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Cena I

D. RITA está na sala de sua casa, lendo um livro na cadeira quando
DOMINGOS entra esbaforido com um papel em mãos. Ele anda de um lado
para o outro da sala na frente da mulher até que esta se irrita.

                                 D. RITA

 (irritada e deixando o livro de lado pra olhar séria para o marido)

            Diz logo o que aconteceu? A carta veio da cidade?

                                 DOMINGOS

                       (parando em frente à mulher)

                             Veio de Manuel.

                                 D. RITA

(levanta da cadeira abruptamente e leva a mão ao coração, fazendo cara
                            de preocupada)

                De Manuel? O que diz aí? Lê logo a carta.

                                 DOMINGOS

                             (lendo a carta)

Manuel diz que não quer morar mais com Simão. Diz que ele é de péssimo
                               gênio...

                                 D. RITA

                                Que mais?

                                 DOMINGOS

         ...que vem gastando em pistolas o dinheiro dos livros...

                                 D. RITA

                              E o que mais?

                                 DOMINGOS

                               (impaciente)

                Vai me deixar ler ou quer ler você mesmo?

                                 D. RITA

                              Continua logo!

                                 DOMINGOS

Anda com os piores tipos da academia, perturba a ordem da vizinhança e
                    vem se envolvendo em políticas.
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                               D. RITA

   Ora essa! O que será de uma família arruinada por esses malditos
  comunistas? Meu querido Simão sendo despejado de casa pelo próprio
                                irmão!

                               DOMINGOS

Ordenemos que o garoto volte para casa ainda este verão, antes que dê
                 tempo de acontecer algo mais grave.

DOMINGOS se retira da sala com seu andar empertigado e deixa a mulher
sozinha. D. RITA senta-se em sua cadeira e volta a ler o livro.

                               D. RITA

                  (divagando enquanto lê seu livro)

   A boa notícia é que terei meu filhinho de volta. Quem sabe não o
     matriculo no clube de tênis e o visto com as melhores marcas?

CENA II

D. RITA está na sala com DOMINGOS. DOMINGOS lê o jornal do dia. D.
RITA está tricotando. Um empregado entra na sala com malas e as deixa
no chão. Pede licença e se retira. Logo em seguida, SIMÃO entra na
sala com o boletim de notas em mãos.

D. RITA deixa o tricô de lado e o abraça. SIMÃO se solta do abraço da
mãe e vai até o pai.

                                SIMÃO

                       (beijando a mão do pai)

                            A benção, pai.

                               DOMINGOS

Deus lhe abençoe meu filho. (bagunça o cabelo do filho) E que abençoe
                     essa sua cabecinha de vento.

                                SIMÃO

Pois acho que também não se interessa pelos méritos que essa cabecinha
 de vento conquistou nos últimos dois anos. (estende o boletim para o
                      pai de maneira presunçosa)

                               DOMINGOS

              (analisando, admirado, as notas do filho)

   Parabenizo-o pelas notas, mas me parece que ainda há muito a ser
 explicado sobre seu comportamento nos últimos meses, ainda mais para
                            com seu irmão.

                                SIMÃO
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                     (sentando-se ao lado do pai)

    Ora meu caro pai, Manuel, assim como todos da academia, são uns
 chatos. Tão parados que só lhe faltavam algumas velas aromáticas para
ficarem mais monásticos. Aliás, agradeço a oportunidade de voltar para
                                 casa.

                                  D. RITA

                             Mas Simão...

                                   SIMÃO

(levanta-se, vai até a mãe e passa o braço ao redor de seu ombro, como
                       que para tranquiliza-la)

Mas nada, mamãe. As vezes até me esquecia como era viver aqui, esqueço
   os discos que a senhora sempre tocava na vitrola, o papai lendo o
                 jornal, o sabor dos bolos de fruta...

                                  D. RITA

        Olha só Domingos, como é carinhosos esse nosso menino!

DOMINGOS concorda com a cabeça.

                                   SIMÃO

     Ah, e as velhas companhias! Como poderia esquecer as velhas
                             companhias.

                                  D. RITA

 (libertando-se do abraço do filho e levando a mão a testa de maneira
                              dramática)

                  Oh, não! As velhas companhias não!

                                   SIMÃO

                        (assovia para a porta)

          Pessoal, entra aí pra dar um oi pro pai e pra mãe.

Três rapazes vestidos pobremente entram.

                                  RAPAZ 1

                      Opa. Tudo beleza, D. Rita?

                                  D.RITA

 Mas era só o que me faltava, esse insolente me dirigindo a palavra!
          (dá um tapa na cabeça do marido) Venha, Domingos!

DOMINGOS segue a esposa para outro aposento. Ambos saem de cena.

                                   SIMÃO
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 Pois é caras. Parece-me que vocês terão de renascer em família rica
 pra dirigir a palavra à dama do Paço. (dá uma batidinha no ombro do
              amigo e os dirige à porta) Até mais tarde.

Os RAPAZES saem de cena e SIMÃO fica só. RITINHA, a irmã mais nova,
entra saltitante na sala com uma HQ nas mãos. Abraça o irmão.

                                 SIMÃO

                            Olá irmãzinha.

                                RITINHA

Simão, o que está acontecendo? Ah, deixa pra lá. Estou feliz que você
  finalmente está em casa. Você não sabe o inferno que é isso aqui
                       quando você me abandona.

