O documento discute as fundações empíricas das leis dinâmicas de Newton. Apresenta brevemente a cosmologia aristotélica e como a mecânica newtoniana representou uma ruptura com conceitos anteriores. Argumenta que embora as teorias físicas se apoiem na experiência, as leis não podem ser confrontadas individualmente com os fatos, como defendido por Newton e outros.
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
Chibeni fundamentação empírica das leis de newton
1. Revista Brasileira de Ensino de F
sica, vol. 21, no. 1, Maro, 1999
c
1
A Fundamenta~o Emp
rica das Leis
ca
Din^micas de Newton
a
The empirical foudations of Newton's laws of dynamics
Silvio Seno Chibeni
Departamento de Filoso a - IFCH - Unicamp
Cx. Postal 6110, 13081-970 - Campinas - SP - Brasil
chibeni@unicamp.br - http: www.unicamp.br chibeni
Recebido em 2 de Setembro, 1998
Embora hoje seja praticamente consensual que qualquer teoria f
sica bem-sucedida ap
ia-se na
o
experi^ncia, ainda
comum entre cientistas a vis~o segundo a qual as leis que formam as teorias s~o
e
e
a
a
pass
veis de receber con rma~o ou refuta~o emp
ricas individualmente. Essa tese foi duramente
ca
ca
criticada por epistem
logos da ci^ncia contempor^neos, com base em argumentos los
cos diversos.
o
e
a
o
Neste trabalho procura-se ilustrar a sua insustentabilidade por meio de uma an
lise conceitual das
a
leis da mec^nica newtoniana. Palavras-chaves: mec^nica newtoniana, Newton, loso a da f
sica.
a
a
Nowadays, there is little doubt that any respectable physical theory possesses empirical foundations.
It has also been widely believed, since the inception of modern science in the seventeenth century,
that the laws forming the theories are capable of being individually confronted with experience.
This latter thesis has been severely criticised by contemporary philosophers of science, but it is still
popular among scientists and laymen. In this paper this view is shown to be untenable through a
conceptual analysis of one of the most successful physical theories, Newtonian mechanics. Keywords:
Newtonian mechanics, Newton, philosophy of physics.
I. Introdu~o
ca
Ao longo de toda a hist
ria da loso a,
o
confrontaram-se duas principais doutrinas sobre a natureza do conhecimento do mundo f
sico: empirismo
e racionalismo. De acordo com os l
sofos empiriso
tas, todo o nosso conhecimento acerca das entidades e
processos materiais prov
m da experi^ncia, ou nela se
e
e
ap
ia. Para os l
sofos racionalistas, por outro lado,
o
o
seria poss
vel conhecer pelo menos algumas das leis fun
damentais que regem os fen^menos materiais sem apelo
o
a observa~es. Com o surgimento da ci^ncia moderna,
co
e
a partir do s
culo XVII, a posi~o racionalista foi pere
ca
dendo terreno, n~o obstante haver sido defendida por
a
guras da import^ncia de Descartes, Leibniz e Kant.
a
Hoje
virtualmente ignorada tanto por cientistas como
e
por l
sofos da ci^ncia.
o
e
Uma importante quest~o epistemol
gica que surge
a
o
dentro do campo empirista
a que diz respeito
2. forma
e
a
pela qual as teorias que sintetizam e ordenam nosso
conhecimento do mundo ligam-se
4. emp
rica, como dizem os l
sofos. E ainda bastante co
o
mum a opini~o de que cada um dos princ
pios ou leis
a
que integram as teorias f
sicas
descoberto a partir
e
dos fen^menos, por um processo de observaao e geo
c~
neralizaao. Outra possibilidade
manter que as leis
c~
e
n~o s~o propriamente descobertas, mas inventadas, a
a a
t
tulo de hip
teses, devendo, no entanto, passar por um
o
confronto com a experi^ncia antes de serem admitidas
e
no corpo te
rico. Foge ao escopo deste artigo comparar
o
essas duas posi~es, e comentar as fortes objeoes que os
co
c~
l
sofos da ci^ncia levantaram contra a primeira delas.
o
e
Queremos apenas salientar que t^m algo comum: a sue
posi~o que o v
nculo da experi^ncia com a teoria se faz
ca
e
via suas leis consideradas individualmente. Sobre esta
tese houve virtual consenso at
nosso s
culo, quando
e
e
uma s
rie de argumentos los
cos evidenciaram que
e
o
ela n~o pode sustentar-se. Uma das cr
ticas mais ina
uentes foi a lanada por Willard Quine em 1951 ver
c
Quine 1980.
Neste trabalho n~o procuraremos sequer esboar os
a
c
intricados debates los
cos sobre esse assunto. Nosso
o
6. mesma conclus~o a que chegae
a
a
ram os epistem
logos por uma rota diferente: o exame
o
direto dos fundamentos emp
ricos de uma das mais
bem-sucedidas teorias cient
cas de todos os tempos,
a mec^nica Newtoniana.
a
E interessante notar que o pr
prio Newton procurou
o
separar cuidadosamente, na exposiao de sua teoria, as
c~
de ni~es e as leis, sustentando impl
cita ou explico
citamente que estas ultimas eram a express~o re nada e
a
generalizada de fatos emp
ricos. No Esc
lio Geral do
o
nal dos Philosophiae Naturalis Principia Mathematica,
por exemplo, ap
s a famosa recusa de propor hip
teses
o
o
para explicar a fora gravitacional, acrescenta que
c
na loso a experimental ... as proposi~es particulares s~o
co
a
inferidas a partir dos fen^menos e depois generalizadas por
o
indu~o. Assim foi que a impenetrabilidade, a mobilidade
ca
e a fora impulsiva dos corpos, bem como as leis de moc
vimento e de gravita~o foram descobertas. P. 547; grifaca
mos.
Ao longo de sua gloriosa trajet
ria nos dois s
culos
o
e
subsequentes, a mec^nica newtoniana foi objeto de dia
versas extens~es e reinterpreta~es que, se nunca cheo
co
garam a p^r em d
vida sua corre~o emp
rica global,
o
u
ca
muitas vezes envolveram o deslocamento das fronteiras
traadas por seu criador entre de niao e experi^ncia,
c
c~
e
entre conven~o e fato. Propostas nesse sentido abunca
daram especialmente na segunda metade do s
culo XIX,
e
com Kirchho , Thomson, Tait, Hertz, Helmholtz, Poincar
, ao lado de algumas outras guras de menor ime
port^ncia. No entanto, foi a profunda cr
tica elaborada
a
por Ernst Mach a partir de 1868 a que maior repercuss~o teve em todo o desenvolvimento posterior da
a
mec^nica e, quase se poderia acrescentar, de toda a
a
f
sica e loso a da ci^ncia. O objetivo de Mach era
e
o de conferir clareza conceitual e te
rica
7. mec^nica
o a
a
e, principalmente, livr
-la das no~es metaf
sicas de
a
co
espao e tempo absolutos.
c
Todavia, mesmo signi cando uma rede niao radic~
cal das distin~es newtonianas, a proposta de Mach n~o
co
a
questiona o pressuposto epistemol
gico fundamental de
o
que h
, a nal de contas, uma demarcaao mais ou mea
c~
nos n
tida entre proposi~es emp
ricas e proposi~es
co
co
convencionais ou formais. A formulaao alternativa
c~
de Mach envolve explicitamente a separa~o das proca
posi~es experimentais das de ni~es. Logo ap
s a
co
co
o
sua exposi~o, Mach comenta, a seu respeito:
ca
Nela os enunciados s~o, al
m disso,
bvios e claros; pois
a e
o
Silvio Seno Chibeni
n~o pode subsistir d
vida, relativamente a cada um, quanto
a
u
ao seu signi cado ou quanto
8. sua fonte; e sabemos sempre
a
se expressa uma experi^ncia ou uma conven~o arbitr
ria.
e
ca
a
Mach 1974, p. 304
E a partir desse referencial epistemol
gico tradicio
onal que empreenderemos a an
lise das leis de Newa
ton, na tentativa de mostrar, pelos numerosos problemas que engendra, a necessidade de seu abandono.
Tendo em vista o per l da Revista Brasileira de Ensino de F
sica, detalhes mais complexos ser~o evitados;
a
tamb
m nos absteremos de reexaminar
9. luz das teoe
a
rias da relatividade alguns dos problemas aqui discutidos. Igualmente, as quest~es hist
ricas, relevantes para
o
o
uma an
lise mais completa, s
ser~o mencionadas brea
o a
vemente e na medida estrita da necessidade.
