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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Psicologia
Thaísa Duarte Ferreira
As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da
Teoria Ator-Rede
Rio de Janeiro
2014
Thaísa Duarte Ferreira
As Associações de criminalidade à figura do camelô: Um estudo através da Teoria Ator-
Rede
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-graduação em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Psicologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt
Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação.
___________________________________ _______________
Assinatura Data
F383 Ferreira, Thaísa Duarte.
As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da
Teoria Ator-Rede/ Thaísa Duarte Ferreira. – 2014.
83 f.
Orientador: Ronald João Jacques Arendt.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia.
1. Vendedores de rua – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 2. Rio de Janeiro (RJ).
Guarda Municipal – Teses. 3. Política pública – Teses. I. Arendt, Ronald João
Jacques. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.
III. Título.
es CDU 339.177(815.3)
Thaísa Duarte Ferreira
As Associações de criminalidade à figura do camelô: Um estudo através da Teoria Ator-
Rede
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-graduação em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Psicologia Social.
Aprovada em 28 de março de 2014.
Banca examinadora:
____________________________________
Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt (Orientador)
Instituto de Psicologia – UERJ
______________________________________
Profª. Dr.ª Amana Rocha Mattos
Instituto de Psicologia – UERJ
_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristina Mair Barros Rauter
Departamento de Psicologia - UFF
Rio de Janeiro
2014
DEDICATÓRIA
Dedico a você, leitor.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais que me colocaram no mundo;
À minha família, em especial minha irmã pelo amor e carinho que tudo move mesmo à
distância;
Ao professor Ronald Arendt, meu orientador, por ter aceitado meu projeto e me
apresentado a Teoria Ator-Rede;
Aos camelôs e policiais que contribuíram com depoimentos, conversas,
esclarecimentos;
À minha gatinha, Pandora (em memória), por mostrar que o mundo podia ser
diferente;
Ao Federico, meu gato, por sua companhia nesse processo de criação;
A Uerj por disponibilizar nesse espaço físico bons encontros entre professores,
pesquisadores, alunos e curiosos;
À Irani Brandão e Victor Mera, pelo apoio e carinho;
Ao Baden Powell e Paulinho na Viola pelas suas belas canções que eu escutava
enquanto escrevia essa dissertação;
Ao professor Milton Athayde e a professora Deise Mancebo que me entrevistaram no
processo seletivo do mestrado;
À Ana Lúcia Maiolino que me despertou para o estudo do urbano ainda na graduação
e, posteriormente, me orientou na confecção da monografia de graduação junto com a profª
Ariane Ewald, a quem também agradeço por me ensinar a liberdade na escrita;
Aos amigos de coração Susana Vieira, Ester Cunha, João Vinícius, Camila Silva,
Ariadne Silva, Ana Alice Cafolla, Fernanda Muniz, Michelle Lustosa, Eduardo Farias,
Fernanda Aragão, Vinícius Rodrigues, Rafaela Carijó, Yan Navarro, Pedro Poças, Cyro
Novello, Fernanda Lobo, Heloisa Lobo, Ana Clara Carvalho, Felipe Amêndola e muitos
outros amigos que contribuíram e me apoiaram direta ou indiretamente;
Ao Dilmar Nascimento pelo bom encontro;
À banca Amana Mattos e Cristina Rauter por sua disposição sempre em esclarecer
qualquer dúvida;
À todos os participantes que contribuíram para este estudo existir;
Às ruas dessa cidade e de tantas outras que conheci e que me fascinam por seu
movimento, multiplicidade, encontros fugazes, sorrisos, protestos, conflitos e negociações;
Ao Sri Sri Ravi Shankar por ter fundado o grupo Arte de Viver, que me ensinou a
respirar melhor e a meditar o que favoreceu o processo criativo;
À Capes.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...
Eu pairava no ar, e olhava a cidade
Passando veloz lá embaixo de mim.
Eram dez milhões de mentes,
Dez milhões de inconscientes,
Se misturam... viram entes...
Os quais conduzem as gentes
Como se fossem correntes
Dum rio que não tem fim.
Esse ruído
São os séculos pingando...
E as cidades crescendo e se cruzando
Como círculos na água da lagoa.
E eu vi nuvens de poeira
E vi uma tribo inteira
Fugindo em toda carreira
Pisando em roça e fogueira
Ganhando uma ribanceira...
E a cidade vinha vindo,
A cidade vinha andando,
A cidade intumescendo:
Crescendo... se aproximando.
Lenine
RESUMO
FERREIRA, Thaísa Duarte. As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo
através da Teoria Ator-Rede. 2014. 83 f. (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de
Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
Neste texto gostaria de apresentar uma investigação sobre as associações de
criminalidade investidas na figura do camelô através da Teoria Ator-rede. Diante da
realização de dois grandes eventos, a Copa do Mundo em 2014 e os jogos Olímpicos em
2016, foi estabelecido um plano municipal de ordem pública com diagnósticos e proposições
a fim de gerir a cidade do Rio de Janeiro. Uma dessas proposições envolve a política do
Choque de Ordem que parte do princípio que a desordem urbana é um deflagrador de
atividades criminosas. Assim, iniciou-se um processo de “higienização” das ruas da cidade,
que refletiu sobre o trabalho do camelô. Logo, as políticas públicas promovidas para esta
cidade aparecem como foco de discussão neste trabalho. Principalmente, como o tema da
criminalidade se vincula ou é vinculado à figura do camelô.
Palavras chaves: Camelô. Criminalização. Políticas Públicas. Teoria Ator-rede.
ABSTRACT
FERREIRA, Thaísa Duarte. Associations crime figure of the camelô: a study by Actor-
Network Theory. 2014. 83 f. (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
In this text we would like to present an investigation into the crime associations
invested in figure of camelô by Actor-Network Theory. Before the completion of two major
events, the World Cup in 2014 and the Olympics in 2016, a plan was established municipal
public with diagnoses and proposals to manage the city of Rio de Janeiro. One of these
propositions involves the policy "Choque de Ordem" it assumes that urban disorder is a
trigger for criminal activities. Thus began a process of "cleaning" the streets of the city, which
reflected on the work of the street vendor. Soon, the public policies adopted for this city
appear as a focus of discussion in this work. Especially, as the theme of crime binds or is
linked to the figure of the street vendor.
Keywords: Camelô; Criminalization; Public Policy Actor-Network Theory.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO………………………………………………………………. 11
1 TEORIA ATOR-REDE……………………………………………………… 15
1.1 Algumas considerações………………………………………………………. 15
1.2 Pesquisando com a teoria do ator-rede: uma “outra” possibilidade............ 20
2 OS CAMELÔS……………………………………………………………….. 26
2.1 Uma viagem no termo camelô.......................................................................... 26
2.2 Versões do camelô: a multiplicidade de sua prática...................................... 28
3 O TRAÇADO MODERNO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.............. 35
3.1 O pensamento moderno……………………………………………………… 35
3.2 Início do século XX: modernização da cidade e conflitos.............................. 38
3.3 Do liberalismo rumo ao estado penal?.........................................................
40
4 A CRIAÇÃO DA GUARDA MUNICIPAL BRASILEIRA......................... 43
4.1 A guarda municipal no rio de janeiro............................................................. 45
5 POLÍTICAS PÚBLICAS................................................................................. 53
5.1 Algumas questões sobre a pesquisa............................................................... 53
5.2 Início da década de 80 e a política dos camelódromos............................... 57
5.3 a evolução da política de tolerância zero no rio de janeiro....................... 62
5.4 The broken windows theory........................................................................... 63
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 67
REFERÊNCIAS............................................................................................... 71
ANEXO A - Cadastramento de ambulantes....................................................... 75
ANEXO B – Evolução das Guardas Municipais no Brasil................................. 77
ANEXO C- Número máximo de comerciantes ambulantes com ponto fixo por
Região Administrativa.................................................................................. 78
ANEXO D- Mapas do perímetro de atuação das UOPs..................................... 80
12
INTRODUÇÃO
Introduzir uma dissertação não é tarefa fácil, porque seria necessário, nessas poucas
linhas, relatar como eu me conectei ao assunto e como este se conectou a mim. Trabalho este
complicado de descrever o que nem sempre é possível descrever em palavras, pois estas, às
vezes, falham em sua tarefa de tradução: as palavras trazem, mas também traem o dito. Bom,
posto isto em mente, preferi iniciar contando minha trajetória e como o assunto camelô
atravessou meu caminho e eu o deles.
Minhas aproximações com os camelôs aconteceram mais ou menos neste período.
Quando ainda criança, uma amiga da minha avó participou do processo de concessão de
licença para trabalhar na região de Madureira, por volta da década de 90. Esta senhora possuía
uma papelaria e comercializava também seus produtos nas ruas, empregando uma pessoa para
trabalhar como camelô. Não sei por que essa lembrança permaneceu em mim. Talvez porque
os camelôs sempre me inspiraram curiosidade com sua infinidade de produtos, cores, sons que
instigavam meus sentidos. Também recordo que essa senhora de tempos em tempos ia ao
Paraguai buscar suas mercadorias, daí aprendi que “tudo de legal” que era possível para
minha família possuir vinha do Paraguai, essa era a sensação do momento no colégio público
em que eu estudava: as novidades vindas do Paraguai. Ao mesmo tempo, contrapondo a
imagem negativa que se instaurou posteriormente sobre os produtos paraguaios, no colégio,
tê-los era sinal de status e todos queriam consumir tais mercadorias.
Por outro lado, as minhas relações com o campo político sempre foram ambíguas.
Vinda de uma família de religiosos que acreditavam que “não se devia envolver em política”
porque esta se fazia pelas mãos dos homens que eram imperfeitos e nunca poderiam dar cabo
às soluções dos problemas humanas, pois sempre falhariam. Além disso, sempre escutava em
minha casa a máxima que diz “na política todos são corruptos” e, portanto, deveríamos ficar
longe deste assunto. Esse pensamento é levado a tal ponto que as pessoas são proibidas de
votar, em geral, anulam seus votos ou simplesmente não comparecem às urnas. De fato, essa
anulação política sempre me incomodou e rompendo com a religião, quando tirei meu título
de eleitor, eu votei. Queria participar das decisões do meu país. Porém, o assunto “política”
era tabu lá em casa. De forma inversa, tudo isso contribuiu para que eu me interessasse por
estudar políticas públicas e a atuação governamental. Assim, quando ingressei na graduação,
foram esses temas que mais me mobilizaram e pautaram minhas escolhas de estágio.
13
Então, durante a graduação, ao cursar a matéria “Ética”, propus como trabalho final
uma discussão sobre a Pirataria em obras musicais. Mais tarde, este trabalho culminou no
tema da minha monografia, onde discuti mais profundamente o assunto. Naquele momento
não foi pertinente explorar a fundo o tema camelô e como este se relacionava com a pirataria,
visto que focava nos impactos desta para os artistas e sua relação com os direitos autorais.
Contudo, nas idas e vindas à Delegacia de Repressão a Crimes contra a Propriedade Imaterial
(DRCPIM), em entrevista com policiais e por ter acompanhado a apreensão de mercadorias, a
questão do modo como o camelô era tratado pelo governo e como ele surgia na cadeia de
vendas de produtos piratas, me chamou a atenção. Principalmente, por este ser acometido
tanto das ações policiais violentas quanto pelos prejuízos com a perda das mercadorias –
embora para esta última, eles tenham encontrado maneiras de amenizar os custos das ações
policiais.
Meu trabalho de campo, durante a monografia, envolveu conhecer DRCPIM - diga-se
de passagem, que isto ocorreu graças ao estágio que fiz na Delegacia Legal. Durante esta
minha passagem, um camelô se encontrava lá prestando depoimento por ter sido flagrado
comercializando produtos piratas. Um dos policiais fez questão de exibir o senhor e pedir para
que ele falasse quanto tempo trabalhava como camelô. Aquela situação de expô-lo,
apontando-o como vendedor de pirataria, como alguém “fora da lei” me causou certo
incômodo, afinal de contas não estava lá para julgar ninguém e não era repórter de programa
sensacionalista, era apenas uma aspirante a pesquisadora tentando entender como funcionava
a delegacia: sua função, como ocorriam as apreensões, o que era feito e etc. Contudo, este
evento me levou mais tarde a fazer alguns questionamentos quanto as políticas públicas que
geriam o camelô, e comecei a me perguntar se eles estavam sendo criminalizados ou não.
Embora, à princípio, eu tenha defendido o argumento sobre a ocorrência da criminalização, o
contato com a Teoria Ator-Rede redirecionou meu pensamento, não que eu tenha mudado
totalmente de opinião, apenas decidi olhar mais de perto e entender essa rede do camelô que
abarca políticas públicas, mercadorias, trabalho, economia, Guarda Municipal e etc. com mais
cautela.
Somado a isso, alguns períodos antes de iniciar minha monografia de graduação,
comecei a participar como estagiária voluntária do projeto: “Espaço Urbano e Subjetividade:
Um foco sobre as favelas do Rio de Janeiro”, coordenada, na época, pela Profª Ana Lúcia
Gonçalves Maiolino da UERJ. Foi a partir desse momento que despertei para o estudo do
“Urbano” e suas implicações, como, por exemplo, as questões referentes à exclusão
social/segregação espacial, à violência urbana e aos estigmas sociais e territoriais. Logo após
14
terminar a graduação, ingressei no curso de Especialização em Sociologia Urbana, ministrado
pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na UERJ. Desta forma, foi possível agregar
uma bagagem de conhecimento maior sobre a cidade do Rio de janeiro: sua história,
transformações urbanas, a administração do espaço territorial (discussões acerca de
conflitos/negociações políticas e sociais), políticas públicas e etc. Então, aquele meu desejo
inicial de estudar os camelôs se tornou um projeto para o mestrado e a realização desta
pesquisa.
Este trabalho é fruto da pesquisa que realizei durante o mestrado ao longo dos anos de
2012 e 2013. Aqui, proponho um estudo acerca da associação da figura do camelô à
criminalidade, sobretudo, as mediadas pelo governo em suas políticas públicas.
Principalmente, a partir da década de 80, momento em que se inicia no Brasil o processo de
finalização da Ditadura Militar e a redemocratização do país. Assim, alguns temas referentes à
cidade e seus problemas, entre outros, surgem como discussão na pauta governamental. É
neste cenário que o assunto camelô ganha destaque e começa a ser pensado.
Atualmente, a cidade do Rio de Janeiro passa por grandes transformações em vistas de
sediar dois grandes eventos: a Copa do Mundo neste ano de 2014 e os Jogos Olímpicos de
2016. Diante desses dois grandes eventos a prefeitura do Rio de Janeiro desenvolveu um
Plano Municipal de Ordem Pública com diagnóstico e proposições a fim de gerir os temas
referentes à ordem e a segurança na cidade. Iniciando um processo de controle e retomada dos
espaços públicos, que acarretaram em impactos para o trabalho do camelô. Assim, houve a
inauguração da Secretaria Especial de Ordem Pública para dar cabo ao processo da
“retomada” dos espaços públicos pelo governo.
Desta forma, a fim de ordenar a cidade, lançaram mão da política do Choque de
Ordem, que foi baseada na Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows), formulada na
década de 80 nos Estados Unidos. Sua implementação a partir de 2008, na cidade do Rio de
Janeiro, ocorreu frente à ascensão do governo do atual prefeito Eduardo Paes e sustenta-se sob
o argumento de que a desordem urbana é um deflagrador de práticas criminosas o que gera
um sentimento de insegurança na população ao andar pelas ruas, fazendo com que esta evite
certas regiões. Isto causaria a degeneração de alguns lugares e, portanto, a diminuição da
atividade econômica dos mesmos (SEOP, 2010). Embora exista de fato a degradação de
alguns locais da cidade, tal política pretende, principalmente, dar uma resposta à questão da
“violência” no Rio de Janeiro frente à realização de dois grandes eventos: a Copa do mundo
em 2014 e os jogos Olímpicos em 2016 (SEOP, 2010).
15
Foi a partir destas reflexões e diante de posturas cada vez mais truculentas da polícia
que percebi a importância de realizar um estudo que pudesse rastrear como o tema da
criminalidade surge neste cenário e se associa a figura do camelô, assim como, suas
implicações e produções. Logo, pesquisar as posturas adotadas pelo governo em relação a este
modo de trabalhar seria uma maneira de colocar em aspas o que se legitimou como tradição
em políticas públicas neste campo.
Para tanto, no primeiro capítulo realizo uma apreensão do que seria a Teoria Ator-
Rede a fim situar o leitor no campo de pesquisa. Em outro momento, clarifico como esta
teoria se insere como uma metodologia, lançando as bases do que norteou a elaboração deste
trabalho. No segundo capítulo discorro sobre os camelôs, salientando a origem deste termo e
como o mesmo começou a ser aplicado no Brasil, chamando a atenção para os significados
atribuídos a esta palavra. Da mesma forma, fala sobre as várias versões que o camelô
comporta. O terceiro capítulo parte da criação dos Estados modernos, passando pelas bases
que fundaram seu pensamento para compreender as ideias que fundamentaram a
modernização da cidade do Rio de Janeiro, bem como sua preocupação com a questão da
segurança. Já o quarto capítulo conta a história da formação das Guardas Municipais no Brasil
e, posteriormente, a criação desta guarda no Rio de Janeiro, as influências que sofreram e sua
função e atual estrutura. O quinto e último capítulo desenvolve o tema das políticas públicas,
no Rio de Janeiro, que gerem o trabalho do camelô. Assim, descrevo a política dos
camelódromos, além de relatar as origens das políticas entendidas como de “tolerância zero”,
sua difusão e aplicação nesta cidade. Finalizo expondo meu argumento sobre o que entendo
como sendo o processo de criminalização dos camelôs.
16
1 TEORIA ATOR-REDE
1.1 Algumas considerações
Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Uerj, tive a
oportunidade de conhecer a Teoria do Ator-Rede (Actor-Network Theory – ANT)1
através do
meu orientador Ronald Arendt. Tal encontro proporcionou “outra” perspectiva e possibilidade
de pesquisar. Entre seus principais estudiosos, podemos citar, Bruno Latour, Michel Callon e
John Law. Os autores da Teoria do Ator-Rede propõem outra maneira de atuar no campo de
pesquisa ao estabelecer como objetivo da ANT, a renovação do significado de ciência e
social. Latour (2012b, p.17) busca na etimologia da palavra “social” resgatar uma sociologia
de associações: primeiro social significava “seguir”, depois “seguir alguém”, um “seguidor”,
um “associado” e posteriormente fazer referência a “alguma coisa em comum”. O autor
questiona a vulgarização do uso da palavra social: “quando os cientistas sociais acrescentam o
adjetivo ‘social’ a um fenômeno qualquer, aludem a um estado de coisas estável, a um
conjunto de associações que, mais tarde, podem ser mobilizadas para explicar outro
fenômeno”. Para o autor, isso não implicaria em um problema desde que a utilização do termo
‘social’ designasse algo que já está agregado e estabilizado, contudo, esvaziaria seu sentido
“caso ‘social’ passe a designar um tipo de material, como se o adjetivo fosse comparável,
grosso modo, a outros termos como ‘de madeira’, ‘de aço’, ‘biológico’, ‘econômico’,
‘mental’, ‘organizacional’ ou linguístico’.” (LATOUR, 2012b, p.17). Neste sentido, o
emprego de ‘social’ ou ‘contexto social’ teria a função de explicar a causa de alguns aspectos
residuais de outros domínios, como, direito, economia, psicologia e etc. Porém, o que seria “o
social”, “a sociedade”, esse bloco capaz de dar sentido a vários fenômenos? É justamente isso
que Latour questiona: a “sociedade/social” não existe tal como uma espécie de guarda-chuva
capaz de preencher de significados o que outras ciências não preenchem. O “social” não seria
entendido como “coisa”, como um tipo de material fixo.
Ainda que a maioria dos cientistas sociais prefira chamar “social” a uma coisa
homogênea, é perfeitamente lícito designar com o mesmo vocábulo uma série de
associações entre elementos heterogêneos. Dado que, nos dois casos, a palavra tem
1
Neste texto utilizarei as siglas ANT (Actor-Network Theory) e TAR (Teoria Ator-Rede) como sinônimos. As
duas formas se referem à mesma teoria: uma corresponde à sigla em inglês e a outra à sigla em português.
17
a mesma origem – a raiz latina socius -, podemos permanecer fiéis às instituições
originais das ciências sociais redefinindo a sociologia não como a “ciência do
social”, mas como a busca de associações. Sob este ângulo, o adjetivo “social” não
designa uma coisa entre outras, como um carneiro negro entre carneiros brancos, e
sim um tipo de conexão entre coisas que não são, em si mesmas, sociais. (LATOUR,
2012b, p. 23).
Enquanto algumas teorias estão centradas na pesquisa a partir de polaridades como as
divisões sujeito/objeto ou natureza/sociedade, a ANT está interessada, justamente, no que se
processa ‘entre’ essas dicotomias, o que conectaria o sujeito ao objeto ou de que forma a
sociedade estaria associada à natureza e vice e versa (PEDRO, 2007). Isso ocorre porque a
ANT não entende o fazer-agir como uma relação de causalidade, no sentido de haver um
domínio sobre algo que faz com que um ator aja de determinada maneira: “Vivemos em um
sistema de relações. Na teoria ator-rede trata-se de descrever a rede de relações, de avaliar as
redes, observar o que elas fazem fazer e como aprendemos a ser afetados por elas”.
(ARENDT; FERREIRA; MORAES; TSALLIS, 2006 p.60). A questão da ação é muito mais
uma questão de vínculos2
do que uma questão de determinismo x liberdade. Em uma relação
tanto humanos quanto objetos se modificam, um aprende com o outro (ARENDT;
FERREIRA; MORAES; TSALLIS, 2006). O músico se adapta ao instrumento, mas o
instrumento também se adaptado ao músico, ele se modifica com o tempo, com a forma com
que é utilizado, o músico deixa suas marcas e vícios no instrumento, assim como o
instrumento transforma a técnica do músico. Às vezes, ocorre a tal ponto que um
instrumentista apresenta dificuldades em fazer soar o instrumento de outro musicista. É, neste
sentido, que a ANT admite e se interessa pela presença dos meios técnicos que estão entre nós
e nos compõem como coletividade. Por isso, adota a presença tanto de humanos como de não-
humanos nas redes sociotécnicas e reconhece a capacidade de transformação e afetação dos
mesmos na circulação do social. O social circula através de uma série de associações
estabelecidas. Logo, estudá-lo envolve seguir o traçado das conexões firmadas.
Desta forma, deveríamos retomar o trabalho de exercer conexões e, como uma
formiga, seguir os caminhos que os atores fazem, deixando que estes nos deem as pistas sobre
como uma informação circula na rede.
Já não basta restringir os atores ao papel de informantes de casos de tipos bem
conhecidos. É preciso devolver-lhes a capacidade de elaborar suas próprias teorias
sobre a constituição do social. A tarefa não consiste mais em impor ordem, em
limitar o número de entidades aceitáveis, em revelar aos atores o que eles são ou em
acrescentar alguma lucidez à sua prática cega. Para empregar o slogan da ANT,
2
Neste caso, vínculo se refere ao que coloca em movimento, comove.