                                 SIMÃO

    Credo Rita. Tão dramática que está ficando igual as sua irmãs.

                                RITINHA

  Deus me livre. Bom, você vai me levar pra tomar sorvete hoje, né?

                                 SIMÃO

            Claro, claro. Só vou por as malas lá em cima.

SIMÃO e RITINHA saem de cena.

CENA III

Uma festa onde tem alguns jovens bêbados. Um dos empregados derruba
bebida em alguns jovens sem querer e estes partem para cima do
empregado. SIMÃO e seus amigos que estavam passando por lá veem a
confusão e resolvem entrar no meio.

                                 SIMÃO

            Aí pessoal. Tão fazendo festinha sem a gente.

SIMÃO pega eu bastão e vai para o meio da briga. Seus amigos fazem o
mesmo.

CENA IV

Na sala dos Botelho, DOMINGOS e D. RITA recebem a visita do vizinho
TADEU DE ALBUQUERQUE e seu sobrinho BALTASAR COUTINHO. TADEU e
DOMINGOS discutem sobre os eventos da noite passada. D. RITA está
sentada na cadeira observando. BALTASAR está em pé ao lado do tio, com
seu ar presunçoso.

                                 TADEU

             (de modo visivelmente alterado e expansivo)
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E o que me diz sobre o prejuízo de meus empregados e a injúria de meu
                              sobrinho?

                               DOMINGOS

                        (tentado ficar calmo)

                 Podemos falar com um pouco de calma?

                                TADEU

  Me pede calma, meu senhor? Ora essa. Foi assim que me prejudicou e
jogou lama sobre a honra dos Albuquerque em outro carnavais, não foi?

SIMÃO entra na sala. Alheio à conversa, ele parece ignorar as visitas.

                                TADEU

  Ora, aqui está o rapaz que, em suma, representa tudo que a família
 Botelho tenta esconder da elite durante todos esses anos. Ainda não
  entendo como tão bela senhora como D. Preciosa deu a luz à tão vil
                               criatura.

                               DOMINGOS

                          (perdendo a linha)

  Muita audácia da sua parte vir à minha casa, insultar meu brasão e
                    fazer gracejos a minha mulher.

                                TADEU

    Vai negar então que seu filho é um baderneiro da pior espécie.

                                SIMÃO

   Alguém pode me explicar como meu nome tá rolando nessa conversa?

                               DOMINGOS

          Parece me que andou aprontando de novo, meu filho.

                                SIMÃO

        AH, a festa de ontem? A gente só estava se divertindo.

                                TADEU

                     (virando-se para o sobrinho)

  Está vendo, Baltasar, é exatamente gente da laia dos Botelhos que
                 mancham a reputação da nossa cidade.

                                SIMÃO

Peraí, você que é o Baltasar? Acho que vi você apanhando feio ontem...

BALTASAR se descontrola e tenta partir pra cima de SIMÃO, mas é
segurado pelo tio. SIMÃO tenta revidar e é impedido pelo pai.
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                                TADEU

Faça o favor de levar esse seu cãozinho para longe, onde ele não possa
                          manchar-me a honra.

                               DOMINGOS

    (ainda segurando filho, meio relutante, vira-se para a esposa)

        Querida, por favor, acompanhe Simão lá para cima, sim?

D. RITA pega no braço do filho e ambos saem de cena.

TADEU se aproxima ameaçadoramente de DOMINGOS.

                                TADEU

                      Agora é guerra, meu caro.

TADEU sai da sala com passos duros, segurando o sobrinho pela manga da
camisa.

SIMÃO aparece na sala novamente seguido de sua mãe.

                                SIMÃO

                          (meio zombeteiro)

        Acho que minha reputação tá manchada por aqui também.

                               DOMINGOS

                       Simão, você será preso.

                               D. RITA

    Meu filho, preso? Como assim? Ele é seu filho, seu crápula sem
                               coração.

                               DOMINGOS

  Sinto muito, vou a delegacia dizer que meu filho estava metido na
  confusão e quando voltar espero que esteja com as malas prontas e
                   tenha feito todas as despedidas.

DOMINGOS sai de cena. D. RITA pega sua bolsinha e tira um maço de
dinheiro e entrega ao filho.

                               D. RITA

                   Pega criatura, vai embora daqui.

                                SIMÃO

                              (surpreso)

                         Ir embora? Pra onde?

                               D. RITA
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  Eu sei lá meu filho. Você não tem amigos nas cidades vizinhas não?
                          Pega e vai embora.

                                SIMÃO

                              Mas mãe...

                               D. RITA

  Vai embora logo antes que seu pai volte com os homens da lei. Vai
                     (enxotando o filho pra fora)

D. RITA senta-se na cadeira para esperar o marido. Está impaciente.
DOMINGOS volta com um policial.

                               DOMINGOS

                           (grita da porta)

                    Riiiiiiiiita, cadê o moleque?

                               D. RITA

                               Não sei.

                               DOMINGOS

                         Como assim não sabe?

                               D. RITA

                  (cai de joelhos aos pés do marido)

   Oh, Domingos. Simão ainda é uma criança. Não pode ser preso não.
    Mandei ele ir embora, vai ser um bom menino a partir de agora.

