últimos tempos andava Irene à procura do livro intitulado “Jesus Nazareno”;
morreu, porém, sem o teor encontrado em Fortaleza.
“Irene gostava muito dos livros do Padre Rohden, cujos pensamentos tanto concordavam com as ânsias do seu
espírito”. (P. Tiago, diretor espiritual de Irene).
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4. NOS RASTOS DE DIANA
Contempla, prezado leitor, a fotografia da fl. 61. No fundo, uma esplêndida
mangueira; à direita, uma senhora; de cada lado, um garoto com chapelão de
palha; ao meio, uma creoulinha sentada ao pé – de quem? Ao pé duma jovem
com um enorme chapéu de palha à cabeça e empunhando uma respeitável
espingarda de caça. Não é que a sua atitude, a arma e o chapéu de aba levantada
na frente fazem lembrar o famoso “Lampeão” de temerosa memória?
E se eu dissesse agora aos meus leitores que essa arrojada caçadora é a nossa
espiritualíssima Irene, ninguém me daria fé.
Pois, a verdade é esta.
Havia na fazenda do “Cajueiro” e nos arredores de Aracati extensas matas e
descampados, que formavam o eldorado de toda a espécie de caça. Antes que
amadurassem as áureas espigas dos milharais, enormes bandos de gárrulos
papagaios costumavam pilhar as fartas roças do litoral cearense. Gordas
capivaras atravessavam o rio Jaguaribe e estabeleciam nas plantações do sr.
Costa Valente e vizinhos o regime do mais completo comunismo, segundo o
princípio adotado no mundo zoológico: Tudo o que é teu é meu.
De vez em quando, emergia das águas barrentas do grande rio a cabeça lisa
duma lontra sagaz, à espreita duma galinácea que, por ventura, descansasse,
incauta, à sombra do espesso canavial – e era uma vez uma galinha...
Mas ai desses intrusos se andasse por aí a gentil discípula de Diana!... Irene
conhecia-lhes todas as manhas e artimanhas... Gostava de caçar e chegou a ser
ótima atiradora. Defendia assim de muitos inimigos traiçoeiros a fazenda
paterna.
É possível que essas propensões cinegéticas roubem à jovem cearense as
simpatias de não poucos leitores – ou melhor, de certas almas ultra-sentimentais
que desmaiam ao verem uma gota de sangue e revelam-se legítimos hindus na
sua mórbida zoofilia, a qual consideram como a quintessência da virtude e
caridade.
Deus criou para utilidade dos homens as plantas e os animais. Pode o
homem servir-se deles a bel-prazer. Não deve, certamente, matar só pelo gosto
perverso de matar, e muito menos maltratar algum animal. Mas pode eliminá-lo
quando o aconselham os interesses honestos da sua vida e prosperidade.
Usar – sem abusar.
Irene, por mais delicados que fossem os seus sentimentos e por mais
apurada a sua caridade, teria sido incapaz de levar nos braços e amimar como
uma criança um cachorrinho de luxo. Vestir de seda e veludo um animal,
comprar para ele finais iguarias, mandar-lhe fazer uma caminha de madeira do
Pará com imbutidos artísticos, e, para cúmulo de aberração sentimental, fazer-
lhe um cemitério próprio e levantar-lhe um monumento de mármore, a
exemplo do que fazem certas damas excêntricas da moderna sociedade – disto
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seria incapaz a alma natural de Irene. Encontrasse, porém, nos seus caminhos
uma criança pobre, um garotinho abandonado, um doente coberto de chagas –
logo lhe despertava na alma o mais vivo interesse e a mais ativa solicitude por
esses seus irmãos em Cristo.
Respeitar os animais e as plantas – é justo e nobre. Amar, porém, só
podemos a um ser racional. A zoofilia de certas damas da nossa sociedade
supõe uma psique profundamente adulterada, um sentimento desviado dos
trilhos naturais duma sadia e sensata racionalidade.
Nos últimos anos da sua vida, gastava Irene regularmente quase todo o seu
ordenado de professora com a aquisição de roupinhas para crianças pobres. Era
duma liberalidade que faz lembrar a largueza de espírito de Maggy Lekeux, essa
donzela admirável que fez mais pela solução da questão social na Bélgica e no
resto do mundo do que centenas de legisladores e milhares de sociólogos.
Irene, depois daquele seu “encontro pessoal com Deus”, vestia com extrema
simplicidade. Desfez-se de quase todas as suas jóias, em benefício das crianças
pobres e de obras pias. Assistia à Missa diariamente, comungava, e costumava à
tarde fazer a sua visita ao Santíssimo.
E, no entanto, essa jovem de alta espiritualidade sabia ser ao mesmo tempo
essa simpática discípula de Diana, essa gentil caçadora a romper impetuosa
pelas matas do nordeste e jogar-se, possivelmente, às águas do Jaguaribe para
atravessá-lo a nado.
Vede-lhe a atitude característica: segurando a espingarda com ambas as
mãos, espia pela ramaria da mangueira, donde ouve partir um ruído – os
caçadores costumam ter o ouvido muito apurado. Daí a momentos, ecoa pelo
silêncio do pomar o estampido de uma aguda detonação – e aos pés da
intrépida Diana tomba o alado intrujão que, certamente, não contava com a
destreza daquela piedosa Filha de Maria e inteligente diretora da “Escola
Remington Oficial”...
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5. TEM A PALAVRA IRENE
Já é tempo de darmos a palavra à nossa heroína. Ela, é certo, falará em toda
a segunda parte deste livro; mas convém que diga, desde já, algumas daquelas
coisas suaves e espirituais que, dia a dia, confidenciava com o seu “querido
Jesus”.
Há um grande inconveniente em publicar diários íntimos, confidências
espirituais e, sobretudo, solilóquios eucarísticos, como estes. Apanhar uma
dessas lindas borboletas das nossas florestas – borboletas que mais parecem
sonhos e sopros do que seres materiais – é o mesmo que roubar-lhes grande
parte dos seus encantos, destruir-lhes o tenuíssimo pó das asas velatíneas e
reduzir assim essa etérea poesia ao prosaísmo dum objeto de museu.
Toda e qualquer virtude, quando exibida em público, mesmo com a melhor
das intenções, perde 50% da sua natural beleza e do seu envolvente fascínio. O
simples fato de ser dito em voz alta, ou até estampado grosseiramente em letra
de forma (que horror!), aquilo que, quando muito, devia ser segregado à meia-
voz, constitui uma verdadeira profanação, quase um sacrilégio...
O “Diário de Amor”, de Irene, não foi escrito com o pensamento na
publicidade. Se não fosse com o intuito honesto e apostólico de dar proveito a
uma ou outra alma, jamais me atreveria eu a expor em praça pública o que essa
jovem cantou e gemeu discretamente à luz vermelha da lâmpada do Santíssimo
e no silêncio do seu gabinete de estudos.
Perdoa-me, portanto, Irene, e lá das celestes alturas, onde, como espero,
contemplas o meu humilde trabalho, fala às almas que, porventura, lerem estas
tuas intimidades eucarísticas.
*
* *
Tenho diante de mim um dos volumes do “Diário de Amor”, em cuja
primeira página se acha colada uma linda estampa em sépia, representando o
Sagrado Coração de Jesus, e debaixo dele, do punho de Irene, as palavras:
“Meu Jesus, eu sou tua -
e de mais ninguém”.
Depois duma sugestiva poesia e uma fervorosa consagração do novo ano,
escreve Irene, com data de 1º de janeiro de 1931, quinta-feira:
“Jesus, neste primeiro dia do ano, todos se cumprimentam e desejam uns aos
outros toda a sorte de felicidade. E a ti, Jesus, ninguém se lembra de desejar
nada. A única pessoa, talvez, que se lembrava de te desejar felicidades já não
vive nesta terra.
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Quero eu te consolar pelo esquecimento destes teus amigos e te desejo um
Ano Novo repleto de felicidade.
Em que consiste a tua felicidade? Em receber as homenagens dos teus
servos e o amor dos teus amigos?
Pois bem, Jesus, eu faço votos para que neste ano recebas muitas
homenagens e atos de amor. Faço votos para que se batizem muitos pagãos e
convertam muitos infiéis, se regeneram muitos pecadores e se consagrem a ti
muitos corações, e se povoem os conventos. Faço votos para que se calem os
blasfemadores, para que cessem as injúrias e os ultrajes da Rússia, para que
apareçam vocações e haja sacerdotes cheios de zelo que te consolem o coração.
São estes, neste primeiro dia do ano, os votos do coração amigo da tua
serva”.
Logo na alvorada deste ano de 1931, trava Irene conhecimento com a dor.
Cai de cama com forte gripe e tosse. No dia 5-1-31 escreve:
“Ó Jesus, quanto é triste um dia sem te receber! Que sofrimento para o meu
coração que anseia por ti!... É o primeiro dia deste ano que vou passar com
saudades de ti; e quantos dias iguais a este não serei obrigada a passar, meu
Jesus!...
Quanto me custa passar sem ti!...
De todas as dores que trazem consigo os resfriamentos, a pior de se
suportar é a tua ausência. Como poderei sair para a tua casa, ó Jesus, se estou
doente?
Depois, sempre que saio, apanho chuva, e ela me faz tanto mal!...
Se a chuva não fosse tão necessária, eu te pediria que a não mandasses.
Mas, Jesus, se eu não fui pessoalmente te receber, fui espiritualmente; aceita
a minha boa vontade e dá-me a paz, aquela paz que os anjos prometeram no dia
do teu nascimento, aos homens de boa vontade”.
No dia 6-1, festa dos Santos Reis, continua Irene a sua ingênua tagarelice
com Jesus, como se fizesse parte da comitiva dos magos e estivesse de joelhos
diante do Menino em Belém:
“Jesus, hoje, dia santo, não me foi possível ir à Missa. Um dia santo sem
Missa! Que tristeza! Mas tu quiseste assim, não foi, Jesus? Porque mandaste
tanta chuva? Resigno-me, porque sei que é a tua vontade.
E, já que não pude ir te visitar como os Reis magos o fizeram, fiz a minha
visita espiritual a ti, loura criancinha, que vieste ao mundo para a minha
salvação. Nada tendo para te ofertar, nem ouro, nem incenso, nem mirra, eu te
ofereci, meu Jesus, o meu sofrimento, as minhas dores, os meus suspiros, as
palpitações do meu coração, que te pertence...
E tu os aceitaste, ó Jesus, estou bem certa disto, peço-te que não abandones
a tua amiguinha, que não a deixes muitos dias sem te receber; pois ela contigo
pode tudo, mas sem ti não pode nada.
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7-1 – noite - quarta-feira
Meu Jesus, eu sou toda tua, e demais ninguém.
Como eu te amo, Jesus! Hoje tive a felicidade de te receber. Como és bom!
Não mandaste cuva para que eu pudesse visitar-te, não foi, Jesus?
Estavas com saudade de mim?
Eu tive tantas saudades de ti!
Eu, Jesus, é natural que tenha saudade de ti; porém, teres saudades de mim,
não será presunção minha?
Não é, já sei, Jesus! Embora tenhas aos teus pés as tuas queridas amigas, não
te esqueces de mim, a mais indigna, aquela que mais te fez sofrer, a quem muitas
vezes perdoaste, mais benefícios fizeste.
Os abismos se atraem, meu Jesus: o abismo da minha miséria atrai o abismo
da tua misericórdia.1
Viste como te provei o meu amor, Jesus? Fui, hoje à tarde, te visitar.
E tu, que conheces tudo, devias ter visto o estado em que me achava.
Cansada de andar, exausta de tossir, o corpo feito em suor, os pés doridos; mas
fui a ti, fui te visitar e encontrei nisto grande consolação. Não, não poderia
deixar de ir, meu Jesus!”
Todos os pensamentos de Irene giram perenemente em torno do
Tabernáculo, qual enxame de abelhas em volta duma flor. Acordando, em plena
noite, vem-lhe logo, instintivamente, a lembrança de Jesus-Hóstia:
9-1 – sexta-feira
“À noite, quando acordo tossindo e que não posso dormir, o meu principal
pensamento és tu, Jesus. Esta noite, quando o relógio da Sé bateu meia-noite, o
meu espírito foi te visitar e te encontrou tão sozinho, naquela igreja tão deserta
e tão escura, tendo por companhia a franca luz da lâmpada.
Onde estavam, meu Jesus, todas aquelas virgens que, à tarde, te fazem tão
fiel e amorosa companhia? Dormiam – e tu estavas só!... Velando por nós...
pensando em nós!...
Francamente, Jesus, tive pena de ti, e te agradeci o teres ficado prisioneiro
por nosso amor.
10-1-31 – sábado
Meu Jesus, estou pior. A minha natureza quis se revoltar, tive vontade de
chorar; mas, ao pensamento de que era esta a tua vontade, eu me acalmei. Não,
Jesus, não me revolto. Mas até quando sofrerei esta doença?
Os santos não pediam alívio para as suas dores – e eu quero ser santa, meu
Jesus, mas falta-me a coragem. Jesus, sinto-me tão fraca, tão cansada. Esta dor
de garganta é horrível!... Não a queres trocar pela tosse? Eu te agradeceria tanto!
Tem piedade de mim, Jesus!...
Se tivesse comungado hoje, estaria mais forte. Não me abandones, Jesus meu!
1 Linda paráfrase e aplicação das palavras da Sagrada Escritura: abyssus abyssum invocat.
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11-1-31 – domingo
Jesus, como passei mal esta noite!
Não tiveste pena de mim?
Quase não dormi... nem podia também pensar em ti. Era tão grande o
sofrimento... Mas, Jesus, parece que fiquei um pouco queixosa contigo, por não
teres feito a troca.
Que fraqueza esta minha, não é, Jesus? Tenho tantas faltas a expiar, e
aborreço-me quando me envias o sofrimento que me serviria para isto”.
Recordando o que escrevera naquele questionário, dando o “mar” como a
sua “paixão dominante”, Irene pergunta a Jesus se aquilo não era tolice.
13-1-31 – terça-feira
“Estive me lembrando, Jesus, de que sempre respondo nos livros de
confidências que a minha paixão dominante é o mar.
Não será isto um disparate, meu Jesus? Que fez o mar para merecer o meu
amor? Não, Jesus, gosto do mar, mas não direi outra vez que ele é a minha
paixão dominante. A minha paixão dominante agora será Aquele que fez o mar,
para satisfação dos meus olhos”.
*
* *
Irene possui o dom singular de tornar concretas e intuitivas as coisas
espirituais, tão vagas e metafísicas aos nossos sentidos.
No dia 16 de janeiro, quando, de certo, ainda estava armado o presépio do
Natal, ela comunga, e depois discorre deliciosamente assim:
“Meu Jesus, que fervorosa Comunhão fiz hoje!...Agora que estás no meu
coração, que nele entraste como uma criancinha de poucos dias, eu te ofereço
este coração transformado num bercinho macio. Não, Jesus, não será meu
coração uma manjedoura fétida de palhas ásperas para magoar o teu inocente
corpinho.
Minha Mãe, o teu filhinho está no meu coração, que hoje é seu berço. Vem
velar o seu sono. Não me deixes ser má, para não molestar o teu filhinho, para
não fazê-lo chorar.
17-1-31 – sábado
Ontem, meu Jesus, eu te prometi um berço macio; mas estou certa que
encontraste neste berço dois espinhosinhos que te fizeram sofrer. Um foi não
ter eu rezado o terço com atenção; e o outro, a minha visita da tarde, que deixei
de fazer-te.
Jesus, por uma visita a uma amiga faltei à tua. Mas consola-te, Jesus, pois tu
sabes que tu és o preferido. Não fui porque me descuidei, e anoiteceu.
Hoje, Jesus, eu serei uma flor, um lírio, que a tua Mãe te ofereceu para
brincar. Não afastes de ti a tua flor, Jesus, aconchega-te sobre o coração, não a
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desprezes, pois que te foi oferecida por tua Mãe. Não tenhas medo, a tua flor
não terá espinhos que te piquem os dedinhos, verás...
Ó Jesus, ensina-me a ser lírio”.
*
* *
No dia imediato, prosseguindo nos seus simbolismos, escreve:
“Hoje, meu Jesus, quando vieste a mim na Comunhão, eu te ofereci o meu
coração transformado num pombinho branco.
Esta avezinha é muito inquieta, meu Jesus; por isto é preciso que tenhas o
máximo cuidado. Segura, ó Jesus, o teu pombinho branco, não o deixes voar à
toa, não o deixes pousas nas criaturas. Por muito tempo, ele voou de criatura em
criatura; agora é teu, pousou em ti, no seu Criador, onde quer ter o seu ninho.
Aperta-o sobre o teu coraçãozinho e faze-o adormecer ao calor do teu amor.
Nada receies, Jesus meu, o teu pombinho será doce e amoroso.
Ontem, a tua flor não te picou, meu Jesus, embora tenha tido suas distrações
na visita e no terço; foram todas involuntárias. E os esforços feitos para estar
com atenção não te agradaram, Jesus?”
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*
* *
Seguindo com os olhos as brancas nuvens de incenso que se evolam das
brasas ardentes do turíbulo, durante a benção do Santíssimo, Irene suspira por
ser um turíbulo assim, cheio de ardor e que faça subir o incenso odorífero da
adoração. No dia 19-1 escreve no seu “Diário de Amor”:
“Jesus, meu coração é hoje um turíbulo, do qual deve subir para ti uma
nuvem de incenso, e este incenso será uma contínua adoração e um contínuo
agradecimento. Vieste a mim, Jesus, eu te acolhi com amor, mas continuo tão
distraída... Penso em tanta tolice no momento da Missa... Isto me contraria
muito. A Missa é uma renovação da tua paixão e morte. E, estando eu tão
distraída, que triste figura faço no teu sacrifício?
Quão longe estou de imitar tua santa Mãe, Madalena e São João!
Nem mesmo posso fazer parte daquele segundo grupo que, não tendo
coragem de se aproximar, olhava de longe. As piedosas pessoas deste grupo
tinham em ti os seus olhos, pensamentos e corações, enquanto eu a muitas
Missas assisto como assiste o defunto colocado na igreja para a Missa de corpo
presente.
Só tu, Jesus, poderás dar jeito a isto”.
*
* *
Berço, flor, pombinha, turíbulo – tudo isto quer Irene ser para Jesus.
E que mais? No dia 20 de janeiro, festa de São Sebastião, escreve:
“Queres saber, meu Jesus, o que serei hoje? A Hóstia, a branca Hóstia de
frumento. Hóstia, quer dizer, vítima. Pois aqui tens, Jesus, a tua vitimazinha. Ela,
meu Jesus, quer cooperar contigo para a salvação dos pecadores.
Hoje estou um pouco adoentada e não pude ir te receber; mas sinto, Jesus,
que tu estás em meu coração, que vieste a mim na comunhão espiritual.
Sinto-me um pouco resfriada, e a garganta está doendo; mas não posso me
queixar, pois que sou Hóstia, sou vítima, e uma vítima não se queixa.
Abandono-me às tuas mãos, ó meu bem-amado Jesus.
Agradeço-te, meu Jesus, a felicidade e a paz que me concedeste ontem,
depois da confissão – que boa confissão fiz eu!
21-1-31 – quarta-feira
Meu Jesus, hoje escolhi ser uma lampadazinha para estar sempre diante do
teu tabernáculo. Quero, meu Jesus, que ela seja sempre brilhante para edificação
do meu próximo e para atestar a tua presença. Faze que no meu porte, no meu
rosto, nos meus olhos, conheçam que sou das tuas, assim como conheceram
que São Pedro era teu companheiro.
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Como és bom, Jesus: eu ontem me ofereci como vítima e pensei que me
mandasses uma gripe, e, no entanto, hoje estou boa. Assim é melhor, Jesus,
porque posso te receber e visitar, como fiz hoje.
22-1-31 – quinta-feira
Jesus, Santa Teresinha, na sua simplicidade infantil, se oferecia a ti como se
fosse uma bola, para te distrair.
E ela queria ser tua, entregar-se às tuas mãos, como se fosse uma bola.
Pois bem, Jesus, eu hoje imitei Santa Teresinha: fui hoje a tua bola, uma
pequenina bola, um brinquedo da tua infância. Mas, Jesus, desde ontem estou
tão triste que quase não posso pensar em ti. Ocupa-me o pensamento a
infelicidade acontecida àquela família... Jesus, tem pena! Só tu poderás confortar
em certas infelicidades, consolar certas dores e estancar certas lágrimas...