II. O pano de fundo hist
rico e conceitual
o
Nossa familiaridade com a mec^nica cl
ssica torna
a
a
dif
cil apreender o car
ter revolucion
rio dessa teoria,
a
a
relativamente a toda a tradi~o cient
ca anterior. Soca
mente o estudo cuidadoso da hist
ria da ci^ncia permite
o
e
perceber que seu desenvolvimento, ao longo dos s
culos
e
XVI e XVII, envolveu a rejei~o n~o apenas de algumas
ca a
leis, mas tamb
m de alguns dos conceitos, m
todos e
e
e
valores mais fundamentais da ci^ncia e mesmo da cone
cep~o geral de mundo. N~o h
espao aqui para forca
a a
c
necer sequer uma sinopse dessas transforma~es. No
co
entanto, alguns pontos centrais devem ser lembrados,
para melhor compreens~o da an
lise fundacional das
a
a
se~es seguintes.
co
De forma muito simpli cada, pode-se dizer que a implantaao da nova mec^nica deu-se sobre um pano de
c~
a
fundo cosmol
gico que remonta
10. Antiguidade Grega.
o
a
Essa cosmologia foi consolidada por Arist
teles 384o
322 a.C.. Segundo ele, o Universo
nito, esf
rico e
e
e
cheio; n~o h
vazio. A Terra ocupa o centro; os cora a
pos celestes giram em esferas conc^ntricas, a primeira
e
sendo a da Lua. Essa esfera divide o Universo em duas
regi~es completamente distintas. A regi~o supraluo
a
nar comp~e-se de
ter, uma subst^ncia imponder
vel
o
e
a
a
cujo movimento natural
circular e eterno. No mundo
e
sublunar tudo
formado de quatro elementos: terra,
e
a
gua, ar e fogo. Para esses elementos os movimentos
naturais s~o sempre radiais, relativamente ao centro do
a
Universo. Para os nossos prop
sitos,
importante obo
e
servar que todo movimento natural se d
sem o cona
curso de foras. Foras s~o requeridas apenas para a
c
c a
produ~o dos demais movimentos, ditos violentos ou
ca
forados, como o de uma echa ou o de uma carroa.
c
c
11. Revista Brasileira de Ensino de F
sica, vol. 21, no. 1, Maro, 1999
c
Toda fora se exerce por contato. No mundo sublunar,
c
o repouso
o estado natural dos corpos; o movimento
e
sempre um processo, que visa a conduzir o corpo ao
e
seu lugar natural.
Arist
teles desenvolveu uma f
sica bastante como
plexa em torno dessas no~es e princ
pios. Do ponto
co
de vista intuitivo, era muito plaus
vel, fato que explica
em parte sua longa aceita~o e o grande esforo intelecca
c
tual exigido para sua substitui~o.
ca
A f
sica aristot
lica era deliberadamente qualitativa.
e
No s
culo XIV, foram feitas em Oxford e Paris algumas
e
tentativas relevantes, por
m muito modestas relativae
mente ao que ainda estava por vir, de matematizar o
estudo do movimento.
Por
m a contribui~o mais importante da Idade
e
ca
M
dia na dire~o de uma nova mec^nica foi a chamada
e
ca
a
teoria do impetus. A grande di culdade dos Antigos
era explicar por que os corpos continuam seus movimentos violentos por algum tempo ap
s o contato com
o
o agente motor haver cessado. Alguns te
ricos medieo
vais, entre os quais se destacam Philoponos s
c. VI
e
e Jean Buridan s
c. XIV, propuseram ent~o que, ao
e
a
mover-se, os corpos adquirem uma fora interna, o
c
impetus, que os empurra quando o motor deixa de agir,
gastando-se no entanto ao longo do movimento, at
que
e
o corpo p
ra. Uma primeira cunha introduzia-se, assim,
a
no sistema aristot
lico, com a viola~o do princ
pio da
e
ca
externalidade das causas do movimento violento.
Voltando
12. astronomia, conv
m lembrar que
a
e
uma importante teoria astron^mica quantitativa
o
geom
trica foi desenvolvida por Ptolomeu, no s
culo
e
e
II d.C. Ela preservava as caracter
sticas b
sicas da cos
a
mologia aristot
lica, entre as quais se destaca o geocene
trismo. Em que pese a tentativa malsucedida de Aristarco de Samos s
c. III a.C., foi somente a partir do
e
s
culo XVI que o geocentrismo comearia a ser questioe
c
nado, com base no sistema astron^mico helioc^ntrico de
o
e
Cop
rnico 1473-1543. A grande relut^ncia
14. incompatibilia
dade completa da hip
tese do movimento da Terra com
o
a f
sica de Arist
teles. Segundo ela, se a Terra de fato
o
se movesse, ocorreriam os seguintes efeitos: 1. Corpos
largados de torres cairiam a oeste da vertical; 2. Fortes
ventos se produziriam de leste para oeste; 3. os corpos
n~o ligados a terra seriam lanados ao ar; 4. A Lua
a
15. c
seria deixada para tr
s pelo movimento anual da Terra;
a
3
5. Paralaxe estelar seria observada. Ora, como estas
e outras consequ^ncias evidentemente n~o se veri cam,
e
a
estava claro que a Terra n~o se movia.
a
De forma prima facie implaus
vel, o curso hist
rico
o
acabou favorecendo Cop
rnico, com a necess
ria subse
a
titui~o da milenar f
sica aristot
lica. Esse processo
ca
e
her
ico deveu-se a obstinaao de alguns homens de
o
16. c~
g^nio dos s
culos XVI e XVII, entre os quais se dese
e
taca Galileo Galilei 1564-1642. Bruno 1548-1600,
Kepler 1571-1630, Descartes 1596-1650 e Huygens
1629- 1695 devem tamb
m ser mencionados. Quando
e
Newton 1642-1727 entrou em cena, o terreno achavase j
bem aplainado.1
a
III. A primeira lei
Vejamos inicialmente o texto dos Principia em que
Newton enuncia sua primeira lei din^mica, o chamado
a
princ
pio de in
rcia:
e
LEI I: Todo corpo continua em seu estado de repouso, ou de
movimento uniforme em uma linha reta, a menos que seja
obrigado a mudar esse estado por foras impressas sobre ele.
c
Dos pontos de vista hist
rico e conceitual, tal
o
princ
pio tem uma import^ncia fundamental, pois re
a
classi ca os fen^menos de movimento, incluindo o moo
vimento uniforme ao longo de uma linha reta na categoria de estado. Esse tipo de movimento deixa de requerer uma explica~o causal, dando-se sem o concurso
ca
de foras. Isso contraria a tradi~o cient
ca medieval
c
ca
e aristot
lica, constituindo a caracter
stica conceitual
e
mais inovadora da mec^nica cl
ssica.
a
a
O princ
pio de in
rcia j
havia sido proposto, no que
e
a
tem de essencial, tanto por Galileo como por Descartes. As fundamentaoes que cada um forneceu para o
c~
princ
pio op~em-se frontalmente uma
17. outra. Galileo
o
a
alegava que ele era o resultado de certos experimentos, embora os historiadores reconheam hoje que muic
tos desses experimentos eram apenas de pensamento.
Em sua abordagem racionalista, por outro lado, Descartes deduziu a lei de in
rcia a partir de pressupostos
e
metaf
sicos, particularmente a imutabilidade de Deus.
Quanto a Newton, n~o apontou experimentos que pesa
soalmente tivesse feito para descobrir ou con rmar a lei
1 Para uma exposiao hist
rica muito did
tica de alguns traos das teorias astron^micas e f
sicas anteriores a Newton, ver Lucie
c~
o
a
c
o
1977. Dentre as in
meras obras de historiadores da ci^ncia sobre esse assunto, consultem-se, por exemplo, Kuhn 1957 e Cohen 1980;
u
e
em portugu^s,
util ler Cohen 1967 e Evora 1988. Uma boa introdu~o hist
rica
18. loso a da ci^ncia encontra-se em Losee 1980. Para
e e
ca
o a
e
os desdobramentos referentes as teorias da relatividade, ver Ghins 1991; e para uma cr
tica original dessas teorias, Assis 1998.
19.
20. 4
de in
rcia, por
m como se v^ no trecho citado na Ine
e
e
trodu~o, considerava-a, junto com as outras duas leis,
ca
como havendo sido inferida a partir dos fen^menos.
o
Para comear a an
lise cr
tica dessa alega~o, noc
a
ca
temos que a lei de in
rcia cont
m essencialmente duas
e
e
a rma~es distintas: i Se a fora que age em um corpo
co
c
nula ent~o ele seguir
em movimento retil
neo e unie
a
a
forme MRU; e ii Se um corpo est
em MRU ent~o
a
a
a fora que sobre ele atua
nula. Para facilitar a vic
e
sualiza~o de nossos argumentos, representemos essas
ca
a rma~es esquematicamente por
co
i F=0 ! MRU
ii MRU ! F=0.
Naturalmente n~o se trata aqui de implica~es l
gicas,
a
co o
mas f
sicas: a condi~o F=0 acarreta sicamente o es
ca
tado de MRU; e tal estado indica, por motivos f
sicos,
que F=0.
Assim, para fornecermos con rmaao emp
rica para
c~
a lei de in
rcia precisamos encontrar situaoes f
sicas
e
c~
nas quais a ocorr^ncia de uma condi~o leve
21. e
ca
a
ocorr^ncia da outra. Precisamos pois de crit
rios
e
e
emp
ricos para determinar se foras atuam em um corpo
c
e para determinar se ele est
em MRU.
a
Para que a lei de in
rcia possa expressar um fato
e
sobre o mundo
obviamente indispens
vel que tais
e
a
crit
rios independam da pr
pria lei, ou seja, se dispue
o
sermos de um crit
rio para F=0, n~o poderemos adotar
e
a
como crit
rio para MRU o fato de a fora ser nula; e
e
c
se tivermos um crit
rio para MRU, nosso crit
rio para
e
e
F=0 n~o pode ser o fato de o corpo estar em MRU. Em
a
ambos os casos a validade da lei de in
rcia seria assue
mida, e a lei teria um car
ter puramente convencional.
a
Essas duas maneiras de entender a primeira lei de
Newton t^m sido defendidas por cientistas e l
sofos
e
o
da f
sica. Muitos de nem MRU como o movimento de
corpos que n~o est~o sujeitos
22. a~o de foras; e outros
a a
a ca
c
estipulam como crit
rio para a aus^ncia de foras o fato
e
e
c
de o corpo estar em MRU. Tais posi~es s~o leg
timas;
co a
mas se adotadas deve-se estar preparado para reconhecer o car
ter n~o-emp
rico da lei que nesse caso nem
a a
deveria ser chamada `lei'.