                               DOMINGOS

Só podia ser coisa sua mesmo. (vira-se para o policial) Muito obrigado
 pela sua paciência, senhor policial. E sinto muito pelo papelão da D.
        Rita. Sabe como é, essas mães tem o coração muito mole.

O POLICIAL acena com a cabeça e sai de cena.

CENA V

SIMÃO está sentado em um banco, num parque próximo de sua casa,
segurando uma flor e cantarolando para si mesmo a espera de TEREZA.
TEREZA entra em cena, apressada e senta-se ao lado dele.

                                SIMÃO

          (vira-se para ela e toca seu rosto com o polegar)

Estou radiante de finalmente poder ver tanta beleza pessoalmente, tão
de perto. Tens um rosto tão doce e tão belo que diria se tratar de um
      anjo se não soubesse que o seu pai é o Capiroto em pessoa.
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                                TEREZA
   Não seja tão rude, Simão. Meu pai só é assim porque se preocupa
                              comigo...

SIMÃO cala a boca dela pondo o indicador sobre os lábios dela.

                                SIMÃO

   Não, não vamos falar sobre o seu pai. Falaremos sobre nós dois.

                                TEREZA

           O que, meu amor? O que falaremos sobre nós dois?

                                SIMÃO

  (olhando sonhadoramente para cima segurando firmemente as mãos de
                        TEREZA entre as suas)

Sobre a nossa paixão, sobre o nosso futuro, sobre o que vai ser de nós
 dois daqui pra frente. Vamos falar sobre o amor, vamos viver o amor.
  Amaremos e seremos amados. Oh, esse louco e desvairado amor que se
     apossou de um incauto coração.Diga, Tereza. Diga que me ama!

                                TEREZA

                    (aproximando-se mais de SIMÃO)

  Eu te amo, Simão. E nada nos impedirá de vivermos juntos e felizes
                             para sempre.

Pausa, silêncio.

                                SIMÃO

                     A não ser o meu sobrenome...

                                TEREZA

  Oh, meu amor. Porque insistes em entristecer-me com a tragédia de
 nosso amor? Não se preocupe, deixe que de meu pai cuido eu. Agora é
   tarde, devo voltar para casa antes que ele note minha ausência.

Os dois se levantam de mãos dadas e ficam de frente um para o outro.

                                SIMÃO

    Volte, meu amor. Volta para casa, mas antes me prometa que me
 encontrará aqui amanhã, para me ver antes que eu parta para Coimbra.

                                TEREZA

 Sim, querido. Voltarei, mas agora preciso me apressar. Adeus, Simão.

                                SIMÃO

         (beija a mão de TEREZA e a solta, ele a vê partindo)

                            Adeus, Tereza.
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CENA VI

D. RITA e DOMINGOS    conversando na sala.

                                  D. RITA

    Mas eu já disse que preciso de um vestido novo para ir a esse
                             casamento...

SIMÃO entra apressado na sala.

                                   SIMÃO

                       A benção, pai. A benção, mãe.

SIMÃO sai de cena. D. RITA olha admirada para o filho deixando a sala.

                                  D. RITA

 Tá vendo só? Nosso menino anda uma benção. Mal sai de casa, e quando
  sai é com a irmã. Não anda mais com aqueles favelados, não teve nem
     reclamação da vizinhança. Tá até chegando cedo em casa, antes
   madrugava na farra. Desde que voltou de Coimbra tá parecendo uma
                             pessoa nova...

                                  DOMINGOS

                                (impaciente)

Tá, Rita, já entendi. O menino tá direito agora. Também, depois desse
  último corretivo! Só espero que não volte a aprontar em Coimbra...

                                  D. RITA

                         (fazendo o sinal da cruz)

Vira essa boca pra lá, homem. Simão vai estudar, vai ficar bem de vida
 e quando ele voltar encontraremos uma moça de boa família para ele se
                                 casar.

                                  DOMINGOS

                     Deus te ouça, Rita. Deus te ouça.

Saem de cena.

CENA VII

SIMÃO está a espere de TEREZA no parque. Ele está em pé, ansioso,
olhando o relógio compulsivamente, com as malas ao lado, pronto para
ir para Coimbra. TEREZA entra em cena inquieta.

                                   SIMÃO

                     (abrindo os braços para abraça-la)

                             Oh, minha querida.

TEREZA ignora o abraço de SIMÃO.
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                                TEREZA

 Não, NÃO TEMOS TEMPO. Temo que meu pai tenha descoberto sobre nossos
                  encontros. O que será de nós agora?

Os dois se olham com ternura e desespero. TEREZA dá um beijo na
bochecha de SIMÃO. TADEU entra em cena de supetão.

                                TADEU

 Tereza! O que significa isso? (puxa a filha pelo braço tirando-a de
  perto de SIMÃO) Seu verme nojento, está desvirtuando minha filha?

                                SIMÃO

                              (atônito)

                            Mas... mas...

                                TADEU

                               (bravo)

Mas nada. Já chega. Já vi tudo que tinha pra se ver nesta vida. Vamos
     embora, Tereza, nunca mais quero vê-la perto desse Botelho
                             imprestável.

TADEU sai de cena pisando duro, arrastando a filha, que sai chorando.
SIMÃO fica desolado assistindo sua amada partir. DOMINGOS entra em
cena.

                               DOMINGOS

                  Simão, meu filho. O que se passa?