23-1-31 – sexta-feira
Sabes, Jesus, o que serei hoje? o que será o meu coração? Um jardim. Neste
jardim te hospedei hoje. Nele podes estar à vontade, pois que é um jardim
fechado onde não deixarei entrar importunadores. Só entrarei eu, de vez em
quando, para conversar contigo... Passeia sem receio neste jardim. Não
encontrarás animais ferozes que te persigam – os pecados mortais, que não
quero abrigar em meu coração; nem deixarei entrar os animais selvagens dos
pecados veniais, porque sei que também te assustam.
Toma, pois, conta deste jardim. Aí encontrarás as rosas do meu amor; pois
eu te amo, e amo o meu próximo por teu amor. Encontrarás também lírios,
porque, sabendo que tu és Aquele que se apascenta entre os lírios, procuro
tornar-me, dia a dia, mais pura, para te ser agradável. Poderás também descobrir
algumas violetasinhas, meu Jesus, pois esforço-me por ser humilde, embora, de
vez em quando, não saiba receber com paciência uma censura feita a mim ou à
minha família... Se descobrires alguma erva malfazeja, arranca-a, ó Jesus. Sê tu o
jardineiro deste jardinzinho.
Quando te cansares, deita-te na relva, à sombra das árvores; mas não queiras
sair, para que sempre eu te possa encontrar e fazer-te os meus pedidos.
Agradeço-te o consolo que vais dando àquela família. Ouviste o meu pedido.
Acho mesmo impossível, Jesus, que deixes de me atender, a mim, tua
esposazinha, que por ti sacrificou a sua mocidade, seu coração, os gozos,
embora fugazes, deste mundo; que escolheu o isolamento do coração por teu
amor”.
*
* *
Por esse tempo, deu Irene um passeio a Mecejana, e, depois duma dolorosa
provação, derrama no coração de Jesus as suas mágoas, escrevendo no dia 25-1-
31, domingo:
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“Hoje, meu Jesus, fiz como Santa Teresinha, a qual, estando doente, viu um
cacho de uvas, saboreou-o e, depois, se ofereceu a ti como se ela fosse um
cacho de uvas para te dar prazer – foi o que fiz. Na Comunhão eu me ofereci a
ti e quis ficar ao teu dispor, sem desejos e sem vontade própria, como se
realmente fosse um cacho de uvas. E tu, meu Jesus querido, esmagaste este
cacho de uvas, porque querias o vinho, o vinho generoso da tua última ceia. O
sofrimento de hoje comprimiu o meu coração como se comprimem as uvas
para lhes extrair o vinho. Mas, se das uvas sai o vinho que pode ser mudado em
teu sangue divino, de um coração esmagado pelo sofrimento sai a resignação à
tua vontade e o abandono às tuas santas mãos, o que te é muito agradável, não
é, Jesus?”
*
* *
No dia seguinte, ainda sob a pressão da mesma dor, continua o seu
holocausto voluntário, confidenciando:
“Hoje eu me ofereço a ti, Jesus, como uma espiga de trigo. Se quiseres,
podes triturar este trigo para transformá-lo numa hóstia; e debaixo da pesada
mó da provação tornar-me-ei apta a ser a hóstia oferecida em holocausto para
atrair as suas bençãos sobre a minha família e amigos, sobre a minha
congregação e seu diretor”.
Fazem estas palavras lembrar aquel'outras, tão parecidas, que o heróico
bispo Santo Inácio de Antióquia escreveu, em vésperas do martírio, aos seus
diocesanos: “Sou trigo do Cristo; é necessário que seja triturado pelos dentes
dos leões afim de dar em resultado um pão agradável a Deus”. Irene,
provavelmente, nunca leu essa epístola, de princípios do segundo século do
Cristianismo; mas vigora uma misteriosa afinidade espiritual entre as almas
genuinamente cristãs; quanto mais se elevam a Deus, mais se aproximam uma
da outra, porque todas as linhas terrestres convergem para o vértice da celeste
pirâmide, onde está Jesus Cristo, autor e consumador da nossa perfeição.
Em vésperas de embarcar para Aracati, “terra de exílio”, ela escreve palavras
cheias de dor e saudade:
“Ó Jesus, é este o último dia que passo aqui. Amanhã, pela madrugada,
tenho de partir. Deixarei esta terra de que tanto gosto, deixarei a minha
congregação...
Mas, Jesus, é preciso que eu sofra para me tornar agradável a ti. Hoje,
quando vieste ao meu coração, eu me ofereci a ti como se fosse um pouco de
incenso. O incenso precisa ser queimado para subir em olorosa fumaça e te ser
agradável; assim, Jesus, eu preciso sofrer para me purificar cada vez mais e
merecer o teu amor.
Meu Jesus, protege-me nesta viagem e, naquela terra de exílio, defende-me
contra as ciladas do demônio e faze que o meu sofrimento deste ano – o qual
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ignoro, mas aceito resignada, porque sei que vem das tuas divinas mãos – me
seja meritório e me ajude na difícil estrada da santificação”.
*
* *
Em Aracati, começa Irene a sofrer com o doloroso exílio, não tanto corporal
como espiritual, porque lhe faltam as costumadas práticas religiosas em
comunidade. Procura, todavia, consolar-se com o pensamento de que também
Jesus é um exilado, e, portanto, seu companheiro de suplício.
29-1-31 – quinta-feira
“Que tristeza sinto quando chego aqui e não encontro ninguém da minha
família! Que isolamento, meu Jesus! Sinto ainda mais as agruras do exílio,
porque, Jesus, longe da minha congregação, sou uma exilada; mas tu, Jesus, não
estás também exilado nesta terra, por meu amor? a tua pátria não é o céu? Pois
bem, Jesus: amor por amor – serei uma exilada de amor, para te fazer
companhia. Ontem, devido à viagem, não me foi possível pegar neste
caderninho; mas isto não quer dizer que não tenha pensado em ti.
30-1-31 – sexta-feira
Hoje, meu Jesus, eu te recebi em meu coração; mas, não sei porque, estava
sem fervor. Jesus, tem pena de mim! vê quanto meu custa este exílio e concede-
me o fervor para suavizá-lo. Dá-me forças. Jesus!
Serei hoje, Jesus, o pássaro solitário; pois vivo tão sozinha, neste sobrado tão
grande”.
“Pássaro solitário no teto” é a expressão com que o profeta Davi, em transes
de profunda depressão psíquica, designa o estado de sua alma. Irene, de
encontro à maior parte das outras jovens, mesmo piedosas, conhece
admiravelmente essas expressões e imagens bíblicas, quer do Antigo quer do
Novo Testamento, prova de que não se contentava com algum devocionário
açucarado, mas procurava beber na própria fonte da revelação divina as águas
da vida eterna.
Já deve o leitor ter reparado como Irene é engenhosa em estabelecer
paralelos entre a sua vida e a de Jesus; por toda a parte encontra pontos de
contato, semelhanças, analogias – e estes pontos de contato são outros tantos
canais por onde lhe derivam as energias espirituais que a sustentam no meio das
suas tribulações. Basta-lhe saber: Meu querido Jesus sofreu o mesmo ou coisa
pior – e está suavizada toda a amargura. O amor suaviza todas as dores. Não se
trata dum simples “ato de amor”, recitado pelas páginas dum manual de
orações, mas do amor profundamente vivido e sofrido – e este amor é
onipotente.
37
*
* *
É tão fácil ser santo sobre o alvo papel de um “diário”! Ter belos
pensamentos e banhar a alma em sentimentos suaves, ainda não é santidade.
Mas, quando, na vida real, nessa dura e prosaica vida de cada dia,
procuramos sinceramente cumprir a vontade de Deus, sobretudo no sofrimento
obscuro e inglório aos olhos do mundo, - então, sim, damos prova de verdadeira
virtude e duma santidade que não está apenas na alvura do papel, traçada a bico
de pena, mas dentro e mui dentro do nosso Eu.
Irene era, de fato, uma grande cumpridora da vontade de Deus e uma
heróica sofredora das suas dolorosas visitas.
Ver em todas as vicissitudes da existência a mão carinhosa do Pai celeste –
isto é mais que sentimentalismo poético, é heroísmo cristão.
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6. A POESIA DA NATUREZA
O homem da cidade vive, geralmente, divorciado da natureza. Fábricas e
escritórios, salões e repartições públicas, cafés e cassinos, praças e avenidas,
clubes e campos de futebol, farras noturnas de cabaré e algazarra insípida de
carnaval – eis o mundo do citadino moderno.
Nesse ambiente artificial, mecanizado e animalizado, adultera-se aos poucos
a alma humana, atrofiam-se-lhe os sentimentos mais delicados. Pode-se mesmo
estabelecer, nas devidas proporções, esta equação: o caráter humano está na
razão direta do contato com a natureza e na razão inversa da vida na sociedade.
Ou, como diz a sentença lapidar de um dos grandes filósofos do paganismo:
“Toda a vez que estive entre homens voltei menos homem”.
Parafraseando as palavras do filósofo, poderíamos dizer: Toda a vez que
estive com a natureza voltei mais natural, e, portanto, mais homem.
A natureza é a grande central de energias humanas.
A natureza é a boa, genuína, reta, sincera, amiga, benfazeja e estética.
A natureza é o reflexo das perfeições de Deus. É o grande livro do Criador.
É a mais antiga e mais intuitiva das revelações da Divindade, tanto assim que o
apóstolo Paulo, na epístola aos romanos, chama “inexcusáveis” os homens que,
pela contemplação da natureza, não chegaram ao conhecimento de seu autor.
Se é verdade, como diz Tertuliano, que toda a alma é cristã por natureza, não
é menos verdade que toda a alma é naturalmente poetisa. Para ser poeta ou
poetisa não é necessário versejar ou rimar. Há muita poesia sem verso, e há
muito verso sem poesia. A alma natural, dotada dum determinado potencial de
receptividade psíquica, entrevê e entreouve em todos os seres a discreta beleza e
harmonia da natureza: no verdejar da folhagem e no perfume das flores, na
alvorada triunfal dos passarinhos e no cintilar das estrelas, no silêncio das
montanhas e no marulhar das salsas águas nas areias da praia – por toda a parte
vislumbra os reflexos dum poder imenso e duma grande inteligência.
Todos os grandes homens da história, todos os dedicados servos de Deus
eram exímios amigos da natureza, à frente deles o divino poeta da Galiléia, que
passou trinta anos no seio da verdejante epopéia das montanhas, e durante os
três anos da sua vida apostólica viveu identificado com as paisagens do seu
torrão natal e sabia revestir a sua doutrina da mais linda roupagem das parábolas
e alegorias:
“O reino de Deus é semelhante a um grão de mostarda”...
“Eu sou a videira, e vós sois as varas”...
“Eu sou a luz do mundo...”
“Contemplai as aves do céu e os lírios do campo...”
Dele, do grande teólogo-poeta de Nazaré, escreve um dos nossos mais
suaves bardos contemporâneos:
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“Mestre! que, na visão poética dos muros
Da tua velha pátria, ainda me sorris,
Por entre o louro mar dos seus trigais maduros,
E das comas em flor de crianças gentis;
Tu, que amavas ouvir essas harpas estranhas
Que, em horas de solidão, vibra o mar galileu,
E fizeste da grimpa excelsa das montanhas
A tribuna em que o sol do Evangelho esplendeu;
Tu, que oravas na paz dos mornos olivedos,
Dormentes ao luar do teu céu oriental,
E cismavas a sós, pelos desertos quedos,
Entre as aves do azul e a açucena do val;
Tu, que enchias de luz as almas desoladas
Dos lázaros, das mães, dos filhinhos sem pai,
E passaste cantando, ao longo das estradas,
Este doce estribilho: amai, amai, amai!
Perdoa-me, ó Rabi, se talvez indiscreta
Soe nesta hora a voz do bardo sonhador;
Mas, dize-me, não foste o divino Poeta
Que nos trouxe do céu a poesia do amor?...
Adoro-te, ó divino e pálido Poeta,
Que revelaste ao mundo o evangelho do amor!
Inspira-me, ó Rabi, banha-me a fronte inquieta
Na harmonia imortal desse hino redentor!!
(D. Aquino Correia).
…...................................................................................................................................
Os maiores amigos do Nazareno herdaram-lhe, com o espírito do divino
amor, também a humana intimidade com a natureza.
Francisco de Assis, Antônio de Pádua, José Anchieta, e tantos outros
conversavam com a natureza como se vivessem em terras de “Mil e uma
noites”, e, no entanto, viviam à luz meridiana da mais larga realidade. Mas esta
realidade era-lhes uma poesia imensa; pois, se Deus é Verdade e Amor, Deus
também é Beleza – e que outra coisa é a poesia senão Verdade, Amor e Beleza?
*
* *
A nossa Irene foi, desde pequena, uma cultora da natureza. Não fosse o seu
40
espírito tão profundamente cristão, quem sabe se não acabaria por entre as
névoas do panteísmo, adorando o Deus-Universo ou a Deusa-Natureza...
O seu “Diário de Amor” está repleto desses suaves colóquios com os seres
irracionais. Uma amiga surpreendeu-a, certo dia, a conversar com um besouro.
Sentada num banco de bambu, na fazenda paterna, seguia Irene atentamente os
trabalhos e canseiras de um garboso coleóptero ocupado em cavar um túnel ao
pé dum cajueiro. Irene fez-lhe mil e mil perguntas, estimulando-o a trabalhar
com afinco e perseverança, por ser esta a vontade do Criador. Consolou o
reluzente cascudo quando este, exausto e como que desanimado, suspendeu a
faina ingrata ao topar com uma enorme lage, obstáculo demasiadamente duro
para os frágeis instrumentos do miúdo sapador.
E não tinha ela razões para se enamorar da natureza?
Alma dotada duma grande vibratilidade psíquica, era filha dessas plagas
nordestinas que, a despeito do flagelo periódico das secas, respiram um quê de
indefinível encanto, uma fascinação mágica, uma poesia irresistível, a que
nenhum homem normal consegue subtrair-se inteiramente. É necessário ter
cruzado os sertões do Ceará, em tempo de inverno ou de secas; é preciso ter
sonhado nas brancas praias de Iracema ou Mucuripe, ter passado uma noite de
fantástico luar por entre os ciciantes palmares de Aracati e nos verdes paraísos
do Cariri, para sentir toda a sugestão hipnótica que essa nesga de terra brasílica
exerce sobre a alma do homem...
Não existe, talvez, filho do Brasil tão enamorado da sua terra como o
cearense. Afugentado pela seca, regressa pressuroso, mal lhe chegue a notícia
das primeiras chuvas. Tanto mais amor tem o homem ao seu torrão natal
quanto mais sofre por ele e com ele.
Irene, essa autêntica cearense, interrogada um dia qual a maior paixão da sua
vida, respondeu logo: “O mar”. Horas e mais horas costumava ela passear pelas
praias de Aracati e Iracema; muitas vezes sozinha, porque assim podia conversar
mais à vontade com a natureza e o Deus da natureza. Falava com as ondas, com
as espumas, com as conchinhas de mariscos, com os peixinhos, com as gaivotas,
até com as enormes ossadas de cetáceos que, aqui e acolá, interrompem com a
sua fantástica brancura a monotonia do vasto areal.
“O mar entusiasmava-a – refere Celita Gurgel, amiga íntima de Irene. - Toda
vez que o via abria os braços como se quisesse unir-se à sua beleza imensa,
exclamando: lindo! lindo! E procurava relembrar os sonetos que sabia de cor
para desabafar a sua grande emoção”.
Quando não estava em companhia de Celita, que era com ela um coração e
uma alma, preferia Irene passear sozinha. Sentava-se sobre um rochedo do
litoral e, com os olhos fitos na ondeante imensidade, cismava, cismava...
O homem sem mundo interior tem horror à solidão. Assim que lhe falte o
barulho da sociedade, sente-se mal, como que num deserto, no vácuo. Necessita
do ruído de fora para povoar a vacuidade do seu ermo interior. A ciência e
técnica dos últimos anos vieram em seu auxílio, canalizando para o silêncio das
vivendas solitárias, através do rádio, boa parte do ruidoso espalhafato das ruas e
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dos salões, preservando assim o homem moderno do perigo de estar umas horas
por dia consigo mesmo, a sós com sua alma... O homem, porém, que arquitetou
dentro do seu Eu um mundo de idéias e ideais, gosta de ficar, de vez em
quando, a sós consigo e seus pensamentos; não é misantropo, mas gosta de
espairecer longas horas nesse silencioso cosmos do seu interior, mundo que é
todo dele, obra sua, noite estrelada de sua alma, preludiando um universo eterno
e imortal...
Jesus, tão amigo da sociedade, não o era menos da noturna solidão do
deserto e das montanhas, como refere o Evangelho. Se a sua vida social era
povoada de grandes realidades, maior plenitude ainda revelava a solidão da sua
vida íntima.
Todos os verdadeiros discípulos do Nazareno são grandes amigos do
silêncio, da concentração espiritual, do mundo taciturno das grandes realidades
metafísicas.
É na solidão que eles encontram as energias para serem apóstolos da
sociedade.
E que exímia apóstola não era a jovem sonhadora de Aracati!...
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7. CORAÇÃO AFETIVO E ESPÍRITO JOVIAL
A alma de Irene era dotada duma intensa afetividade. Na família, porém, não
encontrou desabafo para o seu potencial afetivo, e como, por outro lado, não
queria entregar a um homem o seu coração, ligou-se pelos vínculos da mais
estreita amizade a uma sua companheira, por nome Celita Gurgel. É bem
verdade que, dia a dia, desafogava o coração nos colóquios ardentes ao pé do
Sacrário e numa indefessa atividade apostólica no meio das crianças pobres –
mas quem é lá tão espiritual e etéreo que, sem deixar de amar a deus sobre todas
as coisas, não sinta a necessidade duma afeição humana, honestamente humana,
humanamente honesta? Amizade sensível, suave, correspondência de carinhos e
afetos, que só um ser humano pode dar a outro ser humano? Para uma jovem
cheia de natural afetividade é quase impossível a vida espiritual sem essa parte
sensível.
Não faltaram, naturalmente, puritanos que malsinaram a amizade de Irene e
Celita. É possível que, a princípio, se tenha ela excedido em sentimentalismos.
Nos últimos anos, porém, se tornou duma pureza cristalina, sempre voltada
para os ideais religiosos e sempre mantida nos seus devidos eixos pela mão
invisível dessa grande e incompreendida mensageira de Deus – a Dor...
O sofrimento comum uniu as almas de Irene e Celita, assim como o ardor
duma fornalha une em uma só duas barras de metal fundidas ao fogo.
Quem és tu, águia de sublime espiritualidade, que, de vez em quando, não
sintas a necessidade de descer das cerúleas alturas do espaço metafísico e
repousar uns momentos na eminência de alguma montanha?
Se o próprio Cristo, segundo o testemunho do Evangelho, repousava, de
quando em quando, nas castas doçuras duma sincera amizade, passando horas
suaves no ambiente daquele trio de almas afetivas de Betânia – Lázaro, Marta e
Maria – com que direito proibiríamos a uma alma o lenitivo duma
correspondência afetiva com outra alma?
Não queiramos ser mais cristãos que o próprio Cristo, nem taxemos de
pecaminoso tudo o que é natural. A natureza é obra de Deus, e não do
demônio.
“Ocupai-vos em tudo o que é verdadeiro, digno, justo, santo, amável,
atraente, virtuoso ou digno de louvor” - escreve o apóstolo Paulo aos filipenses
(4,8), palavras que não foram revogadas até ao presente dia.
*
* *
“Em julho de 1929 – escreve Celita Gurgel, a grande confidente de Irene –
foi que Nosso Senhor nos afeiçoou pelo sofrimento”.
Amizade simpática, essa, que brota do sofrimento de duas almas.
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“Uma amiguinha minha – prossegue – tendo de partir para o Rio afim de ser
religiosa, lembrou-se de ir à casa de Irene pedir-lhe fosse minha amiguinha e me
consolasse com a sua dedicação.
Nesse tempo, Irene já não era mais uma moça mundana, mas, sim, uma
santinha Filha de Maria”.
Certo dia, aparece toda triste e acabrunhada. Perguntada pelo motivo,
explica a Celita que uma amiga íntima, à qual escrevera cartas cheias de
confiança e confidências, a atraiçoara, afeiçoando-se a outra companheira,
mostrando-lhe os escritos de Irene, zombando dela e ridicularizando-a diante da
amiga. Irene vai à casa da ex-amiga e reclama as cartas, ao que a outra responde,
por entre risadas de cinismo: “As tuas cartas? Colecionei-as num álbum”. E
mostra-lhas. Irene, num ímpeto de indignação, se atira à companheira para lhe
arrebatar o álbum, mas não o consegue.
Desde essa decepção, só confiava Irene em amigas que com ela orassem e
sofressem. Só a oração e a dor, diz, são fornalha bastante ardente para fundir
em uma duas almas humanas.