Procuraremos evitar tal interpretaao, pelo menos
c~
por enquanto, para tentar ver se o princ
pio de in
rcia
e
pode de fato ser entendido como uma lei emp
rica. Pre
cisaremos ent~o encontrar crit
rios para reconhecer ema
e
piricamente a exist^ncia de foras e o movimento ree
c
til
neo uniforme. Na pr
xima se~o exporemos com al
o
ca
guma extens~o as di culdades que envolvem os crit
rios
a
e
Silvio Seno Chibeni
para a exist^ncia de foras; agora vejamos brevemente
e
c
algo sobre aquelas relativas aos crit
rios para o recoe
nhecimento emp
rico do MRU. Tais crit
rios envolvem
e
as no~es de:
co
a Movimento. Aqui surge a quest~o do sistema de
a
refer^ncia, ou referencial, em rela~o ao qual se estuda o
e
ca
movimento. Evidentemente essa
uma quest~o fundae
a
mental. Posi~o, velocidade e acelera~o - os conceitos
ca
ca
cinem
ticos b
sicos da teoria - s~o sempre relativos a
a
a
a
um certo referencial. Tamb
m est
claro que nem todo
e
a
sistema de refer^ncia ser
apropriado: se um corpo est
e
a
a
em MRU em um referencial S, n~o estar
em outro refea
a
.
rencial S' acelerado em rela~o a S. Assim, o 1o Axioma
ca
nunca poder
valer em ambos S e S'.
a
Que referencial, ou classe de referenciais, devemos
ent~o adotar? Podemos ser imediatamente tentados a
a
responder, como muitos fazem: Aqueles nos quais a
primeira lei de Newton
v
lida os referenciais ditos
e a
inerciais. Se por
m for essa a resposta, tornaremos
e
essa lei verdadeira, mas por conven~o, e portanto desca
titu
da de qualquer conte
do emp
rico.
u
Como
bem conhecido, Newton defendeu a
e
exist^ncia do espao absoluto Principia, esc
lio das
e
c
o
De ni~es, e assumia que era com relaao a esse
co
c~
espao que suas leis do movimento deviam ser aplic
cadas. Os argumentos apresentados por Newton a esse
respeito suscitaram uma das maiores discuss~es nos funo
damentos da f
sica, que em um certo sentido perdura
at
hoje. Ficaram famosas, por exemplo, as obje~es de
e
co
Leibniz, ao tempo de Newton, e mais recentemente as
cr
ticas de Mach. Voltaremos a esse ponto na pen
ltima
u
se~o. Por ora, notemos apenas que o espao absoluto
ca
c
n~o parece ser acess
vel
23. observa~o, o que nos deixa
a
a
ca
sem um crit
rio efetivo de reconhecimento de MRU.
e
b Retilinearidade. Deparamos aqui com a tamb
m
e
complexa quest~o da de ni~o de linha reta, que ena
ca
volve a escolha da geometria empregada. Para salvaguardar o car
ter emp
rico da lei de in
rcia, ter
amos
a
e
que dispor de crit
rios para reconhecer empiricamente
e
uma linha reta que independam dessa mesma lei. Newton acreditava que a geometria euclidiana descrevia o
mundo real idealizadamente, e assim o presente problema n~o o a igia, pois essa ci^ncia independente
a
e
e
que de niria o que
uma linha reta. Com o advento
e
das geometrias n~o-euclidianas no s
culo XIX, surgiram
a
e
d
vidas sobre o estatuto epistemol
gico das proposi~es
u
o
co
geom
tricas, e tais d
vidas persistem at
nossos dias.
e
u
e
Qual dessas geometrias devemos tomar para caracterizar as linhas retas? Notemos ainda que aqui tamb
m
e
24. 5
Revista Brasileira de Ensino de F
sica, vol. 21, no. 1, Maro, 1999
c
se encontra a opini~o de que por linha reta devemos
a
entender a trajet
ria de corpos livres da aao de foras.
o
c~
c
Mais uma vez, isso faz valer a lei de in
rcia opor dee
creto, retirando-lhe o eventual car
ter emp
rico.
a
cUniformidade. A determina~o da uniformidade
ca
de um movimento envolve problemas relativos
25. s mea
didas de espao e de tempo. Como determinar a igualc
dade de dois segmentos espaciais? O recurso a corpos
r
gidos o metro-padr~o de S
26. vres, talvez levanta as
a
e
quest~es de se saber o que
um corpo r
gido, qual o seu
o
e
comportamento quando transportado, etc. O uso de sinais a luz, por exemplo suscita quest~es ainda mais
o
desanimadoras: como podemos justi car a assun~o de
ca
que um sinal se propaga com velocidade constante?
Al
m disso, como determinar a igualdade de dois
e
intervalos de tempo? Newton defendia a exist^ncia do
e
tempo absoluto. No entanto, do mesmo modo que
o espao absoluto, ou talvez mais ainda, tal tempo
c
e
inacess
vel empiricamente o que o pr
prio Newton re
o
conheceu. Assim, temos que escolher um certo movimento peri
dico para medir o tempo, ou seja, um
o
rel
gio. Como podemos justi car essa escolha? Como
o
escolher entre um p^ndulo e um rel
gio d'
gua, por
e
o
a
exemplo?
Como sempre, h
aqui sa
das que acarretam a vaa
cuidade emp
rica da lei de in
rcia. De fato, tem-se de
e
fendido que dois segmentos espaciais s~o iguais se forem
a
percorridos no mesmo tempo por um corpo livre da a~o
ca
de foras; e tamb
m que dois intervalos temporais s~o
c
e
a
iguais se no seu transcurso um corpo livre da a~o de
ca
foras percorre dist^ncias iguais!
c
a
Embora sucinta e simpli cada, essa discuss~o basta
a
para mostrar que n~o
f
cil caracterizar o movia e a
mento retil
neo e uniforme independentemente da lei de
in
rcia. Descorooados por essa situa~o, passemos aos
e
c
ca
crit
rios para a exist^ncia de foras, assumindo, para
e
e
c
n~o encerrarmos laconicamente toda a an
lise, que disa
a
pomos de um crit
rio para determinar se um corpo est
e
a
em MRU.
IV. A quest~o da exist^ncia de foras
a
e
c
A no~o de fora tem origem intuitiva na sensaao
ca
c
c~
de esforo muscular. Parece bastante claro que para
c
uma fundamenta~o rigorosa da mec^nica essa no~o
ca
a
ca
antropom
r ca de fora n~o pode ser utilizada. Preo
c a
cisamos de crit
rios objetivos para a rmar que os core
pos est~o de fato sob a a~o de foras. Os cientistas
a
ca
c
que desenvolveram a nova f
sica procuraram objetivar
as foras por meio de efeitos mensur
veis, em geral a
c
a
deforma~o de certos corpos, como molas, por exemplo.
ca
Algumas das di culdades desta proposta ser~o analisaa
das logo mais. Vejamos antes que j
com aquela no~o
a
ca
intuitiva de fora surgem problemas para justi car a lei
c
de in
rcia.
e
Comecemos pela implica~o MRU ! F=0, isto
,
ca
e
pela a rmaao de que se um corpo est
em MRU
c~
a
ent~o sobre ele n~o agem foras. Tomando, para faa
a
c
cilitar, a implica~o equivalente, obtida por contraca
posi~o l
gica, ou seja, : F=0 ! : MRU o `:
ca o
e
s
mbolo da nega~o, vemos que aparentemente h
mui
ca
a
tas situa~es ordin
rias que
27. primeira vista con rmam
co
a
a
essa implica~o: situa~es nas quais percebemos, de
ca
co
um modo intuitivo, que agem foras, veri camos que
c
o corpo n~o est
em MRU. Mas h
tamb
m outras
a
a
a
e
em que a implica~o parece falsa. Quando sustentamos
ca
uma pedra em nossas m~os, por exemplo, percebemos
a
que estamos aplicando uma fora sobre ela e no entanto
c
vemos que permanece em repouso caso particular de
MRU.
Algu
m poderia replicar: A fora F que a m~o
e
c
a
aplica na pedra
compensada por uma fora para baixo
e
c
- a fora gravitacional -, que a Terra exerce sobre ela.
c
Mas como sabemos que tal fora existe? Se dissermos
c
que
porque caso contr
rio a pedra aceleraria para
e
a
cima, ca
mos em um c
rculo: Essa a rma~o pressup~e
ca
o
exatamente a parte a lei de in
rcia que est
em quest~o
e
a
a
MRU ! F=0.