18
cumpre seguir “os próprios atores”, ou seja, tentar entender suas inovações
frequentemente bizarras, a fim de descobrir o que a existência coletiva se tornou em
suas mãos, que métodos elaboraram para sua adequação, quais definições
esclareceriam melhor as novas associações que eles se viram forçados a estabelecer.
(LATOUR, 2012b, p. 31).
O termo ator se refere, não somente a pessoas, mas a tudo que é capaz de deslocar,
transformar, transferir, produzir sentido. Ator é tudo que possui agência, que é capaz de
transformar, porque sua principal característica não é sua ação, mas os efeitos dela, o que é
produzido a partir dela. A palavra “ator” não poderia vir sozinha, mas sempre na expressão
ator-rede, visto que o ator nunca vem só em sua ação, mas comporta um conjunto de
entidades que o fazem fazer: “a ação é tomada de empréstimo, distribuída, sugerida,
influenciada, dominada, traída, traduzida. Se se diz que um ator é um ator-rede, é em primeiro
lugar para esclarecer que ele representa a principal fonte de incerteza quanto à origem da
ação.” (LATOUR, 2012b, p.76).
Neste sentido, um trabalho que utilize teoria a Teoria do Ator-Rede deveria preocupar-
se em seguir os atores envolvidos na trama e deixar que eles tracem o movimento que a rede
faz. Mas o que são redes? Nas palavras de Rosa Pedro: “O conceito de redes sociotécnicas
envolve a ideia de múltiplas conexões que nos permitem acompanhar e delinear a produção
dos fenômenos.” (PEDRO, 2010, p.81). A autora continua dizendo que uma das
características da rede é seu caráter dinâmico e instável com grandes trocas entre os atores.
Diferentemente das redes de internet, onde seu compromisso está na circulação de
informação, as redes sociotécnicas envolvem transformação. Já não se trata tanto de uma
questão só de vínculos, mas do que esses vínculos produzem (ARENDT; FERREIRA;
MORAES; TSALLIS, 2006), o que fazem fazer.
Para melhor explicar como uma rede se processa é importante entender o conceito de
mediadores e intermediários, pois estes dois estão implicados no mistério do curso da ação,
no que faz fazer. Um intermediário é aquilo que transporta significado, porém, sem
transformá-lo: “um intermediário pode ser considerado não apenas como uma caixa-preta,
mas uma caixa-preta que funciona como uma unidade, embora internamente seja feita de
várias partes” (LATOUR, 2012b, p.65). Em contrapartida, os mediadores podem ser bem
mais complexos e comportar uma infinidade de conexões e sempre acarretam em
transformações, pois fazem outros fazerem coisas inesperadas: “Os mediadores transformam,
traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam.”
19
(LATOUR, 2012b, p.65). Pois bem, um exemplo3
simples pode ser capaz de clarificar esses
dois conceitos e sua implicação no curso de ação: Um computador pode ser compreendido
como um intermediário quando este funciona bem, sem provocar mudanças, como uma
unidade. Por intermédio de um computador eu posso cumprir meu curso de ação e escrever
esta dissertação, terminando-a no tempo necessário. Enquanto o mesmo funcionar
normalmente, eu mal notarei sua existência no sentido de perceber toda sua composição, de
tudo que propiciou que o mesmo fosse inventado, pois ele permanece o mesmo por todo o
percurso da minha ação. Porém, se meu computador quebra por algum motivo, ele se tornará
um mediador, pois essa “unidade” terá que ser aberta para descobrir onde está a falha e seus
componentes aparecerão. Além de modificar minha ação - porque terei que mudar de
estratégia para seguir com meu objetivo de terminar esta dissertação -, essa “quebra” também
trará à tona uma série de componentes que quando associados fazem o computador existir
como tal. Logo, a mediação de uma série de conexões estabelecidas entre peças tecnológicas,
engenheiros, trabalhadores de indústrias, transportes de produtos, estradas, políticas de
importação, ensino de informática, formulação de conhecimento na área de tecnologia da
informação, entre outros, permitiram que hoje eu escrevesse esta dissertação desta maneira e
não de outra forma. Além disso, uma falha em um desses dispositivos me levaria a outro
percurso de ação. Por isso, estes dois conceitos de intermediários e mediadores estão
envolvidos no que faz fazer ou no que faz fazer desta maneira.
Ainda não sabemos como todos esses atores estão ligados, mas podemos declarar
como a nova posição preestabelecida antes do estudo começar, que todos os atores
que vamos desdobrar podem estar associados de tal modo que eles fazem outros
fazerem coisas. Isso não se faz transportando-se uma força que permaneceria a
mesma por todo o percurso como um tipo de intermediário fiel, mas gerando
transformações manifestadas pelos numerosos eventos inesperados desencadeados
nos outros mediadores que os seguem por toda a parte. [...] a concatenação dos
mediadores não traça as mesmas ligações e não requer o mesmo tipo de explicações
como um séquito de intermediários transportando uma causa (LATOUR, 2012b, p.
158).
Ainda para compreender o que é uma rede, é fundamental acrescentar o conceito de
tradução neste estudo. Pois será a partir desse conceito que os atores delinearão os
movimentos das redes ao atribuir significados a elementos nestas, levando em conta “suas
ações, linguagens, identidades e desejos” (PEDRO, 2010, p. 82). A tradução, então, pode ser
compreendida como uma conexão que transporta transformação (LATOUR, 2012b), envolve,
portanto: transcrever, transferir, deslocar, transpor (LATOUR, 2012a). Uma rede pode ser
3
Exemplo inspirado no livro:” Cogitamus – Seis cartas sobre las humanidades científicas” de Latour (2012a).
20
definida “como aquilo que é traçado pelas traduções nas explicações dos pesquisadores.”
(LATOUR, 2012b, p.160). Através das traduções daríamos lugar a versões das realidades
dentro da rede. Porque quando uma tradução acontece, deixa sempre um pouco de quem a
compôs: a isso chamamos de versão. E, em se tratando do estudo de um evento, podemos
dizer que versão vem no plural, como versões das realidades tecidas. Porém, a tradução
também possui outra face e pode vir como visões. Aqui, a tradução também se processa com
um “quê” de quem a estabeleceu, mas assume outra forma. A visão trata-se de deslocar o
significado de algo em uma situação para outra situação sem levar em conta a alteração de seu
sentido ao supor que a atribuição de significado para um evento será o mesmo em outros
eventos. Isso porque a visão toma para si a existência de uma significação única para um
fenômeno, que será imposta por ela. Um exemplo pode tornar isto claro: uma propaganda da
TV Globo sobre seu jornalismo dizia “nós não somos versão, somos a fonte”. Nesta frase, a
Globo ao se colocar na posição de fonte, assume o lugar da única emissora capaz de transmitir
a “verdadeira informação” ou a “melhor informação”. Logo, a tradução que ela fará de uma
informação será segundo os moldes da “visão”. Outras versões dadas por outras emissoras ou
outros veículos de comunicação para um fenômeno, se não estiverem de acordo com as
significações emprestadas pela Tv Globo, serão desqualificas, porque a visão desta última
deve prevalecer sobre as outras e/ou servir de modelo de interpretação.
Já a versão reconhece as relações de diferenças e pretende uni-las. “Traduzir não é
explicar, ainda menos explicar o mundo dos outros, é colocar o que nós pensamos ou do que
temos experiência à prova do que os outros pensam ou têm experiência”4
(DESPRET, 2012,
p.7). Logo, traduzir através de versões diz respeito a multiplicar os significados possíveis,
mas, isso não envolve interpretação e sim, experimentar equivocações de sentidos
(DESPRET, 2012). Quer dizer deixar proliferar a alteridade, multiplicando a possibilidade de
histórias e, principalmente, tornar-se sensível a elas, permitindo ser afetado a ponto de colocar
à prova nossa própria versão ao experimentar tais equívocos de significados.
Portanto, seguir o traçado de uma rede, envolve seguir a produção de diferenças
deixadas pelos atores. Utilizar a Teoria Ator-Rede trata-se de lançar mão de um método para
apreender a fabricação e produção de fatos.
4
Tradução realizada por Ronald Arendt (2012).
21
1.2 Pesquisando com a Teoria do Ator-Rede: Uma “outra” possibilidade
Estudar as associações de criminalidade vinculadas ao camelô à luz desta teoria se
mostra um bom caminho por ser eficiente em trilhar as dinâmicas envolvidas no campo de
pesquisa. Sobretudo, porque a Teoria do Ator-Rede se preocupa com as práticas que
contribuem para a constituição das redes e o que tais práticas ‘fazem fazer’. A ANT trata-se
muito mais de um método, que propõe uma posição de compreensão frente ao campo de
estudo, que envolve, principalmente, ganhar sensibilidade, o tornar-se sensível. Desta forma, a
pesquisa ganha mais cores, mais perguntas, mais inquietações, mais movimento porque
reconhece a atuação de vários atores, que através de suas traduções constituem redes. Logo,
estudar as identificações de criminalidade à figura do camelô através da Teoria do Ator-Rede
significa fazer o caminho das conexões estabelecidas que propiciam e/ou propiciaram tal fato.
O que faz fazer o camelô ser criminalizado? Como esta rede é tecida?
Contarei agora um caso de atuação das Ovelhas de uma região da Inglaterra, Cumbria,
para o leitor compreender como a TAR se insere como um método e o que significa a atuação
dos atores. Law e Mol (2008) se utilizam do caso da epidemia de febre aftosa, que ocorreu em
2001, para apresentar como os atores atuam com uma determinada conjuntura. O texto é
interessante, em especial, por apartar o “ator” da ideia antropocêntrica que o entende a partir
de conceitos de intencionalidade da ação e capacidade de controle/domínio sobre algo: o ator
atua e é atuado. Aqui um não domina o outro, mas compreende que o ator não atua sozinho.
Ele é autorizado e produzido em relação com outros atores. Portanto, outras figuras, que não
humanas, também atuam e são capazes de transformar uma situação.
No início do ano de 2001 uma epidemia de febre aftosa se espalhou pela Inglaterra.
Como forma de controle dessa epidemia, a política de governo previa o sacrifício dos animais
contaminados e dos que, possivelmente, pudessem transmitir a enfermidade para outros
devido ao contato e/ou proximidade com os infectados. Embora se tenha cumprido tal
determinação, a doença continuava a se alastrar. Como a política de controle da epidemia em
questão não produziu os efeitos esperados, Law e Mol (2008), relatam que a cada semana ela
era modificada e o fruto dessa mudança fazia relação com a forma como a epidemia era
entendida por diversas instâncias que colaboravam com o caso. Em meio a tudo isso o
governo anuncia uma grande matança preventiva de ovelhas. E essa situação gera
controvérsias e, logo, várias versões para ‘a ovelha’; ela atua e é atuada de diversas formas.
Os autores enumeraram alguns atores atuando com as ovelhas entre os tantos outros atores
22
que não foram postos em questão: A ovelha veterinária; a ovelha epidemiológica; a ovelha
pecuária e a ovelha econômica. Apresento-lhes agora como ‘a ovelha’ foi atuada para
apreendermos o que compreende uma atuação, o atuar e ser atuado.
As ovelhas em atuação com os veterinários surgem como animais difíceis de formar
um diagnóstico da febre aftosa. Porque na maioria das vezes, a infecção toma sua forma
benigna nas ovelhas adultas. Mesmo diante de uma avaliação criteriosa do veterinário, a
doença pode passar desapercebida ou ser facilmente confundida com outra enfermidade. Por
isso, o diagnóstico só poderia ser confirmado através do exame laboratorial. Contudo, esse
procedimento era muito demorado e, naquele momento, não havia tempo para tanta espera.
Portanto, toda ovelha que o veterinário, através do exame clínico, suspeitasse estar infectada,
era enviada para o sacrifício. Embora na prática veterinária seja necessário uma confirmação
laboratorial da doença para determinar o sacrifício de um animal, naquela situação, a prática
se encontrava separada das determinações legais (LAW; MOL, 2008).
Já a ovelha atuada com a epidemiologia se converte em coletivos (uma propriedade,
por exemplo), não se tratava mais de diagnosticar qual ovelha estava infectada ou não, porque
a infecção em uma propriedade já anunciava a morte de todas as outras. Enquanto as
ordenações veterinárias se baseavam em exames clínicos, a epidemiologia trabalhou com
cálculos que indicavam a probabilidade da infecção. As práticas veterinárias e laboratoriais
foram importantes nos primeiros diagnósticos, porém, nesse momento, a lógica da
epidemiologia aparta-se delas. Embora houvesse controvérsias quanto a consistência do
modelo estatístico utilizado, optou-se pelo uso do cálculo para definir o raio do risco de
contágio e determinar as distâncias em que deveriam realizar a matança das ovelhas (LAW;
MOL, 2008).
Na atuação da ovelha com a economia, por causa do surto de febre aftosa, o Reino
Unido teve uma grande perda financeira. Por um lado, devido às restrições de compra e venda
de ovelhas, por outro lado, porque os preços de venda caíram bastante. Como forma de
compensar os prejuízos e incentivar a aderência dos pecuaristas à ‘política dos sacrifícios’
para conter a epidemia, o governo passou a pagar uma compensação sobre os animais
sacrificados. Na maioria das vezes, essa compensação era maior do que o valor de venda dos
animais e havia um grande custo financeiro em manter as ovelhas que estavam saudáveis.
Então, naquela situação, o sacrifício se mostrou economicamente mais interessante que outras
formas de solução (LAW; MOL, 2008).
Em relação à pecuária, a ovelha surge como parte de um rebanho. Não se trata
somente de uma questão econômica, mas envolve o tempo de constituição daquele rebanho, o
23
cuidado para se ter um bom rebanho, a função das ovelhas nesse rebanho, os cruzamentos
durante gerações até que ele se desenvolva. E todas essas características construídas são
repassadas de geração em geração. Logo, a matança de algumas ovelhas ou de muitas
provocaria uma perda irreparável para um rebanho e, inclusive o desaparecimento deste para
sempre. A atuação das ovelhas com a pecuária é capturada pela relação com o tempo, o sexo,
a idade e o lugar, fatores que contribuem para a composição dos rebanhos (LAW; MOL,
2008).
Em meio a tais discussões, as ovelhas da Cumbria foram postas de lado da ‘matança
preventiva’. Foi levado em consideração a dificuldade em se formar rebanhos como aqueles.
Tratavam-se de rebanhos de campo aberto e este tipo de rebanho leva um bom tempo para se
formar. Pois as ovelhas precisam aprender a não se perderem e, posteriormente, ensinar as
ovelhas mais novas os limites do campo, onde podem pisar sem perigo e onde não devem ir.
Além disso, essas ovelhas contribuem para manter a paisagem local, pois “limpam” os
campos de plantas indesejáveis e mantêm a típica aparência da região (LAW; MOL, 2008).
Portanto, a atuação dessas ovelhas, suas características, o fazer certas coisas em vez de outras,
permitiram que elas modificassem a determinação daquela política de controle para a febre
aftosa. A atuação das ovelhas de Cumbria era mais interessante do que a sua extinção.
Desta maneira, visto as diversas formas em que a ovelha é atuada com outros atores
podemos dizer que ela é múltipla, porque aparece de diferentes modos de acordo com a
prática produzida. Não se pode falar em ‘a ovelha’ em especial, pois existem atuações para as
ovelhas, ou seja, versões distintas, mas que se comunicam em uma rede de relações
complexas (LAW; MOL, 2008). Uma versão não exclui a outra, porém todas contribuem de
alguma forma com as decisões tomadas frente à epidemia. Elas (as ovelhas) se fazem juntas,
as práticas no trato delas se convergem em algum momento. Contudo, isso não quer dizer que
as ovelhas são passivas, que apenas atuam sobre elas, porque a grande questão está no fato de
que se existem diversas formas de atuar ‘as ovelhas’, isso significa que estas também atuam
de modos distintos (LAW; MOL, 2008). Explorar as práticas de atuação da ovelha é uma
maneira de conhecer o que é uma ovelha. Porém, é importante dizer que tal investigação
sempre será parcial porque ‘a ovelha’ pode ser atuada de outras formas com outros atores que
não foram postos em cena no momento da investigação. Nessa exposição podemos notar que
os atores não atuam sozinhos, mas em colaboração com outros atores a tal ponto que seria
difícil dizer exatamente o que cada um faz: “A ação se move. É como um fluido viscoso”
(LAW; MOL, 2008, p. 88, tradução nossa). Desse modo, o que surge dessas combinações é
imprevisível porque as ‘agregações’ assim como os atores são criativos. Por outro lado, o
24
fruto dessas atuações também tem a ver com a normatividade das atividades ali reunidas: de
modo algum as formas de tratamento previstas às epidemias de febre aftosa são neutras.
Diante disso, podemos dizer que “um ator é um momento de indeterminação que gera
acontecimentos e situações. Faz isso em conjunto com outros atores que o atuam, e este por
sua vez, atua” (LAW, MOL, 2008, p. 90, tradução nossa). Entendido dessa maneira o ator,
torna-se menos importante definir quem é ator. Porém, parece mais interessante explorar o
que eles fazem, como atuam, como são atuados. Qualquer coisa pode ser um ator, ou seja,
pode ser capaz de transformar uma situação.
Após esse relato, podemos compreender como a ANT se insere como um método,
como trabalhou com as controvérsias geradas por um evento (a epidemia de febre aftosa). Da
mesma forma não ignorou as traduções/versões da ovelha, permitindo que aquelas aflorassem
sem contudo resolvê-las, mas deixando que os atores as organizassem. Vale lembrar que
‘deixar que os atores organizem o social’ não quer dizer que o pesquisador não estará
intervindo de alguma maneira; quer dizer que o pesquisador não levará respostas prontas que
proponham uma explicação para o fenômeno. Não cabe a nós dizer o que é o quê. Porém,
deveríamos estar atentos e sensíveis para perceber como os atores se organizam e como
significam os fenômenos. Desta forma, dar vazão as controvérsias é um modo interessante
para compreender como o social é tecido. Bruno Latour lançou mão dessa ferramenta para
apreender os coletivos: as cartografias controvérsias (LATOUR, 2005 apud PEDRO, 2010).
Controvérsia faz relação a um debate, uma polêmica, que propõe sair de uma visão
dicotômica dos fatos como isto ou aquilo e privilegiar as “caixas- cinzas”, aquilo que ainda
não foi legitimado, mas permanece em aberto como interrogações (PEDRO, 2010). Desta
forma, a utilização desta metodologia implicaria em “seguir” os atores, deixar-se afetar por
eles, estar atento para perceber sua atuação ao permitir que eles falem por si e, descrever as
controvérsias existentes na dinâmica da rede. Esse seria um modo de “apreender a rede ‘tal
como ela se faz’” (PEDRO, 2010, p.88). Como salienta Latour se valer das controvérsias seria
uma maneira de não enquadrar os atores em categorias, mas deixar que eles próprios ordenem
e definam o social à sua maneira. Ao pesquisador caberia a tarefa de “rastrear conexões entre
as próprias controvérsias e não tentar decidir como resolvê-las” (LATOUR, 2012, p.44).
Aceitar as várias versões significa que compreendemos que em matéria de ciência nem todos
estarão de acordo sobre um assunto. Isso porque um mesmo evento pode dar lugar a várias
versões e se fôssemos olhar de perto, de fato, nenhuma poderia ser considerada ‘certa’ ou
‘errada’. Primeiro, porque esse não é objetivo da ANT, segundo, porque os fenômenos são
heretogêneos e híbridos, possuem muitas facetas e cada ator, provavelmente, se conectará
25
apenas com algumas de suas partes. Por outro lado, se o social é um agrupamento residual de
outros materiais que não são “sociais”, as controvérsias, traduções e versões contribuiriam
para reagregá-lo, traçando a fina rede de conexões que o faz existir.
Sobre a hibridez e heterogeneidade dos fatos é possível percebê-los quando lemos de
forma atenta uma notícia de jornal, revista e etc. Em uma mesma matéria podemos encontrar
reunidas nela questões políticas, científicas, econômicas, religiosas e tantas outras. Por
exemplo, nos debates sobre a legalização do aborto no Brasil observamos discursos de cunho
religioso: “abortar é acabar com uma vida, assassinar uma pessoa”; nessa mesma frase a
ciência biológica poderá argumentar a favor ou contra sobre o que é vida, se há vida no início
da gestação; a Psicologia também poderia fazer seu discurso sobre as possíveis consequências
à mulher/mãe, ou mesmo os dilemas estas enfrentam; algumas mulheres poderiam levantar a
questão, como uma questão política, que somente a mulher deve ter o poder de decidir sobre o
seu corpo; alguns funcionários de hospitais poderiam argumentar que a não legalização do
aborto provoca muitas outras complicações para a mulher e/ou bebê quando esta tenta fazer
um aborto em local inapropriado, ocasionando a morte dos dois ou más formações no bebê
e/ou rejeições e abandonos após o parto e, portanto, esse fato aumenta os custos com saúde
para o governo.
Nesse exemplo, discursos de diferentes campos de atuação se misturam e se
apresentam entrelaçados sobre a questão de uma forma que não é possível separá-los ou tomar
uma decisão sem levá-los em conta. Questões políticas surgem com questões econômicas,
biológicas, religiosas, psicológicas. Isso porque o trabalho de purificação e separação que a
Modernidade pretendeu fez, na verdade, proliferar ainda mais os híbridos e florescer a
heterogeneidade dos fenômenos. Não há ciência pura e simplesmente, assim como não há “o
social” separado de suas articulações. O que seria marcado somente pela sociedade (humanos)
ou pela ciência (natureza) não existe, pois esses dois se misturam. A modernidade, segundo
Latour (1994), tenta cindir humanos e natureza, associando-os em polos distintos. Enquanto
os assuntos humanos estariam a cargo da política e se fariam presentes pela representação
governamental; as questões da natureza estariam a cargo das ciências e representadas pela
figura dos laboratórios. Isso, em consequência, provocou a aceleração e proliferação dos
híbridos. Porque o trabalho de separação e purificação entre conhecimento (ciência) e poder
(política) não levou em conta o processo de mediação, tão presente nos coletivos. Não foi
posto como questão que nenhum coletivo sobrevive sem mistura-se, ou seja, não é possível
agregar diversos atores e supor que estes não se afetarão. Em contrapartida, tornar os híbridos
impensáveis não os fez desaparecer, só os fez proliferar mais e mais em surdina. O preço
26
disso foi a incapacidade dos modernos de pensar a si mesmos (LATOUR, 1994). Enquanto
mantivermos essa cisão teremos dificuldades em compreender as articulações no social, seus
híbridos e sua heterogeneidade. As políticas públicas pautadas nessas divisões, igualmente,
serão ineficientes por não experienciar o coletivo tal como ele se faz e perderão a capacidade
de pensar a si mesmos. Portanto, meu interesse está em rastrear como o tema da criminalidade
circula na rede, não como informação, pois já vimos que nossa rede não significa informação,
mas transformação. Desta forma, será possível apreender o que liga a ideia de criminalidade
ao camelô, mais precisamente, como se estabelecem essas conexões. A partir daí poderíamos
pensar nesse agrupamento de coletivos, dito sociedade, como ele está se fazendo. Pois pensar
a si mesmo abre caminho para outras possibilidades de atuação, mais interessantes nos
coletivos.