“A nossa amizade é filha da dor – repetia muitas vezes a Celita – enquanto
sofrermos juntas, seremos amigas verdadeiras”.
Durante as longas doenças de Irene, Celita não arredava pé da cabeceira de
sua ama. Quando todos fugiam da enferma, com medo do contágio da gripe,
Celita lá estava firme, como amiga, enfermeira e anjo tutelar.
“Desde que a encontrei – escreve – conheci-a doente, quase sempre gripada;
uma espirradeira terrível deixava-a exausta; pontadas agudas nos rins faziam-na
erguer da cama como se fosse por uma mola; palpitações e cansaço, às vezes
falta de ar”.
Habituara-se Irene a apelidar Celita de “mãezinha”, porque se desentranhava
por ela em desvelos e carinhos ao ponto de cair sem forças e próxima do
desmaio.
“Irene – diz Celita – sentia grande admiração pelas maravilhas da natureza.
Olhava com meiguice a pequenez das florzinhas silvestres. Encantavam-na,
sobretudo, as saudades brancas. Passando nós duas uma vez por um jardim
gradeado, avistamos um canteiro de lindas saudades brancas. Ela ficou encantada
e, como se fosse uma criança, segurou-se aos varões de ferro pedindo-me que a
deixasse ficar ali apreciando aquela lindeza – foi a sua expressão. Satisfiz-lhe a
vontade, admirando também aquelas saudades tão lindas. De repente, ela vira-se
e diz para mim: Mãezinha, quando eu morrer, quero que você plante muitas
saudades destas em meu túmulo, você promete? Isto foi justamente no ano da
sua morte, meses antes. Senti grande tristeza. Ela, notando que eu ficara triste,
abraçou-me dizendo: Perdoa, mãezinha, não quero te ver triste; eu te entristeci;
perdoa. Não, não quero morrer primeiro que tu, porque não sei de que serias
capaz; deves ir primeiro; sou mais forte e mais conformada.
Sempre que tomávamos por assunto a morte, a separação, eu chorava,
porque não queria conformar-me com a idéia de ficar sem ela. Irene então, para
me afastar daqueles pensamentos tristes, me fazia rir, dizendo: Não chores,
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mãezinha; eu não morrerei; vou ficar para semente, ou melhor, vou mudar o
meu nome para Maria, porque dizem que no fim do mundo fica uma Maria – e
pode ser que seja eu que fique, uma vez que você não quer me deixar e não quer
que eu morra”.
Dest'arte brincava com a morte.
Ao ler estes e outros episódios análogos, descritos por Celita Gurgel, tive a
visão suave duma outra jovem que também brincava com a morte e falava da
partida para o outro mundo como outras moças falam dum pique-nique à ilha
de Paquetá ou combinam uma excursão à Tijuca. Era Maria Desidéria, essa alma
toda humana e toda cristã, a nossa inesquecível Maria Desidéria, com a qual eu
conversava muito nos últimos anos da sua vida dolorosa, no Hospital de
Caridade, de Florianópolis. Altamente tuberculosa, aparecia à sala de visitas
aquela silhueta esguia e esbelta da nossa saudosa escritora, a sorridente mártir, a
graciosa autora de “Montanha acima” e “Irmãzinhas”. Um dia, disse-me, com
ares de grande novidade:
– Sabe duma coisa, Padre Huberto?
– Que é, D. Ida? 1
– Faça favor, não sou “D. Ida”, sou Maria Desidéria...
– Pois bem, Maria Desidéria, que há de novo?
– Daqui a dois meses vou-me embora.
– Embora, para onde?
– Para o outro mundo. Já tirei passaporte. Foi o Dr. Gotsmann que me deu
essa boa nova.
Daí a um ano, passando casualmente por Florianópolis, sub a íngreme
ladeira do Hospital de Caridade. E lá me aparece Maria Desidéria, sofredora e
sorridente como de costume, e me diz com aquela sua voz firme e suave:
– Nosso Senhor não me quer... Há um ano que estou com as malas
arrumadas, e Ele não me chama...
Uns meses antes da sua morte, Maria Desidéria estendida no seu leito mais
que singelo (paupérrima, nunca teve no hospital quarto próprio, vivendo e
sofrendo numa alcova de cortinados, da sala comum), escreveu a lápis o epitáfio
que desejava para a cruz do seu túmulo. Quem hoje visita o cemitério, no
morro atrás do hospital, encontra uma campa cercada dum gradil, e à cabeceira
uma cruz de ferro levando nos braços e no tronco estes dizeres: IN CHRISTO
SPES MEA – MARIA DESIDÉRIA (Em Cristo minha esperança – M.D.)
Povoam-me a memória estas visões de antanho quando leio as palavras com
que Celita Gurgel descreve a atitude de Irene em face da morte.
Será que se encontraram, nos mistérios do além, essas duas almas, a de Irene
e a de Maria Desidéria? Almas tão irmãs no ideal religioso, no sofrimento e na
sorridente serenidade de espírito?...
1 Ida Messeder era o seu nome verdadeiro, mas no mundo das letras todos a conhecem pelo pseudônimo de
“Maria Desidéria”.
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Quem morreu a morte mística do verdadeiro cristão – porque ainda temer a
morte física? Que surpresas pode ter a eternidade para quem vive no mundo
sem ser do mundo?...
Celita conservou-nos ainda os seguintes traços da fisionomia moral da sua
grande amiga:
“Irene não se preocupava com a moda, trajava com gosto e decência, mas
sem chiquismo. Não queria gastar grandes importâncias com um vestido, um
chapéu, etc; preferia gastar com as crianças pobres e com os vestidos dos seus
numerosos neo-comungantes de cada ano. De um dos seus últimos vestidos,
que a modista fez bem elegante e caro, ela não gostou; vestia-o só porque sua
mãe reclamava que seus vestidos já estavam marmotosos e fora da moda; Irene
vestia-o por obediência.
Ela era muito mal compreendida em casa nos seus sentimentos de piedade e
simplicidade.
Os pais implicavam porque ela não se pintava, não se fazia elegante, etc.
Ao que Irene respondia com admirável mansidão: Nosso Senhor me quer é
assim; eu não gosto nada de artificial.
E não guardava rancor das ofensas e indiretas que lhe faziam. Parece que
não tinha amor próprio.
Muitas vezes, para satisfazer os pais, apresentava-se nos salões de danças,
quando preferiria ficar em casa, lendo ou palestrando”.
“Meses antes de morrer” - refere uma amiga de Irene – ela contou-me, um
pouco triste, mas rindo-se, talvez para eu não levar a mal o que ia dizer: Sabes, a
mamãe hoje me disse ter vergonha de andar comigo na praça, porque estou
muito feia e amarela.
Achei isto o cúmulo, e quis ofender sua mãe com algumas indiretas; Irene,
porém, abraçou-me e, apertando o meu rosto em suas mãos para me fazer olhá-
la, disse: Tu me achas feia e amarela? E, dando um suspiro, continuou: Mais
escarnecido e desprezado foi Nosso Senhor”...1
“Era grande a sua alegria – conta Celita – ao passar dias no sítio São José, no
Cambeba. Fazia-se criança para melhor esquecer o mundo e gozar da felicidade
que sentia longe do bulício da cidade. Deitava-se na relva a brincar com os
cachorrinhos, gritava, ria, cantava modinhas, hinos sacros, fados portugueses, de
que gostava imensamente.
À noite, depois da ceia, deitava-se em uma rede, no alpendre, e punha-se a
cantar hinos a Nossa Senhora, hinos de Comunhão, com tanta expressão que
todos nós gostávamos de ouvir.
Da última vez que foi preparar as crianças para a primeira Comunhão, em
maio de 1936 (pois morreu em julho), cantou inúmeras vezes o Êxtase de Santa
1 Destas e de outras palavras análogas não se deve concluir que os pais tivessem tratado Irene com dureza. É
coisa natural e comum que uma pessoa de espiritualidade fora da bitola geral tenha os seus caminhos próprios,
não compreendidos pelos outros. Não diz, porventura, o Evangelho que a própria Mãe de Jesus não
compreendeu o procedimento de seu divino Filho quando este ficou no templo de Jerusalém? Ela, que era a
“sede da sabedoria”, a “rosa mística”, a “rainha de todos os santos”...
A compreensão das almas superiores é sempre póstuma...
46
Catarina e o cântico No céu com minha Mãe estarei.
No sítio temos uma vitrola, a qual Irene gostava de ouvir, e, como eu não
me atrevesse a fazê-la tocar, ela, mangando de mim, punha-se a dar corda no
veio, dizendo a papai que eu tinha medo de quebrar a corda e levar um carão;
mas ela nem tinha esse medo; se quebrasse, mandaria consertar. Gostava muito
dos discos do Jararaca e de fados portugueses. Tinha um disco que ela não se
cansava da ouvir e acompanhar com mímicas para mim, cantando:
São teus olhos de esperança,
Feiticeiros, cor do mar,
Quem tem amor é criança,
Eu sou criança só por te amar.
Apreciava os discos clássicos e dançava-os, sozinha, com muita graça e
simplicidade, até cansar, caindo nos meus braços. Tinha um espírito alegre e
levado ao alto; não queria saber de tristeza, porque dizia: a tristeza é do
demônio.
Pelo carnaval, Irene não deixava de cantar e dançar ao som do rádio; bastava
ouvir tocar para dar logo um ar da sua graça, inventando versos com a mãezinha
(isto é, comigo) e procurando fazer-me dançar também. Isto fazia as
empregadas e todos os mais rirem-se às gargalhadas e gostarem da presença de
Irene”.
47
8. AUSTERIDADE E CARIDADE
Quem visse Irene em Cambeba, quem a conhecesse apenas através das suas
brincadeiras, comédia e bailados, dificilmente adivinharia na alma dessa jovem
um elevado potencial espiritualista, um espírito de ascese austera que, já nesse
tempo, formava o ponto característico da sua personalidade.
Austeridade sem aspereza.
Ascese sem pedantismo.
Espiritualidade sem intolerância.
Já dissemos que Irene gastava o seu ordenado de professora em benefício
dos pobres e das crianças; que lecionava de graça para grande número de
analfabetos ou semi-analfabetos; que vendia as suas jóias para comprar vestidos
e brindes para as crianças indigentes; que sacrificava as horas de descanso, tão
necessárias ao seu organismo frágil, para confeccionar roupinhas ou procurar
menores abandonados nos arredores de Aracati, Mecejana e Fortaleza.
O seu misticismo eucarístico tinha um cunho de dinâmica apostolicidade.
A sua aliança com o nome de Jesus Cristo não era uma simples formalidade
sentimental; ela, de fato, conquistava almas para seu divino Esposo e esgotava-
se na ampliação do seu reinado social sobre a terra.
E fazia tudo isto rindo, brincando, cantando – e até dançando...
A sua imolação diária sobre a ara do sacrifício não era acompanhada das
elegias fúnebres do Miserere, mas, sim, das alegres clarinadas do Aleluia ou dos
acordes solenes do Te-Deum...
“Servi ao Senhor na alegria do vosso coração, porque a um servidor alegre é
que Deus tem amor” - estas palavras da Bíblia foram fielmente cumpridas pela
risonha sofredora do Ceará.
Ouçamos alguns episódios característicos narrados por uma testemunha
presencial, Celita Gurgel:
“Trouxeram-lhe uma vez uma pequena de 7 anos, mais ou menos, órfã e
doente. A cabeça era uma ferida só, a exalar mau cheiro. As próprias
empregadas da sua casa, cachimbo ao queixo a soltar fumaças, não queriam por
as mãos na cabeça da pequena, com nojo. Irene, penalizada da criança, tratou de
terminar as aulas mais cedo, afim de fazer o tratamento da doente antes do
almoço, não ligando ficar com o estômago revoltado de ver as feridas
pustulentas. Lavou-as com asseptol, depois untou-as com uma pomada. E
repetia todos os dias o curativo. Com pouco tempo, a garotinha ficou boa.
Na nossa catequese do Cambeba, Irene cortava as unhas e os cabelos das
crianças e mandava-as tomar banho, dando-lhes sabão e toalha para se
esfregarem.
Fazia questão de assistir às crianças pobres. Arranjava-lhes purgante de
vermífugo, que mandava vir do Centro de Saúde. Entretinha-se e distraía-as com
48
brinquedos e gestos engraçados, e assim as fazia tomarem o óleo com
facilidade.
Gostava de entrar nas choupanas dos pobres, para melhor avaliar a pobreza
de Jesus e agradecer com mais fervor o conforto que Deus lhe concedia”.
*
* *
Quem alguma vez leu o livro encantador “Maggy”, e cotejar com ele os
heroísmos caritativos de Irene, encontrará uma surpreendente semelhança entre
a jovem belga e a simpática brasileira. Ambas professoras, ambas de família
abastada, e ambas duma espiritualidade dinâmica cheia de luz, de amor, de
envolvente simpatia. É que a caridade é internacional, e a virtude é tão universal
como o cristianismo, como a própria humanidade. Onde quer que exista o
genuíno espírito de Cristo aí cantam belezas espirituais.
Irene, filha de família abastada, professora, hábil dactilógrafa, diretora da
“Escola Remington Oficial”, não tinha, certamente, necessidade de se dedicar
aos humildes misteres domésticos, tanto mais que renunciara ao pensamento de
fundar família. E, no entanto, foi estudar e exercer arte culinária e todos os
demais trabalhos caseiros – porque? Em parte para poder melhor servir a seus
semelhantes, em parte, e sobretudo, porque, Filha de Maria, queria conhecer de
ciência própria os trabalhos domésticos que Maria Santíssima exercera durante
longos anos na casinha humilde de Nazaré, no Egito, por toda a parte.
Quantas moças de hoje se julgam dispensadas de conhecer praticamente
como se tempera uma feijoada ou se remenda um vestido, e outros misteres de
dona de casa! Mesmo filhas de famílias pobres e que não estão em condições de
pagar empregada... Sabem bater sofrivelmente as teclas dum piano, fazer rendas,
croché, bordados, pinturas, conhecem um pouco de literatura francesa – e
pronto! Julgam-se habilitadas para enfrentar as lutas da vida...
Mas, principalmente no terreno espiritual, que enorme diferença entre o
feitio moral dessa sorridente apóstola do Catecismo, dessa heróica enfermeira
da miséria anônima – e milhares de jovens que, dia e noite, enchem as avenidas
e os salões, para exibir as “últimas conquistas da moda”, para ouvir os
galanteios banais dos rapazes ou apreciar o estafado chavão das paixões
humanas nas telas dos cinemas!...
Umas e outras se dizem católicas, mas, aos olhos de Deus, o catolicismo de
umas deve ser tão diverso do das outras como a noite difere do dia ou uma
árvore de Natal ornada de ocas frutinhas de celulóide difere duma planta viva
carregada de frutos que brotaram do seu interior...
*
* *
“No ano de 1934 – conta Celita – terrível sezão assolou Cambeba.
49
Estávamos passando lá uma temporada, quando soubemos que um preto velho,
morador, se achava muito doente da tal sezão com a família. Irene ficou logo
muito aflita, porque o pobre velho morria sem confissão. E, rompendo terra
quente e sol ardente, à 1 hora da tarde fomos visitar os enfermos. Encontramos
todos prostrados, a velha, duas filhas e uma neta. Além da doença, era a fome, a
sede, porque nenhum deles podia se levantar para buscar um pouco d'água, e
comida não havia mais.
O velho, deitado em uma rede suja a rastejar o chão, mal falava.
Irene mandou logo que eu voltasse para avisar ao papai e mandar chamar o
Vigário de Mecejana para dar ao velhinho a Extrema-Unção; arranjar com a
mãe uma rede para o doente, vela e crucifixo; café e comida para o resto do
pessoal, que estavam famintos.
O Vigário confessou-os, ministrou-lhes os Sacramentos. Três dias depois, o
velho morre, e uns dias mais segue-o a velhinha. Irene sentiu muito não ter
assistido ao velho quando morria, porque eu me achava doente de sezão
também”.
*
* *
“Todas as crianças da catequese do Cambeba – continua Celita – gostavam
muito de Irene. Para todas tinha ela paciência e carinho. Quando as repreendia
por se comportarem mal, era com mansidão para não as desgostar.
Achava interessante quando num grupo de crianças havia dois, três nomes
iguais; conforme o físico da criança, ela punha um apelido, que as fazia rirem-se:
Raimunda comprida... Raimunda redonda... Manoel caboré (este tinha uns olhos
muito grandes...)1
Manoel bochudo … Mariazinha...
Nenhum se zangava com o apelido; todos achavam graça, porque queriam
bem a Irene.
Irene gostava das crianças e sabia fazer-se pequena com os pequeninos.
Tinha um grande espírito de sacrifício. Apesar de doente, mortificava-se,
fazia novenas de penitências, alcançando sempre a graça que pedia. Tinha a
mania de escrever a palavra sacrifício; bastava ter um lápis à mão, nem precisava
de papel, porque escrevia na palma da mão.
Rezava muito, tanto de dia como de noite. Fez com Jesus um contrato no
sentido de que o sono também fosse aceito como oração. Depois de mudar de
roupa, sentava-se na cama ou ajoelhava ao pé dela, cruzadas as mãos sobre o
peito e cabeça baixa, fazia fervorosa Comunhão espiritual. Depois beijava o
crucifixo e a medalha de Filha de Maria. Jamais se separava do seu crucifixo; dia
e noite conservava-o sobre o coração. Segurou-o entre as mãos até expirar,
imprimiu-lhe o último beijo...
1 Caboré, ou caburé, é o nome popular da “scops decussata”, coruja do Brasil tropical, munida de orelhas e com
os olhos muito abertos e redondos. Vê-se por este apelido o espírito de observação da jovem cearense e amiga
da natureza.
50
Também não tirava do dedo a sua aliança de noiva de Cristo.
Irene usava sempre esse anel, que levava gravado o nome: Jesus Cristo.
Algumas pessoas tomavam essa aliança por um noivado mundano. Este símbolo
facilitava a Irene o trabalho de afugentar certos pretendentes, alguns deles bem
apaixonados. Contra um deles, mais ousado, viu-se obrigada a usar de toda a sua
energia, reforçada pela sombrinha, com a qual investiu contra o maluco, como
me contou sorrindo.
Certo dia, na Escola Remington, que ela dirigia, um rapaz estudante notou
aquela aliança no dedo de Irene, mas, não a vendo nunca com noivo, ousou
perguntar: D. Irene, o seu noivo mora aqui? Mora, sim – respondeu a jovem. E
como é que eu nunca o vi aqui? - tornou o rapaz. Ao que Irene, sorrindo
misteriosamente, respondeu: Oh! pois o meu noivo não sai de perto de mim; o
senhor não o conhece? Dizendo isto, apresentou-lhe o lindo anel. O estudante
tomou-o e leu: Jesus Cristo. E acrescentou: Eu logo vi que só mesmo podia ser
Este...
51
9. OS RETRATOS DE IRENE
Seria trabalho interessante estudar a evolução espiritual de Irene pelos
numerosos retratos do seu álbum. Emprestou-me a mãe algumas dessas
fotografias, e convido os leitores – ou antes, as leitoras – a estudarmos o
itinerário psíquico de Irene à luz da sua fisionomia, das atitudes e da
indumentária.
O retrato na fl. 21, propriamente, não faz parte da nossa galeria, porque
aquela criança de 3 aos é somente o germe da Irene que nos interessa. Naquele
tempo vegetava apenas a parte física, mas dormia ainda a alma da jovem
cearense, da cristã, da heroína da caridade, da grande amiga de Jesus-Hóstia.
Em 1925 vivia Irene ainda, como a maior parte das suas companheiras, nas
cidades e nos campos, essas jovens que se dizem católicas, mas cuja vida se
move nas planícies rasteiras das banalidades sociais, do flirt, dos bailes, dos
cinemas, dos passeios pelas avenidas, nas praias, pensando em romances,
namoros, beleza física e outras vacuidades.
Contemplemos o retrato de Irene na fl. 22: vestido decotado e sem mangas,
e, o que é bem mais sintomático, ela mesma com um semblante inexpressivo,
vulgar, de moça sem idéias nem ideais, sem introspeção nem vida superior.
O retrato da fl. 33 não permite um estudo mais acurado; não aparecem as
feições de Irene. Em pé, na proa duma respeitável embarcação, atravessa o rio
Jaguaribe, por ocasião duma enchente; com uma larga fita segurando o cabelo,
para poder trabalhar à vontade, empunha o pesado remo, disposta a lutar contra
os elementos, assim como, mais tarde, enfrentaria intrépida as invisíveis
potências de Satanás.