Outra tentativa poderia ser apelar para a lei de aao
c~
e rea~o 3a: Lei de Newton. Mas isso suscita a quest~o
ca
a
de saber se essa lei tem fundamenta~o emp
rica. Al
m
ca
e
disso, ainda que tenha, n~o poderia de nenhum modo
a
auxiliar aqui. A reaao de F
uma fora do corpo soc~
e
c
bre seu suporte m~o, mesa, corda, etc., e essa fora
a
c
obviamente n~o
a fora gravitacional procurada.
a e
c
A implicaao F=0 ! MRU parece apresentar proc~
blemas semelhantes. Tomemos a experi^ncia da pee
dra que gira numa funda, discutida por Ren
Descartes
e
nos Principes de la Philosophie parte II, x39. Inicialmente, aceitemos, como usualmente se faz quando se
discute essa experi^ncia, que, quando largada, a pedra
e
sai em linha reta tangencialmente
28. sua trajet
ria circua
o
lar, e com a mesma velocidade escalar. A argumenta~o
ca
usual
, ent~o: Quando a pedra deixa a funda, sobre
e a
ela n~o atuam foras, e assim prosseguir
em MRU,
a
c
a
como de fato se observa.
Ora, com base em que se pode a rmar que sobre a
pedra solta n~o atuam foras? Lembremos, por exema
c
plo, que para os defensores da teoria do impetus agiria,
0
29. 6
Silvio Seno Chibeni
neste caso, uma fora interna, respons
vel pela contic
a
nua~o do movimento da pedra. Como podemos negar
ca
essa possibilidade? Que fatos emp
ricos nos mostram
que essa fora interna n~o existe?
c
a
Pior ainda: se possu
ssemos evid^ncia nesse sentido,
e
o experimento representaria a refuta~o emp
rica da
ca
parte da lei de in
rcia em an
lise! Isso porque a pee
a
dra de fato n~o sai da funda em MRU: descreve uma
a
trajet
ria curva, aproximadamente parab
lica. Imediao
o
tamente somos tentados a replicar: Mas isto se deve
a c
30. fora de gravidade. Por
m semelhante escapat
ria
e
o
n~o funciona, pois ca
mos de novo no problema discua
tido acima. Al
m disso, ir por a
implica reconhecer a
e
irrelev^ncia do argumento. O que estamos procurando
a
suporte para a implica~oF=0 ! MRU, enquanto que
e
ca
essa suposta r
plica aponta para o fato de que : F=0
e
! : MRU. Evidentemente, esta ultima implicaao n~o
c~ a
acarreta a primeira, ou seja, n~o podemos argumentar
a
a favor daquela por meio desta. O que queremos aqui
uma indica~o positiva de que na aus^ncia de foras
e
ca
e
c
o movimento
retil
neo uniforme.
e
Poder
amos talvez, como
31. s vezes se sugere, imagi
a
nar o experimento em um local distante de quaisquer
outros corpos, como presumivelmente
o caso do espao
e
c
intergal
ctico, onde comumente se alega que n~o agem
a
a
foras. Mas como comprovar isso independentemente
c
da lei de in
rcia? E ainda mais: o que nos garante que
e
l
o corpo estar
em MRU?
a
a
Essa discuss~o, de car
ter ilustrativo, mostra que
a
a
precisamos tentar um caminho diferente. E o que Brian
Ellis procura fazer em interessante artigo de 1965. Ellis
ensaia ali a elabora~o de um crit
rio geral para a
ca
e
exist^ncia de foras. Em termos esquem
ticos, prop~e
e
c
a
o
que estas quatro asseroes s~o equivalentes:
c~ a
1 O objeto est
sob a a~o de foras;
a
ca
c
2 i Persiste em um estado que consideramos n~oa
natural; ou
ii est
mudando de um modo que consideramos n~oa
a
natural;
3 Esse comportamento requer uma explicaao causal;
c~
4 Sentimos que esse comportamento n~o
su cientea e
mente explicado por uma lei de sucess~o.
a
Ellis de ne uma lei de sucess~o como uma lei que
a
nos capacita predizer os estados futuros de um sistema
qualquer ... simplesmente a partir do conhecimento
de seu estado presente, assumindo-se que as condi~es
co
sob as quais ele existe n~o se alteram p. 45. Proa
cura mostrar, por meio de exemplos tirados da hist
ria
o
da f
sica, que o crit
rio proposto produz os resultados
e
requeridos. No entanto, o crit
rio enfrenta duas di cule
dades s
rias.
e
A primeira, que Ellis n~o nota,
que o crit
rio faa
e
e
lha em situa~es f
sicas importantes: o movimento de
co
queda livre de uma pedra requer, na f
sica aristot
lica,
e
uma explica~o causal de ordem teleol
gica: a pedra
ca
o
cai porque procura seu lugar natural, no centro do Universo; no entanto representa uma mudana complec
tamente natural, sem o concurso de foras, segundo
c
Arist
teles; assim, a implicaao 3 ! 2
falsa, nesse
o
c~
e
caso. J
na mec^nica newtoniana essa mesma queda lia
a
vre tamb
m requer uma explica~o causal fora gravie
ca
c
tacional, perfeitamente bem explicada pela subsunao
c~
a uma lei de sucess~o a lei galileana de queda livre;
a
agora
a implica~o 3 ! 4 que
falsa.
e
ca
e
A outra di culdade, apontada pelo pr
prio Ellis,
o
e
que o crit
rio proposto n~o
objetivo: depende do que
e
a e
achamos natural, bem explicado, assim como de nossa
no~o de lei de sucess~o.
ca
a
Ellis tenta ainda buscar um crit
rio objetivo para a
e
exist^ncia de foras independente da lei de in
rcia pela
e
c
e
explora~o da correla~o que existe entre stress e forma
ca
ca
natural. Nas linhas do crit
rio geral exposto acima,
e
um corpo estar
sob stress se e somente se estiver em
a
uma forma n~o-natural. Ellis prop~e que a forma de um
a
o
corpo ser
natural se e somente se as seguintes condi~es
a
co
forem satisfeitas:
a A forma
est
vel i.e., n~o varia com o tempo;
e a
a
b A forma
independente da orienta~o; e
e
ca
c As mudanas de forma sofridas por causa de uma
c
rota~o positiva ou negativa em torno de um eixo qualca
quer s~o as mesmas.
a
Ellis sugere que se adote como crit
rio para a aao
e
c~
de foras sobre um corpo que ele esteja sob stress; e isso
c
poderia ser veri cado pelo exame da forma do corpo.
Ellis ilustra a aplicaao desse crit
rio em algumas sic~
e
tua~es f
sicas. Por
m tamb
m aqui encontramos di co
e
e
culdades insuper
veis, n~o notadas por Ellis.
a
a
Primeiro, o crit
rio
aplic
vel apenas a corpos
e e
a
s
lidos e macrosc
picos, acerca dos quais se possa fao
o
lar em forma e deforma~o. Depois, n~o parece forneca
a
cer o resultado desejado em todos os casos. Uma mola
comprimida dentro de uma nave espacial sem motor no
espao intergal
ctico, por exemplo, estaria sob stress e
c
a
em MRU, segundo acreditamos.
Finalmente, Ellis elabora um elegante e original
argumento contra qualquer tentativa de estabelecer o
car
ter emp
rico isolado da lei de in
rcia. Constr
i um
a
e
o
sistema de din^mica empiricamente equivalente ao newa
32. Revista Brasileira de Ensino de F
sica, vol. 21, no. 1, Maro, 1999
c
toniano, ou seja, que reproduz exatamente todas as suas
predi~es experimentais, e que no entanto tem uma lei
co
de in
rcia diferente, incompat
vel com a lei newtoniana.
e
Isso mostra que esta lei n~o
emp
rica quando consia e
derada isoladamente, pois caso contr
rio o sistema de
a
Ellis daria previs~es erradas.
o
A id
ia de Ellis foi a de embutir a gravita~o na
e
ca
lei de in
rcia, do seguinte modo:
e
1a: Lei: Todo corpo tem um componente de aceleraao
c~
relativa na direao de todo outro corpo do Universo
c~
diretamente proporcional
33. soma de suas massas e ina
versamente proporcional ao quadrado da dist^ncia que
a
os separa, a menos que ele esteja sob a a~o de uma
ca
fora;
c
2a: Lei: F = ma onde a
a aceleraao relativa
34. acee
c~
a
lera~o natural: a = aabsoluta - anatural ;
ca
3a: Lei: F12 = - F21 .
A coer^ncia e a adequa~o emp
rica do sistema de
e
ca
Ellis, bem como nossas tentativas preliminares fracassadas, mostram que aparentemente n~o
poss
vel mana e
ter que a lei de in
rcia possui conte
do emp
rico quando
e
u
tomada isoladamente.
V. A segunda lei
Newton enuncia a Segunda Lei nos seguintes termos
LEI II: A mudana de movimento
proporcional
35. c
e
a
fora motiva impressa; e se d
na dire~o da linha
c
a
ca
reta na qual essa fora
impressa.
c e
Como observou Ellis, esse enunciado original difere
signi cativamente daquele com o qual estamos familiarizados F = ma. Primeiro, o enunciado de Newton
e
uma rela~o de proporcionalidade, e n~o de igualdade.
ca
a
Depois, e mais importante, a fora
proporcional n~o
c e
a
a
37. pr
pria varia~o da quantidade de movimento. Isso
ca
implica que o conceito de fora envolvido n~o corresc
a
ponde ao nosso conceito de fora, mas ao de impulso.
c
Ellis analisou as implica~es de tais fatos admiravelco
mente. N~o prosseguiremos esse assunto aqui, notando
a
apenas que a diferena dos enunciados n~o ser
imporc
a a
tante para a nossa an
lise.
a
.