27
2 OS CAMELÔS
2.1 Uma viagem no termo camelô
Figura tão comum das grandes cidades, o camelô parece acompanhar seu reboliço, seu
movimento. Bastando existir um lugar de grande circulação de pessoas para lá o
encontrarmos. Anunciando as novidades do momento, vendendo produtos de acordo com as
épocas festivas, com cópias perfeitas ou não de grandes marcas, essas vendas, muitas vezes,
são acompanhados de performances. Esse personagem das cidades é, geralmente, conhecido
por vender de tudo um pouco e a preços mais baixos. Contudo, também é encarado com
desconfiança, pelos que compram nele, em relação à qualidade de suas mercadorias e às
garantias que pode oferecer. Embora não seja possível precisar o início dessa atividade, a
palavra ‘camelô’ tem suas origens na Europa.
Curiosamente o termo camelô surgiu na França, ainda no século XII, para designar os
vendedores ambulantes das ruas de Paris que ofereciam casacos de pele de camelo
provenientes do norte da África e Oriente Médio do qual chamavam de khmalat. Por ser de
difícil pronúncia para os europeus a palavra se tornou Camelot. Esse termo era utilizado tanto
para denominar o produto como o vendedor. Porém, algumas vezes, esses ambulantes
ofereciam casacos de peles feitos de um material inferior, sendo apenas uma imitação da
mercadoria anunciada. Por isso, o termo foi vulgarmente associado a vendedores de
falsificações o que justificou o significado incorporado pelo verbo cameloter quando surgiu
no século XVII, na França: ele era utilizado tanto para designar um tipo de mercadoria mais
rude, de segunda linha, como para se referir a uma pessoa pouco cortês. No Brasil, o termo foi
incorporado no século XX e abrasileirado para camelô (DANNEMANN, 2010). Aqui se
manteve o sentido pejorativo do qual derivou o vocábulo, contudo, não foi utilizado para
denominar a mercadoria, somente o vendedor.
É possível encontrar registro na literatura da palavra Camelot na cidade do Rio de
Janeiro, Brasil. No livro “A Alma Encantadora das Ruas” do jornalista João do Rio, escrito no
início do século XX, no segmento “O que se vê nas ruas” na parte sobre as “pequenas
profissões”, João do Rio descreve as ocupações que ele chama de exóticas e que muitas vezes
são realizadas pelos “invisíveis” da cidade, e que movimentam as ruas desta. Nesta parte do
livro o jornalista se refere a algumas atividades que envolvem vendas, falsificações,
28
enganações, jogos... Como os ciganos que vendiam anéis de plaquet dizendo ser de ouro, os
selistas que catavam do lixo selos intactos de charutos caros para falsificá-los, os ratoeiros que
passavam pelos cortiços comprando ratos para depois vendê-los (RIO, 1991). Porém é no
subcapítulo, “Os Mercadores de Livros e a Leitura das Ruas”, que João do Rio faz alusão ao
termo Camelot. Ele usa esse termo para se referir aos vendedores de livros ambulantes que
andavam pela cidade batendo de porta em porta, mas que também colocavam tabuleiros nas
ruas. Esses comerciantes eram compostos, predominantemente, por africanos. O autor
descreve a sua existência desde o ano de 1840 quando já negociavam com as livrarias e
comercializavam nas ruas. Porém, é a partir do início do século XX que relata o considerável
aumento do número de camelots circulando na cidade devido às possibilidades de altos
ganhos em um dia com a venda de literatura popular. Na época, Rio fez críticas a esse grupo,
sobretudo, por causa dos produtos que vendiam: os livros relatavam histórias de crimes e
devaneios e por isso acreditava-se que poderia influenciar os leitores:
Essa literatura, vorazmente lida na detenção, nos centros de vadiagem, por homens
primitivos, balbuciada à luz dos candeeiros de querosene nos casebres humildes,
piegas, hipócrita e mal feita, é a sugestionadora de crimes, o impulso à exploração
de degenerações sopitadas, o abismo para a gentalha. (RIO, 1991, p.62).
Neste registro sobre o camelô na cidade do Rio de janeiro no início do século XX,
podemos observar como ele aparece atrelado à ideia de um comércio popular e, neste caso, a
uma literatura consumida, principalmente pelos pobres. Também é possível perceber como
este fato traz uma crítica do autor ao aumento dos “camelots” pela possibilidade daquela
literatura ser um incentivador de crimes. Assim, desde os primeiros registros na literatura o
camelô surge vinculado a uma imagem negativa que o liga à ideia de contribuir com o crime,
e, por isso, sua possível proliferação preocupa.
Esse sentido depreciativo para designar camelô o acompanhou por várias épocas na
cidade do Rio de Janeiro, podendo ser observado nos discursos que propunham reformas na
cidade e condenavam esse tipo de trabalhar. O camelô é vez ou outra, associado à ideia de
sujeira das ruas da cidade, à ideia de violência, de falsificação, de financiar o crime
organizado. Todos esses argumentos já foram utilizados para fundamentar as políticas de
governo que tratam desse grupo e formular leis que procedem com a ideia de higienização das
ruas da cidade. Propondo a extinção e/ou controle desse tipo de trabalho. Durante meu
trabalho final de graduação, ao abordar o tema da pirataria de mídias, foi possível observar,
através de matérias de jornais e de programas de combate à pirataria alguns discursos que
29
seguiam este caminho, como, por exemplo, uma cartilha antipirataria, destinada ao
consumidor, dizer que a compra de produtos piratas financiava o crime organizado, porém
sem maiores exposições sobre como isto acontecia (APCM, 2010).
2.2 Versões do camelô: a multiplicidade de sua prática
Minhas aproximações com o campo de estudo, em especial, com o camelô que mais
contribuiu em depoimentos, trocas, informações, indicações de pessoas e de leituras ocorreu
no meu primeiro ano de mestrado, em 2012, durante uma palestra do candidato a prefeito do
Rio de Janeiro, Marcelo Freixo. Tal palestra discutia a defesa de uma cidade para todos seus
habitantes. Em meio à discussão, o camelô Carlos5
, fez uma pergunta sobre como o candidato
Freixo resolveria a questão do camelô porque entrava governo e saía governo e nada mudava,
de fato. Após a palestra, procurei Carlos para conversar e disse que estava estudando uma
possível criminalização dos camelôs e que me preocupava, principalmente, com a violência
que eles eram acometidos nas ruas e se ele topava conversar comigo, me contar mais sobre
sua história. Carlos ficou interessado por saber que alguém estava estudando os camelôs na
cidade do Rio de Janeiro e se mostrou bastante solícito pra conversar. Neste dia trocamos
nossos contatos, e-mail e telefone. Encontramos-nos algumas vezes na universidade que
cursei o mestrado, Uerj. Foram encontros informais, onde expus minhas ideias, fiz algumas
perguntas, tirei algumas dúvidas sobre o caminho que eu estava levando minha discussão e
pedi a opinião dele nas minhas questões. Eu estava interessada se minhas “hipóteses” se
confirmavam ou não. Depois comecei a acompanhá-lo no seu trabalho nas ruas e este chegou
a me indicar alguns amigos camelôs interessados em conversar. Entre encontros e
desencontros mantínhamos sempre contato por e-mail, às vezes enviava parte do que eu havia
escrito e, às vezes, ele me enviava sites, blogs com matérias sobre os camelôs e, às vezes,
vinha com notícias de acontecimentos, bem como, eu muitas vezes lia alguma reportagem
sobre os camelôs e o consultava para saber se ele estava a par do assunto.
Assim, em um dos nossos encontros, quando eu acompanhava Carlos em seu trabalho,
este me chamou a atenção para a importância de diferenciar o camelô do ambulante: “O
camelô é aquele cara que monta banca em um lugar fixo e não anda pela rua; o ambulante
5
Nome fictício escolhido pelo próprio camelô.
30
não tem lugar fixo, ele não fica parado, circula pela rua”. Esta diferenciação também foi
relatada pela antropóloga Mafra (2005) em sua dissertação de mestrado, onde o título já faz
essa distinção, “A ‘pista’ e o ‘camelódromo’: camelôs do centro do Rio de janeiro”. A ‘pista’
se referia, principalmente, aos ambulantes que circulavam no entorno do camelódromo da
Uruguaiana. Como foi apresentado anteriormente, o termo “camelô” derivou de comerciantes
que circulavam pelas ruas de Paris e eram conhecidos como “camelot” (DANNEMANN,
2010). Da mesma forma, na cidade do Rio de Janeiro, em relatos literários (RIO, 1991),
quando essa palavra foi incorporada ao nosso cotidiano, também se referia a comerciantes que
circulavam pelas ruas: os africanos que vendiam livros de porta em porta.
Parece que, ao longo da história, o que hoje em dia nós chamamos de “camelô” é uma
versão do que hoje nós conhecemos como “ambulantes”. Então o “camelô” (atual) seria uma
tradução/versão do “camelô” anteriormente. Bom, isso pode ter gerado uma confusão no
leitor, que deve ter lido a frase anterior mais de uma vez para entender. Pois bem, esse assunto
também não parece muito claro para os camelôs. Continuando a conversa com Carlos, este me
diz que desde criança trabalha como camelô (desde os seus cinco anos), pois quando seus pais
se separaram, com o aumento do aluguel, sua mãe encontrou dificuldades em mantê-lo e, por
isso, ele e seu irmão foram vender doces no trem. Ele se referiu à palavra “camelô” para
designar esta prática, então, eu intercedi e disse, “mas isso não é camelô, é ambulante como
você acabou de me falar”, ele respondeu “é verdade, é ambulante, você tem razão, eu
confundi”. Rimos da situação6
, mas será que realmente há essa divisão marcada entre camelô
e ambulante? E se há, quando ela se estabeleceu?
A questão não é que o Carlos se confundiu; da minha memória de infância (anos
80/90), nas minhas viagens de trem com minha avó até Santa Cruz para visitar uma tia que
morava em Sepetiba, não denominavam de “ambulantes” as pessoas que comercializavam nos
trens, mas eram conhecidos como camelôs. Ambulante sempre foi associado, muito mais, aos
vendedores que circulavam nas praias. Porém, quando os camelódromos são instaurados
(década de 80/90) há, além da determinação de locais para as práticas dos camelôs, a
intensificação da repressão e regras quanto ao que pode ser comercializado. Então, essa
fronteira entre camelô e ambulante torna-se um pouco mais evidente. O camelô é reconhecido
6
De fato, eu quis provocá-lo para pensar sobre suas contradições, porém, após apontamento da banca, me
perguntei se eu não estava tentando “resolver” tais versões para camelô e tentando dar sentido à elas, em vez
de permitir que o mesmo me contasse suas versões e estar por satisfeita descrevê-las. Isso foi interessante para
eu mesma reavaliar meu modo de conduzir uma pesquisa e perceber como, muitas vezes, embora procuremos
por métodos alternativos de pesquisa que não caiam nas velhas dicotomias, explicações e categorizações de um
método científico moderno, em muitos momentos nos vemos reproduzindo-os sem nos darmos conta. Isso foi
um aprendizado para estar cada vez mais atenta e sensível a fala do outro.
31
e legitimado de alguma forma pelas leis e possui lugar para o exercício da camelotagem, ele
se fixa em um ponto, porém o ambulante podia ser tanto o camelô que não havia conseguido
cumprir as exigências do governo para exercitar seu trabalho e precisava ‘circular’ para fugir
da repressão, como poderia ser aquela pessoa, que por escolha ou pela demanda do produto
que comercializa, preferiu ser ambulante a se fixar em um ponto.
A lei nº 1876 de 1992, de fato, não faz diferenciação ao se referir a esses dois grupos.
Porém, em 2008, admite-se essa separação quanto ao entendimento de práticas diferentes. A
partir deste ano, seguindo os critérios da lei de nº 1876, houve uma pequena modificação nas
exigências para obtenção de licenças e a abertura para cadastramento de um grande número
de ambulantes através do Cadastro Único do Comércio Ambulante (CUCA). A diferença do
ano de 1992 para o de 2008 é que se permitiu que qualquer pessoa requeresse licença, já que
nos termos daquele ano (92) fazia-se parte dos critérios de concessão: idade, pessoas com
mais tempo na função, condição física, situação penal, estado civil, número de filhos entre
outros. Porém, essa “abertura” para todos se cadastrarem só ocorreu na primeira fase de 2009.
A partir da segunda, seguiram-se critérios parecidos com os que ocorreram em 1992. Após
2008 o solicitante deveria ter mais de 18 anos e se enquadrar em uma das seguintes
situações:7
ser ex-detento; ter mais de 45 anos, estar desempregado a mais de um ano, ter
alguma necessidade física específica e ser portador do protocolo de processo com pedido de
autorização para comércio ambulante com data anterior a 31 de dezembro de 2008 (SEOP,
2009). Assim, no ano de 2009, o governo realizou o cadastramento das atividades comerciais
exercidas no espaço público, incluindo: bancas de jornais, chaveiros, quiosques de plantas,
ambulantes que atuam no asfalto e nas praias. Essas medidas foram, sobretudo, reflexo da
postura do governo municipal diante dos grandes eventos que a cidade do Rio de Janeiro será
sede, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Tal discurso aponta para a necessidade de
retomar o território público e ordená-lo a fim de receber esses dois eventos e dentro deste
projeto está incluso o ordenamento do comércio ambulante das ruas e praias. O processo de
normatização das práticas desse grupo foi parecido com o que ocorreu com os camelôs na
década de 80/90 durante a criação dos camelódromos: também ocorreram padronizações
quanto ao material utilizado, tipos de mercadorias permitidas, e, principalmente, a
intensificação na fiscalização e aumento da repressão.
Dentre as falas da prefeitura presentes na manutenção do CUCA - em documento
apresentando as ações do Seop8
, em 2011 -, estão: ter controle efetivo sobre as atividades
7
Ver anexo A
8
Secretaria especial de ordem pública.
32
econômicas no espaço público, promover a legalidade dessas atividades e incentivar o
empreendedorismo entre os ambulantes (SEOP, 2011). Este último vem acompanhado da
ideia de “entrar” para a legalidade através do projeto “Empresa Bacana”, que apresenta as
possíveis vantagens que o ambulante teria ao se tornar legal, como: a possibilidade de
comercializar com grandes empresas, de poder empregar com carteira assinada, tornando-se
um micro empresário e, portanto, aumentando sua renda (SEOP, 2011). Bom, este discurso
trata-se de um documento oficial, emitido pelo governo, que é diferente do que o próprio
ambulante entende por sua prática e quais possibilidades, o mesmo, enxerga e comunica em
uma entrevista ao falar do seu modo de trabalhar e objetivos. Os discursos podem até ser
parecidos, mas carregam sentidos distintos de acordo de onde se fala: um oficial e outro da
experiência de quem vivencia as ruas. É curioso notar uma sensível mudança e interesse do
governo ao apoiar o desenvolvimento de ambulantes em torná-los empresários em um
momento de crise do trabalho assalariado e transformações dos modos de trabalhar, já que os
“ditos” ambulantes e/ou camelôs existem faz tempos. Tal situação me levou a recordar da tese
de doutorado da antropóloga Rosana Pinheiro Machado com o título “Made in China”, onde a
mesma visita fábricas chinesas e encontrou um incentivo e o discurso recorrente sobre a
possibilidade de chineses que vinham do campo se tornarem empresários, contudo, a maior
parte desses chineses falia e não obtinha os lucros desejados. O sonho de enriquecer, na
maioria das vezes, não acontecia9
. Pergunto-me se isso se aplica a nossa situação, quantos
camelôs/ambulantes se tornarão empresários realmente?
Outra questão quanto às denominações e práticas que dariam sentidos as palavras,
camelô e ambulante, é interessante de notar: tornar-se ambulante, na ocasião da criação dos
camelódromos, pode-se dizer, foi uma atuação (tradução) dos camelôs em relação à política
da época que se tornou mais rigorosa com os que atuavam nas ruas. Então, circular pela
cidade era uma forma de fugir da repressão. No entanto, os camelôs desenvolveram um
mostruário das mercadorias no estilo de um paraquedas, porque assim era mais fácil recolher
tudo e correr rapidamente. Quando o camelô se fixa em um ponto, podemos dizer, que o uso
desse termo para essa prática foi uma versão do camelot, aquele ambulante das ruas de Paris.
E, posteriormente, o ambulante foi uma tradução/versão do camelô. E, portanto, quando essa
transformação acontece, as políticas também focam seu discurso no “tornar-se legal” para o
grupo dos ambulantes, e, principalmente, procuram exercer controle sobre este grupo com
processo semelhante ao que ocorreu com os camelôs.
9
Para maiores informações ver: MACHADO, Rosana Pinheiro. Made in China: produção e circulação de
mercadorias no circuito China-Paraguai-Brasil, 2009.
33
Vale lembrar que ao se falar em ‘versão’ não quer dizer que camelôs e ambulantes são
antagônicos, nem que são sinônimos, porque conservam características próprias quanto as
suas atuações. Porém, embora tenham diferenças, possuem muitas semelhanças e suas
práticas se tocam em vez de se excluírem. Uma forma de comercializar pode contribuir com a
outra de acordo com a necessidade imposta pelo momento. E melhor, elas convivem juntas.
Dessa forma, a compreensão da multiplicidade dos fenômenos estudados se mostra
interessante, pois a partir dela que podemos pensar na formação de realidades que são
múltiplas. Partindo disto, poderíamos reavaliar nossas concepções de política ao levar em
conta as várias nuances envolvidas nas práticas cotidianas. Sobre este ponto é importante
esclarecer o que é multiplicidade e como este termo se diferencia de pluralidade.
De acordo com Annemarie Mol (2007) pluralidade tem a ver com perspectivismo, que
se relaciona com a forma de tradução pautada nas visões, termo já mencionado no capítulo
anterior. A pluralidade pode ser entendida como as várias formas com que especialistas
diferentes, com histórias diversas representam um objeto a partir de sua visão e a sua maneira.
Parte ainda do princípio de que existe uma realidade, um objeto intocado, singular onde um
especialista irá explicar de acordo com sua perspectiva. Neste caso, as visões se excluiriam
mutuamente, não havendo um ponto de encontro entre elas capaz de fazer com que ecoem
juntas ou possam trabalhar em conjunto.
Outra maneira de conceber a pluralidade é pensá-la a partir da construção, ou seja,
como certas versões sobre a realidade foram tidas como “a verdadeira” em lugar de outras.
Assim se preocupa com a história de sua formação e o que possibilitou o seu sucesso, quais
grupos e/ou pessoas estavam envolvidos nesta alternativa. Da mesma forma, alternativas
possíveis existiram, porém desapareceram em detrimento de outra ao longo da história e isso
ainda se assemelha ao perspectivismo no sentido de que as possibilidades, ou melhor, as
realidades possíveis não se tocam, mas se excluem em detrimento da perspectiva (MOL,
2007).
Em contrapartida a multiplicidade leva em conta o que é posto em cena, a realidade é
performada, feita em vez de somente observada: “Em lugar de ser vista por uma diversidade
de olhos, mantendo-se intocada no centro, a realidade é manipulada por meio de vários
instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas”. (MOL, 2007, p.6). A
multiplicidade pode ser compreendida quando diferentes versões sobre um evento se
relacionam tecendo realidades múltiplas, porém, sem que uma exclua a outra. Essas realidades
convivem juntas, às vezes, uma precede a outra nas práticas cotidianas e/ou são praticadas em
conjunto, ou seja, elas colaboram entre si.
34
A partir disto poderíamos dizer que o trabalho do camelô é múltiplo ou plural?
Sabemos que o termo camelô é comumente utilizado para designar várias práticas de trabalho,
como por exemplo, pessoas que vendem produtos no ônibus, trem e etc; pessoas com um
ponto fixo na rua que utilizam bancadas, os que simplesmente carregam seus produtos nas
mãos; existem os que trabalham em camelódromos e fazem uso de barracas padronizadas ou
os que possuem barracas e as colocam em pontos fixos nas ruas, tem os que mudam de lugar
de épocas em épocas e uma infinidade de maneiras de realizar este trabalho, visto que só falei
do ponto de vista da localização e do tipo de material usado para expor seus produtos. Outra
maneira de ser pensado o camelô é a partir de suas mercadorias, há os que vendem
falsificações de marcas, os que fazem cópias piratas, os que vendem artesanatos, confecções
próprias de roupas, eletrônicos, comidas e bebidas e mais uma infinidade de coisas. Todas
essas maneiras de trabalhar do camelô coexistem juntas e uma não excluiu a outra no processo
histórico, mas foram sendo incorporadas de acordo com as necessidades e políticas do
período. Por este viés podemos dizer que o exercício da camelotagem é múltiplo, pois
comporta uma infinidade de práticas que performam de maneiras diversas e convivem juntas.
Mas, de fato, em que ponto eles se tocam tecendo realidades múltiplas?
Acredito que uma questão atravessa os camelôs e relaciona as diferentes práticas de
trabalho dos mesmos: as políticas que incidem sobre o seu controle. Está aí um ponto que
perpassa as práticas de camelotagem transformando-as: como lidar com a ideia de ilegalidade
que acaba por gerar políticas que atuam com este trabalhar do ponto de vista da criminalidade
e, logo, mediam suas práticas. Por esse viés é possível pensar em realidades múltiplas, que
envolvem práticas diversas, mas que ecoam juntas em determinado ponto. Os atores
envolvidos nesta rede farão suas traduções através de versões que implicam na maneira de
lidar com as medidas de repressão no trabalho do camelô. Como, por exemplo, o
desenvolvimento do mostruário paraquedas; os camelôs que se fixavam em algum ponto
passarem a circular; a criação de um sistema de colaboração entre os camelôs, onde eles se
ajudam para repor as mercadorias quando o ‘rapa’ confisca as mesmas. Por esse viés podemos
dizer que existem ‘os camelôs’, com atuações diversas que convergem.
Assim, ao descrever as práticas da camelotagem, poderíamos compreendê-las a partir
do que Annemarie Mol escreveu sobre a coexistência de realidades múltiplas do objeto
performado, onde elas “não estão simplesmente em oposição umas em relação às outras, ou
no exterior umas das outras. Cada uma pode suceder a outra, aparecer em vez da outra e [...]
incluir a outra. Isto significa que o que é ‘outro’ também está dentro.” (MOL, 2007, p. 18). O
que esta autora destaca é que nossas concepções tradicionais de políticas dificilmente
35
compreendem esta noção de várias realidades colaborando entre si e, por isso, a necessidade
de se criar outras concepções de políticas. Desta forma, através da TAR poderíamos pensar
em alternativas às políticas públicas atuais, ou mesmo contribuir com transformações nesta.
Porque “o que a ‘multiplicidade’ implica é que embora as realidades possam ocasionalmente
colidir umas com as outras, noutras alturas as várias performances de um objeto podem
colaborar e mesmo depender umas das outras.” (MOL, 2007, p.15).