No próximo ano, aos 20 anos de idade (fl. 32), aparece em trajo mais
decente, espécie de uniforme, mas ainda sem expressão nem alma no semblante,
fisionomia neutra, rosto de moça que ainda não adivinhou, para além do oceano
da vida material, a estupenda América das grandezas de Deus. Também, como
descobrir esses mundos incógnitos, se ela não tinha a coragem de se afastar das
praias seguras e fagueiras das suas comodidades de cada dia?... Para descobrir a
América das realidades espirituais é necessário ter alma de Colombo e, a
despeito de toda a prudência dos homens sensatamente rotineiros, atirar-se ao
infinito, arriscar o “salto mortal” para o incógnito e lançar-se, com divina
audácia e temeridade, para além do horizonte das nossas experiências pessoais.
A fé supõe sempre um “salto mortal” para essas misteriosas regiões, que aos
profanos parecem um vácuo, mas onde os iniciados encontram a plenitude de
todas as realidades.
A fé é a academia dos espíritos fortes e audazes – a incredulidade é um asilo
de inválidos para almas aleijadas...
Em 1929 (retrato do frontispício), temos Irene, sentada num rico sofá, com
52
Huberto Rohden - Irene
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Huberto Rohden - Irene

  • 1.
  • 2. Irene, aos 23 anos de idade 2
  • 3. 3
  • 4. Às beneméritas apóstolas do Catecismo em todos os Estados do Brasil, oferece e dedica esta biografia duma exímia e admirável catequista brasileira. O AUTOR 4
  • 5. ALMA DE LUZ Irmã do Salvador, no sofrimento, Ria-se sempre, na tribulação... E era tão grande o seu contentamento, No princípio e no fim da Comunhão! E Jesus era o seu doce alimento. Veio ao mundo, de certo, p'ra ser boa... Alma feita de luz e de piedade, Legou tudo o que tinha à caridade; E, ao receber dos anjos a coroa, Na pátria além, na santa eternidade, Terá seu prêmio a imagem da bondade, E su'alma cantando aos astros voa. 5
  • 6. NOTAS PRÉVIAS A expressão “santa” ou outras equivalentes, que empregamos nestas páginas e em prospetos avulsos, para designar o caracter de Irene, devem ser entendidas de conformidade com o espírito da igreja, a cujas decisões nos sujeitamos incondicionalmente. As seguintes notas biográficas baseiam-se sobre documentos originais deixados por Irene – máxime os 10 volumes do seu “Diário de Amor” - documentos postos gentilmente ao nosso alcance pela família da extinta. Item, cartas do seu último diretor espiritual, bem como diversos apontamentos particulares de antigas companheiras de Irene e de pessoas da sua família. Nos pensamentos e colóquios de Irene, contidos nas seguintes páginas, foram conscienciosamente respeitados os originais. Modificamos apenas a ortografia e uma ou outra construção gramatical; por via de regra, a fraseologia de Irene é correta, chegando, por vezes, a ser elegante e poética. Pessoas que se recordarem de episódios da vida de Irene, dignos de serem publicados, queiram comunicá-los, devidamente especificados à “Cruzada da Boa Imprensa” - Caixa Postal 3.371 – Rio de Janeiro. 6
  • 7. 1. ROMANCE OU VIDA DE SANTA? Vicejam nas plagas tropicais do Brasil umas flores agrestes que, de tão singelas e pequeninas, escapam à atenção dos homens da ciência e à classificação dos profissionais; não figuram em nenhum tratado de Botânica; não se encontram prensadas em nenhum herbário, nem mesmo são cultivadas nas tépidas estufas da Europa, essas florzinhas anônimas. Só as conhece o rude sertanejo, identificado com a Natureza virgem, aquele herói incógnito que Euclides da Cunha tão admiravelmente fotografou na sua obra imortal. É duma dessas florzinhas silvestres, leitor amigo, que falam as páginas do livrinho que tens entre as mãos – história de uma modesta florzinha humana, bem nossa, bem brasileira. * * * “Irene” não é romance nem vida de santa. É simplesmente a história ultra- singela de uma menina brasileira, duma jovem cearense, que viveu três decênios à sombra dos carnaubais, trabalhando e orando, sofrendo e sorrindo, cantando e conversando ingenuamente com o seu “querido Jesus”, por entre o silêncio nostálgico do sertão e o discreto marulhar das águas do Atlântico. “Irene” narra as humildes grandezas duma donzela dos nossos dias que, na espontânea naturalidade da sua grande alma, sacrificou os seus amores de moça ao amor dum bando de crianças pobres, esfarrapadas, analfabetas, famintas do pão de cada dia e sedentas do “Deus desconhecido”... “Irene” é a silenciosa epopéia dum coração feminino que, por entre lágrimas e sorrisos, renunciou à fundação do seu larzinho querido, afim de poder ser mãe a centenas de alminhas órfãs e dar-lhes aquilo que uma sorte adversa lhes negara. É o drama duma alma cheia de idealismo que, como ela mesma diz no seu “Diário”, “sacrificou a sua mocidade, os gozos do mundo, e escolheu o isolamento do coração por amor de Jesus”. Com esta breve notícia poderíamos encerrar a biografia de Irene. Entretanto, força é que digamos mais um pouco dessa jovem cearense de olhos clarividentes, que sempre pareciam contemplar alguma luminosa realidade para além dos horizontes atingidos pelos outros mortais. O que aí vai não é suficiente para saciar os leitores ávidos de sensações – mas é talvez demais para a modéstia da biografada, que, qual Verônica, escolhia sempre as penumbras do incógnito e o silêncio do esquecimento para praticar os seus heroísmos anônimos. Irene não viveu por entre as paredes protetoras dum convento. Passou a 7
  • 8. existência bem à beira da estrada, dessa prosaica e profana estrada de cada dia, exposta a todas as intempéries, batida de todos os ventos, empoeirada pelas areias do deserto, flagelada pelas tempestades do mundo. E, no entanto, conservou a sua alma sempre esse fulgor divino que todos admiram em silêncio, mas que ninguém compreende nem define. É fácil, relativamente, ascender às culminâncias da espiritualidade por entre os muros defensores dum claustro, auxiliado pela disciplina benéfica do regulamento, amparado pela suave sugestão do silêncio, revigorado pela meditação quotidiana; mas exige sobre-humano heroísmo levar uma vida intensamente espiritual em plena sociedade, nas ruas e nos salões, no lar e na escola, por entre as seduções dos homens e no meio das brilhantes misérias dos escravos dos sentidos. Irene passou a sua breve existência como Maria Santíssima, como Salomé, como Marta e Maria, como Madalena, como Verônica, como tantas outras discípulas do Nazareno, que não abandonaram o mundo para servir a Deus. É humano viver para a sociedade e esquecer-se de Deus. É belo abandonar a sociedade e viver para Deus. É heróico viver em plena sociedade e ser todo de Deus, afim de erguer os homens à altura da Divindade. Irene soube realizar em sua vida este estranho paradoxo: ser toda de Deus e toda do próximo. O seu “reino”, embora estivesse no mundo, não era deste mundo. Toda serafim do amor de Deus – e toda querubim da caridade humana. Toda mística – e toda apostólica. Toda contemplativa – e toda ativa. Toda introspectiva – e toda social. Toda Maria – e toda Marta. Irene é bem a “santa Teresinha” e a “Maggy” do Brasil – contemplativa como aquela, como esta dinâmica. Essa jovem cearense, aureolada duma risonha espiritualidade, sentia-se tão bem no meio da algazarra dum bando de crianças como na sugestiva penumbra da capelinha do Santíssimo. Só o Tabernáculo lhe tornava suportável a sociedade – e só a caridade social justificava o seu amor a Jesus-Hóstia. Lecionava dactilografia na “Escola Remington Oficial”; batia as fazendas e os arredores do Aracati e Fortaleza, à procura de alminhas infantis – mas o seu coração ardia sempre ao lado da lâmpada do Sacrário... Irene, pode-se dizer, passou pelo mundo incompreendida, como um ser de outro planeta, como um espírito de outros mundos menos imundos que o nosso. Sempre com um abismo de martírios dentro da alma – e sempre com uma primavera de sorrisos à flor dos lábios. A exemplo de Santa Teresinha do Menino Jesus, não abria mão do Evangelho. Era-lhe o inseparável complemento da Eucaristia. O Cristo histórico do Evangelho e o Cristo eucarístico do Sacrário – eis os dois pólos 8
  • 9. sobre os quais girava toda a espiritualidade dessa alma privilegiada. A Eucaristia vivificando as páginas do Evangelho – e o Evangelho esclarecendo o silêncio do Tabernáculo. Receber o corpo de Cristo à Mesa Sagrada e beber o espírito de Cristo nas páginas bíblicas – eis o que Irene considerava vida cristã completa, profunda, feliz. * * * Não se pode propriamente escrever uma biografia de Irene. Vai através de toda a sua vida um grande mistério. Atraída por duas forças antagônicas, oscilava a sua alma, incerta, até que, nos últimos anos, encontrou sossego definitivo, experimentando em si mesma a profunda verdade deste suspiro metafísico de Santo Agostinho: “Fizeste-nos para vós, Senhor, e irrequieto está o nosso coração até que descanse em vós”... * * * Irene usava sempre aliança de noiva – e, no entanto, nunca foi noiva, por mais numerosos que fossem os seus pretendentes. Porque? para despistar os rapazes?... Vai um quê de graça e beleza nas árduas renúncias dessa jovem... Certo dia, na “Escola Remington”, que ela fundara e dirigia com grande competência, um estudante, vendo o anel no dedo de Irene, perguntou-lhe ingenuamente: – D. Irene, o seu noivo mora aqui? – Mora, sim – respondeu ela, sorrindo. – E como é que eu nunca o vi? – Oh! o sr. não conhece meu noivo? ele não sai do meu lado... E mostrou-lhe, com ares de mistério, a aliança, que levava gravadas as palavras: “Jesus Cristo”. – Ah! - disse o rapaz – eu logo pensei... Só mesmo Este... * * * Passava a jovem, um dia, pelas ruas de Fortaleza, quando viu, numa altura, um lindo bungalow a branquejar no meio de espessa ramaria e com uns ares tão alvissareiros, que Irene parou por uns momentos, embebida na contemplação daquele sonho de fadas – e duas lágrimas indiscretas lhe rolaram pelas faces... Não revelou a ninguém o motivo dessa subitânea emoção, mas foi à igreja, ajoelhou à penumbra da capelinha do Santíssimo e fez a Jesus esta singela 9
  • 10. confidência: “Meu querido Jesus. Passei hoje pela rua tal e vi uma linda casinha – e chorei... Tu sabes porque... Podia ser minha...” Era o larzinho de um dos ex-pretendentes de Irene, cujo amor ela sacrificara por causa daquele bando de crianças maltrapilhas que tinham tanta sede de Jesus e não contavam senão com ela para as conduzir ao divino amigo de infância. São encantadoras certas páginas do seu “Diário de Amor”1 , onde ela se entretém com Jesus e lhe fala das “nossas crianças”. Certo domingo, aparece-lhe em casa um dos seus pretendentes mais pertinazes. Queria que Irene ficasse conversando com ele. A jovem escusou-se delicadamente, porque, nessa tarde, tinha que atender a umas aulas de Catecismo, no fundo das caatingas e mangueiras do litoral. Agastou-se o rapaz e fez acerbas recriminações à mãe sobre o gênio esquisito da filha. Irene, depois de terminar o Catecismo, vai ter com Jesus e lhe diz: “Imagina, meu querido Jesus, hoje esteve em nossa casa fulano e queria conversar comigo sobre casamento. Ele é muito bom rapaz, bem colocado, piedoso e simpático; mas que seria das nossas crianças, Jesus, se eu fosse dele?”... Irene, depois de vencido o seu período de mundanismo, tornou-se uma dessas almas peregrinas para as quais o mundo do espírito é mais real e palpável que o mundo da matéria. Realizou dentro do seu Eu uma completa inversão de valores: o espiritual é tudo, ao passo que o material não passa duma sombra vaga e sem importância, “um punhado de lixo”, como diria o apóstolo Paulo. Conversava com Jesus, tratando-o sempre por tu, com a mesma naturalidade como se fala com um amigo visivelmente presente. Se Irene não tivesse levado uma vida tão intensamente apostólica e não fosse triturada no lagar de acerbos sofrimentos, teria talvez a sua ascese degenerado em sentimentalismo estéril, ou até numa espécie de erotismo ascético, como acontece a tantas almas femininas. Irene, felizmente, nunca chegou a esses piedosos excessos. Não obstante a grande familiaridade com que trata a Jesus, não se esquece jamais de que ele é nosso Senhor e Soberano, ao qual compete infinito respeito. Os trabalhos e as dores preservaram-na dessas funestas aberrações sentimentais. * * * Agora sabes, leitor amigo, se este livro é um romance ou uma vida de santa. 1 “Diário de Amor” são 10 volumesinhos, de umas 200 páginas cada um, escritos à mão, que encerram as confidências íntimas de Irene com Jesus-Hóstia. Escreveu-as nos últimos anos da sua vida. Não se destinavam ao público, esses livrinhos; mas o seu diretor espiritual, ao qual Irene os entregou pouco antes da morta, confiou-mos para conhecer o espírito dessa jovem e extrair deles o que possa ser de proveito para outras almas. 10
  • 11. 2. QUEM ERA IRENE? Investigar a genealogia, esmiuçar os dados biográficos duma pessoa é sempre tarefa ingrata e amesquinha, não raro, a grandeza real do biografado. A parte externa, o ambiente histórico duma personalidade humana é para seu verdadeiro Eu o que os andaimes são para um edifício. Não atingem o valor interno da pessoa. Entretanto, força é que bosquejemos ligeiramente a história da nossa heroína. * * * Irene Costa Lima Valente, abriu os olhos à luz da vida na cidade de Aracati, litoral do Ceará, no dia 8 de Maio de 1906. Foram seus pais Alfredo Gurgel de Lima Valente e Maria Costa Lima Valente. Não consta que o seu nascimento tenha sido assinalado de fenômenos preternaturais, como se lê nas crônicas de certos servos de Deus. Ninguém enxergou misteriosos clarões sobre a casa paterna. Nenhum enxame de abelhas se lembrou de construir na mãozinha da recém-nascida um doce favo de mel. Nem Irene recusava o alimento em dia de sexta-feira ou sábado, em honra da paixão de Cristo ou da Virgem Santíssima. Nada disso aconteceu. A nossa nenezinha chorava e ria, comia e esperneava como todas as demais filhas d'Eva, nessa quadra inerme da sua existência. * * * Quarenta dias depois do seu nascimento físico – no dia 18 de junho – resolveram os pais e padrinhos levar a pequena à igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, da mesma cidade, para que recebesse aquela vida nova da qual o divino Mestre deu tão profunda instrução ao doutor da lei, Nicodemos, naquele memorável colóquio noturno em Jerusalém: “Quem não nascer de novo pela água e pelo Espírito Santo não pode entrar no reino de Deus”... Foi oficiante no ato do batismo Mons. João Luís Santiago, Vigário de São Bernardo das Russas, que nessa ocasião se encontrava em Aracati. * * * Decorreu a infância de Irene como a da maior parte das crianças. Passava 11
  • 12. todos os anos alguns meses no sítio “São José”, propriedade de seu avô materno. No dia 26 de Dezembro de 1913 passaram seus pais a residir na fazenda do “Cajueiro”. Nessa época já tinha Irene dois irmãozinhos: Laís e Alfredo. Mas, antes de continuarmos a falar em Irene, convém que demos um giro pela magnífica fazenda do “Cajueiro”. Propriedade dos antepassados da família Costa Valente, pertence hoje aos pais de Irene. Situada à margem do Jaguaribe, perto do antigo Fortim, dista de Aracati uns 15 quilômetros e oferece uma vista deslumbrante sobre o mar. Uma estrada de automóvel atravessa grande parte do terreno, passando por uma extensa ponte de carnaúba. É a conhecida “ponte de Canavieira”. Em quadra de inverno rigoroso, tornam-se intransitáveis os caminhos, e viaja-se então de canoa ou jangada pelo rio Jaguaribe. Numa das fotografias deste livro (fl. 33) aparece Irene, já moça, em pé numa canoa, empunhando o pesado remo, disposta a lutar com as águas barrentas que, numa das grandes “cheias” do inverno, se arrojam impetuosamente às ondas do Atlântico. O “Cajueiro” era, e é ainda hoje uma verde solidão, sítio, fazenda e casa de campo, possuindo vasto carnaubal, como também um terreno próprio para salinas. A casa é grande, antiga, do tipo daquelas confortáveis vivendas rústicas de outrora, quando a espontânea liberdade do homem ainda não se cultivara ao ponto de se engaiolar na civilizada estreiteza dum palacete, bungalow ou apartamento de dois metros. Localizada entre o rio e os morros, estava a casa da fazenda toda cercada de mangueiras, cajueiros, sapotizeiros, coqueiros, etc. Mais além, verdejava uma extensa plantação de cana de açúcar, com o tradicional engenho à entrada. Pertencem à propriedade cinco ilhas, situadas na foz do Jaguaribe. Chamam- se: Ilha Grande, Mosqueiro, Emas, Molungú e Caldeireiro. Fica esta última completamente isolada, ao passo que as outras se ligam por pontes à terra firme. Todas as ilhas oferecem ótimo terreno para plantação, sobretudo para verduras, hortaliças, etc. As ilhas Grande e Caldeireiro são destinadas à criação de gado. O “Cajueiro” e arredores veio tornar-se um dos cenários das silenciosas proezas apostólicas e humanitárias de Irene. * * * Em 1913, aos 7 anos de idade, começou a menina a penetrar pela porta do abc nos mistérios da literatura. Não frequentava escola, nesse tempo, mas estudava em casa, com a mãe. Afirmam os que nesse tempo a conheceram que Irene era uma criança muito sensata, obediente e cumpridora dos seus pequenos 12
  • 13. deveres. Gostava imenso da vida do campo. Era amiga da natureza, das aves, das flores, dos bichinhos. Nunca, nos anos posteriores, foi esta predileção pelo ambiente rural suplantada pelo gosto da vida citadina. Irene andava sempre alegre e bem humorada, embora gozasse de saúde precária. Propensa para as coisas espirituais – e onde se viu cearense que o não fosse? - encontrava singular satisfação em acompanhar os atos religiosos, sobretudo a solenidade do mês de Maio, que se celebrava com grande fervor na fazenda do “Cajueiro”. * * * No dia 24 de Fevereiro de 1920, com quase 13 anos de idade, fez a sua primeira Comunhão, na capela do Fortim, em companhia de seus dois irmãos, Laís e Alfredo. Foi a mãe que os preparou para esse ato solene, precedido de um Retiro Espiritual de três dias, pregado por Mons. Bruno Figueiredo, Vigário de Aracati, que para lá fora com este fim. Entretanto, não se pode afirmar que a vida eucarística de Irene date desta época. A sua alma, parece, dormia ainda para as grandes realidades do “Deus em nós”. Só daí a cinco anos é que devia despertar definitivamente do seu semi- consciente letargo – letargo do qual muitas moças não despertam nem à hora da morte... * * * Em Janeiro de 1921, com 14 anos, veio Irene para Fortaleza em companhia de sua irmã Laís, afim de se matricularem no “Colégio Imaculada Conceição”, dos Irmãos de São Vicente de Paulo. Laís internou-se, ao passo que Irene, devido ao seu estado de saúde, ficou residindo em casa de seu avô paterno, Pompeu Ferreira da Costa Lima. Passados alguns meses, voltou para a fazenda do “Cajueiro”, onde continuou os seus estudos. Tinha então mais dois irmãos: Marisa e Dario. Em fins de 1922 passaram seus pais a residir na cidade de Aracati, e Irene começou a lecionar como professora particular em casa de D. Francisca Clotilde. Contava 15 anos. Era moça. E, como todas as moças, começou a frequentar a sociedade, em companhia de seus pais e de sua irmã Laís, quando esta vinha passar as férias em casa. Por esse tempo, teve Irene o seu primeiro romance, que parece ter empolgado com bastante veemência a alma sensível da jovem. Novos mundos descortinaram-se-lhe aos olhos... Horizontes ignotos abriam os seus mistérios... 13