Qual seria o estatuto epistemol
gico do 2o Axioma
o
de Newton? Tudo indica que Newton o interpretava
mesmo como um fato experimental. Ele de ne fora
c
impressa como uma aao exercida sobre um corpo
c~
7
para mudar o seu estado, seja de repouso, seja de movimento uniforme ao longo de uma linha reta. Essa
de ni~o torna claro que para Newton foras s~o cauca
c a
.
sas de varia~o de movimento. Assim, o papel do 2o
ca
Axioma seria o de quanti car essa rela~o de causa e
ca
efeito. Dado o princ
pio metaf
sico, amplamente aceito
na
poca, de que a causa
proporcional ao efeito, seguee
e
.
se imediatamente o 2o Axioma proposto por Newton.
Se, todavia, tivermos que considerar convencional a
.
pr
pria exist^ncia de foras, o 2o Axioma n~o poder
o
e
c
a
a
estritamente expressar um fato emp
rico. Se escolher
mos um diferente movimento como sendo o movimento
natural, a lei de in
rcia mudar
, e consequentemente
e
a
tamb
m o conceito de fora.
e
c
No sistema de Ellis, por exemplo, h
aceleraoes
a
c~
produzidas por foras a de um corpo que oscila hoc
rizontalmente, movido por uma mola, por exemplo e
acelera~es naturais, que n~o s~o causadas por neco
a a
nhuma fora as aceleraoes que normalmente classi c
c~
car
amos de gravitacionais. E importante notar que
nessa a rma~o estamos tomando o conceito newtonica
ano de acelera~o. Com essa escolha,
evidente que o
ca
e
o Axioma n~o pode ser mantido: nem sempre o pro.
2
a
duto da massa pela acelera~o newtoniana ser
igual
38. ca
a
a
fora que age no corpo.
c
Para escaparmos a essa consequ^ncia, temos que fae
zer o que Ellis fez: adotar outro conceito de acelera~o
ca
.
na express~o de seu 2o Axioma: a acelera~o relaa
ca
.
tivizada ao novo movimento natural. Neste caso o 2o
Axioma poder
ser preservado em sua forma original.
a
fundamental observar que tanto em um caso como
E
.
no outro a falsea~o ou a preservaao do 2o Axioma reca
c~
sultaram de decis~es sobre o signi cado dos termos, e
o
n~o de um confronto com a experi^ncia. De fato, Kircha
e
ho , Mach e Boltzmann, entre outros, propuseram que
a segunda lei fosse interpretada como a de niao de
c~
fora. Essa proposta tornou-se amplamente aceita por
c
investigadores dos fundamentos da mec^nica cl
ssica,
a
a
mas veremos na pr
xima seao que n~o est
livre de
o
c~
a a
problemas.2
VI. A terceira lei e o conceito de massa
.
O uso do 2o Axioma como uma de ni~o de fora
ca
c
pressup~e que se disponha de uma de ni~o de massa
o
ca
independente desse axioma. Se de nirmos massa como
a raz~o da fora pela aceleraao, como
39. s vezes se faz,
a
c
c~
a
2 Al
m disso, Mach mantinha que a segunda lei torna a primeira redundante. Do ponto de vista moderno e estritamente l
gico Mach
e
o
tem raz~o. No entanto, como vimos, Newton tinha motivos para enunciar a lei de in
rcia isoladamente, pois isto colocava em evid^ncia
a
e
e
o aspecto conceitual mais importante de sua teoria.
40. 8
Silvio Seno Chibeni
.
obviamente n~o poderemos usar o 2o Axioma para dea
nir fora. E uma de ni~o independente de fora
c
ca
c
aparentemente n~o
poss
vel, pelo que vimos anteria e
ormente.
A de ni~o de massa dada por Newton Principia,
ca
De ni~o I tamb
m n~o ajuda, j
que ele a de ne como
ca
e a
a
o produto da densidade pelo volume, sem indicar como
se de ne densidade de modo independente.
.
Tamb
m n~o podemos recorrer ao 1o Axioma, pois
e a
n~o se refere a massa. Resta o 3o Axioma. O enunciado
a
de Newton
o seguinte:
e
LEI III: A cada aao op~e-se sempre uma rea~o igual;
c~ o
ca
ou as a~es m
tuas de dois corpos s~o sempre iguais
co u
a
e dirigidas a partes contr
rias.
a
Os exemplos dados por Newton logo depois do enunciado esclarecem que o princ
pio deve ser entendido
como uma rela~o entre foras, sendo hoje usualmente
ca
c
representado assim:
FAB = ,FBA :
Como hav
amos decidido de nir fora como o pro
c
.
duto da massa pela acelera~o, vem ent~o que o 3o
ca
a
Axioma implica
mA aAB = ,mB aBA :
Tal equa~o forneceria um meio de de nirmos ao menos
ca
a raz~o entre as massas dos corpos A e B:
a
mA =mB = ,aBA =aAB :
.
Mas que motivos temos para aceitar o 3o Axioma?
N~o possuindo ainda uma de ni~o de fora, n~o poa
ca
c a
demos tom
-lo como um resultado da experi^ncia. N~o
a
e
a
nos resta sen~o consider
-lo mais uma conven~o: masa
a
ca
sas s~o coe cientes num
ricos tais que a equa~o *
a
e
ca
seja satisfeita.
Concluir
amos, ent~o, que os tr^s importantes axio
a
e
mas da mec^nica newtoniana s~o meras conven~es!
a
a
co
Com sua famosa reconstru~o da mec^nica newtonica
a
ana, Mach acreditou haver oferecido uma sa
da para
essa conclus~o paradoxal, propondo a seguinte partiao
a
c~
entre fatos emp
ricos e conven~es Mach 1974, p. 303
co
4:
a. Proposi~o Experimental. Corpos colocados em conca
fronto um com o outro induzem-se mutuamente, sob
b.
c.
d.
e.
certas condi~es a serem especi cadas pela f
sica exco
perimental, acelera~es contr
rias na dire~o de sua
co
a
ca
linha de jun~o. O princ
pio de in
rcia est
inclu
do
ca
e
a
nisso.
De ni~o. A raz~o de massa de dois corpos quaisquer
ca
a
a raz~o inversa negativa das acelera~es que mutuae
a
co
mente se induzem.
Proposi~o Experimental. As raz~es de massa dos corca
o
pos s~o independentes do car
ter dos estados f
sicos
a
a
dos corpos que condicionam as acelera~es m
tuas
co
u
produzidas, sejam eles estados el
tricos, magn
ticos,
e
e
ou o que seja; e al
m disso permanecem as mesmas
e
quer sejam obtidas de modo direto, quer de modo indireto.
Proposi~o Experimental. As acelera~es que um
ca
co
n
mero qualquer de corpos A, B, C, ... induzem em
u
um corpo K s~o independentes umas das outras. O
a
princ
pio do paralelogramo de foras segue imediata
c
mente disso.
De ni~o. Fora motriz
o produto do valor de massa
ca
c
e
de um corpo pela acelera~o nele induzida.
ca
Comentando, a partir dessa proposta de Mach, a
conclus~o paradoxal que apontamos, Ernest Nagel tece
a
as seguintes considera~es 1961, p. 193:
co
Embora de fato exista um componente de nicional
nesse terceiro axioma, n~o
esse componente que
a e
lhe
central. E certamente poss
vel ... introduzir
e
dois n
meros mA e mB tais que para um dado conu
junto set; termo correto aqui deveria ser par de acelera~es m
tuas dos dois corpos a equaao mA aAB =
co u
c~
,mB aBA seja satisfeita, e chamar esses n
meros as
u
`massas' dos dois corpos. Mas como podemos estar certos que eles ser~o sempre positivos; ou que a
a
raz~o entre eles
uma constante, quaisquer que sejam
a
e
as posi~es relativas e velocidades relativas dos corco
pos; ou que os coe cientes de massa assim de nidos
s~o independentes de todas as propriedades especiais
a
dos corpos tais como suas caracter
sticas qu
micas,
t
rmicas ou magn
ticas; ou que as massas s~o aditie
e
a
vas; ou que as massas atribu
das dessa maneira a dois
corpos A e B s~o consistentes com as massas assim
a
atribu
das ao par de corpos A e C e ao par de cor
pos B e C? A resposta imediatamente
bvia
que n~o
o
e
a
podemos ter certeza sobre nenhuma dessas coisas se o
termo `massa' for de nido da maneira proposta. Destarte, a de ni~o de `massa' proposta n~o atribui um
ca
a
signi cado a palavra tal como na realidade se atribui
41. a ela em mec^nica; e o terceiro axioma n~o
simplesa
a e
mente uma conven~o para de ni-la.
ca
42. 9
Revista Brasileira de Ensino de F
sica, vol. 21, no. 1, Maro, 1999
c
Apesar de sua atra~o, por aparentemente isolar,
ca
como indica Nagel, o unico candidato plaus
vel para
o n
cleo emp
rico do sistema din^mico newtoniano, a
u
a
proposta de Mach est
sujeita a uma s
rie de objeoes.
a
e
c~
Primeiro, na Proposi~o Experimental a existe
ca
a cl
usula vaga que diz que os corpos induzem-se acea
lera~es m
tuas com mesma dire~o e sentidos opostos
co u
ca
sob certas circunst^ncias a serem especi cadas pela
a
f
sica experimental. Ora, se essas condioes s~o dei
c~ a
xadas em aberto, a proposiao n~o pode a rigor ser
c~ a
tida como genuinamente emp
rica, pois n~o ser
con
a a
front
vel com a experi^ncia. Para test
-la empiricaa
e
a
mente, o f
sico experimental teria que ir tentando em
diferentes circunst^ncias; se ele nunca achar a cira
cunst^ncia apropriada, n~o poder
concluir que a proa
a
a
posi~o
falsa, j
que as circunst^ncias poss
veis conca e
a
a
cebivelmente s~o em n
mero in nito.
a
u
Depois, se tomarmos, como
usual, as referidas cire
cunst^ncias como sendo a isola~o dos corpos, terea
ca
mos que especi car quando isso se obt
m. Ser
remoe
a
vendo os corpos a grande dist^ncia de outros corpos?
a
Mas como saberemos que nesse caso n~o atuar~o foras?
a
a c
Outra resposta que
43. s vezes se encontra
: A isola~o
a
e
ca
ocorre quando as acelera~es de A e B s~o tais que t^m
co
a
e
a mesma dire~o e sentidos opostos. Mas isso despoja
ca
a proposi~o de Mach de seu conte
do emp
rico, j
que
ca
u
a
a faz valer por decreto.