DOMINGOS põe a mão na testa do filho e o sente febril.

                               DOMINGOS

         Você está febril. Tem certeza que quer partir agora?

                                SIMÃO

(pegando a mala) Sim, meu pai. Parece-me que não há razão para ficar.

DOMINGOS sai de cena apressadamente e quando SIMÃO está para sair de
cena logo atrás do pai, a MENDIGA aparece com um papel dobrado na mão.
Ela cutuca o ombro de SIMÃO.

                                SIMÃO

                           O que você quer?

                               MENDIGA

(tenta se comunicar através de sua mímica desajeitada, pois não sabe
falar)

                                SIMÃO
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                        Vamos! Diga sua velha inútil

                                  MENDIGA

    (Tenta avisar a respeito da carta, se atrapalhando no meio das
                               mímicas)

                                   SIMÃO

       O que é isso? Não quero porcarias de um inseto miserável

                                  MENDIGA

    (Perde a paciência diante de tamanho tumulto, abre o bilhete e
                    “esfrega-o” no rosto de Simão)

                                   SIMÃO

                  Se eu pegar vai me deixar em paz?

                                  MENDIGA

                   (Acena confirmando o combinado)

                                   SIMÃO

                               Ah! Uma carta!

                                  MENDIGA

 (Faz cara de inconformada e vai embora resmungando silenciosamente)

                                   SIMÃO

                          (Lendo a carta recebida)

   “Meu pai diz que vai me colocar num convento por sua causa. Não me
esqueça, pois se acha que vai sair por aí fazendo a festa com qualquer
 uma que aparecer pode esquecer. Vá para Coimbra. Lá entregarão minhas
    cartas; E na primeira direi em que nome irá responder as minhas
                                cartas.”

SIMÃO fica radiante.

                                   SIMÃO

  Muito obrigado, minha senhora. (devolve o papel pra MENDIGA) Agora
  preciso ir. Parto para Coimbra, mas vou na esperança de receber as
         doces palavras de minha amada para alegrar meus dias.

Os dois saem de cena.

CENA VIII

TEREZA está sentada na sala de sua casa, lendo uma revista. BALTASAR
chega e senta ao seu lado. TEREZA deixa a revista de lado.

                                  BALTASAR
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É hora de abrir o coração, prima. (pega a mão de TEREZA) Está disposta
                              a ouvir-me?

                                TEREZA

                             (rudemente)

         Eu estou sempre disposta a ouvi-lo, primo Baltasar.

                               BALTASAR

 Acho que nossos corações estão unidos; agora é preciso que as nossas
                            casas se unam.

 TEREZA fica surpresa e tira sua mão das mãos dele de maneira brusca.

                               BALTASAR

                              (surpreso)

                     Eu disse algo desagradável?

                                TEREZA

Disse o que é impossível de se fazer. Está enganado se acha que nossos
  corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em
          ser sua esposa. Nem me lembrei que você pensa nisso.

                               BALTASAR

              Quer dizer que me aborrece, prima Tereza?

                                TEREZA

Não. Já disse que o admiro muito, e por isso mesmo não devo ser esposa
    de um amigo a quem não posso amar. A infelicidade não seria só
                               minha...

                               BALTASAR

 Muito bem... Eu Posso saber... (sorri maliciosamente) quem é que me
                         disputa seu coração?

                                TEREZA

                             (relutante)

                          Que diferença faz?

                               BALTASAR

  A diferença é que, pelo menos, saberei que a minha prima ama outro
                           homem... É exato?

                                TEREZA

                                  É.

                               BALTASAR
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                             (levanta-se)

            É com tamanha paixão que desobedece a seu pai?

                                TEREZA

             (levanta-se pra ficar de frente com o primo)

 Não desobedeço; o coração é mais forte que a mera vontade de um pai.
Desobedeceria se casasse contra a vontade de meu pai; mas eu não disse
     ao primo Baltasar que casava; disse-lhe unicamente que amava.

                               BALTASAR

  (andando de um lado para o outro da sala, TEREZA o acompanha com o
                                olhar)

   Estou espantado com seu modo de falar! Quem pensaria que os seus
          dezesseis anos estavam tão abundantes de palavras!

                                TEREZA

                              (exaltada)

 Não são só palavras, primo. São sentimentos que merecem a sua estima,
por serem verdadeiros. Se eu lhe mentisse, você ficaria mais bem visto
 como meu primo. Se o primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e
                  será de hoje em diante meu inimigo.

                               BALTASAR

  Pelo contrário, muito pelo contrário... Eu lhe provei que sou seu
 amigo, se alguma vez a vir casada com algum miserável indigno de si.
  (sarcasticamente) Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau,
valentão de aguadeiros, distinto cavalheiro, que passa os anos letivos
                       encarcerado em Coimbra...

TEREZA leva a mão ao coração e senta-se novamente, abismada.

                                TEREZA

              Não tem mais que me dizer, primo Baltasar?

BALTASAR senta-se novamente e põe a mão no ombro da prima.