  • 14. Não tardou, porém, a entrar em conflito com seus pais, por causa desse namoro. E a resistência de Irene acabou, finalmente, em desistência... Teve ainda nos anos subsequentes diversos amores, alguns deles bem de molde a levá-la ao paraíso da felicidade, humanamente falando. Não parece, todavia, ter pensado seriamente em casar. Uma voz misteriosa lhe dizia que o seu “lar” seria diferente dos lares que suas companheiras iam fundando, cheias de otimismo e de fagueiras esperanças... Já nesse tempo, começou Irene a sentir, embora vagamente, a existência de dois mundos dentro de si, duas forças antagônicas que se digladiavam nesse silencioso campo de batalha e fariam do resto da sua vida um drama de estranha beleza e enigmática incompreensibilidade... Toda alma humana é um microcosmo, um universo por si, um mundo original, uma obra inédita, um cosmos mais vasto e misterioso do que as incomensuráveis regiões que se espraiam para além dos espaços sidéreos da via- lactea... Não existem duas almas inteiramente iguais, e por isso é impossível que uma compreenda cabalmente a outra. As obras de Deus são todas originais inéditos. Deus não fabrica mercadorias em série como os homens. Não faz cópias ou duplicatas. A sua inteligência é assaz poderosa para conceber sempre novos modelos numa variedade infinita; e o seu poder é bastante grande para realizar de modo original e único as suas idéias. Neste mesmo ano começou Irene a ser um enigma para a sociedade e até para pessoas da sua família. Eram os prelúdios da futura espiritualidade. Os prelúdios, porque não se pode dizer que Irene fosse propriamente espiritual, embora acompanhasse, como a maior parte das jovens católicas, os atos cultuais, frequentasse os Sacramentos, assistisse à Missa e fizesse o seu Retiro anual. Todos esses atos externos não excluem necessariamente a rotina e superficialidade religiosa a que muitas pessoas chamam “religião”. Pode-se acompanhar externamente esse “catolicismo”, e não possuir a alma do Cristianismo. A milhares de “católicos” - por mais paradoxal que isso pareça – a religiosidade dificulta a prática da Religião... Só no dia e na hora em que a alma vive o seu encontro pessoal com Deus é que principia propriamente a sua vida espiritual. O homem que ainda não viveu e sofreu a sua “hora de Damasco” ignora o que seja religião, por mais numerosos que sejam os livros piedosos que tenha lido. Para Irene não tinha soado ainda a hora bendita do seu “encontro pessoal com Deus”. * * * No ano 1925, sentindo-se melhor, veio para Fortaleza, onde passou três anos, residindo em casa de sua avó paterna e aperfeiçoando os estudos. 14
  • 15. Ensinava de graça as primeiras letras a numerosas crianças pobres. Gostava muito de dar aulas de Catecismo. Filha da “terra da luz”, parecia predestinada a espargir por toda a parte abundância de luzes intelectuais e espirituais. Era também muito hábil em trabalhos manuais e lavores artísticos: bordados, pinturas, croché. Confeccionava todos os anos grande número de vestidinhos para crianças pobres. Pelo Natal armava lindos presépios e achava imenso prazer em oferecer uma farta mesa de doces e presentinhos aos garotos que não figuravam na lista de visitas de Papai Noel. Já nesse tempo se acentuava a nefrite crônica, que, daí por diante, nunca mais abandonaria o corpo de Irene. Data de 1925 a alvorada espiritual dessa alma – e principia também neste mesmo ano o seu Calvário de cada dia. Parece que vigora uma secreta relação entre a espiritualidade e a dor. Paulo de Tarso, mal chega a conhecer a Cristo e abrasar-se do seu amor, tem de ouvir logo essas palavras: “Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer por meu nome”... O homem que pouco pensa e pouco ama – pouco sofre. O sofrimento cresce na razão direta da compreensão e do amor das coisas de Deus. Contudo, é um sofrimento suave e mil vezes mais digno do homem do que todos os prazeres do mundo. É uma doce amargura – uma amarga doçura... “Ano Santo” é o título que a Igreja deu ao ano jubilar de 1925 – e Irene o apelida de “ano santo” em virtude da sua conversão da matéria para o espírito. Só Deus sabe o que, nesse ano, se passou na alma da jovem. O seu “Diário” reflete um quê dessa primeira etapa da sua espiritualidade, mas não nos diz tanto quanto desejaríamos saber. Até então costumava Irene vestir com vaidade, e, não raro, com falta de decência cristã. Gostava de saias curtas, grandes decotes, ausência de mangas, etc. Monsenhor Liberato, seu tio, chamou-lhe um dia a atenção para essas inconveniências; mas a sua “maneira estrompa” (expressão de Irene) irritou a mocinha em vez de corrigi-la; só o amor, como ela dizia à sua amiga Celita Gurgel1 , é que era capaz de a converter. 1 Historiando a vida de Irene Valente, não podemos deixar de dizer duas palavras da sua mais íntima amiga e inseparável companheira – Celita Gurgel, que tantas vezes aparece nas páginas deste livro. A exemplo de Irene, sacrificou também Celita a sua saúde e mocidade, o seu tempo e os seus recursos, à grande causa do apostolado da infância. Foi Celita que, em fins de 1937, me acompanhou à casa da mãe de Irene (o pai já faleceu), em Fortaleza, à rua Senador Pompeu. Acompanhou-me, mas quase em silêncio. De luto permanente pela morte de amiga, caminhava ao meu lado, ensimesmada, abstrata, como se nada mais a prendesse a este mundo. Falei longamente com a mãe de Irene e com uma irmã dela. D. Maria, senhora distintíssima, calma e espiritual como Irene, pode considerar-se feliz por ter dado ao Ceará, ao Brasil e ao céu uma filha como essa. A ela e à heróica Celita, os mais efusivos parabéns e sinceros agradecimentos do autor deste livro. 15
  • 16. Mas ainda no mesmo ano, no dizer de Celita, Irene “sepultou os seus defeitos”. Dera-se o “encontro pessoal” entre Deus e a alma de Irene... O resto é mistério... Não se modificou, com essa mudança interna, a vida externa da jovem. Apenas começou a enxergar todas as coisas sub specie aeternitatis, como dizem os ascetas. Propensa aos trabalhos literários, como é, geralmente, o nordestino, intensificou ainda mais os seus estudos. Teve um ótimo professor de português na pessoa do Dr. Antônio Augusto, ao qual, como ela diz, “deve todo o seu saber”. Irene era muito benquista na melhor sociedade de Fortaleza. Tinha numerosas amiguinhas, graças a seu gênio alegre e divertido. A sua jornada ascensional, das planícies da humana mediocridade para as montanhas de Deus, em nada lhe prejudicou a natural jovialidade. * * * Por algum tempo, no primeiro fervor da espiritualidade, pensou em abandonar a sociedade e entrar para o claustro. Em Guaramiranga, onde esteve alguns dias a passeio, têm as Irmãs Franciscanas um convento, no qual uma prima de Irene fazia o noviciado. Aquela vida tranquila e contemplativa afigurava-se-lhe o céu na terra. Quem contempla de longe uma roseira florida não lhe enxerga senão a magnificência das flores, e nada percebe dos agudos espinhos que andam ocultos por entre as belezas... Muita jovem encanta-se pelo ramalhete de rosas brancas e vermelhas que a santinha de Lisieux aperta ao coração – e muitas se esquecem de que no meio das flores negreja um crucifixo de ares dolentes... Entretanto, não foi por medo das dificuldades inerentes à vida claustral que Irene deixou de tomar o véu de freira. Deus conduziu-a insensivelmente por outros caminhos. Queria-a como apóstola em pleno mundo, como Verônica a meio caminho do Calvário. “Verônica” era precisamente o nome que Irene escolhera dantemão para o caso de professar na vida religiosa. Achava lindo este nome: Irmã Verônica. Vai também nisto um delicado simbolismo da sua alma: a Verônica do Evangelho – ou antes da via-sacra – é a personificação da caridade ativa, humilde, despretensiosa, que só quer prestar benefícios sem se deliciar nos elogios do mundo. A caridade, quando genuína, é, por assim dizer, anônima, como anônima é aquela grande e corajosa benfeitora do divino Mártir, à meia altura do Gólgota; “Verônica” é apenas um apelido que lhe deram, ao passo que o nome próprio dessa mulher nos é desconhecido. Era, pois, este o ideal de Irene: a caridade ativa, humilde, anônima. 16
  • 17. * * * Em 1927, com 20 anos, regressou para Aracati, a que ela chamava “terra do exílio”. Lecionava aulas particulares - “Escola Santa Irene”, como a crismou. Fundou em Aracati a “Escola Remington Oficial”, onde conferiu diploma de dactilógrafa a numerosas alunas. A “festa da formatura” era sempre uma grande solenidade. (Veja-se a fotografia na fl. 72). Passava as férias em Fortaleza, e em dezembro de 1932 veio morar em casa duma sua tia, na capital, donde não mais voltou. 17
  • 18. 3. O CARÁTER E OS IDEAIS DE IRENE É costume entre as moças do Ceará organizarem questionários – ou, se quiserem, testes – sobre certos pontos de interesse e apresentar às suas amigas esses formulários para as competentes respostas. Entre os manuscritos deixados por Irene, encontram-se nada menos de três desses questionários. Um é de 1924, outro de 1931, e o terceiro de 1932. Em muitos pontos coincidem esses documentos, divergindo em outros. Representam os referidos testes preciosos subsídios para caraterizar a índole e as aspirações da sua autora. Vamos transcrever, na íntegra, o primeiro desses formulários, datado de 7 de agosto de 1924, quando Irene tinha 17 anos, último ano da sua “vida profana”: “Qual a tua divisa? Ser simples. A tua paixão dominante? O mar.1 O teu sonho de felicidade? A felicidade dos meus. Qual seria a tua maior desventura? Ver alguém infeliz por minha causa. O que quiseras ser? Imortal nos corações dos amigos. Como quiseras viver? Sendo útil a todos. Como quiseras morrer? Em estado de graça. A tua ocupação favorita? Ler. A tua principal qualidade? A discrição. O teu principal defeito? Não saber dissimular. O que mais detestas? A falsidade. O que mais te entristece? As despedidas. O que te falta? Atualmente nada.2 O país onde quiseras viver?^Este, que é meu. És feliz? A felicidade é uma quimera. És sincera? Penso que já tenho dado provas disto. Tens amigos? Tenho. A qualidade que preferes no homem? O caráter a par da delicadeza. A qualidade que preferes na mulher? A meiguice e a bondade. O tipo masculino que mais te agrada? Moreno claro, olhos e cabelos negros. O tipo feminino que mais te agrada? Esbelto e louro. Os olhos que mais aprecias? Negros e ternos. Os erros que merecem a tua indulgência? Os do coração. Quais são os heróis que mais admiras? A vítima do dever. Qual festa que te fez saudades? O pique-nique de 16 de dezembro de 1923. O amor existe? “Perfeito” - só na flor.3 Que pensas do flirt? Ridículo. 1 “Paixão dominante”, em linguagem ascética, quer dizer, o defeito principal; Irene, porém, a toma no sentido de: entusiasmo mais forte. 2 E, no entanto, estava ela quase sempre adoentada e acabava de sofrer a sua primeira decepção amorosa. 3 Engenhoso jogo de palavras sobre o “amor-perfeito”, uma das flores da sua predileção. 18
  • 19. Que dizes do beijo? A mais doce carícia. Que dizes do ciúme? É um estado doentio da alma. Devemos perdoar? Perdoar, sim, esquecer, nunca. Pensas em casar? Não há tempo para isso.1 Os teus escritores prediletos? Os que fazem pensar. Os teus poetas prediletos? Os que tocam o coração. A tua poesia predileta? “O Palhaço”. O instrumento que preferes? O violino. As flores que preferes? As que têm perfume. A cor que preferes? O branco. O esporte que mais te atrai? Observar as maravilhas da natureza.2 Que dizes da dança? Um bom exercício. O animal que preferes? Os pássaros cantores. A tua maior preocupação? Cumprir o meu dever. O teu passatempo favorito? Relembrar o passado. * * * O teste de 1931, isto é, o sexto ano após a sua compreensão espiritual, difere em muitos pontos do anterior e revela interessantes faces do caráter de Irene, sobretudo nos campos centrais da vida, onde se ferem as batalhas decisivas entre o indivíduo e a personalidade. O tipo feminino da sua predileção continua invariavelmente, como em 1924, com um quezinho de sabor ariano: “esbelta e loura”, enquanto o tipo masculino passou, de “moreno claro, olhos e cabelos negros”, para - “nenhum”... O seu sonho de felicidade, que em 1924 era “a felicidade dos meus”, cristalizou-se nesta frase digna duma Teresa d'Avila: “renunciar a tudo serenamente”. “Serenamente” - é bem notável este advérbio! Ao quesito: “qual o teu apelido?” deu ela esta encantadora resposta: “Nazarena”. Com efeito, já nesse tempo vivia Irene mais em Nazaré, naquela humilde oficina do divino adolescente, do que nas plagas do Ceará. É uma das mais tristes verdades que as nossas moças de hoje – e fossem apenas elas! - ignoram, por via de regra, os fatos íntimos do Evangelho, a vida de Jesus Cristo. Irene é uma feliz exceção da regra. Faz lembrar Santa Teresinha do Menino Jesus, que não passava um dia sem ler ao menos uma página do sagrado Evangelho. Ninguém sabia como Irene contar as cenas maravilhosas de Belém, de Nazaré, de Cafarnaum, do Genesaré, do Calvário. É neste conhecimento profundo dos livros sagrados que está o segredo das suas catequeses, que eram escutadas com avidez pelas crianças e pelos adultos. Irene vivia identificada como a vida de Nosso Senhor, e por isso podia dar aos outros da abundância da sua própria riqueza interior. Não podemos transmitir aos nossos semelhantes 1 Uma das frases que mais caracterizam o espírito de Irene. 2 Outra resposta bem de Irene. 19
  • 20. senão aquilo que possuímos vitalmente. Assim como a mãe não transmite ao filho as qualidades superficialmente adquiridas – porque estas não têm base nas células germinais – senão somente aquilo que é da sua íntima natureza humana e feminina, assim também, na geração espiritual, não podemos dar aos nossos filhos espirituais senão aquilo que é real e intimamente nosso. Não basta que uma verdade religiosa seja pensada ou estudada; para poder ser comunicada, tem de ser vivida e sofrida. Só o que eu vivi e sofri é o que está no centro do meu Ser; o resto fica na periferia. É necessário que as verdades espirituais nos penetrem a alma, mergulhem nas profundezas do nosso Eu, se abismem no oceano da nossa psique pessoal, que vivam a nossa vida, que padeçam as nossas mágoas, que solucem os nossos desenganos, que rejubilem com as nossas alegrias, que amem com o nosso coração, que vibrem com os nossos nervos, que estremeçam em as nossas angústias; - numa palavra, é mister que as aéreas e longínquas realidades do espírito se encarnem dentro de nós e se personalizem em o nosso Eu. Os grandes heróis da vida religiosa, os homens de projeção secular, viviam e sofriam as suas espiritualidades, e, uma vez firmados nesse “ponto de Arquimedes”, situado fora do mundo material, movimentavam universos e criavam maravilhas de grandeza e sublimidade. Por esse tempo, começou Irene a viver e sofrer a sua fé – e foi precisamente por isto que ela se tornou uma exímia catequista – por ser uma perfeita “nazarena”.1 * * * Outra pergunta desse segundo questionário: “Como te desejarias chamar?” Resposta: “Irmã Verônica”. Como dissemos, Irene andava com a idéia de professar na congregação das Irmãs Franciscanas de Guaramiranga, e já escolhera, para este caso, o lindo nome “Verônica”. Queria, a exemplo daquela heroína do Calvário, enxugar a face de Cristo, do Cristo padecente através dos séculos na pessoa de tantos sofredores do corpo e ainda mais sofredores do espírito... Bem compreendera Irene o sentido daquelas palavras: “O que fizerdes ao menos dos meus irmãos, a mim é que o fareis”. Mesmo sem o nome de “Verônica”, desempenhou mil vezes o papel de Verônica do Gólgota, aliviando nos seus Calvários a tantos irmãos de Jesus Cristo, prestes a desfalecer sob o peso da sua cruz... 1 Já se achava no prelo este livro sobre a heróica apóstola do Ceará, quando das plagas nordestinas nos veio a alvissareira notícia de que o governo do Ceará baixara um decreto oficializando a leitura do Evangelho nos estabelecimentos de ensino. Ceará docet! Não nos furtamos ao pensamento de que Irene, essa grande amiga e assídua leitora do Evangelho, lá das regiões da Verdade e da Vida, esteja patrocinando a causa de Jesus Cristo na “terra da luz”. Deixaria ela de ser apóstola do Evangelho no céu, quando o foi tão ardentemente na terra?... 20
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  • 23. “Como quiseras morrer?” “Unida a Jesus e nos braços de Maria”. A tua verdadeira vocação?” “Isto deve ficar em segredo”. “Que pensas do flirt?” Em 1924 respondera simplesmente: “Ridículo”. Agora, em 1931, escreve: “É uma prova de pouco juízo”. De vez em quando vem uma sentença profundamente filosófica. À pergunta: “Que é a vida?” dá Irene esta resposta de sabor platônico e espírito pascalino: “É um bordado do qual nós vemos somente o avesso”. Irene era mestra em bordados artísticos. Vê-se por esta sentença que, enquanto os seus dedos manejavam a agulha e a linha, não lhe ficava inativo o espírito, descobrindo maravilhosos simbolismos onde outras jovens nada percebem. “Que é o amor?” “É uma asa que nos leva até Deus”. “O amor existe?” “Sim, tão certo como existe Deus”. Por estas duas respostas se conclui que Irene, nesses cinco ou seis anos, andara às voltas com os livros sagrados e lera nas Epístolas de São João esta frase tão bela quão verdadeira: “Deus é amor”. Em 1924, interrogada se o amor existia, respondera, com ares de pessimista desiludida: “perfeito – só na flor”. Naquele tempo não conhecia outro amor senão esse pobre sentimento humano que muda com a idade, os humores do sangue e as disposições dos nervos; agora, porém, lhe despontou aos olhos um novo universo de luz: o amor espiritual, o amor eterno, o amor de Deus. “Que dizes da dança?” Da primeira vez achara-a “um bom exercício”, ao passo que agora prefere responder: “Não digo nada, mas não gosto dela”. “Qual a tua opinião sobre a moda?” “Preocupa-me pouco esta senhora”. É bem o humorismo e o gênio alegre de Irene. “Como achas mais suave viver?” “Servindo e amando a Deus”. Eis a Irene espiritual e apostólica! “És feliz?” Que distância enorme entre o doloroso suspiro schopenhaueriano de 1924: “a felicidade é uma quimera”, e a jubilosa afirmação cristã de 1932: “sou mais feliz do que mereço, graças a Deus”! A maior desventura do homem, dentro do âmbito da vontade de Deus, é sempre maior felicidade do que o máximo prazer fora dessa vontade – disto se convencera Irene nos últimos anos, e por isso é que vivia sempre tão alegre no meio dos seus sofrimentos e das incompreensões dos seus. “Pensas em casar?” Daquela vez dera a jovem cearense uma resposta evasiva a esse quesito: “não há tempo para isso”, ao passo que agora vem com uma repulsa categórica: “não, Deus me livre de tal coisa!” É que, entrementes, lera e meditara o capítulo VII da primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios e penetrara no sentido profundo das palavras: “Quanto às virgens, não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, um conselho como quem merece confiança, por ser agraciado do Senhor. Entendo que, por causa da presente tribulação, é bom elas ficarem assim (virgens)... A mulher não casada e a virgem cuidam das coisas do Senhor e procuram ser santas de corpo e alma; ao passo que a casada pensa nas coisas do mundo e 23