36
3 O TRAÇADO MODERNO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
3.1 O pensamento Moderno
Latour (1994) aponta que a modernidade pode assumir muitos significados de acordo
com o autor utilizado para conceitua-la. Porém, se fôssemos pontuar semelhanças em seus
discursos, poderíamos dizer que, em geral, quando suscitam os termos ‘moderno’,
‘modernização’ e ‘modernidade’, estes surgem relacionados com a passagem do tempo. De
que modo? A ideia que abriga o emprego dessas palavras (modernidade, moderno e
modernização), faz menção a um contraste entre o passado e o presente/futuro: um novo
regime; uma aceleração do mundo; rupturas, uma revolução do tempo. Além disso, tais
sentidos, acima enumerados, relativos à Moderno se encontram ativados por meio de
polêmicas e brigas onde vencedores e perdedores são elencados: Os Antigos x Os Modernos.
Portanto, para o autor, ‘Moderno’ se faria duplamente assimétrico: por apontar uma ruptura na
passagem do tempo regular e por sublinhar um combate onde sempre há vencidos e
vencedores.
A fim de ilustrar ao que Latour está se referindo, podemos dizer que a Modernidade,
como projeto, triunfou através das revoluções burguesas europeias que reivindicavam o fim
do Absolutismo, o Antigo Regime. A instauração do Projeto Moderno foi marcada pela
ascensão da burguesia através das revoluções que a acompanharam a partir de 1600, a citar, as
revoluções inglesas: Puritana e Gloriosa; a Revolução Industrial; a Revolução Francesa. Estas,
somado a Declaração de Independência dos Estados Unidos compuseram o cenário propício
para a consolidação da época Moderna, lançando mão do que seriam os Direitos Universais
dos Homens.
Mattos (2011), ao discutir o tema da liberdade entre os jovens na nossa sociedade
atual, perpassa pelas bases filosóficas que permearam o Projeto Moderno. Ressaltando no
trecho a seguir no que se fundamentou a crítica ao Antigo Regime:
A ideia de sujeito que emerge com os autores iluministas das ciências sociais,
nascidas nos séculos XVII e XVIII, e que tematizaram o poder e as relações entre
homens e Estado, exalta a necessidade de emancipação de fato e de direito dos
homens em relação ao poder despótico do Rei, e traz o elogio de uma racionalidade
encarnada no cidadão. Entre os pensadores que discutiram o governo democrático
ou, ao menos, a necessidade de que o monarca não governe acima da lei dos
37
homens, percebemos a conexão entre a noção de sujeito racional, autônomo, capaz
de introspecção, e a noção de indivíduo comum, que tem seus interesses próprios e
que vive num Estado moderno regido por convenções e leis, feitas pelos homens e
para os homens (MATTOS, 2011, p.25).
Deste modo, o Iluminismo teve forte influência na construção da Modernidade, que
através de seus pensadores prepararam as bases que formariam os Estados Modernos, a citar:
Descartes, com a universalização da racionalidade; Locke por pensar a liberdade política
através do contrato entre sociedade civil e governo; Montesquieu ao propor a separação dos
poderes: legislativo, executivo e judiciário; Voltaire, que criticou o poder da Igreja no Estado,
propondo um governo sem a influência desta última; Rousseau e sua crítica à propriedade
privada e a ideia de que o poder político deveria estar na mão no povo.
Assim, vemos com a derrubada dos governos absolutistas, a ascensão de um Estado
Democrático encarnado na figura da República. No campo político/econômico, optou-se pela
consolidação do liberalismo, que, por sua vez, se inspirou nos ideais Iluministas do século
XVII e XVIII. Assim como, a adoção do modelo capitalista regendo as relações econômicas.
Segundo Latour (1994) a Modernidade é muitas vezes definida a partir do humanismo,
seja pontuando o nascimento do indivíduo ou apontando sua morte. Para o autor, esse
pensamento, ainda comporta um hábito tipicamente moderno por ser assimétrico. Além disso,
se esquece dos “não-humanos” e a importância destes na constituição social, visto que
possuem agência, são atores e se fazem presentes no curso de ação. Portanto, Latour prefere
pensar a Modernidade como uma atitude, em vez, de um tempo. Neste sentido, a
Modernidade trabalharia no manejo de duas atitudes: a de separação e misturas. Ou seja, a
separação em categorias da Natureza e da Sociedade. Em contrapartida, tal trabalho faria
proliferar os híbridos e as categorizações, porque na mesma medida em que crescem as
misturas, crescem o trabalho de separação em novas categorias e quanto mais categorias, mais
misturas.
Sob esse viés, é interessante notar as aproximações de Latour com a discussão de
Hüning e Guareschi10
(2005) no texto “Efeito Foucault: desacomodar a psicologia”, quando
estas autoras discorrem sobre o Projeto da Modernidade apontando “o sonho da pureza” e a
“busca da ordem” como temas afins a tal projeto. As autoras percorrem pelos estudos de
Bauman (1998 e 1999) para discutir como a modernidade se constituiu nos ideais da beleza,
da pureza e da ordem e para mantê-los “empenhou-se em criar mecanismos que dessem conta
de limpar a sujeira e ordenar a desordem” (HÜNING, GUARESCHI, 2005, p.115-116).
10
As autoras discutem a modernidade e suas questões na produção de conhecimento e não como um momento
histórico.
38
Como já apontado em Latour (1994), esses mecanismos seriam, a categorização, a
classificação, que buscariam estruturar o mundo de modo a suprimir as ambivalências,
colocando cada coisa em seu devido lugar:
A preservação da ordem e a inteligibilidade do ambiente colocaram-se no centro das
atenções da racionalidade. Mas estes ideais de modo algum se restringiram à ordem
ou a pureza das coisas e, conforme este autor [Bauman], uma das mais importantes
“corporificações da ‘sujeira’” deu-se sobre os “outros seres humanos”, mais
especificamente sobre certas categorias de pessoas que atrapalhariam a perfeita
organização desse ambiente. (HÜNING; GUARESCHI, 2005, p.116, grifo do autor)
Nisto incorreria uma das críticas de Latour (1994) à Modernidade, o trabalho de
separação, a busca pela pureza acompanhada das categorizações se mostraria impossível,
visto que onde há coletivos, há misturas e, portanto quanto mais categorização, maior o
número de misturas e reuniões antes impensadas e improváveis. Então, na verdade, o que a
Modernidade propiciou foi exatamente o oposto de seu desejo ideal: a criação de toda sorte de
híbridos.
Embora a Modernidade tenha sido a impulsionadora do trabalho de hibridez, esta,
como apontam Hüning e Guareschi (2005) não aceita outra ordem como possibilidade,
admitindo apenas uma como a correta e qualquer ocorrência fora desta ordem, seria entendida
como ‘os outros’: “Os outros, são também os fora da ordem, que como tais, têm de ser
eliminados: adequar-se ou desaparecer, serem retirados dos espaços reservados aos
normatizados.” (p.116, grifo do autor).
Portanto, podemos afirmar que uma das grandes questões da Modernidade é a sua
dificuldade em lidar com a alteridade, enquanto estava, graças ao trabalho de purificação e
separação, produzindo-a cada vez mais. Isto incorre em um problema para os modernos, como
já salientado no início desta dissertação: a impossibilidade de pensar a si mesmo já que
ignorariam “as misturas” e diferenças existentes nela própria. Neste sentido, trazendo esta
discussão para a compreensão do que ocorre em uma cidade, as diversas práticas,
acontecimentos, agrupamentos, se formos modernos teremos dificuldade em lidar com a
alteridade. E um dos tratamentos aplicados a esta, pode envolver a sua supressão ou repressão.
A citar, um tema que vez ou outra se faz presente na pauta de políticas públicas para a cidade
do Rio de Janeiro: a revitalização dos espaços urbanos. A ideia de revigorar um espaço,
insuflando vida onde esta não existe, poderia levar as duas situações citadas acima: a
supressão ou repressão de certas práticas nos espaços urbanos. Além disso, abre um campo de
discussão sobre o que é um ambiente sem vida e o que significa vitalidade, ou melhor, o que é
39
um ambiente vivaz? Quais os significados empregados que determinaram a divisão de
ambientes com e sem vida? Por quem e para quem tais locais são vistos assim? Mais adiante
veremos a utilização desses mecanismos na modernização da cidade do Rio de Janeiro no
início do século XX.
3.2 Início do século XX: modernização da cidade e conflitos
No final do século XIX, com a proclamação da República, surge a necessidade de dar
a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, ares modernos a fim de abolir com a
imagem de um país atrasado e escravocrata. Assim, para marcar esta transição, no início do
século XX o presidente do Brasil, Rodrigues Alves, dá o aval para que o Prefeito Pereira
Passos inicie as reformas necessárias na cidade do Rio de Janeiro. As reformas urbanísticas
implementadas, no plano arquitetônico, foram inspiradas na reforma de Paris no século XIX e
procuravam embelezar a cidade, pondo fim aos cortiços do centro e dando lugar a outras
construções. Além disso, há a preocupação com a abertura de vias e, portanto, adaptação da
cidade aos automóveis. Mas essa reforma não se faz somente no traçado dos arquitetos e
engenheiros, ela também se processa nos corpos e nesse campo encontramos a higienização
da população através das mãos do médico sanitarista Oswaldo Cruz.
Outro lado da atuação dessas transformações urbanas estão os conflitos entre a polícia
e os grupos populares na cidade do Rio de Janeiro. Durante a modernização da cidade, na
passagem do século XIX e XX, a polícia teve seu papel em garantir o processo civilizatório e
manter a ordem, permitindo o que seria o desenvolvimento da cidade rumo ao progresso
(RODRIGUES, 2002). Em 1870 a expansão demográfica era evidente, acompanhado do
crescimento da Indústria têxtil, transformando a sociedade carioca. Além das mudanças de
hábitos e comportamentos, aumentam-se os índices de criminalidade e violência. É quando
esses conflitos atingem as políticas de habitação e as condutas de civilidade advindas de um
país de base agrícola que a polícia aparece como forma de manter o controle e exercer a
autoridade pública (RODRIGUES, 2002).
A cidade do Rio de Janeiro, que deveria ser o centro político e cultural do Brasil, não
poderia conviver com o que não fosse moderno, devendo excluir do seu centro tudo o que
atrapalhasse o processo da construção do homem civilizado. Assim, era necessário retirar as
quitandeiras negras ambulantes do mercadinho africano, os barbeiros ambulantes da região
40
central e etc. A cidade não podia mais permanecer com sua ‘cara’ de trabalho, pois precisava
se revestir de capital europeia civilizada. A medida adotada para que isto se concretizasse, foi
o embelezamento da cidade e, assim, a exclusão das atividades de seu centro que não fossem
condizentes com este ideário. (RODRIGUES, 2002). Isto foi duplamente importante, pois
atuou na exclusão dos grupos populares da área central, assim como incorporou os negros,
que chegavam à cidade após a abolição da escravidão, às obras existentes, anulando seu
possível potencial de revolução (RODRIGUES, 2002).
Como foi mencionado no tópico anterior, uma das questões da modernidade é a sua
dificuldade em lidar com a alteridade. Então, uma das maneiras de tratar aquilo que não foi
normatizado seria através da supressão e/ou repressão. Bem, na cidade do Rio de Janeiro, o
modelo de desenvolvimento adotado rumo à modernização se fez através da intervenção
autoritária do Estado: “O projeto republicano mostrou seu caráter conservador quando
expressou a necessidade de retomar o controle e estabelecer a ordem numa perspectiva não
tão antiga quanto à das permanências coloniais” (RODRIGUES, 2002, p.28). Deste modo, a
modernização ocorreu segundo os padrões políticos das elites que se revelou em seu ideal de
progresso através de uma pedagogia do “civilizar-se”.
Mais de um século depois, assistimos à situação semelhante: a vontade de vestir outra
roupagem a cidade do Rio de Janeiro que seja condizente com uma cidade global capaz de
atrair o investimento estrangeiro. Isto faz com que se façam reformas na cidade que envolve,
entre outros, expulsão de grupos populares do centro, zona sul e outras áreas nobres e
turísticas para dar lugar à nova roupagem de cidade cosmopolita. Tal processo ocorre por
intermédio do discurso da realização de dois grandes eventos “importantes” mundialmente: a
Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Contudo, tal fato só poderia acontecer se certos grupos
fossem colocados no patamar da criminalidade, da ilegalidade, pois é a partir deste
pensamento que as medidas de controle, supressão e/ou repressão, poderiam ser exercidas
livremente. Do mesmo modo, outro ponto importante de notar, é que novamente a polícia tem
seu papel de reprimir qualquer situação que se mostre contrária às reformas. Posso citar o
exemplo recente da ocupação do Museu do Índio no entorno do maracanã e como essa
manifestação foi sufocada violentamente pela polícia em prol das obras para a Copa do
Mundo.
41
3.3 Do Liberalismo rumo ao Estado Penal?
O liberalismo foi uma forma de se pensar a garantia da liberdade individual diante dos
desmandos dos governos monárquicos, Absolutistas, existentes na Europa, por volta dos
séculos XVII e XVIII. A criação de direitos universais através da Constituição e o respeito a
esta foi uma maneira de possibilitar a convivência entre os indivíduos na sociedade e as
liberdades pessoais frente ao governo (MATTOS, 2011). A ascensão dos Estados
democráticos e a adoção do liberalismo também significava o alcance da liberdade política.
Neste momento, a regulação entre governo e sociedade civil se faria através das leis, em vez
de estar subjugado pelas vontades de um rei. Isto significaria a possibilidade de escolher
políticos que pudessem representar os interesses e direitos dos indivíduos, permitindo que
estes estivessem livres para o exercício de sua liberdade individual. Porém, como muito bem
salientou Benjamin Constant, isto poderia incorrer em um perigo para os Modernos, pois na
medida em que daríamos ênfase às liberdades privadas, poderíamos deixar de lado a
fiscalização e administração da vida política, e, assim, nos afastarmos, cada vez mais, das
decisões no campo político (CONSTANT, 1985).
Por outro lado, Hannah Arendt (1972) demonstra como o tema da liberdade política
esteve presente, muitas vezes, atrelado à ideia de segurança. Desde os séculos XVII e XVIII,
sendo ampliada nos séculos XIX e XX, quando a política estaria, não somente, identificada
com o tema da liberdade, mas comprometida com a proteção do processo vital. O Estado
deveria, então, intervir assegurando o “desenvolvimento uniforme do processo vital da
sociedade como um todo” (p.196). Partindo desta autora para os dias atuais, podemos
observar como muitos governos ditos neoliberais - por exemplo, Estados Unidos e Brasil - se
ocuparam do tema “segurança” de várias maneiras para justificar suas ações, quer seja ela: a
segurança contra o terrorismo, o tráfico, a segurança no trabalho e etc. Será que estaríamos
exagerando neste tema? Talvez a preocupação com a segurança atualmente seja tanta que
qualquer ato ou conduta que possa ser interpretado como ameaçador desta seja punido,
criminalizado e seja alvo de repressão.
Mendonça (2011) ao falar do poder de polícia, discorre sobre a intervenção do Estado
no campo da segurança de forma a limitar o exercício dos direitos individuais em prol dos
interesses públicos. Neste sentido, o poder de polícia teria o papel de brecar os abusos da
atividade particular capazes de comprometer o bem-estar social. Como relata:
42
[...] Num primeiro momento o Estado de Direito desenvolveu-se baseado nos
princípios do liberalismo, em que a preocupação era a de assegurar ao indivíduo
uma série de direitos subjetivos, dentre os quais a liberdade. [...] A regra era o livre
exercício dos direitos individuais amplamente assegurados [...] a atuação estatal
constituía exceção, só podendo limitar o exercício dos direitos individuais para
assegurar a ordem pública. A polícia administrativa era essencialmente uma polícia
de segurança.
Um segundo momento se inicia quando o Estado liberal começa a transformar-se em
Estado intervencionista; a sua atuação não se limita mais à segurança e passa a se
estender também à ordem econômica e social [...]. (DI PIETRO, 2007 apud
MENDONÇA, 2011, p.35, grifo do autor).
Sobre esta questão é interessante notar as estudos de Loïc Wacquant sobre a passagem
de um Estado Social para um Estado Penal. Em entrevista concedida à revista Fractal em
2005, ao falar no contexto da sociedade americana, explica que o Estado Social opera
garantindo proteção ante as oscilações do mercado de trabalho. Contudo, com a promoção de
um Estado mínimo, pensado no projeto neoliberal, em relação às questões sociais e
econômicas, o Estado passaria a atuar fortemente no campo penal como forma de legitimar
sua autoridade e se fazer presente (WACQUANT, 2008).
As transformações do trabalho no contexto do capitalismo contemporâneo
produziriam o que Wacquant chamou de dessocialização do trabalho assalariado, porque este,
longe de ser um ponto de garantias, seria fonte de insegurança e instabilidade: “(...) agora o
trabalho em si mesmo é inseguro, há subempregos, subsalários, trabalhos temporários ou sem
nenhum tipo de segurança empregatícia.” (WACQUANT, 2008, p. 3). Portanto o próprio
trabalho seria um deflagrador de insegurança e pobreza. Então o Estado na impossibilidade de
responder de forma eficiente à demanda por garantias sociais ofereceria como alternativas
para promover aquela sensação, políticas penais e a polícia através do discurso da necessidade
de segurança criminal:
Isso porque expandir o Estado Penal lhes permite, em primeiro lugar, abafar e conter
as desordens urbanas geradas nas camadas inferiores da estrutura social pela
simultânea desregulamentação do mercado de trabalho e decomposição da rede de
segurança social. (WACQUANT, 2007, p. 203).
Essa seria uma medida para ocultar e/ou tirar o foco da insegurança social existente.
Diante de uma crise do trabalho assalariado, a criação de empregos não seria mais uma
solução à pobreza e seguridade social se este for uma fonte de instabilidade e precariedade.
Wacquant, assim como Arendt chama a atenção para o tema da segurança no campo político e
um posicionamento dos governos frente a ela. Enquanto em Arendt aparece como a garantia
do processo vital da sociedade, em Wacquant surge como uma virada, a impossibilidade de
43
garantir esse processo e o aparecimento do Estado no campo Penal como forma de se fazer
presente.
Logo, esta demanda por segurança pode ser compreendida quando lemos autores que
pensaram sobre e liberalismo e questões como a liberdade política por demonstrarem como o
papel do governo foi pensado como o dever de garantir a segurança do desenvolvimento do
processo vital da sociedade. Em um segundo momento, o Estado passa a atuar intervindo em
questões econômicas e sociais. Em contrapartida, a experiência da garantia de segurança foi
falha em muitos outros aspectos, transmutando-se, assim, para uma segurança criminal, que
interpreta o produto dessa ineficiência como um crime. Abordando várias questões ditas
socioeconômicas – por exemplo, baixos salários, falta de emprego, empregos precários,
atividades informais, entre outros - como uma questão de criminalidade, desordem e etc.
Como por exemplo, as transformações do trabalho contemporâneo que levaram muitas
pessoas ao trabalho informal (e às vezes ilegal) ter como resposta medidas truculentas de
controle.
44
4 A CRIAÇÃO DA GUARDA MUNICIPAL BRASILEIRA
A Guarda Municipal no Brasil, como denominação, é muito antiga. Sua função quase
sempre esteve atrelada à segurança urbana, porém, não podemos dizer que a atual Guarda
Municipal veio diretamente da antiga Guarda Municipal, ocorreram, na verdade, vários
pontos de mediação até se chegar a Guarda Municipal do Rio de Janeiro que conhecemos
hoje. Como veremos mais adiante a primeira Guarda Municipal brasileira acabou por gerar
outras ‘polícias’ e, posteriormente, essas ‘outras polícias’ influenciaram na formação da
mesma.
Já em 1550, o governo de Portugal se preocupou em promover uma Polícia mais
rigorosa no Brasil Colônia, assim como, uma Justiça que estabelecesse penalidades rígidas
para os tipos de crimes. Era a promoção de medidas de controle e repressão visando à
proteção das províncias de possíveis invasões de criminosos que ocorriam nos povoados.
Assim foram criados os livros das Ordenações. Dentre estes, estava o Livro V, das
Ordenações Filipinas, que deram surgimento às primeiras polícias urbanas (RAMOS, 2010).
Esse policiamento se fazia pelos Quadrilheiros, moradores dos povoados eleitos pela
autoridade local para permanecer por três anos no cargo. Nota-se que esse serviço não era
remunerado e a escolha dos Quadrilheiros ocorria de acorda com a boa conduta do civil e a
comprovada lealdade à Coroa Portuguesa. Aos poucos essa organização foi perdendo força e,
progressivamente, dando lugar aos Pedestres, Serviços de Ordenanças, Corpos de Milícias e
Guardas Municipais (CARVALHO, 2011). Como primeira polícia remunerada na Brasil,
encontramos o Regimento de Cavalaria Regular da Capital de Minas Gerais, que surgiu em
1775 e em 1780 passou a ser comandado pelo Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes (RAMOS, 2010).
Com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, houve a necessidade de desenvolver
uma polícia de segurança na cidade do Rio de Janeiro. Assim, por meio de decreto em 13 de
maio de 1809 foi criada a Divisão Militar da Guarda Real. Esse mesmo decreto homologava a
existência das Guardas Municipais Permanentes no Brasil (CARVALHO, 2011). Sendo essa a
primeira menção a denominação Guarda Municipal. Após a Independência do Brasil, a
Guarda Real - em sua maioria composta por portugueses - se desestruturou e insurgiu contra o
sistema em abril de 1831. Em vistas disso, a Regência Provisória decretou a criação, em junho
de 1831, do Corpo de Guardas Municipais na Corte e estendeu-o a outras Províncias. Em
1866, com a reestruturação da polícia da Corte, houve a ordenação de duas polícias: uma
45
militar e outra civil. A antiga Guarda Municipal foi, então, transformada no corpo militar e
em 1889 já se encontrava toda militarizada. Sua função nesta época era a de defesa da
soberania nacional e servia como 1ª Linha de força auxiliar do Exército. Da mesma forma,
junto com a Guarda Cívica contribuía com o patrulhamento da capital do Império
(CARVALHO, 2011).
Após a proclamação da República, as Guardas Municipais ainda permaneceram
atuando em seus respectivos municípios e assumiram, entre outras funções, a de fiscalizar se
os comerciantes estavam em dia com seus impostos, assim como, a aplicação de multas. A
desobediência aos Guardas implicava em punições que poderiam ser multas e, inclusive,
penas (CARVALHO, 2011). Em 1902, decretou-se uma reforma do serviço policial e a
polícia foi dividida em duas: uma civil - organizada por delegados das circunscrições urbanas
e suburbanas, inspetores e agentes de segurança – e outra militar, exercida pela brigada
policial. Porém, as funções de cada uma das duas polícias não estavam bem definidas e
separadas, chegando ao ponto delas possuírem atribuições iguais.
Com a Revolução Constitucionalista de 1932, a Guarda Civil foi incorporada como
força auxiliar do Exército e o Marechal Zenóbio da Costa, devido a sua atuação na Revolução,
veio a assumir em 1935 o cargo de Inspetor Geral da Polícia Municipal da cidade do Rio de
Janeiro, permanecendo neste, até 1936. Posteriormente, Zenóbio da Costa criou o Pelotão de
Polícia Militar da Força Expedicionária Brasileira e, após a Segunda Guerra Mundial, a
Polícia do Exército. Esta última, não existia no Brasil até a sua participação na Segunda
Guerra Mundial: Quando por inspiração no modelo americano Military Platoon Police,
existente nos acampamentos das Divisões de Infantaria e responsáveis, entre outros, por
manter a ordem no local e pela guarda dos presos de guerra, desenvolveram a Polícia do
Exército no Brasil (CARVALHO, 2011).