Uma possibilidade aparentemente mais promissora
seria generalizar o m
todo de Mach, de modo a poder-se
e
dar conta dos casos reais, onde h
mais de dois corpos.
a
Ellis tenta a extens~o do m
todo para uma situa~o
a
e
ca
geral de n corpos 1965, p. 60. Precisa, todavia, assumir que as acelera~es mutuamente induzidas se d~o
co
a
nas dire~es das linhas de junao dos corpos e que s~o
co
c~
a
independentes umas das outras hip
teses das foras
o
c
centrais e do paralelogramo de foras, bem como a vac
lidade da lei de gravita~o universal. Pior ainda: o
ca
procedimento n~o funciona se os corpos forem coplanaa
res, nem assegura que as massas sejam sempre positivas
o que o pr
prio Ellis admite na nota 26.
o
A importante quest~o da extens~o do m
todo de
a
a
e
Mach foi rigorosamente investigada por C. G. Pendse em uma s
rie de artigos na Philosophical Magazine
e
Pendse 1937, 1939 e 1940. Seu resultado mais interessante
que n~o
poss
vel determinar as raz~es de
e
a e
o
massa como sendo constantes se o n
mero de corpos
u
for maior do que quatro.
E util reproduzir os traos principais dessa prova.
c
Sejam os n corpos idealizados como part
culas, indexa
das por , = 1; 2; :::;n. Um observador tem acesso
unicamente
44. s acelera~es, a . Suponhamos que a acea
co
lera~o de P devida
45. part
cula P seja a a
um
ca
a
e
componente de a . Seja e o vetor unit
rio na dire~o
a
ca
P ! P . Assumindo-se que as fora s~o centrais, i.e.,
c a
que a = a e , e que as a~es dos corpos s~o inco
a
dependentes, teremos as seguintes n equa~es vetoriais:
co
a =
X ae
=1
= 1; 2; :::;n
=
6
Dessas equa~es conhecemos os a e os e . Exisco
tem nn , 1 inc
gnitas os a . Como temos no
o
m
ximo 3n equa~es linearmente independentes, o sisa
co
tema ter
uma solu~o unica se e somente se:
a
ca
3n nn , 1;
ou seja,
nn , 4 0
n4
Se as part
culas forem colineares, haver
apenas 1n
a
equa~es linearmente independentes, e se forem coplaco
nares, no m
ximo 2n equa~es linearmente independena
co
tes, o que d
indetermina~o mesmo nos casos n = 3 e
a
ca
n = 4:
n = 3 colineares - inc
gnitas: 6 3 2;
o
eqs. independentes: 3 3 1;
n = 4 coplanares - inc
gnitas: 12 4 3;
o
eqs. independentes: 8 ou menos 4 2 ou 4 1.
Portanto o m
todo generalizado de Mach falha logo
e
no primeiro passo, ou seja, na identi ca~o un
voca das
ca
acelera~es mutuamente induzidas. Se no caso restrito
co
de apenas dois corpos vemo-nos obrigados a justi car a
isolaao, e tamb
m a assumir que os coe cientes de
c~
e
massa obtidos nas condi~es idealizadas continuam os
co
mesmos nas condi~es reais, quando tomamos mais que
co
dois corpos em geral n~o podemos atribuir os coe cia
entes de massa de modo un
voco. E mesmo nos pou
cos casos poss
veis tr^s corpos n~o-colineares ou qua
e
a
tro corpos n~o-coplanares deve ser assumida a hip
tese
a
o
das foras centrais e independentes.
c
Percebendo que a decomposi~o das acelera~es nos
ca
co
casos reais pressuporia a hip
tese das foras centrais,
o
c
Henri Poincar
antecipou uma cr
tica
46. poss
vel exe
a
tens~o do m
todo de Mach, ao lembrar que sabemos,
a
e
a partir de observaoes sobre as interaoes magn
ticas,
c~
c~
e
que essa hip
tese n~o pode ser mantida. Diante disso,
o
a
47. 10
emitiu sua famosa conclus~o de impot^ncia: massas
a
e
s~o coe cientes que
c^modo introduzir nos c
lculos
a
e o
a
Poincar
1968, p. 123.
e
VII. A escolha do referencial. Uma f
bula.
a
Diante de tantos embaraos, retomemos o problema
c
do sistema de refer^ncia no qual os movimentos devem
e
ser analisados. Salientamos na se~o III que se tenca
tarmos de nir o sistema de refer^ncia com o aux
lio
e
a: lei, estaremos renunciando a interpret
-la como
da 1
a
um princ
pio emp
rico. Al
m disso, essa proposta
e
de de ni~o dos referenciais apropriados assume que
ca
possu
mos um meio de identi car a a~o de foras in
ca
c
a: lei. Como j
vimos, por
m,
dependentemente da 1
a
e
essa
uma assun~o de dif
cil justi ca~o. Portanto a
e
ca
ca
de ni~o sugerida parece ser completamente vazia.
ca
Por outro lado, se n~o formos capazes de caractea
rizar os referenciais de forma independente da lei de
in
rcia, n~o poderemos sequer utiliz
-la como crit
rio
e
a
a
e
de exist^ncia de foras que n~o foi poss
vel encontrar
e
c
a
por outros meios! Isso deixa-nos em pleno ar, sem
qualquer v
nculo com a suposta base emp
rica de nossa
teoria.
J
que involuntariamente chegamos a esse
a
ponto, permitamo-nos imaginar uma pequena f
bula,
a
inspirando-nos parcialmente nos coment
rios s
rios!
a
e
que Nagel tece no Cap
tulo 8 de seu The Structure of
Science p. 204 ss..
Escalamos uma torre bem alta e largamos uma pedra, com o prop
sito de usar a mec^nica newtoniana
o
a
para o estudo de seu movimento. O problema do referencial em rela~o ao qual faremos as nossas medidas
ca
e
preliminar e fundamental. Se tomarmos a Terra como
esse referencial, preveremos, de acordo com a teoria agora assumida hipoteticamente - que o corpo ir
em
a
linha reta em dire~o ao centro de gravidade da Terra.
ca
Desprezamos, como bons admiradores dos artif
cios de
Galileo, certos fatores inc^modos, como o atrito com o
o
ar, as foras gravitacionais do Sol, da Lua e dos planec
tas.
Observando a trajet
ria do corpo, vamos supor que
o
ela n~o coincide com a previs~o que zemos. Ser
, digaa
a
a
mos, uma linha curva situada a leste da prevista. Que
fazer? Temos pelo menos tr^s alternativas:
e
1 Declarar falso um ou mais dos axiomas de movimento;
2 Declarar falsa a lei da gravita~o universal;
ca
3 Culpar o referencial escolhido.
Silvio Seno Chibeni
Sendo t~o obstinados quanto os criadores da
a
mec^nica cl
ssica, n~o desejamos seguir a primeira
a
a
a
op~o. Caso sigamos a segunda, teremos de postular
ca
novas foras, al
m da inicialmente unica fora gravitac
e
c
cional. Essa parece ser uma sa
da problem
tica. Pri
a
meiro,
ad hoc, ou seja, inventamos as novas foras pree
c
cisamente para resolver o nosso problema. Em segundo
lugar, as foras requeridas violam a simetria esf
rica da
c
e
situa~o experimental, al
m de conterem fatores depenca
e
dentes da velocidade do corpo.
Tentamos ent~o o terceiro caminho. Poderemos, por
a
exemplo, mudar o referencial para o Sol, com eixos orientados para tr^s estrelas distantes estrelas xas.
e
Se agora resolvermos as equaoes usando somente a
c~
fora gravitacional, n~o obteremos a mesma trajet
ria
c
a
o
que antes, j
que as pr
prias condioes iniciais mudaa
o
c~
ram: o corpo tem uma velocidade inicial n~o nula, e
a
a Terra, a torre e n
s pr
prios nos movemos acelerao o
damente ao longo de uma trajet
ria curva. Levando
o
isso em conta, poderemos prever a nova trajet
ria, n~o
o
a
somente em nosso novo referencial, mas tamb
m, por
e
uma transforma~o cinem
tica, no anterior, i.e., com
ca
a
rela~o a Terra. O que encontramos? Suponhamos que
ca
48. seja uma trajet
ria mais pr
xima da observada empirio
o
camente.