  • 24. procura agradar ao marido. Digo isto para o vosso bem, porque me interesso pelos bons costumes e por uma desimpedida entrega ao Senhor”. * * * O psicólogo não pode deixar de reconhecer, pelo cotejo dessas duas auto- caracterizações, os rastos de uma incessante evolução em linha ascendente. A acendrada espiritualidade de Irene do último decênio de sua vida é o fruto maduro de um contínuo esforço e uma decidida educação de si mesma. O santo não nasce – forma-se. * * * Num terceiro questionário, de 20-7-1932, lemos estas frases, que projetam luz abundante sobre o caráter e os ideais de sua autora. “Qual a tua paixão dominante?” “A Eucaristia”. Vai enorme distância do “mar” (resposta de 1924) à “Eucaristia”. A panteística enamorada da Natureza tornou-se a cristianíssima adoradora do Deus do Universo, encerrado pelo próprio amor na migalha infinita da Hóstia... A partir daí, o “Diário de Amor” de Irene vem repleto de transcrições e paráfrases dos livros: “Alma Eucarística”, “Albores Divinos” e “Poesia de Jesus”1 , obras pelas quais ela costumava fazer as suas leituras e meditações quotidianas. À pergunta sobre a sua “ocupação favorita”, ela não dá mais, como anos antes, esta resposta tão esteticamente humana: “ler”, mas, sim, a resposta genuinamente apostólica: “ensinar o Catecismo”. À interrogação romântica: “quais os olhos que mais aprecias?” dá uma resposta igualmente romântica: “os que sabem falar”. “Quais os músicos que preferes?” O leitor civilizado espera, naturalmente, ouvir palavras de alta cultura, como Beethoven, Carlos Gomes ou Chopin. Irene, porém, prefere aos músicos humanos os cantores de Deus, respondendo: “Os pássaros do campo”. “Qual o esporte que mais te atrai?” “Passeios à praia”. As obras de Deus, as maravilhas da natureza, os trabalhos dos homens – é nesta sucessão que Irene classifica os valores da vida, à luz da razão e da fé. E não tinha razão? 1 Obras do P. Huberto Rohden. Nos últimos tempos andava Irene à procura do livro intitulado “Jesus Nazareno”; morreu, porém, sem o teor encontrado em Fortaleza. “Irene gostava muito dos livros do Padre Rohden, cujos pensamentos tanto concordavam com as ânsias do seu espírito”. (P. Tiago, diretor espiritual de Irene). 24
  • 25. 4. NOS RASTOS DE DIANA Contempla, prezado leitor, a fotografia da fl. 61. No fundo, uma esplêndida mangueira; à direita, uma senhora; de cada lado, um garoto com chapelão de palha; ao meio, uma creoulinha sentada ao pé – de quem? Ao pé duma jovem com um enorme chapéu de palha à cabeça e empunhando uma respeitável espingarda de caça. Não é que a sua atitude, a arma e o chapéu de aba levantada na frente fazem lembrar o famoso “Lampeão” de temerosa memória? E se eu dissesse agora aos meus leitores que essa arrojada caçadora é a nossa espiritualíssima Irene, ninguém me daria fé. Pois, a verdade é esta. Havia na fazenda do “Cajueiro” e nos arredores de Aracati extensas matas e descampados, que formavam o eldorado de toda a espécie de caça. Antes que amadurassem as áureas espigas dos milharais, enormes bandos de gárrulos papagaios costumavam pilhar as fartas roças do litoral cearense. Gordas capivaras atravessavam o rio Jaguaribe e estabeleciam nas plantações do sr. Costa Valente e vizinhos o regime do mais completo comunismo, segundo o princípio adotado no mundo zoológico: Tudo o que é teu é meu. De vez em quando, emergia das águas barrentas do grande rio a cabeça lisa duma lontra sagaz, à espreita duma galinácea que, por ventura, descansasse, incauta, à sombra do espesso canavial – e era uma vez uma galinha... Mas ai desses intrusos se andasse por aí a gentil discípula de Diana!... Irene conhecia-lhes todas as manhas e artimanhas... Gostava de caçar e chegou a ser ótima atiradora. Defendia assim de muitos inimigos traiçoeiros a fazenda paterna. É possível que essas propensões cinegéticas roubem à jovem cearense as simpatias de não poucos leitores – ou melhor, de certas almas ultra-sentimentais que desmaiam ao verem uma gota de sangue e revelam-se legítimos hindus na sua mórbida zoofilia, a qual consideram como a quintessência da virtude e caridade. Deus criou para utilidade dos homens as plantas e os animais. Pode o homem servir-se deles a bel-prazer. Não deve, certamente, matar só pelo gosto perverso de matar, e muito menos maltratar algum animal. Mas pode eliminá-lo quando o aconselham os interesses honestos da sua vida e prosperidade. Usar – sem abusar. Irene, por mais delicados que fossem os seus sentimentos e por mais apurada a sua caridade, teria sido incapaz de levar nos braços e amimar como uma criança um cachorrinho de luxo. Vestir de seda e veludo um animal, comprar para ele finais iguarias, mandar-lhe fazer uma caminha de madeira do Pará com imbutidos artísticos, e, para cúmulo de aberração sentimental, fazer- lhe um cemitério próprio e levantar-lhe um monumento de mármore, a exemplo do que fazem certas damas excêntricas da moderna sociedade – disto 25
  • 26. seria incapaz a alma natural de Irene. Encontrasse, porém, nos seus caminhos uma criança pobre, um garotinho abandonado, um doente coberto de chagas – logo lhe despertava na alma o mais vivo interesse e a mais ativa solicitude por esses seus irmãos em Cristo. Respeitar os animais e as plantas – é justo e nobre. Amar, porém, só podemos a um ser racional. A zoofilia de certas damas da nossa sociedade supõe uma psique profundamente adulterada, um sentimento desviado dos trilhos naturais duma sadia e sensata racionalidade. Nos últimos anos da sua vida, gastava Irene regularmente quase todo o seu ordenado de professora com a aquisição de roupinhas para crianças pobres. Era duma liberalidade que faz lembrar a largueza de espírito de Maggy Lekeux, essa donzela admirável que fez mais pela solução da questão social na Bélgica e no resto do mundo do que centenas de legisladores e milhares de sociólogos. Irene, depois daquele seu “encontro pessoal com Deus”, vestia com extrema simplicidade. Desfez-se de quase todas as suas jóias, em benefício das crianças pobres e de obras pias. Assistia à Missa diariamente, comungava, e costumava à tarde fazer a sua visita ao Santíssimo. E, no entanto, essa jovem de alta espiritualidade sabia ser ao mesmo tempo essa simpática discípula de Diana, essa gentil caçadora a romper impetuosa pelas matas do nordeste e jogar-se, possivelmente, às águas do Jaguaribe para atravessá-lo a nado. Vede-lhe a atitude característica: segurando a espingarda com ambas as mãos, espia pela ramaria da mangueira, donde ouve partir um ruído – os caçadores costumam ter o ouvido muito apurado. Daí a momentos, ecoa pelo silêncio do pomar o estampido de uma aguda detonação – e aos pés da intrépida Diana tomba o alado intrujão que, certamente, não contava com a destreza daquela piedosa Filha de Maria e inteligente diretora da “Escola Remington Oficial”... 26
  • 27. 5. TEM A PALAVRA IRENE Já é tempo de darmos a palavra à nossa heroína. Ela, é certo, falará em toda a segunda parte deste livro; mas convém que diga, desde já, algumas daquelas coisas suaves e espirituais que, dia a dia, confidenciava com o seu “querido Jesus”. Há um grande inconveniente em publicar diários íntimos, confidências espirituais e, sobretudo, solilóquios eucarísticos, como estes. Apanhar uma dessas lindas borboletas das nossas florestas – borboletas que mais parecem sonhos e sopros do que seres materiais – é o mesmo que roubar-lhes grande parte dos seus encantos, destruir-lhes o tenuíssimo pó das asas velatíneas e reduzir assim essa etérea poesia ao prosaísmo dum objeto de museu. Toda e qualquer virtude, quando exibida em público, mesmo com a melhor das intenções, perde 50% da sua natural beleza e do seu envolvente fascínio. O simples fato de ser dito em voz alta, ou até estampado grosseiramente em letra de forma (que horror!), aquilo que, quando muito, devia ser segregado à meia- voz, constitui uma verdadeira profanação, quase um sacrilégio... O “Diário de Amor”, de Irene, não foi escrito com o pensamento na publicidade. Se não fosse com o intuito honesto e apostólico de dar proveito a uma ou outra alma, jamais me atreveria eu a expor em praça pública o que essa jovem cantou e gemeu discretamente à luz vermelha da lâmpada do Santíssimo e no silêncio do seu gabinete de estudos. Perdoa-me, portanto, Irene, e lá das celestes alturas, onde, como espero, contemplas o meu humilde trabalho, fala às almas que, porventura, lerem estas tuas intimidades eucarísticas. * * * Tenho diante de mim um dos volumes do “Diário de Amor”, em cuja primeira página se acha colada uma linda estampa em sépia, representando o Sagrado Coração de Jesus, e debaixo dele, do punho de Irene, as palavras: “Meu Jesus, eu sou tua - e de mais ninguém”. Depois duma sugestiva poesia e uma fervorosa consagração do novo ano, escreve Irene, com data de 1º de janeiro de 1931, quinta-feira: “Jesus, neste primeiro dia do ano, todos se cumprimentam e desejam uns aos outros toda a sorte de felicidade. E a ti, Jesus, ninguém se lembra de desejar nada. A única pessoa, talvez, que se lembrava de te desejar felicidades já não vive nesta terra. 27
  • 28. Quero eu te consolar pelo esquecimento destes teus amigos e te desejo um Ano Novo repleto de felicidade. Em que consiste a tua felicidade? Em receber as homenagens dos teus servos e o amor dos teus amigos? Pois bem, Jesus, eu faço votos para que neste ano recebas muitas homenagens e atos de amor. Faço votos para que se batizem muitos pagãos e convertam muitos infiéis, se regeneram muitos pecadores e se consagrem a ti muitos corações, e se povoem os conventos. Faço votos para que se calem os blasfemadores, para que cessem as injúrias e os ultrajes da Rússia, para que apareçam vocações e haja sacerdotes cheios de zelo que te consolem o coração. São estes, neste primeiro dia do ano, os votos do coração amigo da tua serva”. Logo na alvorada deste ano de 1931, trava Irene conhecimento com a dor. Cai de cama com forte gripe e tosse. No dia 5-1-31 escreve: “Ó Jesus, quanto é triste um dia sem te receber! Que sofrimento para o meu coração que anseia por ti!... É o primeiro dia deste ano que vou passar com saudades de ti; e quantos dias iguais a este não serei obrigada a passar, meu Jesus!... Quanto me custa passar sem ti!... De todas as dores que trazem consigo os resfriamentos, a pior de se suportar é a tua ausência. Como poderei sair para a tua casa, ó Jesus, se estou doente? Depois, sempre que saio, apanho chuva, e ela me faz tanto mal!... Se a chuva não fosse tão necessária, eu te pediria que a não mandasses. Mas, Jesus, se eu não fui pessoalmente te receber, fui espiritualmente; aceita a minha boa vontade e dá-me a paz, aquela paz que os anjos prometeram no dia do teu nascimento, aos homens de boa vontade”. No dia 6-1, festa dos Santos Reis, continua Irene a sua ingênua tagarelice com Jesus, como se fizesse parte da comitiva dos magos e estivesse de joelhos diante do Menino em Belém: “Jesus, hoje, dia santo, não me foi possível ir à Missa. Um dia santo sem Missa! Que tristeza! Mas tu quiseste assim, não foi, Jesus? Porque mandaste tanta chuva? Resigno-me, porque sei que é a tua vontade. E, já que não pude ir te visitar como os Reis magos o fizeram, fiz a minha visita espiritual a ti, loura criancinha, que vieste ao mundo para a minha salvação. Nada tendo para te ofertar, nem ouro, nem incenso, nem mirra, eu te ofereci, meu Jesus, o meu sofrimento, as minhas dores, os meus suspiros, as palpitações do meu coração, que te pertence... E tu os aceitaste, ó Jesus, estou bem certa disto, peço-te que não abandones a tua amiguinha, que não a deixes muitos dias sem te receber; pois ela contigo pode tudo, mas sem ti não pode nada. 28
  • 29. 7-1 – noite - quarta-feira Meu Jesus, eu sou toda tua, e demais ninguém. Como eu te amo, Jesus! Hoje tive a felicidade de te receber. Como és bom! Não mandaste cuva para que eu pudesse visitar-te, não foi, Jesus? Estavas com saudade de mim? Eu tive tantas saudades de ti! Eu, Jesus, é natural que tenha saudade de ti; porém, teres saudades de mim, não será presunção minha? Não é, já sei, Jesus! Embora tenhas aos teus pés as tuas queridas amigas, não te esqueces de mim, a mais indigna, aquela que mais te fez sofrer, a quem muitas vezes perdoaste, mais benefícios fizeste. Os abismos se atraem, meu Jesus: o abismo da minha miséria atrai o abismo da tua misericórdia.1 Viste como te provei o meu amor, Jesus? Fui, hoje à tarde, te visitar. E tu, que conheces tudo, devias ter visto o estado em que me achava. Cansada de andar, exausta de tossir, o corpo feito em suor, os pés doridos; mas fui a ti, fui te visitar e encontrei nisto grande consolação. Não, não poderia deixar de ir, meu Jesus!” Todos os pensamentos de Irene giram perenemente em torno do Tabernáculo, qual enxame de abelhas em volta duma flor. Acordando, em plena noite, vem-lhe logo, instintivamente, a lembrança de Jesus-Hóstia: 9-1 – sexta-feira “À noite, quando acordo tossindo e que não posso dormir, o meu principal pensamento és tu, Jesus. Esta noite, quando o relógio da Sé bateu meia-noite, o meu espírito foi te visitar e te encontrou tão sozinho, naquela igreja tão deserta e tão escura, tendo por companhia a franca luz da lâmpada. Onde estavam, meu Jesus, todas aquelas virgens que, à tarde, te fazem tão fiel e amorosa companhia? Dormiam – e tu estavas só!... Velando por nós... pensando em nós!... Francamente, Jesus, tive pena de ti, e te agradeci o teres ficado prisioneiro por nosso amor. 10-1-31 – sábado Meu Jesus, estou pior. A minha natureza quis se revoltar, tive vontade de chorar; mas, ao pensamento de que era esta a tua vontade, eu me acalmei. Não, Jesus, não me revolto. Mas até quando sofrerei esta doença? Os santos não pediam alívio para as suas dores – e eu quero ser santa, meu Jesus, mas falta-me a coragem. Jesus, sinto-me tão fraca, tão cansada. Esta dor de garganta é horrível!... Não a queres trocar pela tosse? Eu te agradeceria tanto! Tem piedade de mim, Jesus!... Se tivesse comungado hoje, estaria mais forte. Não me abandones, Jesus meu! 1 Linda paráfrase e aplicação das palavras da Sagrada Escritura: abyssus abyssum invocat. 29
  • 30. 11-1-31 – domingo Jesus, como passei mal esta noite! Não tiveste pena de mim? Quase não dormi... nem podia também pensar em ti. Era tão grande o sofrimento... Mas, Jesus, parece que fiquei um pouco queixosa contigo, por não teres feito a troca. Que fraqueza esta minha, não é, Jesus? Tenho tantas faltas a expiar, e aborreço-me quando me envias o sofrimento que me serviria para isto”. Recordando o que escrevera naquele questionário, dando o “mar” como a sua “paixão dominante”, Irene pergunta a Jesus se aquilo não era tolice. 13-1-31 – terça-feira “Estive me lembrando, Jesus, de que sempre respondo nos livros de confidências que a minha paixão dominante é o mar. Não será isto um disparate, meu Jesus? Que fez o mar para merecer o meu amor? Não, Jesus, gosto do mar, mas não direi outra vez que ele é a minha paixão dominante. A minha paixão dominante agora será Aquele que fez o mar, para satisfação dos meus olhos”. * * * Irene possui o dom singular de tornar concretas e intuitivas as coisas espirituais, tão vagas e metafísicas aos nossos sentidos. No dia 16 de janeiro, quando, de certo, ainda estava armado o presépio do Natal, ela comunga, e depois discorre deliciosamente assim: “Meu Jesus, que fervorosa Comunhão fiz hoje!...Agora que estás no meu coração, que nele entraste como uma criancinha de poucos dias, eu te ofereço este coração transformado num bercinho macio. Não, Jesus, não será meu coração uma manjedoura fétida de palhas ásperas para magoar o teu inocente corpinho. Minha Mãe, o teu filhinho está no meu coração, que hoje é seu berço. Vem velar o seu sono. Não me deixes ser má, para não molestar o teu filhinho, para não fazê-lo chorar. 17-1-31 – sábado Ontem, meu Jesus, eu te prometi um berço macio; mas estou certa que encontraste neste berço dois espinhosinhos que te fizeram sofrer. Um foi não ter eu rezado o terço com atenção; e o outro, a minha visita da tarde, que deixei de fazer-te. Jesus, por uma visita a uma amiga faltei à tua. Mas consola-te, Jesus, pois tu sabes que tu és o preferido. Não fui porque me descuidei, e anoiteceu. Hoje, Jesus, eu serei uma flor, um lírio, que a tua Mãe te ofereceu para brincar. Não afastes de ti a tua flor, Jesus, aconchega-te sobre o coração, não a 30
  • 31. desprezes, pois que te foi oferecida por tua Mãe. Não tenhas medo, a tua flor não terá espinhos que te piquem os dedinhos, verás... Ó Jesus, ensina-me a ser lírio”. * * * No dia imediato, prosseguindo nos seus simbolismos, escreve: “Hoje, meu Jesus, quando vieste a mim na Comunhão, eu te ofereci o meu coração transformado num pombinho branco. Esta avezinha é muito inquieta, meu Jesus; por isto é preciso que tenhas o máximo cuidado. Segura, ó Jesus, o teu pombinho branco, não o deixes voar à toa, não o deixes pousas nas criaturas. Por muito tempo, ele voou de criatura em criatura; agora é teu, pousou em ti, no seu Criador, onde quer ter o seu ninho. Aperta-o sobre o teu coraçãozinho e faze-o adormecer ao calor do teu amor. Nada receies, Jesus meu, o teu pombinho será doce e amoroso. Ontem, a tua flor não te picou, meu Jesus, embora tenha tido suas distrações na visita e no terço; foram todas involuntárias. E os esforços feitos para estar com atenção não te agradaram, Jesus?” 31
  • 32. 32
  • 33. 33
  • 34. * * * Seguindo com os olhos as brancas nuvens de incenso que se evolam das brasas ardentes do turíbulo, durante a benção do Santíssimo, Irene suspira por ser um turíbulo assim, cheio de ardor e que faça subir o incenso odorífero da adoração. No dia 19-1 escreve no seu “Diário de Amor”: “Jesus, meu coração é hoje um turíbulo, do qual deve subir para ti uma nuvem de incenso, e este incenso será uma contínua adoração e um contínuo agradecimento. Vieste a mim, Jesus, eu te acolhi com amor, mas continuo tão distraída... Penso em tanta tolice no momento da Missa... Isto me contraria muito. A Missa é uma renovação da tua paixão e morte. E, estando eu tão distraída, que triste figura faço no teu sacrifício? Quão longe estou de imitar tua santa Mãe, Madalena e São João! Nem mesmo posso fazer parte daquele segundo grupo que, não tendo coragem de se aproximar, olhava de longe. As piedosas pessoas deste grupo tinham em ti os seus olhos, pensamentos e corações, enquanto eu a muitas Missas assisto como assiste o defunto colocado na igreja para a Missa de corpo presente. Só tu, Jesus, poderás dar jeito a isto”. * * * Berço, flor, pombinha, turíbulo – tudo isto quer Irene ser para Jesus. E que mais? No dia 20 de janeiro, festa de São Sebastião, escreve: “Queres saber, meu Jesus, o que serei hoje? A Hóstia, a branca Hóstia de frumento. Hóstia, quer dizer, vítima. Pois aqui tens, Jesus, a tua vitimazinha. Ela, meu Jesus, quer cooperar contigo para a salvação dos pecadores. Hoje estou um pouco adoentada e não pude ir te receber; mas sinto, Jesus, que tu estás em meu coração, que vieste a mim na comunhão espiritual. Sinto-me um pouco resfriada, e a garganta está doendo; mas não posso me queixar, pois que sou Hóstia, sou vítima, e uma vítima não se queixa. Abandono-me às tuas mãos, ó meu bem-amado Jesus. Agradeço-te, meu Jesus, a felicidade e a paz que me concedeste ontem, depois da confissão – que boa confissão fiz eu! 21-1-31 – quarta-feira Meu Jesus, hoje escolhi ser uma lampadazinha para estar sempre diante do teu tabernáculo. Quero, meu Jesus, que ela seja sempre brilhante para edificação do meu próximo e para atestar a tua presença. Faze que no meu porte, no meu rosto, nos meus olhos, conheçam que sou das tuas, assim como conheceram que São Pedro era teu companheiro. 34