Com a instauração do Estado Novo os estados e municípios foram perdendo
autonomia e a poder público se centralizando em nível federal:
Se a Guarda Municipal e a Guarda Civil eram ainda úteis como instrumento de
contenção popular, elas iam perdendo a posição antes desfrutada para as Forças
Armadas, em especial para o Exército; para evitar rebeliões civis e policiais contra o
poder central, elas foram despindo-se gradativamente de suas autonomias, por meio
do poder público federal, que aos poucos foi limitando cada vez mais suas
atribuições, chegando ao ponto de torná-las inúteis e onerosas (CARVALHO, 2011,
p.11).
Assim, com a promulgação da Constituição da República em 1946, surgiram as
polícias militares. Cabendo as mesmas a manutenção da ordem do Estado através da
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As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

  • 1. Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Thaísa Duarte Ferreira As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede Rio de Janeiro 2014
  • 2. Thaísa Duarte Ferreira As Associações de criminalidade à figura do camelô: Um estudo através da Teoria Ator- Rede Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Psicologia Social. Orientador: Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt Rio de Janeiro 2014
  • 3. CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. ___________________________________ _______________ Assinatura Data F383 Ferreira, Thaísa Duarte. As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede/ Thaísa Duarte Ferreira. – 2014. 83 f. Orientador: Ronald João Jacques Arendt. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 1. Vendedores de rua – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 2. Rio de Janeiro (RJ). Guarda Municipal – Teses. 3. Política pública – Teses. I. Arendt, Ronald João Jacques. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título. es CDU 339.177(815.3)
  • 4. Thaísa Duarte Ferreira As Associações de criminalidade à figura do camelô: Um estudo através da Teoria Ator- Rede Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Psicologia Social. Aprovada em 28 de março de 2014. Banca examinadora: ____________________________________ Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt (Orientador) Instituto de Psicologia – UERJ ______________________________________ Profª. Dr.ª Amana Rocha Mattos Instituto de Psicologia – UERJ _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Cristina Mair Barros Rauter Departamento de Psicologia - UFF Rio de Janeiro 2014
  • 6. AGRADECIMENTOS Aos meus pais que me colocaram no mundo; À minha família, em especial minha irmã pelo amor e carinho que tudo move mesmo à distância; Ao professor Ronald Arendt, meu orientador, por ter aceitado meu projeto e me apresentado a Teoria Ator-Rede; Aos camelôs e policiais que contribuíram com depoimentos, conversas, esclarecimentos; À minha gatinha, Pandora (em memória), por mostrar que o mundo podia ser diferente; Ao Federico, meu gato, por sua companhia nesse processo de criação; A Uerj por disponibilizar nesse espaço físico bons encontros entre professores, pesquisadores, alunos e curiosos; À Irani Brandão e Victor Mera, pelo apoio e carinho; Ao Baden Powell e Paulinho na Viola pelas suas belas canções que eu escutava enquanto escrevia essa dissertação; Ao professor Milton Athayde e a professora Deise Mancebo que me entrevistaram no processo seletivo do mestrado; À Ana Lúcia Maiolino que me despertou para o estudo do urbano ainda na graduação e, posteriormente, me orientou na confecção da monografia de graduação junto com a profª Ariane Ewald, a quem também agradeço por me ensinar a liberdade na escrita; Aos amigos de coração Susana Vieira, Ester Cunha, João Vinícius, Camila Silva, Ariadne Silva, Ana Alice Cafolla, Fernanda Muniz, Michelle Lustosa, Eduardo Farias, Fernanda Aragão, Vinícius Rodrigues, Rafaela Carijó, Yan Navarro, Pedro Poças, Cyro Novello, Fernanda Lobo, Heloisa Lobo, Ana Clara Carvalho, Felipe Amêndola e muitos outros amigos que contribuíram e me apoiaram direta ou indiretamente; Ao Dilmar Nascimento pelo bom encontro; À banca Amana Mattos e Cristina Rauter por sua disposição sempre em esclarecer qualquer dúvida; À todos os participantes que contribuíram para este estudo existir; Às ruas dessa cidade e de tantas outras que conheci e que me fascinam por seu movimento, multiplicidade, encontros fugazes, sorrisos, protestos, conflitos e negociações;
  • 7. Ao Sri Sri Ravi Shankar por ter fundado o grupo Arte de Viver, que me ensinou a respirar melhor e a meditar o que favoreceu o processo criativo; À Capes.
  • 8. Eu vim plantar meu castelo Naquela serra de lá, Onde daqui a cem anos Vai ser uma beira-mar... Eu pairava no ar, e olhava a cidade Passando veloz lá embaixo de mim. Eram dez milhões de mentes, Dez milhões de inconscientes, Se misturam... viram entes... Os quais conduzem as gentes Como se fossem correntes Dum rio que não tem fim. Esse ruído São os séculos pingando... E as cidades crescendo e se cruzando Como círculos na água da lagoa. E eu vi nuvens de poeira E vi uma tribo inteira Fugindo em toda carreira Pisando em roça e fogueira Ganhando uma ribanceira... E a cidade vinha vindo, A cidade vinha andando, A cidade intumescendo: Crescendo... se aproximando. Lenine
  • 9. RESUMO FERREIRA, Thaísa Duarte. As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede. 2014. 83 f. (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Neste texto gostaria de apresentar uma investigação sobre as associações de criminalidade investidas na figura do camelô através da Teoria Ator-rede. Diante da realização de dois grandes eventos, a Copa do Mundo em 2014 e os jogos Olímpicos em 2016, foi estabelecido um plano municipal de ordem pública com diagnósticos e proposições a fim de gerir a cidade do Rio de Janeiro. Uma dessas proposições envolve a política do Choque de Ordem que parte do princípio que a desordem urbana é um deflagrador de atividades criminosas. Assim, iniciou-se um processo de “higienização” das ruas da cidade, que refletiu sobre o trabalho do camelô. Logo, as políticas públicas promovidas para esta cidade aparecem como foco de discussão neste trabalho. Principalmente, como o tema da criminalidade se vincula ou é vinculado à figura do camelô. Palavras chaves: Camelô. Criminalização. Políticas Públicas. Teoria Ator-rede.
  • 10. ABSTRACT FERREIRA, Thaísa Duarte. Associations crime figure of the camelô: a study by Actor- Network Theory. 2014. 83 f. (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. In this text we would like to present an investigation into the crime associations invested in figure of camelô by Actor-Network Theory. Before the completion of two major events, the World Cup in 2014 and the Olympics in 2016, a plan was established municipal public with diagnoses and proposals to manage the city of Rio de Janeiro. One of these propositions involves the policy "Choque de Ordem" it assumes that urban disorder is a trigger for criminal activities. Thus began a process of "cleaning" the streets of the city, which reflected on the work of the street vendor. Soon, the public policies adopted for this city appear as a focus of discussion in this work. Especially, as the theme of crime binds or is linked to the figure of the street vendor. Keywords: Camelô; Criminalization; Public Policy Actor-Network Theory.
  • 11. SUMÁRIO INTRODUÇÃO………………………………………………………………. 11 1 TEORIA ATOR-REDE……………………………………………………… 15 1.1 Algumas considerações………………………………………………………. 15 1.2 Pesquisando com a teoria do ator-rede: uma “outra” possibilidade............ 20 2 OS CAMELÔS……………………………………………………………….. 26 2.1 Uma viagem no termo camelô.......................................................................... 26 2.2 Versões do camelô: a multiplicidade de sua prática...................................... 28 3 O TRAÇADO MODERNO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.............. 35 3.1 O pensamento moderno……………………………………………………… 35 3.2 Início do século XX: modernização da cidade e conflitos.............................. 38 3.3 Do liberalismo rumo ao estado penal?......................................................... 40 4 A CRIAÇÃO DA GUARDA MUNICIPAL BRASILEIRA......................... 43 4.1 A guarda municipal no rio de janeiro............................................................. 45 5 POLÍTICAS PÚBLICAS................................................................................. 53 5.1 Algumas questões sobre a pesquisa............................................................... 53 5.2 Início da década de 80 e a política dos camelódromos............................... 57 5.3 a evolução da política de tolerância zero no rio de janeiro....................... 62 5.4 The broken windows theory........................................................................... 63 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 67 REFERÊNCIAS............................................................................................... 71 ANEXO A - Cadastramento de ambulantes....................................................... 75 ANEXO B – Evolução das Guardas Municipais no Brasil................................. 77 ANEXO C- Número máximo de comerciantes ambulantes com ponto fixo por Região Administrativa.................................................................................. 78 ANEXO D- Mapas do perímetro de atuação das UOPs..................................... 80
  • 12. 12 INTRODUÇÃO Introduzir uma dissertação não é tarefa fácil, porque seria necessário, nessas poucas linhas, relatar como eu me conectei ao assunto e como este se conectou a mim. Trabalho este complicado de descrever o que nem sempre é possível descrever em palavras, pois estas, às vezes, falham em sua tarefa de tradução: as palavras trazem, mas também traem o dito. Bom, posto isto em mente, preferi iniciar contando minha trajetória e como o assunto camelô atravessou meu caminho e eu o deles. Minhas aproximações com os camelôs aconteceram mais ou menos neste período. Quando ainda criança, uma amiga da minha avó participou do processo de concessão de licença para trabalhar na região de Madureira, por volta da década de 90. Esta senhora possuía uma papelaria e comercializava também seus produtos nas ruas, empregando uma pessoa para trabalhar como camelô. Não sei por que essa lembrança permaneceu em mim. Talvez porque os camelôs sempre me inspiraram curiosidade com sua infinidade de produtos, cores, sons que instigavam meus sentidos. Também recordo que essa senhora de tempos em tempos ia ao Paraguai buscar suas mercadorias, daí aprendi que “tudo de legal” que era possível para minha família possuir vinha do Paraguai, essa era a sensação do momento no colégio público em que eu estudava: as novidades vindas do Paraguai. Ao mesmo tempo, contrapondo a imagem negativa que se instaurou posteriormente sobre os produtos paraguaios, no colégio, tê-los era sinal de status e todos queriam consumir tais mercadorias. Por outro lado, as minhas relações com o campo político sempre foram ambíguas. Vinda de uma família de religiosos que acreditavam que “não se devia envolver em política” porque esta se fazia pelas mãos dos homens que eram imperfeitos e nunca poderiam dar cabo às soluções dos problemas humanas, pois sempre falhariam. Além disso, sempre escutava em minha casa a máxima que diz “na política todos são corruptos” e, portanto, deveríamos ficar longe deste assunto. Esse pensamento é levado a tal ponto que as pessoas são proibidas de votar, em geral, anulam seus votos ou simplesmente não comparecem às urnas. De fato, essa anulação política sempre me incomodou e rompendo com a religião, quando tirei meu título de eleitor, eu votei. Queria participar das decisões do meu país. Porém, o assunto “política” era tabu lá em casa. De forma inversa, tudo isso contribuiu para que eu me interessasse por estudar políticas públicas e a atuação governamental. Assim, quando ingressei na graduação, foram esses temas que mais me mobilizaram e pautaram minhas escolhas de estágio.
  • 13. 13 Então, durante a graduação, ao cursar a matéria “Ética”, propus como trabalho final uma discussão sobre a Pirataria em obras musicais. Mais tarde, este trabalho culminou no tema da minha monografia, onde discuti mais profundamente o assunto. Naquele momento não foi pertinente explorar a fundo o tema camelô e como este se relacionava com a pirataria, visto que focava nos impactos desta para os artistas e sua relação com os direitos autorais. Contudo, nas idas e vindas à Delegacia de Repressão a Crimes contra a Propriedade Imaterial (DRCPIM), em entrevista com policiais e por ter acompanhado a apreensão de mercadorias, a questão do modo como o camelô era tratado pelo governo e como ele surgia na cadeia de vendas de produtos piratas, me chamou a atenção. Principalmente, por este ser acometido tanto das ações policiais violentas quanto pelos prejuízos com a perda das mercadorias – embora para esta última, eles tenham encontrado maneiras de amenizar os custos das ações policiais. Meu trabalho de campo, durante a monografia, envolveu conhecer DRCPIM - diga-se de passagem, que isto ocorreu graças ao estágio que fiz na Delegacia Legal. Durante esta minha passagem, um camelô se encontrava lá prestando depoimento por ter sido flagrado comercializando produtos piratas. Um dos policiais fez questão de exibir o senhor e pedir para que ele falasse quanto tempo trabalhava como camelô. Aquela situação de expô-lo, apontando-o como vendedor de pirataria, como alguém “fora da lei” me causou certo incômodo, afinal de contas não estava lá para julgar ninguém e não era repórter de programa sensacionalista, era apenas uma aspirante a pesquisadora tentando entender como funcionava a delegacia: sua função, como ocorriam as apreensões, o que era feito e etc. Contudo, este evento me levou mais tarde a fazer alguns questionamentos quanto as políticas públicas que geriam o camelô, e comecei a me perguntar se eles estavam sendo criminalizados ou não. Embora, à princípio, eu tenha defendido o argumento sobre a ocorrência da criminalização, o contato com a Teoria Ator-Rede redirecionou meu pensamento, não que eu tenha mudado totalmente de opinião, apenas decidi olhar mais de perto e entender essa rede do camelô que abarca políticas públicas, mercadorias, trabalho, economia, Guarda Municipal e etc. com mais cautela. Somado a isso, alguns períodos antes de iniciar minha monografia de graduação, comecei a participar como estagiária voluntária do projeto: “Espaço Urbano e Subjetividade: Um foco sobre as favelas do Rio de Janeiro”, coordenada, na época, pela Profª Ana Lúcia Gonçalves Maiolino da UERJ. Foi a partir desse momento que despertei para o estudo do “Urbano” e suas implicações, como, por exemplo, as questões referentes à exclusão social/segregação espacial, à violência urbana e aos estigmas sociais e territoriais. Logo após
  • 14. 14 terminar a graduação, ingressei no curso de Especialização em Sociologia Urbana, ministrado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na UERJ. Desta forma, foi possível agregar uma bagagem de conhecimento maior sobre a cidade do Rio de janeiro: sua história, transformações urbanas, a administração do espaço territorial (discussões acerca de conflitos/negociações políticas e sociais), políticas públicas e etc. Então, aquele meu desejo inicial de estudar os camelôs se tornou um projeto para o mestrado e a realização desta pesquisa. Este trabalho é fruto da pesquisa que realizei durante o mestrado ao longo dos anos de 2012 e 2013. Aqui, proponho um estudo acerca da associação da figura do camelô à criminalidade, sobretudo, as mediadas pelo governo em suas políticas públicas. Principalmente, a partir da década de 80, momento em que se inicia no Brasil o processo de finalização da Ditadura Militar e a redemocratização do país. Assim, alguns temas referentes à cidade e seus problemas, entre outros, surgem como discussão na pauta governamental. É neste cenário que o assunto camelô ganha destaque e começa a ser pensado. Atualmente, a cidade do Rio de Janeiro passa por grandes transformações em vistas de sediar dois grandes eventos: a Copa do Mundo neste ano de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Diante desses dois grandes eventos a prefeitura do Rio de Janeiro desenvolveu um Plano Municipal de Ordem Pública com diagnóstico e proposições a fim de gerir os temas referentes à ordem e a segurança na cidade. Iniciando um processo de controle e retomada dos espaços públicos, que acarretaram em impactos para o trabalho do camelô. Assim, houve a inauguração da Secretaria Especial de Ordem Pública para dar cabo ao processo da “retomada” dos espaços públicos pelo governo. Desta forma, a fim de ordenar a cidade, lançaram mão da política do Choque de Ordem, que foi baseada na Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows), formulada na década de 80 nos Estados Unidos. Sua implementação a partir de 2008, na cidade do Rio de Janeiro, ocorreu frente à ascensão do governo do atual prefeito Eduardo Paes e sustenta-se sob o argumento de que a desordem urbana é um deflagrador de práticas criminosas o que gera um sentimento de insegurança na população ao andar pelas ruas, fazendo com que esta evite certas regiões. Isto causaria a degeneração de alguns lugares e, portanto, a diminuição da atividade econômica dos mesmos (SEOP, 2010). Embora exista de fato a degradação de alguns locais da cidade, tal política pretende, principalmente, dar uma resposta à questão da “violência” no Rio de Janeiro frente à realização de dois grandes eventos: a Copa do mundo em 2014 e os jogos Olímpicos em 2016 (SEOP, 2010).
  • 15. 15 Foi a partir destas reflexões e diante de posturas cada vez mais truculentas da polícia que percebi a importância de realizar um estudo que pudesse rastrear como o tema da criminalidade surge neste cenário e se associa a figura do camelô, assim como, suas implicações e produções. Logo, pesquisar as posturas adotadas pelo governo em relação a este modo de trabalhar seria uma maneira de colocar em aspas o que se legitimou como tradição em políticas públicas neste campo. Para tanto, no primeiro capítulo realizo uma apreensão do que seria a Teoria Ator- Rede a fim situar o leitor no campo de pesquisa. Em outro momento, clarifico como esta teoria se insere como uma metodologia, lançando as bases do que norteou a elaboração deste trabalho. No segundo capítulo discorro sobre os camelôs, salientando a origem deste termo e como o mesmo começou a ser aplicado no Brasil, chamando a atenção para os significados atribuídos a esta palavra. Da mesma forma, fala sobre as várias versões que o camelô comporta. O terceiro capítulo parte da criação dos Estados modernos, passando pelas bases que fundaram seu pensamento para compreender as ideias que fundamentaram a modernização da cidade do Rio de Janeiro, bem como sua preocupação com a questão da segurança. Já o quarto capítulo conta a história da formação das Guardas Municipais no Brasil e, posteriormente, a criação desta guarda no Rio de Janeiro, as influências que sofreram e sua função e atual estrutura. O quinto e último capítulo desenvolve o tema das políticas públicas, no Rio de Janeiro, que gerem o trabalho do camelô. Assim, descrevo a política dos camelódromos, além de relatar as origens das políticas entendidas como de “tolerância zero”, sua difusão e aplicação nesta cidade. Finalizo expondo meu argumento sobre o que entendo como sendo o processo de criminalização dos camelôs.
  • 16. 16 1 TEORIA ATOR-REDE 1.1 Algumas considerações Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Uerj, tive a oportunidade de conhecer a Teoria do Ator-Rede (Actor-Network Theory – ANT)1 através do meu orientador Ronald Arendt. Tal encontro proporcionou “outra” perspectiva e possibilidade de pesquisar. Entre seus principais estudiosos, podemos citar, Bruno Latour, Michel Callon e John Law. Os autores da Teoria do Ator-Rede propõem outra maneira de atuar no campo de pesquisa ao estabelecer como objetivo da ANT, a renovação do significado de ciência e social. Latour (2012b, p.17) busca na etimologia da palavra “social” resgatar uma sociologia de associações: primeiro social significava “seguir”, depois “seguir alguém”, um “seguidor”, um “associado” e posteriormente fazer referência a “alguma coisa em comum”. O autor questiona a vulgarização do uso da palavra social: “quando os cientistas sociais acrescentam o adjetivo ‘social’ a um fenômeno qualquer, aludem a um estado de coisas estável, a um conjunto de associações que, mais tarde, podem ser mobilizadas para explicar outro fenômeno”. Para o autor, isso não implicaria em um problema desde que a utilização do termo ‘social’ designasse algo que já está agregado e estabilizado, contudo, esvaziaria seu sentido “caso ‘social’ passe a designar um tipo de material, como se o adjetivo fosse comparável, grosso modo, a outros termos como ‘de madeira’, ‘de aço’, ‘biológico’, ‘econômico’, ‘mental’, ‘organizacional’ ou linguístico’.” (LATOUR, 2012b, p.17). Neste sentido, o emprego de ‘social’ ou ‘contexto social’ teria a função de explicar a causa de alguns aspectos residuais de outros domínios, como, direito, economia, psicologia e etc. Porém, o que seria “o social”, “a sociedade”, esse bloco capaz de dar sentido a vários fenômenos? É justamente isso que Latour questiona: a “sociedade/social” não existe tal como uma espécie de guarda-chuva capaz de preencher de significados o que outras ciências não preenchem. O “social” não seria entendido como “coisa”, como um tipo de material fixo. Ainda que a maioria dos cientistas sociais prefira chamar “social” a uma coisa homogênea, é perfeitamente lícito designar com o mesmo vocábulo uma série de associações entre elementos heterogêneos. Dado que, nos dois casos, a palavra tem 1 Neste texto utilizarei as siglas ANT (Actor-Network Theory) e TAR (Teoria Ator-Rede) como sinônimos. As duas formas se referem à mesma teoria: uma corresponde à sigla em inglês e a outra à sigla em português.
  • 17. 17 a mesma origem – a raiz latina socius -, podemos permanecer fiéis às instituições originais das ciências sociais redefinindo a sociologia não como a “ciência do social”, mas como a busca de associações. Sob este ângulo, o adjetivo “social” não designa uma coisa entre outras, como um carneiro negro entre carneiros brancos, e sim um tipo de conexão entre coisas que não são, em si mesmas, sociais. (LATOUR, 2012b, p. 23). Enquanto algumas teorias estão centradas na pesquisa a partir de polaridades como as divisões sujeito/objeto ou natureza/sociedade, a ANT está interessada, justamente, no que se processa ‘entre’ essas dicotomias, o que conectaria o sujeito ao objeto ou de que forma a sociedade estaria associada à natureza e vice e versa (PEDRO, 2007). Isso ocorre porque a ANT não entende o fazer-agir como uma relação de causalidade, no sentido de haver um domínio sobre algo que faz com que um ator aja de determinada maneira: “Vivemos em um sistema de relações. Na teoria ator-rede trata-se de descrever a rede de relações, de avaliar as redes, observar o que elas fazem fazer e como aprendemos a ser afetados por elas”. (ARENDT; FERREIRA; MORAES; TSALLIS, 2006 p.60). A questão da ação é muito mais uma questão de vínculos2 do que uma questão de determinismo x liberdade. Em uma relação tanto humanos quanto objetos se modificam, um aprende com o outro (ARENDT; FERREIRA; MORAES; TSALLIS, 2006). O músico se adapta ao instrumento, mas o instrumento também se adaptado ao músico, ele se modifica com o tempo, com a forma com que é utilizado, o músico deixa suas marcas e vícios no instrumento, assim como o instrumento transforma a técnica do músico. Às vezes, ocorre a tal ponto que um instrumentista apresenta dificuldades em fazer soar o instrumento de outro musicista. É, neste sentido, que a ANT admite e se interessa pela presença dos meios técnicos que estão entre nós e nos compõem como coletividade. Por isso, adota a presença tanto de humanos como de não- humanos nas redes sociotécnicas e reconhece a capacidade de transformação e afetação dos mesmos na circulação do social. O social circula através de uma série de associações estabelecidas. Logo, estudá-lo envolve seguir o traçado das conexões firmadas. Desta forma, deveríamos retomar o trabalho de exercer conexões e, como uma formiga, seguir os caminhos que os atores fazem, deixando que estes nos deem as pistas sobre como uma informação circula na rede. Já não basta restringir os atores ao papel de informantes de casos de tipos bem conhecidos. É preciso devolver-lhes a capacidade de elaborar suas próprias teorias sobre a constituição do social. A tarefa não consiste mais em impor ordem, em limitar o número de entidades aceitáveis, em revelar aos atores o que eles são ou em acrescentar alguma lucidez à sua prática cega. Para empregar o slogan da ANT, 2 Neste caso, vínculo se refere ao que coloca em movimento, comove.