                               BALTASAR

    Tenho prima. Queira acalmar-se. Não cuida que está falando com o
 namorado infeliz. Por hora sou seu mais próximo parente, mais sincero
 amigo e mais decidido guarda de sua dignidade e fortuna. Eu sabia que
  minha prima, contra a expressa vontade de seu pai, uma ou outra vez
    conversara da janela com o filho do corregedor. Não dei valor ao
sucesso, e tomei-o por brincadeira própria da sua idade. Quando soube,
  pasmei-me da boa-fé da priminha; depois entendi que a sua inocência
 devia ser o seu anjo da guarda. Agora, como seu amigo, compunjo-me de
a ver ainda fascinada pela perversidade de seu vizinho. Não se recorda
 de ver Simão Botelho suciando com a ínfima vilanagem desta terra? Não
viu seus criados e esse que vos fala com as cabeças quebradas pelo tal
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varredor de feiras? Não    lhe constou que ele, em Coimbra, abarrotado de
     vinho, andava pelas    ruas armado como um salteador e estradas,
 proclamando à canalha a    guerra aos nobres e aos reis, e à religião de
                  nossos   pais? A prima ignoraria isso?

                                   TEREZA

  Ignorava parte disso e não me incomoda sabê-lo. Desde que conheci
    Simão, não me consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua
                   família, nem ouço falar mal dele.

                                  BALTASAR

   E por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de
                               costumes?

                                   TEREZA

             (vira a cara pra ele e fala com arrogância)

                      Não sei, nem penso nisso.

                                  BALTASAR

Não se zangue, prima. Eu hei de, enquanto viver, trabalhar por salva-
la das garras de Simão Botelho. Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se as
  leis a não defenderem dos ataques do seu demônio, eu farei ver ao
valentão que a vitória sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto de
     ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu de
                             Albuquerque.

                                   TEREZA

                     (volta-se para ele irritada)

                   Então o primo quer-me governar!?

                                  BALTASAR

Quero-a dirigir enquanto sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo e
eu serei indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima Tereza.

BALTASAR se dirige a porta, pisando duro, meio contrariado. Sai de
cena. TEREZA vai andando atrás dele.

                                   TEREZA

                                 (irritada)

 Ótimo, Baltasar. Sai, vai dar uma volta que você já me fez perder a
                              paciência.

TEREZA volta a se sentar, pega papel e caneta e começa a escrever
freneticamente. Algum tempo depois, a MENDIGA entra em cena.

                                   TEREZA

              (levantando-se e indo até ela com o papel)
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                  Ah, que ótimo que você está aqui.

TEREZA dobra o papel e entrega a ela.

                                TEREZA

 Faz o seguinte: entrega essa carta para o mesmo rapaz. Lembra-se de
                Simão, filho do corregedor aí do lado?

A MENDIGA acena (confirmando) com a cabeça.

                                TEREZA

Então, faz tudo direitinho. Mas não vá errar heim? Não deixa o pai ver
          você aqui e não entregue pra ninguém além do rapaz.

A MENDIGA presta atenção nas instruções de TEREZA, confirmando com a
cabeça.

                                TEREZA

                  Tá, agora vai que ele tá vindo aí.



TEREZA empurra a MENDIGA para fora de cena. Senta e pega a revista,
fingindo estar distraída quando TADEU entra em cena. TEREZA ignora a
presença do pai, que senta ao seu lado.

                                TADEU

    Hoje dará a mão a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que
 deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo
  difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser
     impostas pela violência. Mas repara minha querida filha, que a
violência dum pai é sempre amor. Não te consultei outra vez sobre esse
   casamento por temer que a reflexão fizesse mal ao zelo de boa filha
  com que tu vais abraçar teu pai, e agradecer-lhe a prudência com que
ele respeitou o teu gênio, velando sempre a hora de te encontrar digna
                               do seu amor.

TEREZA vira a página da revista com tanta violência que faz barulho. O
pai logo percebe que ela não lhe prestava atenção.

                                TADEU

                      Não me respondes, Tereza?!

                   TEREZA vira-se para olhar o pai.

                                TEREZA

             E por que haveria de te responder, meu pai?

                                TADEU

 Dás-me o que te peço? Enches de contentamento os poucos dias que me
                               restam?
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                                TEREZA

               E você será feliz com o meu sacrifício?

                                TADEU

  Não diga sacrifício, Tereza. Teu primo é um conjunto das melhores
   virtudes. Como se a gentileza e a riqueza não lhe bastassem para
                      formar um marido excelente.

                                TEREZA

               E ele me quer, depois de eu ter negado?

                                TADEU

 Se ele está apaixonado? Tenho bastante confiança em ti para crer que
                         hás de amá-lo muito!

                                TEREZA

                          (sarcasticamente)

Será mais certo eu odiá-lo para sempre. Eu agora mesmo o abomino como
                nunca pensei que se pudesse abominar!

TEREZA se joga aos pés do pai de forma extremamente dramática.

                                TEREZA

    Meu pai me mate; mas não me force a casar com meu primo. Evite
                    violência, porque eu não caso!

TADEU fica nervoso, levanta-se e tira a filha do chão.

                                TADEU

   Ah, mas há de casar sim senhora! Se não, serás amaldiçoada para
  sempre. Serás trancada num convento. Se fores uma alma vil não me
  pertence, não és minha filha. Maldita sejas! Entra nesse quarto e
espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um raio de sol.

Em lágrimas, TEREZA sai de cena. BALTASAR aparece e vê o tio furioso.

                               BALTASAR

                        Tá tudo bem por aqui?