  • 35. Como és bom, Jesus: eu ontem me ofereci como vítima e pensei que me mandasses uma gripe, e, no entanto, hoje estou boa. Assim é melhor, Jesus, porque posso te receber e visitar, como fiz hoje. 22-1-31 – quinta-feira Jesus, Santa Teresinha, na sua simplicidade infantil, se oferecia a ti como se fosse uma bola, para te distrair. E ela queria ser tua, entregar-se às tuas mãos, como se fosse uma bola. Pois bem, Jesus, eu hoje imitei Santa Teresinha: fui hoje a tua bola, uma pequenina bola, um brinquedo da tua infância. Mas, Jesus, desde ontem estou tão triste que quase não posso pensar em ti. Ocupa-me o pensamento a infelicidade acontecida àquela família... Jesus, tem pena! Só tu poderás confortar em certas infelicidades, consolar certas dores e estancar certas lágrimas... 23-1-31 – sexta-feira Sabes, Jesus, o que serei hoje? o que será o meu coração? Um jardim. Neste jardim te hospedei hoje. Nele podes estar à vontade, pois que é um jardim fechado onde não deixarei entrar importunadores. Só entrarei eu, de vez em quando, para conversar contigo... Passeia sem receio neste jardim. Não encontrarás animais ferozes que te persigam – os pecados mortais, que não quero abrigar em meu coração; nem deixarei entrar os animais selvagens dos pecados veniais, porque sei que também te assustam. Toma, pois, conta deste jardim. Aí encontrarás as rosas do meu amor; pois eu te amo, e amo o meu próximo por teu amor. Encontrarás também lírios, porque, sabendo que tu és Aquele que se apascenta entre os lírios, procuro tornar-me, dia a dia, mais pura, para te ser agradável. Poderás também descobrir algumas violetasinhas, meu Jesus, pois esforço-me por ser humilde, embora, de vez em quando, não saiba receber com paciência uma censura feita a mim ou à minha família... Se descobrires alguma erva malfazeja, arranca-a, ó Jesus. Sê tu o jardineiro deste jardinzinho. Quando te cansares, deita-te na relva, à sombra das árvores; mas não queiras sair, para que sempre eu te possa encontrar e fazer-te os meus pedidos. Agradeço-te o consolo que vais dando àquela família. Ouviste o meu pedido. Acho mesmo impossível, Jesus, que deixes de me atender, a mim, tua esposazinha, que por ti sacrificou a sua mocidade, seu coração, os gozos, embora fugazes, deste mundo; que escolheu o isolamento do coração por teu amor”. * * * Por esse tempo, deu Irene um passeio a Mecejana, e, depois duma dolorosa provação, derrama no coração de Jesus as suas mágoas, escrevendo no dia 25-1- 31, domingo: 35
  • 36. “Hoje, meu Jesus, fiz como Santa Teresinha, a qual, estando doente, viu um cacho de uvas, saboreou-o e, depois, se ofereceu a ti como se ela fosse um cacho de uvas para te dar prazer – foi o que fiz. Na Comunhão eu me ofereci a ti e quis ficar ao teu dispor, sem desejos e sem vontade própria, como se realmente fosse um cacho de uvas. E tu, meu Jesus querido, esmagaste este cacho de uvas, porque querias o vinho, o vinho generoso da tua última ceia. O sofrimento de hoje comprimiu o meu coração como se comprimem as uvas para lhes extrair o vinho. Mas, se das uvas sai o vinho que pode ser mudado em teu sangue divino, de um coração esmagado pelo sofrimento sai a resignação à tua vontade e o abandono às tuas santas mãos, o que te é muito agradável, não é, Jesus?” * * * No dia seguinte, ainda sob a pressão da mesma dor, continua o seu holocausto voluntário, confidenciando: “Hoje eu me ofereço a ti, Jesus, como uma espiga de trigo. Se quiseres, podes triturar este trigo para transformá-lo numa hóstia; e debaixo da pesada mó da provação tornar-me-ei apta a ser a hóstia oferecida em holocausto para atrair as suas bençãos sobre a minha família e amigos, sobre a minha congregação e seu diretor”. Fazem estas palavras lembrar aquel'outras, tão parecidas, que o heróico bispo Santo Inácio de Antióquia escreveu, em vésperas do martírio, aos seus diocesanos: “Sou trigo do Cristo; é necessário que seja triturado pelos dentes dos leões afim de dar em resultado um pão agradável a Deus”. Irene, provavelmente, nunca leu essa epístola, de princípios do segundo século do Cristianismo; mas vigora uma misteriosa afinidade espiritual entre as almas genuinamente cristãs; quanto mais se elevam a Deus, mais se aproximam uma da outra, porque todas as linhas terrestres convergem para o vértice da celeste pirâmide, onde está Jesus Cristo, autor e consumador da nossa perfeição. Em vésperas de embarcar para Aracati, “terra de exílio”, ela escreve palavras cheias de dor e saudade: “Ó Jesus, é este o último dia que passo aqui. Amanhã, pela madrugada, tenho de partir. Deixarei esta terra de que tanto gosto, deixarei a minha congregação... Mas, Jesus, é preciso que eu sofra para me tornar agradável a ti. Hoje, quando vieste ao meu coração, eu me ofereci a ti como se fosse um pouco de incenso. O incenso precisa ser queimado para subir em olorosa fumaça e te ser agradável; assim, Jesus, eu preciso sofrer para me purificar cada vez mais e merecer o teu amor. Meu Jesus, protege-me nesta viagem e, naquela terra de exílio, defende-me contra as ciladas do demônio e faze que o meu sofrimento deste ano – o qual 36
  • 37. ignoro, mas aceito resignada, porque sei que vem das tuas divinas mãos – me seja meritório e me ajude na difícil estrada da santificação”. * * * Em Aracati, começa Irene a sofrer com o doloroso exílio, não tanto corporal como espiritual, porque lhe faltam as costumadas práticas religiosas em comunidade. Procura, todavia, consolar-se com o pensamento de que também Jesus é um exilado, e, portanto, seu companheiro de suplício. 29-1-31 – quinta-feira “Que tristeza sinto quando chego aqui e não encontro ninguém da minha família! Que isolamento, meu Jesus! Sinto ainda mais as agruras do exílio, porque, Jesus, longe da minha congregação, sou uma exilada; mas tu, Jesus, não estás também exilado nesta terra, por meu amor? a tua pátria não é o céu? Pois bem, Jesus: amor por amor – serei uma exilada de amor, para te fazer companhia. Ontem, devido à viagem, não me foi possível pegar neste caderninho; mas isto não quer dizer que não tenha pensado em ti. 30-1-31 – sexta-feira Hoje, meu Jesus, eu te recebi em meu coração; mas, não sei porque, estava sem fervor. Jesus, tem pena de mim! vê quanto meu custa este exílio e concede- me o fervor para suavizá-lo. Dá-me forças. Jesus! Serei hoje, Jesus, o pássaro solitário; pois vivo tão sozinha, neste sobrado tão grande”. “Pássaro solitário no teto” é a expressão com que o profeta Davi, em transes de profunda depressão psíquica, designa o estado de sua alma. Irene, de encontro à maior parte das outras jovens, mesmo piedosas, conhece admiravelmente essas expressões e imagens bíblicas, quer do Antigo quer do Novo Testamento, prova de que não se contentava com algum devocionário açucarado, mas procurava beber na própria fonte da revelação divina as águas da vida eterna. Já deve o leitor ter reparado como Irene é engenhosa em estabelecer paralelos entre a sua vida e a de Jesus; por toda a parte encontra pontos de contato, semelhanças, analogias – e estes pontos de contato são outros tantos canais por onde lhe derivam as energias espirituais que a sustentam no meio das suas tribulações. Basta-lhe saber: Meu querido Jesus sofreu o mesmo ou coisa pior – e está suavizada toda a amargura. O amor suaviza todas as dores. Não se trata dum simples “ato de amor”, recitado pelas páginas dum manual de orações, mas do amor profundamente vivido e sofrido – e este amor é onipotente. 37
  • 38. * * * É tão fácil ser santo sobre o alvo papel de um “diário”! Ter belos pensamentos e banhar a alma em sentimentos suaves, ainda não é santidade. Mas, quando, na vida real, nessa dura e prosaica vida de cada dia, procuramos sinceramente cumprir a vontade de Deus, sobretudo no sofrimento obscuro e inglório aos olhos do mundo, - então, sim, damos prova de verdadeira virtude e duma santidade que não está apenas na alvura do papel, traçada a bico de pena, mas dentro e mui dentro do nosso Eu. Irene era, de fato, uma grande cumpridora da vontade de Deus e uma heróica sofredora das suas dolorosas visitas. Ver em todas as vicissitudes da existência a mão carinhosa do Pai celeste – isto é mais que sentimentalismo poético, é heroísmo cristão. 38
  • 39. 6. A POESIA DA NATUREZA O homem da cidade vive, geralmente, divorciado da natureza. Fábricas e escritórios, salões e repartições públicas, cafés e cassinos, praças e avenidas, clubes e campos de futebol, farras noturnas de cabaré e algazarra insípida de carnaval – eis o mundo do citadino moderno. Nesse ambiente artificial, mecanizado e animalizado, adultera-se aos poucos a alma humana, atrofiam-se-lhe os sentimentos mais delicados. Pode-se mesmo estabelecer, nas devidas proporções, esta equação: o caráter humano está na razão direta do contato com a natureza e na razão inversa da vida na sociedade. Ou, como diz a sentença lapidar de um dos grandes filósofos do paganismo: “Toda a vez que estive entre homens voltei menos homem”. Parafraseando as palavras do filósofo, poderíamos dizer: Toda a vez que estive com a natureza voltei mais natural, e, portanto, mais homem. A natureza é a grande central de energias humanas. A natureza é a boa, genuína, reta, sincera, amiga, benfazeja e estética. A natureza é o reflexo das perfeições de Deus. É o grande livro do Criador. É a mais antiga e mais intuitiva das revelações da Divindade, tanto assim que o apóstolo Paulo, na epístola aos romanos, chama “inexcusáveis” os homens que, pela contemplação da natureza, não chegaram ao conhecimento de seu autor. Se é verdade, como diz Tertuliano, que toda a alma é cristã por natureza, não é menos verdade que toda a alma é naturalmente poetisa. Para ser poeta ou poetisa não é necessário versejar ou rimar. Há muita poesia sem verso, e há muito verso sem poesia. A alma natural, dotada dum determinado potencial de receptividade psíquica, entrevê e entreouve em todos os seres a discreta beleza e harmonia da natureza: no verdejar da folhagem e no perfume das flores, na alvorada triunfal dos passarinhos e no cintilar das estrelas, no silêncio das montanhas e no marulhar das salsas águas nas areias da praia – por toda a parte vislumbra os reflexos dum poder imenso e duma grande inteligência. Todos os grandes homens da história, todos os dedicados servos de Deus eram exímios amigos da natureza, à frente deles o divino poeta da Galiléia, que passou trinta anos no seio da verdejante epopéia das montanhas, e durante os três anos da sua vida apostólica viveu identificado com as paisagens do seu torrão natal e sabia revestir a sua doutrina da mais linda roupagem das parábolas e alegorias: “O reino de Deus é semelhante a um grão de mostarda”... “Eu sou a videira, e vós sois as varas”... “Eu sou a luz do mundo...” “Contemplai as aves do céu e os lírios do campo...” Dele, do grande teólogo-poeta de Nazaré, escreve um dos nossos mais suaves bardos contemporâneos: 39
  • 40. “Mestre! que, na visão poética dos muros Da tua velha pátria, ainda me sorris, Por entre o louro mar dos seus trigais maduros, E das comas em flor de crianças gentis; Tu, que amavas ouvir essas harpas estranhas Que, em horas de solidão, vibra o mar galileu, E fizeste da grimpa excelsa das montanhas A tribuna em que o sol do Evangelho esplendeu; Tu, que oravas na paz dos mornos olivedos, Dormentes ao luar do teu céu oriental, E cismavas a sós, pelos desertos quedos, Entre as aves do azul e a açucena do val; Tu, que enchias de luz as almas desoladas Dos lázaros, das mães, dos filhinhos sem pai, E passaste cantando, ao longo das estradas, Este doce estribilho: amai, amai, amai! Perdoa-me, ó Rabi, se talvez indiscreta Soe nesta hora a voz do bardo sonhador; Mas, dize-me, não foste o divino Poeta Que nos trouxe do céu a poesia do amor?... Adoro-te, ó divino e pálido Poeta, Que revelaste ao mundo o evangelho do amor! Inspira-me, ó Rabi, banha-me a fronte inquieta Na harmonia imortal desse hino redentor!! (D. Aquino Correia). …................................................................................................................................... Os maiores amigos do Nazareno herdaram-lhe, com o espírito do divino amor, também a humana intimidade com a natureza. Francisco de Assis, Antônio de Pádua, José Anchieta, e tantos outros conversavam com a natureza como se vivessem em terras de “Mil e uma noites”, e, no entanto, viviam à luz meridiana da mais larga realidade. Mas esta realidade era-lhes uma poesia imensa; pois, se Deus é Verdade e Amor, Deus também é Beleza – e que outra coisa é a poesia senão Verdade, Amor e Beleza? * * * A nossa Irene foi, desde pequena, uma cultora da natureza. Não fosse o seu 40
  • 41. espírito tão profundamente cristão, quem sabe se não acabaria por entre as névoas do panteísmo, adorando o Deus-Universo ou a Deusa-Natureza... O seu “Diário de Amor” está repleto desses suaves colóquios com os seres irracionais. Uma amiga surpreendeu-a, certo dia, a conversar com um besouro. Sentada num banco de bambu, na fazenda paterna, seguia Irene atentamente os trabalhos e canseiras de um garboso coleóptero ocupado em cavar um túnel ao pé dum cajueiro. Irene fez-lhe mil e mil perguntas, estimulando-o a trabalhar com afinco e perseverança, por ser esta a vontade do Criador. Consolou o reluzente cascudo quando este, exausto e como que desanimado, suspendeu a faina ingrata ao topar com uma enorme lage, obstáculo demasiadamente duro para os frágeis instrumentos do miúdo sapador. E não tinha ela razões para se enamorar da natureza? Alma dotada duma grande vibratilidade psíquica, era filha dessas plagas nordestinas que, a despeito do flagelo periódico das secas, respiram um quê de indefinível encanto, uma fascinação mágica, uma poesia irresistível, a que nenhum homem normal consegue subtrair-se inteiramente. É necessário ter cruzado os sertões do Ceará, em tempo de inverno ou de secas; é preciso ter sonhado nas brancas praias de Iracema ou Mucuripe, ter passado uma noite de fantástico luar por entre os ciciantes palmares de Aracati e nos verdes paraísos do Cariri, para sentir toda a sugestão hipnótica que essa nesga de terra brasílica exerce sobre a alma do homem... Não existe, talvez, filho do Brasil tão enamorado da sua terra como o cearense. Afugentado pela seca, regressa pressuroso, mal lhe chegue a notícia das primeiras chuvas. Tanto mais amor tem o homem ao seu torrão natal quanto mais sofre por ele e com ele. Irene, essa autêntica cearense, interrogada um dia qual a maior paixão da sua vida, respondeu logo: “O mar”. Horas e mais horas costumava ela passear pelas praias de Aracati e Iracema; muitas vezes sozinha, porque assim podia conversar mais à vontade com a natureza e o Deus da natureza. Falava com as ondas, com as espumas, com as conchinhas de mariscos, com os peixinhos, com as gaivotas, até com as enormes ossadas de cetáceos que, aqui e acolá, interrompem com a sua fantástica brancura a monotonia do vasto areal. “O mar entusiasmava-a – refere Celita Gurgel, amiga íntima de Irene. - Toda vez que o via abria os braços como se quisesse unir-se à sua beleza imensa, exclamando: lindo! lindo! E procurava relembrar os sonetos que sabia de cor para desabafar a sua grande emoção”. Quando não estava em companhia de Celita, que era com ela um coração e uma alma, preferia Irene passear sozinha. Sentava-se sobre um rochedo do litoral e, com os olhos fitos na ondeante imensidade, cismava, cismava... O homem sem mundo interior tem horror à solidão. Assim que lhe falte o barulho da sociedade, sente-se mal, como que num deserto, no vácuo. Necessita do ruído de fora para povoar a vacuidade do seu ermo interior. A ciência e técnica dos últimos anos vieram em seu auxílio, canalizando para o silêncio das vivendas solitárias, através do rádio, boa parte do ruidoso espalhafato das ruas e 41
  • 42. dos salões, preservando assim o homem moderno do perigo de estar umas horas por dia consigo mesmo, a sós com sua alma... O homem, porém, que arquitetou dentro do seu Eu um mundo de idéias e ideais, gosta de ficar, de vez em quando, a sós consigo e seus pensamentos; não é misantropo, mas gosta de espairecer longas horas nesse silencioso cosmos do seu interior, mundo que é todo dele, obra sua, noite estrelada de sua alma, preludiando um universo eterno e imortal... Jesus, tão amigo da sociedade, não o era menos da noturna solidão do deserto e das montanhas, como refere o Evangelho. Se a sua vida social era povoada de grandes realidades, maior plenitude ainda revelava a solidão da sua vida íntima. Todos os verdadeiros discípulos do Nazareno são grandes amigos do silêncio, da concentração espiritual, do mundo taciturno das grandes realidades metafísicas. É na solidão que eles encontram as energias para serem apóstolos da sociedade. E que exímia apóstola não era a jovem sonhadora de Aracati!... 42
  • 43. 7. CORAÇÃO AFETIVO E ESPÍRITO JOVIAL A alma de Irene era dotada duma intensa afetividade. Na família, porém, não encontrou desabafo para o seu potencial afetivo, e como, por outro lado, não queria entregar a um homem o seu coração, ligou-se pelos vínculos da mais estreita amizade a uma sua companheira, por nome Celita Gurgel. É bem verdade que, dia a dia, desafogava o coração nos colóquios ardentes ao pé do Sacrário e numa indefessa atividade apostólica no meio das crianças pobres – mas quem é lá tão espiritual e etéreo que, sem deixar de amar a deus sobre todas as coisas, não sinta a necessidade duma afeição humana, honestamente humana, humanamente honesta? Amizade sensível, suave, correspondência de carinhos e afetos, que só um ser humano pode dar a outro ser humano? Para uma jovem cheia de natural afetividade é quase impossível a vida espiritual sem essa parte sensível. Não faltaram, naturalmente, puritanos que malsinaram a amizade de Irene e Celita. É possível que, a princípio, se tenha ela excedido em sentimentalismos. Nos últimos anos, porém, se tornou duma pureza cristalina, sempre voltada para os ideais religiosos e sempre mantida nos seus devidos eixos pela mão invisível dessa grande e incompreendida mensageira de Deus – a Dor... O sofrimento comum uniu as almas de Irene e Celita, assim como o ardor duma fornalha une em uma só duas barras de metal fundidas ao fogo. Quem és tu, águia de sublime espiritualidade, que, de vez em quando, não sintas a necessidade de descer das cerúleas alturas do espaço metafísico e repousar uns momentos na eminência de alguma montanha? Se o próprio Cristo, segundo o testemunho do Evangelho, repousava, de quando em quando, nas castas doçuras duma sincera amizade, passando horas suaves no ambiente daquele trio de almas afetivas de Betânia – Lázaro, Marta e Maria – com que direito proibiríamos a uma alma o lenitivo duma correspondência afetiva com outra alma? Não queiramos ser mais cristãos que o próprio Cristo, nem taxemos de pecaminoso tudo o que é natural. A natureza é obra de Deus, e não do demônio. “Ocupai-vos em tudo o que é verdadeiro, digno, justo, santo, amável, atraente, virtuoso ou digno de louvor” - escreve o apóstolo Paulo aos filipenses (4,8), palavras que não foram revogadas até ao presente dia. * * * “Em julho de 1929 – escreve Celita Gurgel, a grande confidente de Irene – foi que Nosso Senhor nos afeiçoou pelo sofrimento”. Amizade simpática, essa, que brota do sofrimento de duas almas. 43