  • 18. 18 cumpre seguir “os próprios atores”, ou seja, tentar entender suas inovações frequentemente bizarras, a fim de descobrir o que a existência coletiva se tornou em suas mãos, que métodos elaboraram para sua adequação, quais definições esclareceriam melhor as novas associações que eles se viram forçados a estabelecer. (LATOUR, 2012b, p. 31). O termo ator se refere, não somente a pessoas, mas a tudo que é capaz de deslocar, transformar, transferir, produzir sentido. Ator é tudo que possui agência, que é capaz de transformar, porque sua principal característica não é sua ação, mas os efeitos dela, o que é produzido a partir dela. A palavra “ator” não poderia vir sozinha, mas sempre na expressão ator-rede, visto que o ator nunca vem só em sua ação, mas comporta um conjunto de entidades que o fazem fazer: “a ação é tomada de empréstimo, distribuída, sugerida, influenciada, dominada, traída, traduzida. Se se diz que um ator é um ator-rede, é em primeiro lugar para esclarecer que ele representa a principal fonte de incerteza quanto à origem da ação.” (LATOUR, 2012b, p.76). Neste sentido, um trabalho que utilize teoria a Teoria do Ator-Rede deveria preocupar- se em seguir os atores envolvidos na trama e deixar que eles tracem o movimento que a rede faz. Mas o que são redes? Nas palavras de Rosa Pedro: “O conceito de redes sociotécnicas envolve a ideia de múltiplas conexões que nos permitem acompanhar e delinear a produção dos fenômenos.” (PEDRO, 2010, p.81). A autora continua dizendo que uma das características da rede é seu caráter dinâmico e instável com grandes trocas entre os atores. Diferentemente das redes de internet, onde seu compromisso está na circulação de informação, as redes sociotécnicas envolvem transformação. Já não se trata tanto de uma questão só de vínculos, mas do que esses vínculos produzem (ARENDT; FERREIRA; MORAES; TSALLIS, 2006), o que fazem fazer. Para melhor explicar como uma rede se processa é importante entender o conceito de mediadores e intermediários, pois estes dois estão implicados no mistério do curso da ação, no que faz fazer. Um intermediário é aquilo que transporta significado, porém, sem transformá-lo: “um intermediário pode ser considerado não apenas como uma caixa-preta, mas uma caixa-preta que funciona como uma unidade, embora internamente seja feita de várias partes” (LATOUR, 2012b, p.65). Em contrapartida, os mediadores podem ser bem mais complexos e comportar uma infinidade de conexões e sempre acarretam em transformações, pois fazem outros fazerem coisas inesperadas: “Os mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam.”
  • 19. 19 (LATOUR, 2012b, p.65). Pois bem, um exemplo3 simples pode ser capaz de clarificar esses dois conceitos e sua implicação no curso de ação: Um computador pode ser compreendido como um intermediário quando este funciona bem, sem provocar mudanças, como uma unidade. Por intermédio de um computador eu posso cumprir meu curso de ação e escrever esta dissertação, terminando-a no tempo necessário. Enquanto o mesmo funcionar normalmente, eu mal notarei sua existência no sentido de perceber toda sua composição, de tudo que propiciou que o mesmo fosse inventado, pois ele permanece o mesmo por todo o percurso da minha ação. Porém, se meu computador quebra por algum motivo, ele se tornará um mediador, pois essa “unidade” terá que ser aberta para descobrir onde está a falha e seus componentes aparecerão. Além de modificar minha ação - porque terei que mudar de estratégia para seguir com meu objetivo de terminar esta dissertação -, essa “quebra” também trará à tona uma série de componentes que quando associados fazem o computador existir como tal. Logo, a mediação de uma série de conexões estabelecidas entre peças tecnológicas, engenheiros, trabalhadores de indústrias, transportes de produtos, estradas, políticas de importação, ensino de informática, formulação de conhecimento na área de tecnologia da informação, entre outros, permitiram que hoje eu escrevesse esta dissertação desta maneira e não de outra forma. Além disso, uma falha em um desses dispositivos me levaria a outro percurso de ação. Por isso, estes dois conceitos de intermediários e mediadores estão envolvidos no que faz fazer ou no que faz fazer desta maneira. Ainda não sabemos como todos esses atores estão ligados, mas podemos declarar como a nova posição preestabelecida antes do estudo começar, que todos os atores que vamos desdobrar podem estar associados de tal modo que eles fazem outros fazerem coisas. Isso não se faz transportando-se uma força que permaneceria a mesma por todo o percurso como um tipo de intermediário fiel, mas gerando transformações manifestadas pelos numerosos eventos inesperados desencadeados nos outros mediadores que os seguem por toda a parte. [...] a concatenação dos mediadores não traça as mesmas ligações e não requer o mesmo tipo de explicações como um séquito de intermediários transportando uma causa (LATOUR, 2012b, p. 158). Ainda para compreender o que é uma rede, é fundamental acrescentar o conceito de tradução neste estudo. Pois será a partir desse conceito que os atores delinearão os movimentos das redes ao atribuir significados a elementos nestas, levando em conta “suas ações, linguagens, identidades e desejos” (PEDRO, 2010, p. 82). A tradução, então, pode ser compreendida como uma conexão que transporta transformação (LATOUR, 2012b), envolve, portanto: transcrever, transferir, deslocar, transpor (LATOUR, 2012a). Uma rede pode ser 3 Exemplo inspirado no livro:” Cogitamus – Seis cartas sobre las humanidades científicas” de Latour (2012a).
  • 20. 20 definida “como aquilo que é traçado pelas traduções nas explicações dos pesquisadores.” (LATOUR, 2012b, p.160). Através das traduções daríamos lugar a versões das realidades dentro da rede. Porque quando uma tradução acontece, deixa sempre um pouco de quem a compôs: a isso chamamos de versão. E, em se tratando do estudo de um evento, podemos dizer que versão vem no plural, como versões das realidades tecidas. Porém, a tradução também possui outra face e pode vir como visões. Aqui, a tradução também se processa com um “quê” de quem a estabeleceu, mas assume outra forma. A visão trata-se de deslocar o significado de algo em uma situação para outra situação sem levar em conta a alteração de seu sentido ao supor que a atribuição de significado para um evento será o mesmo em outros eventos. Isso porque a visão toma para si a existência de uma significação única para um fenômeno, que será imposta por ela. Um exemplo pode tornar isto claro: uma propaganda da TV Globo sobre seu jornalismo dizia “nós não somos versão, somos a fonte”. Nesta frase, a Globo ao se colocar na posição de fonte, assume o lugar da única emissora capaz de transmitir a “verdadeira informação” ou a “melhor informação”. Logo, a tradução que ela fará de uma informação será segundo os moldes da “visão”. Outras versões dadas por outras emissoras ou outros veículos de comunicação para um fenômeno, se não estiverem de acordo com as significações emprestadas pela Tv Globo, serão desqualificas, porque a visão desta última deve prevalecer sobre as outras e/ou servir de modelo de interpretação. Já a versão reconhece as relações de diferenças e pretende uni-las. “Traduzir não é explicar, ainda menos explicar o mundo dos outros, é colocar o que nós pensamos ou do que temos experiência à prova do que os outros pensam ou têm experiência”4 (DESPRET, 2012, p.7). Logo, traduzir através de versões diz respeito a multiplicar os significados possíveis, mas, isso não envolve interpretação e sim, experimentar equivocações de sentidos (DESPRET, 2012). Quer dizer deixar proliferar a alteridade, multiplicando a possibilidade de histórias e, principalmente, tornar-se sensível a elas, permitindo ser afetado a ponto de colocar à prova nossa própria versão ao experimentar tais equívocos de significados. Portanto, seguir o traçado de uma rede, envolve seguir a produção de diferenças deixadas pelos atores. Utilizar a Teoria Ator-Rede trata-se de lançar mão de um método para apreender a fabricação e produção de fatos. 4 Tradução realizada por Ronald Arendt (2012).
  • 21. 21 1.2 Pesquisando com a Teoria do Ator-Rede: Uma “outra” possibilidade Estudar as associações de criminalidade vinculadas ao camelô à luz desta teoria se mostra um bom caminho por ser eficiente em trilhar as dinâmicas envolvidas no campo de pesquisa. Sobretudo, porque a Teoria do Ator-Rede se preocupa com as práticas que contribuem para a constituição das redes e o que tais práticas ‘fazem fazer’. A ANT trata-se muito mais de um método, que propõe uma posição de compreensão frente ao campo de estudo, que envolve, principalmente, ganhar sensibilidade, o tornar-se sensível. Desta forma, a pesquisa ganha mais cores, mais perguntas, mais inquietações, mais movimento porque reconhece a atuação de vários atores, que através de suas traduções constituem redes. Logo, estudar as identificações de criminalidade à figura do camelô através da Teoria do Ator-Rede significa fazer o caminho das conexões estabelecidas que propiciam e/ou propiciaram tal fato. O que faz fazer o camelô ser criminalizado? Como esta rede é tecida? Contarei agora um caso de atuação das Ovelhas de uma região da Inglaterra, Cumbria, para o leitor compreender como a TAR se insere como um método e o que significa a atuação dos atores. Law e Mol (2008) se utilizam do caso da epidemia de febre aftosa, que ocorreu em 2001, para apresentar como os atores atuam com uma determinada conjuntura. O texto é interessante, em especial, por apartar o “ator” da ideia antropocêntrica que o entende a partir de conceitos de intencionalidade da ação e capacidade de controle/domínio sobre algo: o ator atua e é atuado. Aqui um não domina o outro, mas compreende que o ator não atua sozinho. Ele é autorizado e produzido em relação com outros atores. Portanto, outras figuras, que não humanas, também atuam e são capazes de transformar uma situação. No início do ano de 2001 uma epidemia de febre aftosa se espalhou pela Inglaterra. Como forma de controle dessa epidemia, a política de governo previa o sacrifício dos animais contaminados e dos que, possivelmente, pudessem transmitir a enfermidade para outros devido ao contato e/ou proximidade com os infectados. Embora se tenha cumprido tal determinação, a doença continuava a se alastrar. Como a política de controle da epidemia em questão não produziu os efeitos esperados, Law e Mol (2008), relatam que a cada semana ela era modificada e o fruto dessa mudança fazia relação com a forma como a epidemia era entendida por diversas instâncias que colaboravam com o caso. Em meio a tudo isso o governo anuncia uma grande matança preventiva de ovelhas. E essa situação gera controvérsias e, logo, várias versões para ‘a ovelha’; ela atua e é atuada de diversas formas. Os autores enumeraram alguns atores atuando com as ovelhas entre os tantos outros atores
  • 22. 22 que não foram postos em questão: A ovelha veterinária; a ovelha epidemiológica; a ovelha pecuária e a ovelha econômica. Apresento-lhes agora como ‘a ovelha’ foi atuada para apreendermos o que compreende uma atuação, o atuar e ser atuado. As ovelhas em atuação com os veterinários surgem como animais difíceis de formar um diagnóstico da febre aftosa. Porque na maioria das vezes, a infecção toma sua forma benigna nas ovelhas adultas. Mesmo diante de uma avaliação criteriosa do veterinário, a doença pode passar desapercebida ou ser facilmente confundida com outra enfermidade. Por isso, o diagnóstico só poderia ser confirmado através do exame laboratorial. Contudo, esse procedimento era muito demorado e, naquele momento, não havia tempo para tanta espera. Portanto, toda ovelha que o veterinário, através do exame clínico, suspeitasse estar infectada, era enviada para o sacrifício. Embora na prática veterinária seja necessário uma confirmação laboratorial da doença para determinar o sacrifício de um animal, naquela situação, a prática se encontrava separada das determinações legais (LAW; MOL, 2008). Já a ovelha atuada com a epidemiologia se converte em coletivos (uma propriedade, por exemplo), não se tratava mais de diagnosticar qual ovelha estava infectada ou não, porque a infecção em uma propriedade já anunciava a morte de todas as outras. Enquanto as ordenações veterinárias se baseavam em exames clínicos, a epidemiologia trabalhou com cálculos que indicavam a probabilidade da infecção. As práticas veterinárias e laboratoriais foram importantes nos primeiros diagnósticos, porém, nesse momento, a lógica da epidemiologia aparta-se delas. Embora houvesse controvérsias quanto a consistência do modelo estatístico utilizado, optou-se pelo uso do cálculo para definir o raio do risco de contágio e determinar as distâncias em que deveriam realizar a matança das ovelhas (LAW; MOL, 2008). Na atuação da ovelha com a economia, por causa do surto de febre aftosa, o Reino Unido teve uma grande perda financeira. Por um lado, devido às restrições de compra e venda de ovelhas, por outro lado, porque os preços de venda caíram bastante. Como forma de compensar os prejuízos e incentivar a aderência dos pecuaristas à ‘política dos sacrifícios’ para conter a epidemia, o governo passou a pagar uma compensação sobre os animais sacrificados. Na maioria das vezes, essa compensação era maior do que o valor de venda dos animais e havia um grande custo financeiro em manter as ovelhas que estavam saudáveis. Então, naquela situação, o sacrifício se mostrou economicamente mais interessante que outras formas de solução (LAW; MOL, 2008). Em relação à pecuária, a ovelha surge como parte de um rebanho. Não se trata somente de uma questão econômica, mas envolve o tempo de constituição daquele rebanho, o
  • 23. 23 cuidado para se ter um bom rebanho, a função das ovelhas nesse rebanho, os cruzamentos durante gerações até que ele se desenvolva. E todas essas características construídas são repassadas de geração em geração. Logo, a matança de algumas ovelhas ou de muitas provocaria uma perda irreparável para um rebanho e, inclusive o desaparecimento deste para sempre. A atuação das ovelhas com a pecuária é capturada pela relação com o tempo, o sexo, a idade e o lugar, fatores que contribuem para a composição dos rebanhos (LAW; MOL, 2008). Em meio a tais discussões, as ovelhas da Cumbria foram postas de lado da ‘matança preventiva’. Foi levado em consideração a dificuldade em se formar rebanhos como aqueles. Tratavam-se de rebanhos de campo aberto e este tipo de rebanho leva um bom tempo para se formar. Pois as ovelhas precisam aprender a não se perderem e, posteriormente, ensinar as ovelhas mais novas os limites do campo, onde podem pisar sem perigo e onde não devem ir. Além disso, essas ovelhas contribuem para manter a paisagem local, pois “limpam” os campos de plantas indesejáveis e mantêm a típica aparência da região (LAW; MOL, 2008). Portanto, a atuação dessas ovelhas, suas características, o fazer certas coisas em vez de outras, permitiram que elas modificassem a determinação daquela política de controle para a febre aftosa. A atuação das ovelhas de Cumbria era mais interessante do que a sua extinção. Desta maneira, visto as diversas formas em que a ovelha é atuada com outros atores podemos dizer que ela é múltipla, porque aparece de diferentes modos de acordo com a prática produzida. Não se pode falar em ‘a ovelha’ em especial, pois existem atuações para as ovelhas, ou seja, versões distintas, mas que se comunicam em uma rede de relações complexas (LAW; MOL, 2008). Uma versão não exclui a outra, porém todas contribuem de alguma forma com as decisões tomadas frente à epidemia. Elas (as ovelhas) se fazem juntas, as práticas no trato delas se convergem em algum momento. Contudo, isso não quer dizer que as ovelhas são passivas, que apenas atuam sobre elas, porque a grande questão está no fato de que se existem diversas formas de atuar ‘as ovelhas’, isso significa que estas também atuam de modos distintos (LAW; MOL, 2008). Explorar as práticas de atuação da ovelha é uma maneira de conhecer o que é uma ovelha. Porém, é importante dizer que tal investigação sempre será parcial porque ‘a ovelha’ pode ser atuada de outras formas com outros atores que não foram postos em cena no momento da investigação. Nessa exposição podemos notar que os atores não atuam sozinhos, mas em colaboração com outros atores a tal ponto que seria difícil dizer exatamente o que cada um faz: “A ação se move. É como um fluido viscoso” (LAW; MOL, 2008, p. 88, tradução nossa). Desse modo, o que surge dessas combinações é imprevisível porque as ‘agregações’ assim como os atores são criativos. Por outro lado, o
  • 24. 24 fruto dessas atuações também tem a ver com a normatividade das atividades ali reunidas: de modo algum as formas de tratamento previstas às epidemias de febre aftosa são neutras. Diante disso, podemos dizer que “um ator é um momento de indeterminação que gera acontecimentos e situações. Faz isso em conjunto com outros atores que o atuam, e este por sua vez, atua” (LAW, MOL, 2008, p. 90, tradução nossa). Entendido dessa maneira o ator, torna-se menos importante definir quem é ator. Porém, parece mais interessante explorar o que eles fazem, como atuam, como são atuados. Qualquer coisa pode ser um ator, ou seja, pode ser capaz de transformar uma situação. Após esse relato, podemos compreender como a ANT se insere como um método, como trabalhou com as controvérsias geradas por um evento (a epidemia de febre aftosa). Da mesma forma não ignorou as traduções/versões da ovelha, permitindo que aquelas aflorassem sem contudo resolvê-las, mas deixando que os atores as organizassem. Vale lembrar que ‘deixar que os atores organizem o social’ não quer dizer que o pesquisador não estará intervindo de alguma maneira; quer dizer que o pesquisador não levará respostas prontas que proponham uma explicação para o fenômeno. Não cabe a nós dizer o que é o quê. Porém, deveríamos estar atentos e sensíveis para perceber como os atores se organizam e como significam os fenômenos. Desta forma, dar vazão as controvérsias é um modo interessante para compreender como o social é tecido. Bruno Latour lançou mão dessa ferramenta para apreender os coletivos: as cartografias controvérsias (LATOUR, 2005 apud PEDRO, 2010). Controvérsia faz relação a um debate, uma polêmica, que propõe sair de uma visão dicotômica dos fatos como isto ou aquilo e privilegiar as “caixas- cinzas”, aquilo que ainda não foi legitimado, mas permanece em aberto como interrogações (PEDRO, 2010). Desta forma, a utilização desta metodologia implicaria em “seguir” os atores, deixar-se afetar por eles, estar atento para perceber sua atuação ao permitir que eles falem por si e, descrever as controvérsias existentes na dinâmica da rede. Esse seria um modo de “apreender a rede ‘tal como ela se faz’” (PEDRO, 2010, p.88). Como salienta Latour se valer das controvérsias seria uma maneira de não enquadrar os atores em categorias, mas deixar que eles próprios ordenem e definam o social à sua maneira. Ao pesquisador caberia a tarefa de “rastrear conexões entre as próprias controvérsias e não tentar decidir como resolvê-las” (LATOUR, 2012, p.44). Aceitar as várias versões significa que compreendemos que em matéria de ciência nem todos estarão de acordo sobre um assunto. Isso porque um mesmo evento pode dar lugar a várias versões e se fôssemos olhar de perto, de fato, nenhuma poderia ser considerada ‘certa’ ou ‘errada’. Primeiro, porque esse não é objetivo da ANT, segundo, porque os fenômenos são heretogêneos e híbridos, possuem muitas facetas e cada ator, provavelmente, se conectará
  • 25. 25 apenas com algumas de suas partes. Por outro lado, se o social é um agrupamento residual de outros materiais que não são “sociais”, as controvérsias, traduções e versões contribuiriam para reagregá-lo, traçando a fina rede de conexões que o faz existir. Sobre a hibridez e heterogeneidade dos fatos é possível percebê-los quando lemos de forma atenta uma notícia de jornal, revista e etc. Em uma mesma matéria podemos encontrar reunidas nela questões políticas, científicas, econômicas, religiosas e tantas outras. Por exemplo, nos debates sobre a legalização do aborto no Brasil observamos discursos de cunho religioso: “abortar é acabar com uma vida, assassinar uma pessoa”; nessa mesma frase a ciência biológica poderá argumentar a favor ou contra sobre o que é vida, se há vida no início da gestação; a Psicologia também poderia fazer seu discurso sobre as possíveis consequências à mulher/mãe, ou mesmo os dilemas estas enfrentam; algumas mulheres poderiam levantar a questão, como uma questão política, que somente a mulher deve ter o poder de decidir sobre o seu corpo; alguns funcionários de hospitais poderiam argumentar que a não legalização do aborto provoca muitas outras complicações para a mulher e/ou bebê quando esta tenta fazer um aborto em local inapropriado, ocasionando a morte dos dois ou más formações no bebê e/ou rejeições e abandonos após o parto e, portanto, esse fato aumenta os custos com saúde para o governo. Nesse exemplo, discursos de diferentes campos de atuação se misturam e se apresentam entrelaçados sobre a questão de uma forma que não é possível separá-los ou tomar uma decisão sem levá-los em conta. Questões políticas surgem com questões econômicas, biológicas, religiosas, psicológicas. Isso porque o trabalho de purificação e separação que a Modernidade pretendeu fez, na verdade, proliferar ainda mais os híbridos e florescer a heterogeneidade dos fenômenos. Não há ciência pura e simplesmente, assim como não há “o social” separado de suas articulações. O que seria marcado somente pela sociedade (humanos) ou pela ciência (natureza) não existe, pois esses dois se misturam. A modernidade, segundo Latour (1994), tenta cindir humanos e natureza, associando-os em polos distintos. Enquanto os assuntos humanos estariam a cargo da política e se fariam presentes pela representação governamental; as questões da natureza estariam a cargo das ciências e representadas pela figura dos laboratórios. Isso, em consequência, provocou a aceleração e proliferação dos híbridos. Porque o trabalho de separação e purificação entre conhecimento (ciência) e poder (política) não levou em conta o processo de mediação, tão presente nos coletivos. Não foi posto como questão que nenhum coletivo sobrevive sem mistura-se, ou seja, não é possível agregar diversos atores e supor que estes não se afetarão. Em contrapartida, tornar os híbridos impensáveis não os fez desaparecer, só os fez proliferar mais e mais em surdina. O preço
  • 26. 26 disso foi a incapacidade dos modernos de pensar a si mesmos (LATOUR, 1994). Enquanto mantivermos essa cisão teremos dificuldades em compreender as articulações no social, seus híbridos e sua heterogeneidade. As políticas públicas pautadas nessas divisões, igualmente, serão ineficientes por não experienciar o coletivo tal como ele se faz e perderão a capacidade de pensar a si mesmos. Portanto, meu interesse está em rastrear como o tema da criminalidade circula na rede, não como informação, pois já vimos que nossa rede não significa informação, mas transformação. Desta forma, será possível apreender o que liga a ideia de criminalidade ao camelô, mais precisamente, como se estabelecem essas conexões. A partir daí poderíamos pensar nesse agrupamento de coletivos, dito sociedade, como ele está se fazendo. Pois pensar a si mesmo abre caminho para outras possibilidades de atuação, mais interessantes nos coletivos.