                                TADEU

                               (triste)

   Não te posso dar minha filha, porque já não tenho mais filha. A
  miserável, a quem eu dei este nome, perdeu-se para nós e para ela.

                               BALTASAR

                (passando o braço pelos ombros do tio)
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Não se preocupa, a gente dá um jeito nisso. São apenas as bobagens da
                            adolescência.

Os dois saem de cena.

CENA IX

SIMÃO está conversando com JOÃO DA CRUZ quando a MENDIGA se aproxima.
Ele vê a MENDIGA chegar com um papel dobrado.

                                   SIMÃO

               Trazes notícias de minha amada, cara amiga?

A MENDIGA lhe entrega o papel. SIMÃO começa a ler a carta. Silêncio
por alguns segundos. Avançando a leitura, SIMÃO fica mais furioso.

                                   SIMÃO

                                (gritando)

                                Desgraçado!

                                   JOÃO

                         (tentando acalmar SIMÃO)

          O que foi, homem? Há de se acalmar, pelo amor de Deus!

                                   SIMÃO

 Acalmar, acalmar nada. (empurra a carta pra MENDIGA) Tereza me conta
 que seu pai teve a audácia de lhe prometer a mão ao primo, Baltasar.
  Aquele de que lhe contei que espanquei com uns amigos algum tempo
atrás em Viseu. E me conta todas as barbaridades que esse imbecil lhe
                   disse. As ameaças, as ofensas...

                                   JOÃO

                        Mas se atreve esse rapaz...

                                   SIMÃO

                     (com um pouco de doçura na voz)

  Mas pelo menos minha amada me chama para visita-la essa noite, em
           segredo. Poderia me acompanhar, bom amigo João?

JOÃO hesita em responder mas por fim assente com a cabeça.

CENA X

Casa dos Albuquerque. Está vazia quando SIMÃO entra.

                                   SIMÃO

                             Tereza? Meu amor?
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SIMÃO vai entrando na sala. Não vê ninguém, mas ouve o barulho de algo
caindo no chão.

                                  SIMÃO

                      Quem está aí? Tereza? É você?

Silêncio.

TEREZA entra em cena.

                                  TEREZA

  (com o indicador esticado em frente aos lábios, pedindo silêncio)

  Shhhhh. Meu amor, você veio... (abraça SIMÃO calorosamente) Sinto
      muito, foi um tremendo engano pedir que viesse aqui hoje.

                                  SIMÃO

              Porque? Não se alegras com minha presença?

                                  TEREZA

  Oh, não. Jamais pense nisso, meu amor. Mas hoje estamos recebendo
 visita e corremos sérios riscos aqui. Peço-lhe que vá embora e volte
                                amanhã.

                                  SIMÃO

 Claro, meu amor. Só deixe-me apreciar sua beleza mais uma vez antes
                          que eu vá embora.

Olhar apaixonado.

                                  TEREZA

        Claro, claro, agora vá antes que alguém te veja aqui.

SIMÃO sai de cena. BALTASAR aparece.

                                 BALTASAR

                              (ironicamente)

 Falando sozinha, priminha? Esse romance não lhe está fazendo bem aos
                                miolos!

                                  TEREZA

Ora essa Baltasar. Claro que não estou falando sozinha! Estou fazendo
 uma prece. Eu hein, será que uma moça não pode pedir a Deus que lhe
                 proteja de assombração, feito você.

TEREZA sai de cena.

                                 BALTASAR

                    (esfregando as mãos maleficamente)
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Então a priminha acha que pode me fazer de bobo? Sei muito bem que ela
  está recebendo o ignóbil. Como pode? Essas moças de hoje perderam os
 bons modos. Recebendo rapazes em casa sem o consentimento do pai! Mas
          deixe estar que eu cuido disso. E cuido agora mesmo!

BALTASAR sai de cena.

SIMÃO entra em cena. JOÃO vem logo atrás.

                                    JOÃO

                  Simão!(cutuca o rapaz nas costas)

SIMÃO vira-se para o amigo.

                                   SIMÃO

                                 Pois não.

                                    JOÃO

                (coçando a cabeça, hesitando em falar)

   Devia ter te avisado antes, sinto muito. Preciso lhe contar algo
  acerca do senhor de Castro Daire, Baltasar, esse que tanto lhe faz
                           ferver o sangue.

                                   SIMÃO

                                (impaciente)

                              Pois conte logo!

                                    JOÃO

Então, faz bem uns seis meses que ele me mandou chamar a Viseu, com um
                   pedido um tanto peculiar. (pausa)

SIMÃO assente com a cabeça, fazendo sinal para que prossiga.

                                    JOÃO

         Ele me pediu para que eu tirasse a vida de um homem.

                                   SIMÃO

                                 (confuso)

              E quem é esse homem que ele queria morto?

                                    JOÃO

    Santo pai! (exclama impaciente) O homem era você, Simão! Você!

                                   SIMÃO

                        (sem demonstrar surpresa)

                              E por que isso?
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                                   JOÃO

   Ora. Não há de negar que tens lhe dado motivo de sobra para ser
  malquisto por essa gente. Primeiro o incidente da festa, depois o
  senhor vem se engraçando com a prima e futura esposa do assassino.

                                   SIMÃO

  Futura esposa uma ova. Nunca que entregarei minha amada Tereza nas
 mãos de criatura tão vil. (anda de um lado para o outro, pensativo,
    até parar na frente de JOÃO). Amigo João me acompanha em minha
                              desventura?