  • 44. “Uma amiguinha minha – prossegue – tendo de partir para o Rio afim de ser religiosa, lembrou-se de ir à casa de Irene pedir-lhe fosse minha amiguinha e me consolasse com a sua dedicação. Nesse tempo, Irene já não era mais uma moça mundana, mas, sim, uma santinha Filha de Maria”. Certo dia, aparece toda triste e acabrunhada. Perguntada pelo motivo, explica a Celita que uma amiga íntima, à qual escrevera cartas cheias de confiança e confidências, a atraiçoara, afeiçoando-se a outra companheira, mostrando-lhe os escritos de Irene, zombando dela e ridicularizando-a diante da amiga. Irene vai à casa da ex-amiga e reclama as cartas, ao que a outra responde, por entre risadas de cinismo: “As tuas cartas? Colecionei-as num álbum”. E mostra-lhas. Irene, num ímpeto de indignação, se atira à companheira para lhe arrebatar o álbum, mas não o consegue. Desde essa decepção, só confiava Irene em amigas que com ela orassem e sofressem. Só a oração e a dor, diz, são fornalha bastante ardente para fundir em uma duas almas humanas. “A nossa amizade é filha da dor – repetia muitas vezes a Celita – enquanto sofrermos juntas, seremos amigas verdadeiras”. Durante as longas doenças de Irene, Celita não arredava pé da cabeceira de sua ama. Quando todos fugiam da enferma, com medo do contágio da gripe, Celita lá estava firme, como amiga, enfermeira e anjo tutelar. “Desde que a encontrei – escreve – conheci-a doente, quase sempre gripada; uma espirradeira terrível deixava-a exausta; pontadas agudas nos rins faziam-na erguer da cama como se fosse por uma mola; palpitações e cansaço, às vezes falta de ar”. Habituara-se Irene a apelidar Celita de “mãezinha”, porque se desentranhava por ela em desvelos e carinhos ao ponto de cair sem forças e próxima do desmaio. “Irene – diz Celita – sentia grande admiração pelas maravilhas da natureza. Olhava com meiguice a pequenez das florzinhas silvestres. Encantavam-na, sobretudo, as saudades brancas. Passando nós duas uma vez por um jardim gradeado, avistamos um canteiro de lindas saudades brancas. Ela ficou encantada e, como se fosse uma criança, segurou-se aos varões de ferro pedindo-me que a deixasse ficar ali apreciando aquela lindeza – foi a sua expressão. Satisfiz-lhe a vontade, admirando também aquelas saudades tão lindas. De repente, ela vira-se e diz para mim: Mãezinha, quando eu morrer, quero que você plante muitas saudades destas em meu túmulo, você promete? Isto foi justamente no ano da sua morte, meses antes. Senti grande tristeza. Ela, notando que eu ficara triste, abraçou-me dizendo: Perdoa, mãezinha, não quero te ver triste; eu te entristeci; perdoa. Não, não quero morrer primeiro que tu, porque não sei de que serias capaz; deves ir primeiro; sou mais forte e mais conformada. Sempre que tomávamos por assunto a morte, a separação, eu chorava, porque não queria conformar-me com a idéia de ficar sem ela. Irene então, para me afastar daqueles pensamentos tristes, me fazia rir, dizendo: Não chores, 44
  • 45. mãezinha; eu não morrerei; vou ficar para semente, ou melhor, vou mudar o meu nome para Maria, porque dizem que no fim do mundo fica uma Maria – e pode ser que seja eu que fique, uma vez que você não quer me deixar e não quer que eu morra”. Dest'arte brincava com a morte. Ao ler estes e outros episódios análogos, descritos por Celita Gurgel, tive a visão suave duma outra jovem que também brincava com a morte e falava da partida para o outro mundo como outras moças falam dum pique-nique à ilha de Paquetá ou combinam uma excursão à Tijuca. Era Maria Desidéria, essa alma toda humana e toda cristã, a nossa inesquecível Maria Desidéria, com a qual eu conversava muito nos últimos anos da sua vida dolorosa, no Hospital de Caridade, de Florianópolis. Altamente tuberculosa, aparecia à sala de visitas aquela silhueta esguia e esbelta da nossa saudosa escritora, a sorridente mártir, a graciosa autora de “Montanha acima” e “Irmãzinhas”. Um dia, disse-me, com ares de grande novidade: – Sabe duma coisa, Padre Huberto? – Que é, D. Ida? 1 – Faça favor, não sou “D. Ida”, sou Maria Desidéria... – Pois bem, Maria Desidéria, que há de novo? – Daqui a dois meses vou-me embora. – Embora, para onde? – Para o outro mundo. Já tirei passaporte. Foi o Dr. Gotsmann que me deu essa boa nova. Daí a um ano, passando casualmente por Florianópolis, sub a íngreme ladeira do Hospital de Caridade. E lá me aparece Maria Desidéria, sofredora e sorridente como de costume, e me diz com aquela sua voz firme e suave: – Nosso Senhor não me quer... Há um ano que estou com as malas arrumadas, e Ele não me chama... Uns meses antes da sua morte, Maria Desidéria estendida no seu leito mais que singelo (paupérrima, nunca teve no hospital quarto próprio, vivendo e sofrendo numa alcova de cortinados, da sala comum), escreveu a lápis o epitáfio que desejava para a cruz do seu túmulo. Quem hoje visita o cemitério, no morro atrás do hospital, encontra uma campa cercada dum gradil, e à cabeceira uma cruz de ferro levando nos braços e no tronco estes dizeres: IN CHRISTO SPES MEA – MARIA DESIDÉRIA (Em Cristo minha esperança – M.D.) Povoam-me a memória estas visões de antanho quando leio as palavras com que Celita Gurgel descreve a atitude de Irene em face da morte. Será que se encontraram, nos mistérios do além, essas duas almas, a de Irene e a de Maria Desidéria? Almas tão irmãs no ideal religioso, no sofrimento e na sorridente serenidade de espírito?... 1 Ida Messeder era o seu nome verdadeiro, mas no mundo das letras todos a conhecem pelo pseudônimo de “Maria Desidéria”. 45
  • 46. Quem morreu a morte mística do verdadeiro cristão – porque ainda temer a morte física? Que surpresas pode ter a eternidade para quem vive no mundo sem ser do mundo?... Celita conservou-nos ainda os seguintes traços da fisionomia moral da sua grande amiga: “Irene não se preocupava com a moda, trajava com gosto e decência, mas sem chiquismo. Não queria gastar grandes importâncias com um vestido, um chapéu, etc; preferia gastar com as crianças pobres e com os vestidos dos seus numerosos neo-comungantes de cada ano. De um dos seus últimos vestidos, que a modista fez bem elegante e caro, ela não gostou; vestia-o só porque sua mãe reclamava que seus vestidos já estavam marmotosos e fora da moda; Irene vestia-o por obediência. Ela era muito mal compreendida em casa nos seus sentimentos de piedade e simplicidade. Os pais implicavam porque ela não se pintava, não se fazia elegante, etc. Ao que Irene respondia com admirável mansidão: Nosso Senhor me quer é assim; eu não gosto nada de artificial. E não guardava rancor das ofensas e indiretas que lhe faziam. Parece que não tinha amor próprio. Muitas vezes, para satisfazer os pais, apresentava-se nos salões de danças, quando preferiria ficar em casa, lendo ou palestrando”. “Meses antes de morrer” - refere uma amiga de Irene – ela contou-me, um pouco triste, mas rindo-se, talvez para eu não levar a mal o que ia dizer: Sabes, a mamãe hoje me disse ter vergonha de andar comigo na praça, porque estou muito feia e amarela. Achei isto o cúmulo, e quis ofender sua mãe com algumas indiretas; Irene, porém, abraçou-me e, apertando o meu rosto em suas mãos para me fazer olhá- la, disse: Tu me achas feia e amarela? E, dando um suspiro, continuou: Mais escarnecido e desprezado foi Nosso Senhor”...1 “Era grande a sua alegria – conta Celita – ao passar dias no sítio São José, no Cambeba. Fazia-se criança para melhor esquecer o mundo e gozar da felicidade que sentia longe do bulício da cidade. Deitava-se na relva a brincar com os cachorrinhos, gritava, ria, cantava modinhas, hinos sacros, fados portugueses, de que gostava imensamente. À noite, depois da ceia, deitava-se em uma rede, no alpendre, e punha-se a cantar hinos a Nossa Senhora, hinos de Comunhão, com tanta expressão que todos nós gostávamos de ouvir. Da última vez que foi preparar as crianças para a primeira Comunhão, em maio de 1936 (pois morreu em julho), cantou inúmeras vezes o Êxtase de Santa 1 Destas e de outras palavras análogas não se deve concluir que os pais tivessem tratado Irene com dureza. É coisa natural e comum que uma pessoa de espiritualidade fora da bitola geral tenha os seus caminhos próprios, não compreendidos pelos outros. Não diz, porventura, o Evangelho que a própria Mãe de Jesus não compreendeu o procedimento de seu divino Filho quando este ficou no templo de Jerusalém? Ela, que era a “sede da sabedoria”, a “rosa mística”, a “rainha de todos os santos”... A compreensão das almas superiores é sempre póstuma... 46
  • 47. Catarina e o cântico No céu com minha Mãe estarei. No sítio temos uma vitrola, a qual Irene gostava de ouvir, e, como eu não me atrevesse a fazê-la tocar, ela, mangando de mim, punha-se a dar corda no veio, dizendo a papai que eu tinha medo de quebrar a corda e levar um carão; mas ela nem tinha esse medo; se quebrasse, mandaria consertar. Gostava muito dos discos do Jararaca e de fados portugueses. Tinha um disco que ela não se cansava da ouvir e acompanhar com mímicas para mim, cantando: São teus olhos de esperança, Feiticeiros, cor do mar, Quem tem amor é criança, Eu sou criança só por te amar. Apreciava os discos clássicos e dançava-os, sozinha, com muita graça e simplicidade, até cansar, caindo nos meus braços. Tinha um espírito alegre e levado ao alto; não queria saber de tristeza, porque dizia: a tristeza é do demônio. Pelo carnaval, Irene não deixava de cantar e dançar ao som do rádio; bastava ouvir tocar para dar logo um ar da sua graça, inventando versos com a mãezinha (isto é, comigo) e procurando fazer-me dançar também. Isto fazia as empregadas e todos os mais rirem-se às gargalhadas e gostarem da presença de Irene”. 47
  • 48. 8. AUSTERIDADE E CARIDADE Quem visse Irene em Cambeba, quem a conhecesse apenas através das suas brincadeiras, comédia e bailados, dificilmente adivinharia na alma dessa jovem um elevado potencial espiritualista, um espírito de ascese austera que, já nesse tempo, formava o ponto característico da sua personalidade. Austeridade sem aspereza. Ascese sem pedantismo. Espiritualidade sem intolerância. Já dissemos que Irene gastava o seu ordenado de professora em benefício dos pobres e das crianças; que lecionava de graça para grande número de analfabetos ou semi-analfabetos; que vendia as suas jóias para comprar vestidos e brindes para as crianças indigentes; que sacrificava as horas de descanso, tão necessárias ao seu organismo frágil, para confeccionar roupinhas ou procurar menores abandonados nos arredores de Aracati, Mecejana e Fortaleza. O seu misticismo eucarístico tinha um cunho de dinâmica apostolicidade. A sua aliança com o nome de Jesus Cristo não era uma simples formalidade sentimental; ela, de fato, conquistava almas para seu divino Esposo e esgotava- se na ampliação do seu reinado social sobre a terra. E fazia tudo isto rindo, brincando, cantando – e até dançando... A sua imolação diária sobre a ara do sacrifício não era acompanhada das elegias fúnebres do Miserere, mas, sim, das alegres clarinadas do Aleluia ou dos acordes solenes do Te-Deum... “Servi ao Senhor na alegria do vosso coração, porque a um servidor alegre é que Deus tem amor” - estas palavras da Bíblia foram fielmente cumpridas pela risonha sofredora do Ceará. Ouçamos alguns episódios característicos narrados por uma testemunha presencial, Celita Gurgel: “Trouxeram-lhe uma vez uma pequena de 7 anos, mais ou menos, órfã e doente. A cabeça era uma ferida só, a exalar mau cheiro. As próprias empregadas da sua casa, cachimbo ao queixo a soltar fumaças, não queriam por as mãos na cabeça da pequena, com nojo. Irene, penalizada da criança, tratou de terminar as aulas mais cedo, afim de fazer o tratamento da doente antes do almoço, não ligando ficar com o estômago revoltado de ver as feridas pustulentas. Lavou-as com asseptol, depois untou-as com uma pomada. E repetia todos os dias o curativo. Com pouco tempo, a garotinha ficou boa. Na nossa catequese do Cambeba, Irene cortava as unhas e os cabelos das crianças e mandava-as tomar banho, dando-lhes sabão e toalha para se esfregarem. Fazia questão de assistir às crianças pobres. Arranjava-lhes purgante de vermífugo, que mandava vir do Centro de Saúde. Entretinha-se e distraía-as com 48
  • 49. brinquedos e gestos engraçados, e assim as fazia tomarem o óleo com facilidade. Gostava de entrar nas choupanas dos pobres, para melhor avaliar a pobreza de Jesus e agradecer com mais fervor o conforto que Deus lhe concedia”. * * * Quem alguma vez leu o livro encantador “Maggy”, e cotejar com ele os heroísmos caritativos de Irene, encontrará uma surpreendente semelhança entre a jovem belga e a simpática brasileira. Ambas professoras, ambas de família abastada, e ambas duma espiritualidade dinâmica cheia de luz, de amor, de envolvente simpatia. É que a caridade é internacional, e a virtude é tão universal como o cristianismo, como a própria humanidade. Onde quer que exista o genuíno espírito de Cristo aí cantam belezas espirituais. Irene, filha de família abastada, professora, hábil dactilógrafa, diretora da “Escola Remington Oficial”, não tinha, certamente, necessidade de se dedicar aos humildes misteres domésticos, tanto mais que renunciara ao pensamento de fundar família. E, no entanto, foi estudar e exercer arte culinária e todos os demais trabalhos caseiros – porque? Em parte para poder melhor servir a seus semelhantes, em parte, e sobretudo, porque, Filha de Maria, queria conhecer de ciência própria os trabalhos domésticos que Maria Santíssima exercera durante longos anos na casinha humilde de Nazaré, no Egito, por toda a parte. Quantas moças de hoje se julgam dispensadas de conhecer praticamente como se tempera uma feijoada ou se remenda um vestido, e outros misteres de dona de casa! Mesmo filhas de famílias pobres e que não estão em condições de pagar empregada... Sabem bater sofrivelmente as teclas dum piano, fazer rendas, croché, bordados, pinturas, conhecem um pouco de literatura francesa – e pronto! Julgam-se habilitadas para enfrentar as lutas da vida... Mas, principalmente no terreno espiritual, que enorme diferença entre o feitio moral dessa sorridente apóstola do Catecismo, dessa heróica enfermeira da miséria anônima – e milhares de jovens que, dia e noite, enchem as avenidas e os salões, para exibir as “últimas conquistas da moda”, para ouvir os galanteios banais dos rapazes ou apreciar o estafado chavão das paixões humanas nas telas dos cinemas!... Umas e outras se dizem católicas, mas, aos olhos de Deus, o catolicismo de umas deve ser tão diverso do das outras como a noite difere do dia ou uma árvore de Natal ornada de ocas frutinhas de celulóide difere duma planta viva carregada de frutos que brotaram do seu interior... * * * “No ano de 1934 – conta Celita – terrível sezão assolou Cambeba. 49
  • 50. Estávamos passando lá uma temporada, quando soubemos que um preto velho, morador, se achava muito doente da tal sezão com a família. Irene ficou logo muito aflita, porque o pobre velho morria sem confissão. E, rompendo terra quente e sol ardente, à 1 hora da tarde fomos visitar os enfermos. Encontramos todos prostrados, a velha, duas filhas e uma neta. Além da doença, era a fome, a sede, porque nenhum deles podia se levantar para buscar um pouco d'água, e comida não havia mais. O velho, deitado em uma rede suja a rastejar o chão, mal falava. Irene mandou logo que eu voltasse para avisar ao papai e mandar chamar o Vigário de Mecejana para dar ao velhinho a Extrema-Unção; arranjar com a mãe uma rede para o doente, vela e crucifixo; café e comida para o resto do pessoal, que estavam famintos. O Vigário confessou-os, ministrou-lhes os Sacramentos. Três dias depois, o velho morre, e uns dias mais segue-o a velhinha. Irene sentiu muito não ter assistido ao velho quando morria, porque eu me achava doente de sezão também”. * * * “Todas as crianças da catequese do Cambeba – continua Celita – gostavam muito de Irene. Para todas tinha ela paciência e carinho. Quando as repreendia por se comportarem mal, era com mansidão para não as desgostar. Achava interessante quando num grupo de crianças havia dois, três nomes iguais; conforme o físico da criança, ela punha um apelido, que as fazia rirem-se: Raimunda comprida... Raimunda redonda... Manoel caboré (este tinha uns olhos muito grandes...)1 Manoel bochudo … Mariazinha... Nenhum se zangava com o apelido; todos achavam graça, porque queriam bem a Irene. Irene gostava das crianças e sabia fazer-se pequena com os pequeninos. Tinha um grande espírito de sacrifício. Apesar de doente, mortificava-se, fazia novenas de penitências, alcançando sempre a graça que pedia. Tinha a mania de escrever a palavra sacrifício; bastava ter um lápis à mão, nem precisava de papel, porque escrevia na palma da mão. Rezava muito, tanto de dia como de noite. Fez com Jesus um contrato no sentido de que o sono também fosse aceito como oração. Depois de mudar de roupa, sentava-se na cama ou ajoelhava ao pé dela, cruzadas as mãos sobre o peito e cabeça baixa, fazia fervorosa Comunhão espiritual. Depois beijava o crucifixo e a medalha de Filha de Maria. Jamais se separava do seu crucifixo; dia e noite conservava-o sobre o coração. Segurou-o entre as mãos até expirar, imprimiu-lhe o último beijo... 1 Caboré, ou caburé, é o nome popular da “scops decussata”, coruja do Brasil tropical, munida de orelhas e com os olhos muito abertos e redondos. Vê-se por este apelido o espírito de observação da jovem cearense e amiga da natureza. 50
  • 51. Também não tirava do dedo a sua aliança de noiva de Cristo. Irene usava sempre esse anel, que levava gravado o nome: Jesus Cristo. Algumas pessoas tomavam essa aliança por um noivado mundano. Este símbolo facilitava a Irene o trabalho de afugentar certos pretendentes, alguns deles bem apaixonados. Contra um deles, mais ousado, viu-se obrigada a usar de toda a sua energia, reforçada pela sombrinha, com a qual investiu contra o maluco, como me contou sorrindo. Certo dia, na Escola Remington, que ela dirigia, um rapaz estudante notou aquela aliança no dedo de Irene, mas, não a vendo nunca com noivo, ousou perguntar: D. Irene, o seu noivo mora aqui? Mora, sim – respondeu a jovem. E como é que eu nunca o vi aqui? - tornou o rapaz. Ao que Irene, sorrindo misteriosamente, respondeu: Oh! pois o meu noivo não sai de perto de mim; o senhor não o conhece? Dizendo isto, apresentou-lhe o lindo anel. O estudante tomou-o e leu: Jesus Cristo. E acrescentou: Eu logo vi que só mesmo podia ser Este... 51
  • 52. 9. OS RETRATOS DE IRENE Seria trabalho interessante estudar a evolução espiritual de Irene pelos numerosos retratos do seu álbum. Emprestou-me a mãe algumas dessas fotografias, e convido os leitores – ou antes, as leitoras – a estudarmos o itinerário psíquico de Irene à luz da sua fisionomia, das atitudes e da indumentária. O retrato na fl. 21, propriamente, não faz parte da nossa galeria, porque aquela criança de 3 aos é somente o germe da Irene que nos interessa. Naquele tempo vegetava apenas a parte física, mas dormia ainda a alma da jovem cearense, da cristã, da heroína da caridade, da grande amiga de Jesus-Hóstia. Em 1925 vivia Irene ainda, como a maior parte das suas companheiras, nas cidades e nos campos, essas jovens que se dizem católicas, mas cuja vida se move nas planícies rasteiras das banalidades sociais, do flirt, dos bailes, dos cinemas, dos passeios pelas avenidas, nas praias, pensando em romances, namoros, beleza física e outras vacuidades. Contemplemos o retrato de Irene na fl. 22: vestido decotado e sem mangas, e, o que é bem mais sintomático, ela mesma com um semblante inexpressivo, vulgar, de moça sem idéias nem ideais, sem introspeção nem vida superior. O retrato da fl. 33 não permite um estudo mais acurado; não aparecem as feições de Irene. Em pé, na proa duma respeitável embarcação, atravessa o rio Jaguaribe, por ocasião duma enchente; com uma larga fita segurando o cabelo, para poder trabalhar à vontade, empunha o pesado remo, disposta a lutar contra os elementos, assim como, mais tarde, enfrentaria intrépida as invisíveis potências de Satanás. No próximo ano, aos 20 anos de idade (fl. 32), aparece em trajo mais decente, espécie de uniforme, mas ainda sem expressão nem alma no semblante, fisionomia neutra, rosto de moça que ainda não adivinhou, para além do oceano da vida material, a estupenda América das grandezas de Deus. Também, como descobrir esses mundos incógnitos, se ela não tinha a coragem de se afastar das praias seguras e fagueiras das suas comodidades de cada dia?... Para descobrir a América das realidades espirituais é necessário ter alma de Colombo e, a despeito de toda a prudência dos homens sensatamente rotineiros, atirar-se ao infinito, arriscar o “salto mortal” para o incógnito e lançar-se, com divina audácia e temeridade, para além do horizonte das nossas experiências pessoais. A fé supõe sempre um “salto mortal” para essas misteriosas regiões, que aos profanos parecem um vácuo, mas onde os iniciados encontram a plenitude de todas as realidades. A fé é a academia dos espíritos fortes e audazes – a incredulidade é um asilo de inválidos para almas aleijadas... Em 1929 (retrato do frontispício), temos Irene, sentada num rico sofá, com 52