Para explicar as discrep^ncias ainda existentes disa
pomos das mesmas tr^s alternativas, como antes. O
e
sucesso de nossa primeira escolha pode encorajar-nos
a seguir de novo o terceiro caminho, ou seja, procurar
outro referencial. Podemos tentar, por exemplo, xar o
referencial no centro de massa do Sistema Solar. Tudo
se repete. A nova trajet
ria, calculada a partir da fora
o
c
gravitacional, aproxima-se ainda mais da trajet
ria obo
servada.
Esse processo pode ir se repetindo, e a eventual aproxima~o cada vez maior entre as trajet
rias
ca
o
emp
rica e te
rica pode sugerir a id
ia de que h
um
o
e
a
referencial de algum modo privilegiado, no qual os axiomas newtonianos, conjuntamente com a lei da gravita~o universal, d~o exatamente a trajet
ria emp
rica
ca
a
o
do corpo. Essa id
ia ca reforada quando veri camos
e
c
que em outros fen^menos movimento de uma bala, moo
vimento dos planetas, dos sat
lites, etc. a mesma lei
e
de gravita~o e os mesmos axiomas d~o bons resultaca
a
dos quando o referencial
aquele que melhor serviu no
e
caso do corpo largado da torre especialmente quando
s~o levadas em conta as atraoes dos corpos celestes.
a
c~
49. Revista Brasileira de Ensino de F
sica, vol. 21, no. 1, Maro, 1999
c
VIII. A escolha do referencial. De volta
50. realia
dade.
Embora inventada, a hist
ria que expusemos pode
o
apresentar razo
vel correspond^ncia com a realidade,
a
e
desde que se tomem algumas provid^ncias experimene
tais e calculacionais, que n~o vem ao caso comentar
a
aqui. Queremos apenas notar que, de um modo ou de
outro, n~o h
garantia a priori de que o processo que
a a
imaginamos sempre levar
a bom termo, ou seja, ao
a
encontro de um referencial no qual as leis newtonianas d~o previs~es corretas para uma grande gama de
a
o
fen^menos. E um resultado emp
rico que um tal refeo
rencial tenha de fato sido encontrado na evolu~o real
ca
da mec^nica.
a
Esse fato pode sugerir que h
um referencial privia
legiado ou, mais precisamente, de uma classe de referenciais privilegiados, fazendo-nos lembrar a j
mencia
onada concep~o newtoniana de um espao absoluto.
ca
c
N~o trataremos desse assunto aqui, por j
se achar bem
a
a
discutido na literatura.3 Mencionaremos apenas que
al
m dos argumentos los
cos e teol
gicos dados por
e
o
o
Newton a favor do espao absoluto ele tamb
m oferec
e
ceu um argumento que a seu ver era emp
rico: o famoso
experimento do balde. Esse argumento
muito persuae
sivo, e sua mais importante cr
tica
a de Mach. Mach
e
defendeu que a unica conclus~o que se pode tirar do
a
fen^meno
que a deforma~o da superf
cie da
gua,
o
e
ca
a
quando est
girando, deve-se a sua rota~o relativaa
ca
mente a algum outro corpo que n~o o pr
prio balde; n~o
a
o
a
podemos de nenhum modo inferir a exist^ncia de um
e
espao absoluto. A deforma~o liga-se, segundo Mach,
c
ca
ao resto da massa do Universo; a in
rcia
, para ele,
e e
4
uma rela~o.
ca
Voltando ao nosso processo de busca de um referencial para a mec^nica newtoniana, observemos ainda
a
que a busca do referencial foi inteiramente guiada pelas
decis~es de manter: i os axiomas de movimento; e ii
o
a lei da gravita~o universal. Em uma reconstru~o raca
ca
cional da hist
ria da f
sica, esta ultima decis~o poderia
o
a
ter envolvido tamb
m outras leis de fora, como a lei
e
c
de atra~o el
trica, a lei de atra~o magn
tica,
ca e
ca
e
a lei de Hooke, etc., todas possuindo certas caracter
sticas comuns de simplicidade, independ^ncia das
e
acelera~es e, sempre que poss
vel, tamb
m das veloco
e
cidades, acordo com a no~o antropom
r ca de fora,
ca
o
c
diminui~o de intensidade com a dist^ncia, etc. A n~o
ca
a
a
11
ser por essas restri~es sobre as fun~es de fora n~o
co
co
c a
haver
amos chegado ao referencial a que chegamos. As
sim, por exemplo, se no caso do corpo soltado da torre
tiv
ssemos usado a fun~o de fora
e
ca
c
F = GMm=r3r , ! ! r , 2! dr=dt , d!=dt r;
tomando a Terra como referencial, poder
amos calcu
lar a trajet
ria do corpo t~o bem como quando usao
a
mos o referencial das estrelas xas e a funao de
c~
fora F = GMm=r3r. A prefer^ncia desta ultima
c
e
em rela~o
52. sua simplicidade e ao
ca a
a
fato de que os termos n~o-gravitacionais centr
fugo, de
a
Coriolis e d!=dt r n~o nos parecem compreens
veis
a
dadas as simetrias da situa~o f
sica em quest~o. Mas
ca
a
a escolha jamais poderia ter resultado unicamente da
experi^ncia.
e
Outro motivo importante na decis~o de usarmos rea
ferenciais inerciais
apontado por Nagel 1961, p.
e
213-4: as leis formuladas em um deles se mant^m ine
variantes em todos os demais. J
se usarmos a Terra
a
como referencial, por exemplo, a classe de invari^ncia
a
car
reduzida aos referenciais em repouso em relaao
a
c~
a ela.
IX. A Terra gira?
E interessante retomar agora a quest~o do movia
mento da Terra. Quando era debatida nos s
culos
e
XVI e XVII, n~o havia um sistema de din^mica unaa
a
nimemente aceito que pudesse guiar os investigadores
como usamos o sistema newtoniano em nossa f
bula.
a
Assim, a disputa se reduzia
53. ado~o deste ou daa ca
quele sistema din^mico-cosmol
gico. Como j
notamos,
a
o
a
a din^mica aristot
lica era incompat
vel com o movia
e
mento da Terra. A nascente nova din^mica de Galileo
a
e Newton s
se compatibilizaria com a xidez da Terra
o
se foras complexas e inexplic
veis fossem assumidas
c
a
para dar conta do movimento do resto do Universo em
torno dela e poder
amos hoje acrescentar: do achata
mento da Terra, da rota~o do p^ndulo de Foucault,
ca
e
etc..
Ent~o quando dizemos que a Terra gira
porque,
a
e
dado o nosso sistema din^mico que adotamos por
a
raz~es n~o completamente emp
ricas, as foras cam
o a
c
mais simples quando o referencial
o das estrelas e
xas, em rela~o ao qual a Terra gira.
ca
Ver, por exemplo, Nagel 1961, cap. 8; Mach 1974, cap. 2, se~o 6; Poincar
1968, cap. 6.
ca
e
Ghins 1986 desenvolve uma tr
plica interessante
54. cr
tica de Mach. As id
ias radicalmente relativistas de Mach s~o discutidas e
e
a
e
a
implementadas originalmente em Assis 1998.
3
4
55. 12
Assim, a quest~o n~o
puramente emp
rica cinea a e
maticamente o fen^meno
o mesmo, e as foras apareno
e
c
temente n~o s~o entidades objetivas, nem totalmente
a a
convencional, j
que s
pode ser respondida dentro de
a
o
um contexto cosmol
gico-din^mico mais amplo, e poo
a
demos ter algumas raz~es emp
ricas para adotar um
o
contexto e n~o outro. Poder
amos, por exemplo, haa
ver descoberto que os c
us t^m a mesma constitui~o
e e
ca
que a Terra, e portanto que a cosmologia aristot
lica
e
insustent
vel. Algumas das observa~es telesc
picas
e
a
co
o
de Galileo tiveram exatamente esse efeito. E sendo os
c
us da mesma natureza que a Terra, precisamos de
e
uma nova din^mica, como por exemplo a newtoniana.
a
Por sua vez, a ades~o a essa din^mica conduz, por cona
a
sidera~es emp
ricas, mas tamb
m de simplicidade, sico
e
metria, unidade, etc., ao referencial das estrelas xas,
como vimos acima, no qual a Terra gira.
X. Ep
logo los
co
o
Re etindo sobre o conte
do das se~es precedenu
co
tes, talvez suspeitemos que as di culdades encontradas na tentativa de fundamentar experimentalmente a
mec^nica newtoniana resultam do pressuposto epistea
mol
gico de que
poss
vel isolar as leis da teoria, e
o
e
estabelecer seu car
ter, emp
rico ou convencional, de
a
maneira inteiramente objetiva e de nitiva.
Tanto um exame de tipo conceitual, como o
esboado aqui, quanto o estudo aprofundado da hist
ria
c
o
real da ci^ncia indicam que, de fato, na g^nese e fune
e
damenta~o da din^mica newtoniana intervieram, em
ca
a
mistura inextric
vel, grande variedade de observa~es
a
co
experimentais e crit
rios metodol
gicos como a simplie
o
cidade, a coer^ncia interna da teoria, sua compatibilie
dade com teorias de dom
nios conexos, etc., bem como
decis~es aparentemente arbitr
rias tomadas pelos cieno
a
tistas.