                                   JOÃO

 Ajudarei, Simão. Mas porque simpatizo contigo e com vosso pai, ainda
que ache essa história de amor proibido uma bela duma enrascada. Devia
                   pedir a permissão do pai da moça.

SIMÃO nega com a cabeça.

                                   JOÃO

Mas já que insiste, ajudo sim. Conte-me seu plano e verei o que posso
                           fazer por você.

                                   SIMÃO

                      (de maneira maquiavélica)

                            Vamos à caça.

Os dois saem de cena. JOÃO volta com uma pistola e TEREZA com o seu
bastão. MARIANA entra em cena.

                                  MARIANA

                    (correndo para abraçar o pai)

                           Pai, aonde vai?

                                   JOÃO

                            (compreensivo)

     Querida, não vê que temos companhia. Não cumprimenta Simão?

MARIANA vê SIMÃO.

                                  MARIANA

                           (toda derretida)

                                Olá, Simão.

SIMÃO toma-lhe a mão e beija.

                                   SIMÃO
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  Prazer em conhecê-la, senhorita. Uma pena as circunstâncias não me
permitirem apreciar seus belos, porém tristes olhos. O que lhe aflige?

                               MARIANA

 Aflige saber que o senhor e meu pai se enfiam em tamanha empreitada.
                 Para onde vão com pistolas e bastões?

                                SIMÃO

                  Lutar por amor, minha cara. Amor.

MARIANA faz cara de choro, fica meio triste.

                               MARIANA

   Que Deus lhe abençoe então. (sai de cena correndo como quem vai
                               chorar)

                                SIMÃO

 João, vai por ali procurar o canalha que eu fico por aqui vigiando.

                                 JOÃO

                        Vai com calma, amigo.

JOÃO sai de cena. SIMÃO dá umas voltas pelo cenário, com o bastão
apoiado no ombro. BALTASAR aparece bem na sua frente.

                               BALTASAR

 (aponta uma faca na direção de seu pescoço, sem aproximar-se muito)

                               Botelho.

                                SIMÃO

          (pressiona a ponta do bastão no estômago do rival)

                              Coutinho.

                               BALTASAR

 O que faz aqui? Sabes que é persona nom grata nas propriedades de um
  Albuquerque, não? E de qualquer outra família que se preze, claro.

                                SIMÃO

Lamento não poder dar uma resposta a altura. (finge tristeza) Estou de
                                 luto.

                               BALTASAR

             (olha surpreso, levantando uma sobrancelha)

        Luto? Luto por quem? Já está antecipando a sua morte?

                                SIMÃO
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                             Não, meu caro.

JOÃO aparece por trás de BALTASAR apontando a pistola para sua cabeça,
sem que o mesmo perceba.

                                 SIMÃO

                              A sua morte.

SIMÃO dá uma piscadinha para o amigo. JOÃO atira em BALTASAR que cai
morto. SIMÃO se agacha perto do morto e cutuca-o com o bastão para se
certificar de que ele está morto. Olha para JOÃO. Silêncio.

CENA XI

TEREZA está na sala de sua casa, escrevendo uma carta para SIMÃO, para
se desculpar pelo incidente do dia anterior. TADEU entra e cena,
pegando a filha pelo braço violentamente.

                                 TADEU

  Criatura insolente! Pode me explicar o que anda acontecendo nessa
                                casa?

                                 TEREZA

                              (assustada)

      Papai? Está me machucando! E não sei do que está falando.

TADEU joga a filha no chão com violência e começa a gritar.

                                 TADEU

Não sabe do que estou falando? É de meu conhecimento que mandou Simão
                 vir a seu encontro ontem. Como pode?

TEREZA se levanta, alisando a saia do vestido.

                                 TEREZA

          Quem lhe contou? Quanto a isso, eu posso explicar...

                                 TADEU

Explicar? Explique então porque o corpo de seu primo está estendido no
               quintal com um buraco de bala no crânio.

                                 TEREZA

                  (levando a mão a testa, cambaleando)

                          Baltasar está morto?

TADEU assente. TEREZA desmaia dramaticamente e fica lá no chão. TADEU
não se comove com a cena. Ainda muito irritado, chega mais perto da
filha.

                                 TADEU
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 E quanto a você, mocinha, acho bom levantar e fazer as malas. Vou te
                        mandar para o convento.

                                TEREZA

                     (levantando-se rapidamente)

                     O que? Não pode fazer isso.

                                TADEU

 Mas é claro que posso. Desde quando você está no direito de decidir
 sua própria vida? Agora não lhe restam opções: seu ex-futuro marido
  está morto. Vá, faça as malas enquanto eu vou a caça do assassino.
       (faz menção de se retirar) Ou devo dizer: Simão Botelho.

TADEU sai de cena.

                                TEREZA

    Não, não pode ser verdade. Preciso escrever a Simão. (rabisca
            freneticamente num papel, dobra e sai de cena)

CENA XII

SIMÃO e MARIANA estão a conversar. JOÃO chega apressado com um papel.

                                 JOÃO

                     (empurrando a filha de lado)

    A pobre lhe trouxe algo. D. Teresa já deve estar informada do
                              ocorrido.

SIMÃO, desesperadamente, arranca o papel da mão do amigo.