  • 27. 27 2 OS CAMELÔS 2.1 Uma viagem no termo camelô Figura tão comum das grandes cidades, o camelô parece acompanhar seu reboliço, seu movimento. Bastando existir um lugar de grande circulação de pessoas para lá o encontrarmos. Anunciando as novidades do momento, vendendo produtos de acordo com as épocas festivas, com cópias perfeitas ou não de grandes marcas, essas vendas, muitas vezes, são acompanhados de performances. Esse personagem das cidades é, geralmente, conhecido por vender de tudo um pouco e a preços mais baixos. Contudo, também é encarado com desconfiança, pelos que compram nele, em relação à qualidade de suas mercadorias e às garantias que pode oferecer. Embora não seja possível precisar o início dessa atividade, a palavra ‘camelô’ tem suas origens na Europa. Curiosamente o termo camelô surgiu na França, ainda no século XII, para designar os vendedores ambulantes das ruas de Paris que ofereciam casacos de pele de camelo provenientes do norte da África e Oriente Médio do qual chamavam de khmalat. Por ser de difícil pronúncia para os europeus a palavra se tornou Camelot. Esse termo era utilizado tanto para denominar o produto como o vendedor. Porém, algumas vezes, esses ambulantes ofereciam casacos de peles feitos de um material inferior, sendo apenas uma imitação da mercadoria anunciada. Por isso, o termo foi vulgarmente associado a vendedores de falsificações o que justificou o significado incorporado pelo verbo cameloter quando surgiu no século XVII, na França: ele era utilizado tanto para designar um tipo de mercadoria mais rude, de segunda linha, como para se referir a uma pessoa pouco cortês. No Brasil, o termo foi incorporado no século XX e abrasileirado para camelô (DANNEMANN, 2010). Aqui se manteve o sentido pejorativo do qual derivou o vocábulo, contudo, não foi utilizado para denominar a mercadoria, somente o vendedor. É possível encontrar registro na literatura da palavra Camelot na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. No livro “A Alma Encantadora das Ruas” do jornalista João do Rio, escrito no início do século XX, no segmento “O que se vê nas ruas” na parte sobre as “pequenas profissões”, João do Rio descreve as ocupações que ele chama de exóticas e que muitas vezes são realizadas pelos “invisíveis” da cidade, e que movimentam as ruas desta. Nesta parte do livro o jornalista se refere a algumas atividades que envolvem vendas, falsificações,
  • 28. 28 enganações, jogos... Como os ciganos que vendiam anéis de plaquet dizendo ser de ouro, os selistas que catavam do lixo selos intactos de charutos caros para falsificá-los, os ratoeiros que passavam pelos cortiços comprando ratos para depois vendê-los (RIO, 1991). Porém é no subcapítulo, “Os Mercadores de Livros e a Leitura das Ruas”, que João do Rio faz alusão ao termo Camelot. Ele usa esse termo para se referir aos vendedores de livros ambulantes que andavam pela cidade batendo de porta em porta, mas que também colocavam tabuleiros nas ruas. Esses comerciantes eram compostos, predominantemente, por africanos. O autor descreve a sua existência desde o ano de 1840 quando já negociavam com as livrarias e comercializavam nas ruas. Porém, é a partir do início do século XX que relata o considerável aumento do número de camelots circulando na cidade devido às possibilidades de altos ganhos em um dia com a venda de literatura popular. Na época, Rio fez críticas a esse grupo, sobretudo, por causa dos produtos que vendiam: os livros relatavam histórias de crimes e devaneios e por isso acreditava-se que poderia influenciar os leitores: Essa literatura, vorazmente lida na detenção, nos centros de vadiagem, por homens primitivos, balbuciada à luz dos candeeiros de querosene nos casebres humildes, piegas, hipócrita e mal feita, é a sugestionadora de crimes, o impulso à exploração de degenerações sopitadas, o abismo para a gentalha. (RIO, 1991, p.62). Neste registro sobre o camelô na cidade do Rio de janeiro no início do século XX, podemos observar como ele aparece atrelado à ideia de um comércio popular e, neste caso, a uma literatura consumida, principalmente pelos pobres. Também é possível perceber como este fato traz uma crítica do autor ao aumento dos “camelots” pela possibilidade daquela literatura ser um incentivador de crimes. Assim, desde os primeiros registros na literatura o camelô surge vinculado a uma imagem negativa que o liga à ideia de contribuir com o crime, e, por isso, sua possível proliferação preocupa. Esse sentido depreciativo para designar camelô o acompanhou por várias épocas na cidade do Rio de Janeiro, podendo ser observado nos discursos que propunham reformas na cidade e condenavam esse tipo de trabalhar. O camelô é vez ou outra, associado à ideia de sujeira das ruas da cidade, à ideia de violência, de falsificação, de financiar o crime organizado. Todos esses argumentos já foram utilizados para fundamentar as políticas de governo que tratam desse grupo e formular leis que procedem com a ideia de higienização das ruas da cidade. Propondo a extinção e/ou controle desse tipo de trabalho. Durante meu trabalho final de graduação, ao abordar o tema da pirataria de mídias, foi possível observar, através de matérias de jornais e de programas de combate à pirataria alguns discursos que
  • 29. 29 seguiam este caminho, como, por exemplo, uma cartilha antipirataria, destinada ao consumidor, dizer que a compra de produtos piratas financiava o crime organizado, porém sem maiores exposições sobre como isto acontecia (APCM, 2010). 2.2 Versões do camelô: a multiplicidade de sua prática Minhas aproximações com o campo de estudo, em especial, com o camelô que mais contribuiu em depoimentos, trocas, informações, indicações de pessoas e de leituras ocorreu no meu primeiro ano de mestrado, em 2012, durante uma palestra do candidato a prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo. Tal palestra discutia a defesa de uma cidade para todos seus habitantes. Em meio à discussão, o camelô Carlos5 , fez uma pergunta sobre como o candidato Freixo resolveria a questão do camelô porque entrava governo e saía governo e nada mudava, de fato. Após a palestra, procurei Carlos para conversar e disse que estava estudando uma possível criminalização dos camelôs e que me preocupava, principalmente, com a violência que eles eram acometidos nas ruas e se ele topava conversar comigo, me contar mais sobre sua história. Carlos ficou interessado por saber que alguém estava estudando os camelôs na cidade do Rio de Janeiro e se mostrou bastante solícito pra conversar. Neste dia trocamos nossos contatos, e-mail e telefone. Encontramos-nos algumas vezes na universidade que cursei o mestrado, Uerj. Foram encontros informais, onde expus minhas ideias, fiz algumas perguntas, tirei algumas dúvidas sobre o caminho que eu estava levando minha discussão e pedi a opinião dele nas minhas questões. Eu estava interessada se minhas “hipóteses” se confirmavam ou não. Depois comecei a acompanhá-lo no seu trabalho nas ruas e este chegou a me indicar alguns amigos camelôs interessados em conversar. Entre encontros e desencontros mantínhamos sempre contato por e-mail, às vezes enviava parte do que eu havia escrito e, às vezes, ele me enviava sites, blogs com matérias sobre os camelôs e, às vezes, vinha com notícias de acontecimentos, bem como, eu muitas vezes lia alguma reportagem sobre os camelôs e o consultava para saber se ele estava a par do assunto. Assim, em um dos nossos encontros, quando eu acompanhava Carlos em seu trabalho, este me chamou a atenção para a importância de diferenciar o camelô do ambulante: “O camelô é aquele cara que monta banca em um lugar fixo e não anda pela rua; o ambulante 5 Nome fictício escolhido pelo próprio camelô.
  • 30. 30 não tem lugar fixo, ele não fica parado, circula pela rua”. Esta diferenciação também foi relatada pela antropóloga Mafra (2005) em sua dissertação de mestrado, onde o título já faz essa distinção, “A ‘pista’ e o ‘camelódromo’: camelôs do centro do Rio de janeiro”. A ‘pista’ se referia, principalmente, aos ambulantes que circulavam no entorno do camelódromo da Uruguaiana. Como foi apresentado anteriormente, o termo “camelô” derivou de comerciantes que circulavam pelas ruas de Paris e eram conhecidos como “camelot” (DANNEMANN, 2010). Da mesma forma, na cidade do Rio de Janeiro, em relatos literários (RIO, 1991), quando essa palavra foi incorporada ao nosso cotidiano, também se referia a comerciantes que circulavam pelas ruas: os africanos que vendiam livros de porta em porta. Parece que, ao longo da história, o que hoje em dia nós chamamos de “camelô” é uma versão do que hoje nós conhecemos como “ambulantes”. Então o “camelô” (atual) seria uma tradução/versão do “camelô” anteriormente. Bom, isso pode ter gerado uma confusão no leitor, que deve ter lido a frase anterior mais de uma vez para entender. Pois bem, esse assunto também não parece muito claro para os camelôs. Continuando a conversa com Carlos, este me diz que desde criança trabalha como camelô (desde os seus cinco anos), pois quando seus pais se separaram, com o aumento do aluguel, sua mãe encontrou dificuldades em mantê-lo e, por isso, ele e seu irmão foram vender doces no trem. Ele se referiu à palavra “camelô” para designar esta prática, então, eu intercedi e disse, “mas isso não é camelô, é ambulante como você acabou de me falar”, ele respondeu “é verdade, é ambulante, você tem razão, eu confundi”. Rimos da situação6 , mas será que realmente há essa divisão marcada entre camelô e ambulante? E se há, quando ela se estabeleceu? A questão não é que o Carlos se confundiu; da minha memória de infância (anos 80/90), nas minhas viagens de trem com minha avó até Santa Cruz para visitar uma tia que morava em Sepetiba, não denominavam de “ambulantes” as pessoas que comercializavam nos trens, mas eram conhecidos como camelôs. Ambulante sempre foi associado, muito mais, aos vendedores que circulavam nas praias. Porém, quando os camelódromos são instaurados (década de 80/90) há, além da determinação de locais para as práticas dos camelôs, a intensificação da repressão e regras quanto ao que pode ser comercializado. Então, essa fronteira entre camelô e ambulante torna-se um pouco mais evidente. O camelô é reconhecido 6 De fato, eu quis provocá-lo para pensar sobre suas contradições, porém, após apontamento da banca, me perguntei se eu não estava tentando “resolver” tais versões para camelô e tentando dar sentido à elas, em vez de permitir que o mesmo me contasse suas versões e estar por satisfeita descrevê-las. Isso foi interessante para eu mesma reavaliar meu modo de conduzir uma pesquisa e perceber como, muitas vezes, embora procuremos por métodos alternativos de pesquisa que não caiam nas velhas dicotomias, explicações e categorizações de um método científico moderno, em muitos momentos nos vemos reproduzindo-os sem nos darmos conta. Isso foi um aprendizado para estar cada vez mais atenta e sensível a fala do outro.
  • 31. 31 e legitimado de alguma forma pelas leis e possui lugar para o exercício da camelotagem, ele se fixa em um ponto, porém o ambulante podia ser tanto o camelô que não havia conseguido cumprir as exigências do governo para exercitar seu trabalho e precisava ‘circular’ para fugir da repressão, como poderia ser aquela pessoa, que por escolha ou pela demanda do produto que comercializa, preferiu ser ambulante a se fixar em um ponto. A lei nº 1876 de 1992, de fato, não faz diferenciação ao se referir a esses dois grupos. Porém, em 2008, admite-se essa separação quanto ao entendimento de práticas diferentes. A partir deste ano, seguindo os critérios da lei de nº 1876, houve uma pequena modificação nas exigências para obtenção de licenças e a abertura para cadastramento de um grande número de ambulantes através do Cadastro Único do Comércio Ambulante (CUCA). A diferença do ano de 1992 para o de 2008 é que se permitiu que qualquer pessoa requeresse licença, já que nos termos daquele ano (92) fazia-se parte dos critérios de concessão: idade, pessoas com mais tempo na função, condição física, situação penal, estado civil, número de filhos entre outros. Porém, essa “abertura” para todos se cadastrarem só ocorreu na primeira fase de 2009. A partir da segunda, seguiram-se critérios parecidos com os que ocorreram em 1992. Após 2008 o solicitante deveria ter mais de 18 anos e se enquadrar em uma das seguintes situações:7 ser ex-detento; ter mais de 45 anos, estar desempregado a mais de um ano, ter alguma necessidade física específica e ser portador do protocolo de processo com pedido de autorização para comércio ambulante com data anterior a 31 de dezembro de 2008 (SEOP, 2009). Assim, no ano de 2009, o governo realizou o cadastramento das atividades comerciais exercidas no espaço público, incluindo: bancas de jornais, chaveiros, quiosques de plantas, ambulantes que atuam no asfalto e nas praias. Essas medidas foram, sobretudo, reflexo da postura do governo municipal diante dos grandes eventos que a cidade do Rio de Janeiro será sede, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Tal discurso aponta para a necessidade de retomar o território público e ordená-lo a fim de receber esses dois eventos e dentro deste projeto está incluso o ordenamento do comércio ambulante das ruas e praias. O processo de normatização das práticas desse grupo foi parecido com o que ocorreu com os camelôs na década de 80/90 durante a criação dos camelódromos: também ocorreram padronizações quanto ao material utilizado, tipos de mercadorias permitidas, e, principalmente, a intensificação na fiscalização e aumento da repressão. Dentre as falas da prefeitura presentes na manutenção do CUCA - em documento apresentando as ações do Seop8 , em 2011 -, estão: ter controle efetivo sobre as atividades 7 Ver anexo A 8 Secretaria especial de ordem pública.
  • 32. 32 econômicas no espaço público, promover a legalidade dessas atividades e incentivar o empreendedorismo entre os ambulantes (SEOP, 2011). Este último vem acompanhado da ideia de “entrar” para a legalidade através do projeto “Empresa Bacana”, que apresenta as possíveis vantagens que o ambulante teria ao se tornar legal, como: a possibilidade de comercializar com grandes empresas, de poder empregar com carteira assinada, tornando-se um micro empresário e, portanto, aumentando sua renda (SEOP, 2011). Bom, este discurso trata-se de um documento oficial, emitido pelo governo, que é diferente do que o próprio ambulante entende por sua prática e quais possibilidades, o mesmo, enxerga e comunica em uma entrevista ao falar do seu modo de trabalhar e objetivos. Os discursos podem até ser parecidos, mas carregam sentidos distintos de acordo de onde se fala: um oficial e outro da experiência de quem vivencia as ruas. É curioso notar uma sensível mudança e interesse do governo ao apoiar o desenvolvimento de ambulantes em torná-los empresários em um momento de crise do trabalho assalariado e transformações dos modos de trabalhar, já que os “ditos” ambulantes e/ou camelôs existem faz tempos. Tal situação me levou a recordar da tese de doutorado da antropóloga Rosana Pinheiro Machado com o título “Made in China”, onde a mesma visita fábricas chinesas e encontrou um incentivo e o discurso recorrente sobre a possibilidade de chineses que vinham do campo se tornarem empresários, contudo, a maior parte desses chineses falia e não obtinha os lucros desejados. O sonho de enriquecer, na maioria das vezes, não acontecia9 . Pergunto-me se isso se aplica a nossa situação, quantos camelôs/ambulantes se tornarão empresários realmente? Outra questão quanto às denominações e práticas que dariam sentidos as palavras, camelô e ambulante, é interessante de notar: tornar-se ambulante, na ocasião da criação dos camelódromos, pode-se dizer, foi uma atuação (tradução) dos camelôs em relação à política da época que se tornou mais rigorosa com os que atuavam nas ruas. Então, circular pela cidade era uma forma de fugir da repressão. No entanto, os camelôs desenvolveram um mostruário das mercadorias no estilo de um paraquedas, porque assim era mais fácil recolher tudo e correr rapidamente. Quando o camelô se fixa em um ponto, podemos dizer, que o uso desse termo para essa prática foi uma versão do camelot, aquele ambulante das ruas de Paris. E, posteriormente, o ambulante foi uma tradução/versão do camelô. E, portanto, quando essa transformação acontece, as políticas também focam seu discurso no “tornar-se legal” para o grupo dos ambulantes, e, principalmente, procuram exercer controle sobre este grupo com processo semelhante ao que ocorreu com os camelôs. 9 Para maiores informações ver: MACHADO, Rosana Pinheiro. Made in China: produção e circulação de mercadorias no circuito China-Paraguai-Brasil, 2009.
  • 33. 33 Vale lembrar que ao se falar em ‘versão’ não quer dizer que camelôs e ambulantes são antagônicos, nem que são sinônimos, porque conservam características próprias quanto as suas atuações. Porém, embora tenham diferenças, possuem muitas semelhanças e suas práticas se tocam em vez de se excluírem. Uma forma de comercializar pode contribuir com a outra de acordo com a necessidade imposta pelo momento. E melhor, elas convivem juntas. Dessa forma, a compreensão da multiplicidade dos fenômenos estudados se mostra interessante, pois a partir dela que podemos pensar na formação de realidades que são múltiplas. Partindo disto, poderíamos reavaliar nossas concepções de política ao levar em conta as várias nuances envolvidas nas práticas cotidianas. Sobre este ponto é importante esclarecer o que é multiplicidade e como este termo se diferencia de pluralidade. De acordo com Annemarie Mol (2007) pluralidade tem a ver com perspectivismo, que se relaciona com a forma de tradução pautada nas visões, termo já mencionado no capítulo anterior. A pluralidade pode ser entendida como as várias formas com que especialistas diferentes, com histórias diversas representam um objeto a partir de sua visão e a sua maneira. Parte ainda do princípio de que existe uma realidade, um objeto intocado, singular onde um especialista irá explicar de acordo com sua perspectiva. Neste caso, as visões se excluiriam mutuamente, não havendo um ponto de encontro entre elas capaz de fazer com que ecoem juntas ou possam trabalhar em conjunto. Outra maneira de conceber a pluralidade é pensá-la a partir da construção, ou seja, como certas versões sobre a realidade foram tidas como “a verdadeira” em lugar de outras. Assim se preocupa com a história de sua formação e o que possibilitou o seu sucesso, quais grupos e/ou pessoas estavam envolvidos nesta alternativa. Da mesma forma, alternativas possíveis existiram, porém desapareceram em detrimento de outra ao longo da história e isso ainda se assemelha ao perspectivismo no sentido de que as possibilidades, ou melhor, as realidades possíveis não se tocam, mas se excluem em detrimento da perspectiva (MOL, 2007). Em contrapartida a multiplicidade leva em conta o que é posto em cena, a realidade é performada, feita em vez de somente observada: “Em lugar de ser vista por uma diversidade de olhos, mantendo-se intocada no centro, a realidade é manipulada por meio de vários instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas”. (MOL, 2007, p.6). A multiplicidade pode ser compreendida quando diferentes versões sobre um evento se relacionam tecendo realidades múltiplas, porém, sem que uma exclua a outra. Essas realidades convivem juntas, às vezes, uma precede a outra nas práticas cotidianas e/ou são praticadas em conjunto, ou seja, elas colaboram entre si.
  • 34. 34 A partir disto poderíamos dizer que o trabalho do camelô é múltiplo ou plural? Sabemos que o termo camelô é comumente utilizado para designar várias práticas de trabalho, como por exemplo, pessoas que vendem produtos no ônibus, trem e etc; pessoas com um ponto fixo na rua que utilizam bancadas, os que simplesmente carregam seus produtos nas mãos; existem os que trabalham em camelódromos e fazem uso de barracas padronizadas ou os que possuem barracas e as colocam em pontos fixos nas ruas, tem os que mudam de lugar de épocas em épocas e uma infinidade de maneiras de realizar este trabalho, visto que só falei do ponto de vista da localização e do tipo de material usado para expor seus produtos. Outra maneira de ser pensado o camelô é a partir de suas mercadorias, há os que vendem falsificações de marcas, os que fazem cópias piratas, os que vendem artesanatos, confecções próprias de roupas, eletrônicos, comidas e bebidas e mais uma infinidade de coisas. Todas essas maneiras de trabalhar do camelô coexistem juntas e uma não excluiu a outra no processo histórico, mas foram sendo incorporadas de acordo com as necessidades e políticas do período. Por este viés podemos dizer que o exercício da camelotagem é múltiplo, pois comporta uma infinidade de práticas que performam de maneiras diversas e convivem juntas. Mas, de fato, em que ponto eles se tocam tecendo realidades múltiplas? Acredito que uma questão atravessa os camelôs e relaciona as diferentes práticas de trabalho dos mesmos: as políticas que incidem sobre o seu controle. Está aí um ponto que perpassa as práticas de camelotagem transformando-as: como lidar com a ideia de ilegalidade que acaba por gerar políticas que atuam com este trabalhar do ponto de vista da criminalidade e, logo, mediam suas práticas. Por esse viés é possível pensar em realidades múltiplas, que envolvem práticas diversas, mas que ecoam juntas em determinado ponto. Os atores envolvidos nesta rede farão suas traduções através de versões que implicam na maneira de lidar com as medidas de repressão no trabalho do camelô. Como, por exemplo, o desenvolvimento do mostruário paraquedas; os camelôs que se fixavam em algum ponto passarem a circular; a criação de um sistema de colaboração entre os camelôs, onde eles se ajudam para repor as mercadorias quando o ‘rapa’ confisca as mesmas. Por esse viés podemos dizer que existem ‘os camelôs’, com atuações diversas que convergem. Assim, ao descrever as práticas da camelotagem, poderíamos compreendê-las a partir do que Annemarie Mol escreveu sobre a coexistência de realidades múltiplas do objeto performado, onde elas “não estão simplesmente em oposição umas em relação às outras, ou no exterior umas das outras. Cada uma pode suceder a outra, aparecer em vez da outra e [...] incluir a outra. Isto significa que o que é ‘outro’ também está dentro.” (MOL, 2007, p. 18). O que esta autora destaca é que nossas concepções tradicionais de políticas dificilmente
  • 35. 35 compreendem esta noção de várias realidades colaborando entre si e, por isso, a necessidade de se criar outras concepções de políticas. Desta forma, através da TAR poderíamos pensar em alternativas às políticas públicas atuais, ou mesmo contribuir com transformações nesta. Porque “o que a ‘multiplicidade’ implica é que embora as realidades possam ocasionalmente colidir umas com as outras, noutras alturas as várias performances de um objeto podem colaborar e mesmo depender umas das outras.” (MOL, 2007, p.15).