Quem quer que se aventure pelos fundamentos da
f
sica descobre facilmente que conclus~es semelhantes
o
se obt^m quando se analisa qualquer outra teoria da
e
f
sica. Em relatividade e mec^nica qu^ntica, por exem
a
a
plo, os embaraos epistemol
gicos s~o certamente bem
c
o
a
mais graves do que os da mec^nica cl
ssica.
a
a
Constata~es nesse sentido acabaram levando alco
guns l
sofos contempor^neos a cr
ticas exacerbadas da
o
a
id
ia de que h
um m
todo cient
co, uma racionalie
a
e
dade qualquer na ci^ncia, uma fundamenta~o experie
ca
mental s
lida. Ver, por exemplo, Against Method, de
o
Paul Feyerabend, um livro brilhante sob diversos aspectos, inclusive em sua an
lise hist
rica de Galileo. No
a
o
Silvio Seno Chibeni
entanto, os pesquisadores mais moderados continuam
ressaltando que a ci^ncia persegue, sim, o ideal de rigor
e
formal e disp~e, sim, de v
nculos fortes com a realio
dade emp
rica, n~o por
m da forma descrita ao longo
a
e
de s
culos pelos melhores l
sofos e cientistas.
e
o
O grande matem
tico e f
sico te
rico Henri Poincar
a
o
e
abre o cap
tulo sobre a mec^nica cl
ssica de seu La Sci
a
a
ence et Hypoth
56. se comentando que s~o os ingleses eme
a
piristas, e n~o os l
sofos do Continente racionalisa
o
tas que t^m raz~o quanto
57. natureza do conhecimento
e
a
a
da mec^nica. Prossegue dizendo que as confus~es a
a
o
esse respeito prov^m principalmente do fato de os trae
tados de mec^nica n~o distinguirem nitidamente o que
a
a
racioc
nio matem
tico, o que
conven~o e o que
e
a
e
ca
e
hip
tese p. 111.
o
No entanto, ao longo do cap
tulo Poincar
reco
e
nhece, de forma incomum para a
poca 1902, que a
e
pr
tica cient
ca - especialmente a da mec^nica - pouco
a
a
parece respeitar as referidas distin~es, sejam elas quais
co
forem. Poincar
evidencia ter comeado a perceber que
e
c
o estatuto epistemol
gico das proposi~es cient
cas
o
co
pode-se alterar conforme a evoluao da ci^ncia, ou a
c~
e
a
rea de sua aplica~o. Em sua discuss~o da lei de
ca
a
in
rcia, por exemplo, a rma que embora na astronoe
mia ela possa num certo sentido ser dita veri cada
pela experi^ncia, quando se pensa na f
sica como um
e
todo parece que nunca se poder
submet^-la a lei a
a
e
uma prova decisiva p. 116. Lembra, mais adiante,
que facilmente se concebem muitas maneiras de salvaguard
-la de eventuais con itos com a experi^ncia.
a
e
Embora a vertente principal da loso a da ci^ncia
e
ainda fosse passar, em torno das d
cadas de 1920 e
e
1930, pelo movimento positivista l
gico, que perseguiu
o
com vigor o ideal de se traar, por meio de reconsc
tru~es racionais das ci^ncias, distin~es claras e xas
co
e
co
entre proposi~es emp
ricas e convencionais al
m das
co
e
formais, podemos encontrar precursores de concep~es
co
epistemol
gicas holistas ainda na primeira metade do
o
presente s
culo. Al
m,
claro, de Pierre Duhem, poe
e e
der
amos citar, por exemplo - e de forma expressiva -,
estas conclus~es extra
das por Einstein e Infeld em seu
o
livro de 1938, The Evolution of Physics, a partir justamente da an
lise das leis de Newton:
a
E o nosso sistema completo de suposi~es guesses que
co
realmente deve ser ou provado ou refutado pelos experimentos. Nenhuma das assunoes pode ser isolada
c~
para um teste separado. p. 30-1
58. Revista Brasileira de Ensino de F
sica, vol. 21, no. 1, Maro, 1999
c
Tendo ou n~o lido essas palavras,
ao longo dea
e
las que Quine, o mais proeminente cr
tico da distin~o
ca
n
tida do que
emp
rico e do que
convencional nas
e
e
teorias cient
cas, desenvolver
sua contraproposta em
a
pirista. Numa imagem que se tornou famosa, asseverou
em seu artigo Two dogmas of empiricism, de 1951,
que nossos enunciados sobre o mundo externo n~o ena
frentam o tribunal da experi^ncia sensorial individuale
mente, mas apenas corporativamente p. 41, acrescentando mais adiante:
Minha sugest~o presente
que
bobagem, e a oria
e
e
gem de muita bobagem, falar em um componente
lingu
stico e em um componente factual na verdade
de uma proposiao individual qualquer. Tomada colec~
tivamente, a ci^ncia apresenta sua dupla depend^ncia
e
e
com rela~o
60. experi^ncia; tal dualica a
a
e
dade, por
m, n~o pode ser signi cativamente levada
e
a
aos enunciados da ci^ncia tomados um a um. p.42
e
Nagel provavelmente foi o l
sofo contempor^neo
o
a
que desenvolveu a mais precisa an
lise da mec^nica
a
a
cl
ssica a partir do novo referencial epistemol
gico.
a
o
Essa an
lise encontra-se especialmente no cap
tulo 7
a
de seu livro de 1961, The Structure of Science. Rejeitando resolutamente tanto as propostas racionalistas segundo as quais as leis newtonianas teriam o estatuto de verdades a priori, quanto o empirismo ing^nuo
e
que as concebe como generaliza~es indutivas diretas,
co
Nagel encontra entre esses extremos um amplo espao
c
para compreender a teoria de Newton como o resultado de complexo processo de elabora~o de conceica
tos e leis cujo objetivo
acomodar a totalidade dos
e
fen^menos. Esse processo guia-se por crit
rios experio
e
mentais e metodol
gicos; nunca, por
m, pela pretens~o
o
e
a
de se delinear e xar de uma vez por todas as quotas
de participa~o dos dados emp
ricos brutos e de nossas
ca
exig^ncias ou prefer^ncias intelectuais.
e
e
Refer^ncias
e
ASSIS, A. K. T. Mec^nica Relacional. Coleao CLE,
a
c~
vol.22. Campinas, Centro de L
gica, Epistemologia e
o
Hist
ria da Ci^ncia - Unicamp, 1998.
o
e
COHEN, I. B. O Nascimento de uma Nova F
sica.
Trad. G. de Andrada e Silva. S~o Paulo, Edart, 1967.
a
|. The Newtonian Revolution. Cambridge, Cambridge
University Press, 1980.
DESCARTES, R. Les Principes de la Philosophie. In:
C. Adam P. Tannery eds. Oeuvres de Descartes.
Tomo IX-2. Paris, Vrin, 1971.
13
EVORA, F. R. R. A Revolu~o Copernicana-Galileana.
ca
Coleao CLE, vols. 3 e 4. Campinas, Centro de
c~
L
gica, Epistemologia e Hist
ria da Ci^ncia - Unicamp,
o
o
e
1988.
FEYERABEND, P. K. Against Method. London,
Verso, 1978.
GHINS, M. O argumento de Newton a favor do espao
c
absoluto. Cadernos de Hist
ria e Filoso a da Ci^ncia,
o
e
n. 9, p. 61-7, 1986.
| . A In
rcia e o Espao-Tempo Absoluto. Coleao
e
c
c~
CLE, vol. 9. Campinas, Centro de L
gica, Epistemoo
logia e Hist
ria da Ci^ncia - Unicamp, 1991.
o
e
EINSTEIN, A. INFELD, L. The Evolution of Physics. Cambrige, Cambridge University Press, 2 ed.,
re-issued, 1971.
ELLIS, B. The origin and Nature of Newtons Laws of
Motion. In: Beyond the Edge of Certainty, R. B. Colodny ed., Englewood Cli s, N.J., 1965. p. 29-67.
KUHN, T.S. The Copernican Revolution. Cambridge,
Mass., Harvard University Press, 1957.
LOSEE, J. A Historical Introduction to the Philosophy
of Science. 2. ed. Oxford, Oxford University Press,
1980.
LUCIE, P. H. A G^nese do M
todo Cient
co. Rio de
e
e
Janeiro, Campus, 1977.
MACH, E. The Science of Mechanics. Trad. T.J. McCormack, 6th English ed. La Salle, Illinois, The Open
Court Publishing Company, 1974.
NAGEL, E. The Structure of Science. London, Routledge and Kegan Paul, 1961.
NEWTON, I. Mathematical Principles of Natural Philosophy Trad. A. Motte F. Cajori. Berkeley and
Los Angeles, University of California Press, 1934.
PENDSE, C.G. A note on the de nition and determination of mass in Newtonian mechanics. Philosophical
Magazine, v. 24, n. 7, p. 1012-22, 1937.
|. A further note on the de nition and determination
of mass in Newtonian mechanics. Philosophical Magazine, v. 27, n. 7, p. 51-61, 1939.
|. on mass and force in Newtonian mechanics. Philosophical Magazine, v. 29, p. 477-84, 1940.
POINCARE, H. La Science et Hypoth
61. se. Paris, Flame
marion, 1968.
QUINE, W. V. O. Two dogmas of empiricism. In: From
a Logical Point of View. 2 ed., revised. Cambridge,
MA, and London, Harvard University Press, 1980.