  • 36. 36 3 O TRAÇADO MODERNO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO 3.1 O pensamento Moderno Latour (1994) aponta que a modernidade pode assumir muitos significados de acordo com o autor utilizado para conceitua-la. Porém, se fôssemos pontuar semelhanças em seus discursos, poderíamos dizer que, em geral, quando suscitam os termos ‘moderno’, ‘modernização’ e ‘modernidade’, estes surgem relacionados com a passagem do tempo. De que modo? A ideia que abriga o emprego dessas palavras (modernidade, moderno e modernização), faz menção a um contraste entre o passado e o presente/futuro: um novo regime; uma aceleração do mundo; rupturas, uma revolução do tempo. Além disso, tais sentidos, acima enumerados, relativos à Moderno se encontram ativados por meio de polêmicas e brigas onde vencedores e perdedores são elencados: Os Antigos x Os Modernos. Portanto, para o autor, ‘Moderno’ se faria duplamente assimétrico: por apontar uma ruptura na passagem do tempo regular e por sublinhar um combate onde sempre há vencidos e vencedores. A fim de ilustrar ao que Latour está se referindo, podemos dizer que a Modernidade, como projeto, triunfou através das revoluções burguesas europeias que reivindicavam o fim do Absolutismo, o Antigo Regime. A instauração do Projeto Moderno foi marcada pela ascensão da burguesia através das revoluções que a acompanharam a partir de 1600, a citar, as revoluções inglesas: Puritana e Gloriosa; a Revolução Industrial; a Revolução Francesa. Estas, somado a Declaração de Independência dos Estados Unidos compuseram o cenário propício para a consolidação da época Moderna, lançando mão do que seriam os Direitos Universais dos Homens. Mattos (2011), ao discutir o tema da liberdade entre os jovens na nossa sociedade atual, perpassa pelas bases filosóficas que permearam o Projeto Moderno. Ressaltando no trecho a seguir no que se fundamentou a crítica ao Antigo Regime: A ideia de sujeito que emerge com os autores iluministas das ciências sociais, nascidas nos séculos XVII e XVIII, e que tematizaram o poder e as relações entre homens e Estado, exalta a necessidade de emancipação de fato e de direito dos homens em relação ao poder despótico do Rei, e traz o elogio de uma racionalidade encarnada no cidadão. Entre os pensadores que discutiram o governo democrático ou, ao menos, a necessidade de que o monarca não governe acima da lei dos
  • 37. 37 homens, percebemos a conexão entre a noção de sujeito racional, autônomo, capaz de introspecção, e a noção de indivíduo comum, que tem seus interesses próprios e que vive num Estado moderno regido por convenções e leis, feitas pelos homens e para os homens (MATTOS, 2011, p.25). Deste modo, o Iluminismo teve forte influência na construção da Modernidade, que através de seus pensadores prepararam as bases que formariam os Estados Modernos, a citar: Descartes, com a universalização da racionalidade; Locke por pensar a liberdade política através do contrato entre sociedade civil e governo; Montesquieu ao propor a separação dos poderes: legislativo, executivo e judiciário; Voltaire, que criticou o poder da Igreja no Estado, propondo um governo sem a influência desta última; Rousseau e sua crítica à propriedade privada e a ideia de que o poder político deveria estar na mão no povo. Assim, vemos com a derrubada dos governos absolutistas, a ascensão de um Estado Democrático encarnado na figura da República. No campo político/econômico, optou-se pela consolidação do liberalismo, que, por sua vez, se inspirou nos ideais Iluministas do século XVII e XVIII. Assim como, a adoção do modelo capitalista regendo as relações econômicas. Segundo Latour (1994) a Modernidade é muitas vezes definida a partir do humanismo, seja pontuando o nascimento do indivíduo ou apontando sua morte. Para o autor, esse pensamento, ainda comporta um hábito tipicamente moderno por ser assimétrico. Além disso, se esquece dos “não-humanos” e a importância destes na constituição social, visto que possuem agência, são atores e se fazem presentes no curso de ação. Portanto, Latour prefere pensar a Modernidade como uma atitude, em vez, de um tempo. Neste sentido, a Modernidade trabalharia no manejo de duas atitudes: a de separação e misturas. Ou seja, a separação em categorias da Natureza e da Sociedade. Em contrapartida, tal trabalho faria proliferar os híbridos e as categorizações, porque na mesma medida em que crescem as misturas, crescem o trabalho de separação em novas categorias e quanto mais categorias, mais misturas. Sob esse viés, é interessante notar as aproximações de Latour com a discussão de Hüning e Guareschi10 (2005) no texto “Efeito Foucault: desacomodar a psicologia”, quando estas autoras discorrem sobre o Projeto da Modernidade apontando “o sonho da pureza” e a “busca da ordem” como temas afins a tal projeto. As autoras percorrem pelos estudos de Bauman (1998 e 1999) para discutir como a modernidade se constituiu nos ideais da beleza, da pureza e da ordem e para mantê-los “empenhou-se em criar mecanismos que dessem conta de limpar a sujeira e ordenar a desordem” (HÜNING, GUARESCHI, 2005, p.115-116). 10 As autoras discutem a modernidade e suas questões na produção de conhecimento e não como um momento histórico.
  • 38. 38 Como já apontado em Latour (1994), esses mecanismos seriam, a categorização, a classificação, que buscariam estruturar o mundo de modo a suprimir as ambivalências, colocando cada coisa em seu devido lugar: A preservação da ordem e a inteligibilidade do ambiente colocaram-se no centro das atenções da racionalidade. Mas estes ideais de modo algum se restringiram à ordem ou a pureza das coisas e, conforme este autor [Bauman], uma das mais importantes “corporificações da ‘sujeira’” deu-se sobre os “outros seres humanos”, mais especificamente sobre certas categorias de pessoas que atrapalhariam a perfeita organização desse ambiente. (HÜNING; GUARESCHI, 2005, p.116, grifo do autor) Nisto incorreria uma das críticas de Latour (1994) à Modernidade, o trabalho de separação, a busca pela pureza acompanhada das categorizações se mostraria impossível, visto que onde há coletivos, há misturas e, portanto quanto mais categorização, maior o número de misturas e reuniões antes impensadas e improváveis. Então, na verdade, o que a Modernidade propiciou foi exatamente o oposto de seu desejo ideal: a criação de toda sorte de híbridos. Embora a Modernidade tenha sido a impulsionadora do trabalho de hibridez, esta, como apontam Hüning e Guareschi (2005) não aceita outra ordem como possibilidade, admitindo apenas uma como a correta e qualquer ocorrência fora desta ordem, seria entendida como ‘os outros’: “Os outros, são também os fora da ordem, que como tais, têm de ser eliminados: adequar-se ou desaparecer, serem retirados dos espaços reservados aos normatizados.” (p.116, grifo do autor). Portanto, podemos afirmar que uma das grandes questões da Modernidade é a sua dificuldade em lidar com a alteridade, enquanto estava, graças ao trabalho de purificação e separação, produzindo-a cada vez mais. Isto incorre em um problema para os modernos, como já salientado no início desta dissertação: a impossibilidade de pensar a si mesmo já que ignorariam “as misturas” e diferenças existentes nela própria. Neste sentido, trazendo esta discussão para a compreensão do que ocorre em uma cidade, as diversas práticas, acontecimentos, agrupamentos, se formos modernos teremos dificuldade em lidar com a alteridade. E um dos tratamentos aplicados a esta, pode envolver a sua supressão ou repressão. A citar, um tema que vez ou outra se faz presente na pauta de políticas públicas para a cidade do Rio de Janeiro: a revitalização dos espaços urbanos. A ideia de revigorar um espaço, insuflando vida onde esta não existe, poderia levar as duas situações citadas acima: a supressão ou repressão de certas práticas nos espaços urbanos. Além disso, abre um campo de discussão sobre o que é um ambiente sem vida e o que significa vitalidade, ou melhor, o que é
  • 39. 39 um ambiente vivaz? Quais os significados empregados que determinaram a divisão de ambientes com e sem vida? Por quem e para quem tais locais são vistos assim? Mais adiante veremos a utilização desses mecanismos na modernização da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. 3.2 Início do século XX: modernização da cidade e conflitos No final do século XIX, com a proclamação da República, surge a necessidade de dar a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, ares modernos a fim de abolir com a imagem de um país atrasado e escravocrata. Assim, para marcar esta transição, no início do século XX o presidente do Brasil, Rodrigues Alves, dá o aval para que o Prefeito Pereira Passos inicie as reformas necessárias na cidade do Rio de Janeiro. As reformas urbanísticas implementadas, no plano arquitetônico, foram inspiradas na reforma de Paris no século XIX e procuravam embelezar a cidade, pondo fim aos cortiços do centro e dando lugar a outras construções. Além disso, há a preocupação com a abertura de vias e, portanto, adaptação da cidade aos automóveis. Mas essa reforma não se faz somente no traçado dos arquitetos e engenheiros, ela também se processa nos corpos e nesse campo encontramos a higienização da população através das mãos do médico sanitarista Oswaldo Cruz. Outro lado da atuação dessas transformações urbanas estão os conflitos entre a polícia e os grupos populares na cidade do Rio de Janeiro. Durante a modernização da cidade, na passagem do século XIX e XX, a polícia teve seu papel em garantir o processo civilizatório e manter a ordem, permitindo o que seria o desenvolvimento da cidade rumo ao progresso (RODRIGUES, 2002). Em 1870 a expansão demográfica era evidente, acompanhado do crescimento da Indústria têxtil, transformando a sociedade carioca. Além das mudanças de hábitos e comportamentos, aumentam-se os índices de criminalidade e violência. É quando esses conflitos atingem as políticas de habitação e as condutas de civilidade advindas de um país de base agrícola que a polícia aparece como forma de manter o controle e exercer a autoridade pública (RODRIGUES, 2002). A cidade do Rio de Janeiro, que deveria ser o centro político e cultural do Brasil, não poderia conviver com o que não fosse moderno, devendo excluir do seu centro tudo o que atrapalhasse o processo da construção do homem civilizado. Assim, era necessário retirar as quitandeiras negras ambulantes do mercadinho africano, os barbeiros ambulantes da região
  • 40. 40 central e etc. A cidade não podia mais permanecer com sua ‘cara’ de trabalho, pois precisava se revestir de capital europeia civilizada. A medida adotada para que isto se concretizasse, foi o embelezamento da cidade e, assim, a exclusão das atividades de seu centro que não fossem condizentes com este ideário. (RODRIGUES, 2002). Isto foi duplamente importante, pois atuou na exclusão dos grupos populares da área central, assim como incorporou os negros, que chegavam à cidade após a abolição da escravidão, às obras existentes, anulando seu possível potencial de revolução (RODRIGUES, 2002). Como foi mencionado no tópico anterior, uma das questões da modernidade é a sua dificuldade em lidar com a alteridade. Então, uma das maneiras de tratar aquilo que não foi normatizado seria através da supressão e/ou repressão. Bem, na cidade do Rio de Janeiro, o modelo de desenvolvimento adotado rumo à modernização se fez através da intervenção autoritária do Estado: “O projeto republicano mostrou seu caráter conservador quando expressou a necessidade de retomar o controle e estabelecer a ordem numa perspectiva não tão antiga quanto à das permanências coloniais” (RODRIGUES, 2002, p.28). Deste modo, a modernização ocorreu segundo os padrões políticos das elites que se revelou em seu ideal de progresso através de uma pedagogia do “civilizar-se”. Mais de um século depois, assistimos à situação semelhante: a vontade de vestir outra roupagem a cidade do Rio de Janeiro que seja condizente com uma cidade global capaz de atrair o investimento estrangeiro. Isto faz com que se façam reformas na cidade que envolve, entre outros, expulsão de grupos populares do centro, zona sul e outras áreas nobres e turísticas para dar lugar à nova roupagem de cidade cosmopolita. Tal processo ocorre por intermédio do discurso da realização de dois grandes eventos “importantes” mundialmente: a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Contudo, tal fato só poderia acontecer se certos grupos fossem colocados no patamar da criminalidade, da ilegalidade, pois é a partir deste pensamento que as medidas de controle, supressão e/ou repressão, poderiam ser exercidas livremente. Do mesmo modo, outro ponto importante de notar, é que novamente a polícia tem seu papel de reprimir qualquer situação que se mostre contrária às reformas. Posso citar o exemplo recente da ocupação do Museu do Índio no entorno do maracanã e como essa manifestação foi sufocada violentamente pela polícia em prol das obras para a Copa do Mundo.
  • 41. 41 3.3 Do Liberalismo rumo ao Estado Penal? O liberalismo foi uma forma de se pensar a garantia da liberdade individual diante dos desmandos dos governos monárquicos, Absolutistas, existentes na Europa, por volta dos séculos XVII e XVIII. A criação de direitos universais através da Constituição e o respeito a esta foi uma maneira de possibilitar a convivência entre os indivíduos na sociedade e as liberdades pessoais frente ao governo (MATTOS, 2011). A ascensão dos Estados democráticos e a adoção do liberalismo também significava o alcance da liberdade política. Neste momento, a regulação entre governo e sociedade civil se faria através das leis, em vez de estar subjugado pelas vontades de um rei. Isto significaria a possibilidade de escolher políticos que pudessem representar os interesses e direitos dos indivíduos, permitindo que estes estivessem livres para o exercício de sua liberdade individual. Porém, como muito bem salientou Benjamin Constant, isto poderia incorrer em um perigo para os Modernos, pois na medida em que daríamos ênfase às liberdades privadas, poderíamos deixar de lado a fiscalização e administração da vida política, e, assim, nos afastarmos, cada vez mais, das decisões no campo político (CONSTANT, 1985). Por outro lado, Hannah Arendt (1972) demonstra como o tema da liberdade política esteve presente, muitas vezes, atrelado à ideia de segurança. Desde os séculos XVII e XVIII, sendo ampliada nos séculos XIX e XX, quando a política estaria, não somente, identificada com o tema da liberdade, mas comprometida com a proteção do processo vital. O Estado deveria, então, intervir assegurando o “desenvolvimento uniforme do processo vital da sociedade como um todo” (p.196). Partindo desta autora para os dias atuais, podemos observar como muitos governos ditos neoliberais - por exemplo, Estados Unidos e Brasil - se ocuparam do tema “segurança” de várias maneiras para justificar suas ações, quer seja ela: a segurança contra o terrorismo, o tráfico, a segurança no trabalho e etc. Será que estaríamos exagerando neste tema? Talvez a preocupação com a segurança atualmente seja tanta que qualquer ato ou conduta que possa ser interpretado como ameaçador desta seja punido, criminalizado e seja alvo de repressão. Mendonça (2011) ao falar do poder de polícia, discorre sobre a intervenção do Estado no campo da segurança de forma a limitar o exercício dos direitos individuais em prol dos interesses públicos. Neste sentido, o poder de polícia teria o papel de brecar os abusos da atividade particular capazes de comprometer o bem-estar social. Como relata:
  • 42. 42 [...] Num primeiro momento o Estado de Direito desenvolveu-se baseado nos princípios do liberalismo, em que a preocupação era a de assegurar ao indivíduo uma série de direitos subjetivos, dentre os quais a liberdade. [...] A regra era o livre exercício dos direitos individuais amplamente assegurados [...] a atuação estatal constituía exceção, só podendo limitar o exercício dos direitos individuais para assegurar a ordem pública. A polícia administrativa era essencialmente uma polícia de segurança. Um segundo momento se inicia quando o Estado liberal começa a transformar-se em Estado intervencionista; a sua atuação não se limita mais à segurança e passa a se estender também à ordem econômica e social [...]. (DI PIETRO, 2007 apud MENDONÇA, 2011, p.35, grifo do autor). Sobre esta questão é interessante notar as estudos de Loïc Wacquant sobre a passagem de um Estado Social para um Estado Penal. Em entrevista concedida à revista Fractal em 2005, ao falar no contexto da sociedade americana, explica que o Estado Social opera garantindo proteção ante as oscilações do mercado de trabalho. Contudo, com a promoção de um Estado mínimo, pensado no projeto neoliberal, em relação às questões sociais e econômicas, o Estado passaria a atuar fortemente no campo penal como forma de legitimar sua autoridade e se fazer presente (WACQUANT, 2008). As transformações do trabalho no contexto do capitalismo contemporâneo produziriam o que Wacquant chamou de dessocialização do trabalho assalariado, porque este, longe de ser um ponto de garantias, seria fonte de insegurança e instabilidade: “(...) agora o trabalho em si mesmo é inseguro, há subempregos, subsalários, trabalhos temporários ou sem nenhum tipo de segurança empregatícia.” (WACQUANT, 2008, p. 3). Portanto o próprio trabalho seria um deflagrador de insegurança e pobreza. Então o Estado na impossibilidade de responder de forma eficiente à demanda por garantias sociais ofereceria como alternativas para promover aquela sensação, políticas penais e a polícia através do discurso da necessidade de segurança criminal: Isso porque expandir o Estado Penal lhes permite, em primeiro lugar, abafar e conter as desordens urbanas geradas nas camadas inferiores da estrutura social pela simultânea desregulamentação do mercado de trabalho e decomposição da rede de segurança social. (WACQUANT, 2007, p. 203). Essa seria uma medida para ocultar e/ou tirar o foco da insegurança social existente. Diante de uma crise do trabalho assalariado, a criação de empregos não seria mais uma solução à pobreza e seguridade social se este for uma fonte de instabilidade e precariedade. Wacquant, assim como Arendt chama a atenção para o tema da segurança no campo político e um posicionamento dos governos frente a ela. Enquanto em Arendt aparece como a garantia do processo vital da sociedade, em Wacquant surge como uma virada, a impossibilidade de
  • 43. 43 garantir esse processo e o aparecimento do Estado no campo Penal como forma de se fazer presente. Logo, esta demanda por segurança pode ser compreendida quando lemos autores que pensaram sobre e liberalismo e questões como a liberdade política por demonstrarem como o papel do governo foi pensado como o dever de garantir a segurança do desenvolvimento do processo vital da sociedade. Em um segundo momento, o Estado passa a atuar intervindo em questões econômicas e sociais. Em contrapartida, a experiência da garantia de segurança foi falha em muitos outros aspectos, transmutando-se, assim, para uma segurança criminal, que interpreta o produto dessa ineficiência como um crime. Abordando várias questões ditas socioeconômicas – por exemplo, baixos salários, falta de emprego, empregos precários, atividades informais, entre outros - como uma questão de criminalidade, desordem e etc. Como por exemplo, as transformações do trabalho contemporâneo que levaram muitas pessoas ao trabalho informal (e às vezes ilegal) ter como resposta medidas truculentas de controle.
  • 44. 44 4 A CRIAÇÃO DA GUARDA MUNICIPAL BRASILEIRA A Guarda Municipal no Brasil, como denominação, é muito antiga. Sua função quase sempre esteve atrelada à segurança urbana, porém, não podemos dizer que a atual Guarda Municipal veio diretamente da antiga Guarda Municipal, ocorreram, na verdade, vários pontos de mediação até se chegar a Guarda Municipal do Rio de Janeiro que conhecemos hoje. Como veremos mais adiante a primeira Guarda Municipal brasileira acabou por gerar outras ‘polícias’ e, posteriormente, essas ‘outras polícias’ influenciaram na formação da mesma. Já em 1550, o governo de Portugal se preocupou em promover uma Polícia mais rigorosa no Brasil Colônia, assim como, uma Justiça que estabelecesse penalidades rígidas para os tipos de crimes. Era a promoção de medidas de controle e repressão visando à proteção das províncias de possíveis invasões de criminosos que ocorriam nos povoados. Assim foram criados os livros das Ordenações. Dentre estes, estava o Livro V, das Ordenações Filipinas, que deram surgimento às primeiras polícias urbanas (RAMOS, 2010). Esse policiamento se fazia pelos Quadrilheiros, moradores dos povoados eleitos pela autoridade local para permanecer por três anos no cargo. Nota-se que esse serviço não era remunerado e a escolha dos Quadrilheiros ocorria de acorda com a boa conduta do civil e a comprovada lealdade à Coroa Portuguesa. Aos poucos essa organização foi perdendo força e, progressivamente, dando lugar aos Pedestres, Serviços de Ordenanças, Corpos de Milícias e Guardas Municipais (CARVALHO, 2011). Como primeira polícia remunerada na Brasil, encontramos o Regimento de Cavalaria Regular da Capital de Minas Gerais, que surgiu em 1775 e em 1780 passou a ser comandado pelo Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (RAMOS, 2010). Com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, houve a necessidade de desenvolver uma polícia de segurança na cidade do Rio de Janeiro. Assim, por meio de decreto em 13 de maio de 1809 foi criada a Divisão Militar da Guarda Real. Esse mesmo decreto homologava a existência das Guardas Municipais Permanentes no Brasil (CARVALHO, 2011). Sendo essa a primeira menção a denominação Guarda Municipal. Após a Independência do Brasil, a Guarda Real - em sua maioria composta por portugueses - se desestruturou e insurgiu contra o sistema em abril de 1831. Em vistas disso, a Regência Provisória decretou a criação, em junho de 1831, do Corpo de Guardas Municipais na Corte e estendeu-o a outras Províncias. Em 1866, com a reestruturação da polícia da Corte, houve a ordenação de duas polícias: uma
  • 45. 45 militar e outra civil. A antiga Guarda Municipal foi, então, transformada no corpo militar e em 1889 já se encontrava toda militarizada. Sua função nesta época era a de defesa da soberania nacional e servia como 1ª Linha de força auxiliar do Exército. Da mesma forma, junto com a Guarda Cívica contribuía com o patrulhamento da capital do Império (CARVALHO, 2011). Após a proclamação da República, as Guardas Municipais ainda permaneceram atuando em seus respectivos municípios e assumiram, entre outras funções, a de fiscalizar se os comerciantes estavam em dia com seus impostos, assim como, a aplicação de multas. A desobediência aos Guardas implicava em punições que poderiam ser multas e, inclusive, penas (CARVALHO, 2011). Em 1902, decretou-se uma reforma do serviço policial e a polícia foi dividida em duas: uma civil - organizada por delegados das circunscrições urbanas e suburbanas, inspetores e agentes de segurança – e outra militar, exercida pela brigada policial. Porém, as funções de cada uma das duas polícias não estavam bem definidas e separadas, chegando ao ponto delas possuírem atribuições iguais. Com a Revolução Constitucionalista de 1932, a Guarda Civil foi incorporada como força auxiliar do Exército e o Marechal Zenóbio da Costa, devido a sua atuação na Revolução, veio a assumir em 1935 o cargo de Inspetor Geral da Polícia Municipal da cidade do Rio de Janeiro, permanecendo neste, até 1936. Posteriormente, Zenóbio da Costa criou o Pelotão de Polícia Militar da Força Expedicionária Brasileira e, após a Segunda Guerra Mundial, a Polícia do Exército. Esta última, não existia no Brasil até a sua participação na Segunda Guerra Mundial: Quando por inspiração no modelo americano Military Platoon Police, existente nos acampamentos das Divisões de Infantaria e responsáveis, entre outros, por manter a ordem no local e pela guarda dos presos de guerra, desenvolveram a Polícia do Exército no Brasil (CARVALHO, 2011). Com a instauração do Estado Novo os estados e municípios foram perdendo autonomia e a poder público se centralizando em nível federal: Se a Guarda Municipal e a Guarda Civil eram ainda úteis como instrumento de contenção popular, elas iam perdendo a posição antes desfrutada para as Forças Armadas, em especial para o Exército; para evitar rebeliões civis e policiais contra o poder central, elas foram despindo-se gradativamente de suas autonomias, por meio do poder público federal, que aos poucos foi limitando cada vez mais suas atribuições, chegando ao ponto de torná-las inúteis e onerosas (CARVALHO, 2011, p.11). Assim, com a promulgação da Constituição da República em 1946, surgiram as polícias militares. Cabendo as mesmas a manutenção da ordem do Estado através da