                                SIMÃO

                     (lendo a carta em voz alta)

Querido Simão, as ameaças por fim se concretizaram. Meu pai me colocou
   no convento de Viseu. Ainda que tive a sorte de conseguir alguns
 papeis para escrever-lhe. Logo serei transferida para outro convento
  ainda mais longe. Espero que não me esqueças, pois sempre serás meu
 amado Simão. Soube da morte do crápula. Não se preocupe, sei que não
 foi obra de suas mãos, mas meu pai está a sua procura com o meirinho
            geral e o juiz de fora. Beijos, da amada Teresa.

SIMÃO cai aos prantos. MARIANA leva a mão ao coração.

                                SIMÃO

  Ora essa! Vou atrás dela e tirá-la daquele convento na força. (ele
   reflete por alguns segundos) Vou fazer melhor, vou fugir com ela
  quando estiver indo para o outro convento. Claro, não poderia ter
                             ideia melhor.

SIMÃO vai se retirando mas MARIANA o impede de sair.
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                                 MARIANA

Simão, tive uma ideia. Que tal planejar as coisas melhor? Eu tenho uma
  conhecida no convento onde D. Teresa está. Porque não lhe escreve
   pedindo para que se prepare? Isso pode evitar que essa semana se
                    transforme num evento funesto.

                                  SIMÃO

                      (abraçando MARIANA ternamente)

               Farias mesmo isso por mim, cara Mariana?

                                 MARIANA

                          (dá um sorriso triste)

                               Mas é claro.

SIMÃO põe-se a escrever, dobra o papel e entrega a MARIANA.

                                  SIMÃO

  Muito obrigada, Mariana. Em você pude achar uma amiga. Muito mais,
                           aliás. Uma irmã.

Eles saem de cena.



CENA XIII

TERESA está ajoelhada no convento, orando e segurando um terço.
MARIANA entra apressada. TERESA se levanta.

                                  TERESA

                     (ajeitando o vestido, assustada)

                                Pois não?

                                 MARIANA

   Venho da parte de Simão, senhora. (estende a carta para TERESA)

                                  TERESA

   Novidades? (arranca a carta da mão de MARIANA) Querida Teresa...

TERESA vai andando de um lado para o outro da sala enquanto lê a carta
para si mesma. MARIANA apenas a observa.

                                  TERESA

              (parando abruptamente ao lado de MARIANA)

Ele vai vir me sequestrar na hora que eu for transferida? Mas ele está
  ficando louco? Isso é impossível! (segura nos ombros de MARIANA e a
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sacode) Moça, não dá. Você tem de dizer a ele que é perigoso. Você tem
                             de impedi-lo!

                               MARIANA

                  (libertando-se das mãos de TERESA)

               Eu disse a ele, mas você sabe como é...

                                TERESA

 De qualquer jeito, faça o possível. Não posso perder o amor de minha
    vida numa tola empreitada. Uma pena que não posso lhe escrever:
     tiraram-me papel e caneta depois que souberam para quem estava
                               escrevendo.

                               MARIANA

                       Mas se estou, ora essa!

                                TERESA

Claro, claro. Diga então a ele que não venha, pois é perigoso demais.
   Diga que vá para longe, muito longe porque os homens da lei tem
certeza absoluta de que matou Baltasar e me escreva assim que estiver
em segurança, escreva para o convento de Monchique. E diga também que
                              eu o amo.

                               MARIANA

           Tens sorte de ser amada por um homem como Simão.

                                TERESA

           (aflita e tocando MARIANA para fora do aposento)

  Sim, sim. Mas agora vá e entregue meu recado. Logo alguém chegará.

MARIANA sai e TERESA ajoelha-se e se põe a rezar. SIMÃO entra em cena.
TERESA levanta-se e passa os braços pelo ombro do amado.

                                TERESA

Simão, o que faz aqui? Não recebeu o recado? Por que veio? É perigoso
                      levar esse plano adiante.

                                SIMÃO

                       (se soltando do abraço)

    Vim para te buscar Teresa. As paredes desse convento não são o
           suficiente para me separar de você. Venha, vamos.

                                TERESA

                     Por onde você entrou, aliás?

TADEU, DOMINGOS e um POLICIAL entram em cena.
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                                 TADEU

               Ali, ali o infame. (aponta para os dois)

                                DOMINGOS

                        Prenda-o, seu guarda.

O POLICIAL vai até ele e o rende. TERESA cai aos prantos. TADEU vai
até ela e a pega pelo braço.

                                 TADEU

Vamos, minha filha. Já temos muita dessas palhaçadas. Está na hora de
                                 ir.

TADEU sai levando a filha. TERESA resiste um pouco, mas logo sai
puxada pelo pai.

                                DOMINGOS

(olhando para o filho que está de cabeça baixa com as mãos nas costas,
                        segurado pelo POLICIAL)

               Filho, matou mesmo o sobrinho de Tadeu?

                                 SIMÃO

                        (levantando a cabeça)

Matei, matei pai. Não tenho vergonha ou remorsos de dizer que matei o
               algoz de tão doce criatura como Teresa.

DOMINGOS dá um tapa no filho.

                                DOMINGOS

Pois és um tolo. (faz sinal para o POLICIAL) Leva, leva essa criatura
                     daqui. Não tenho mais filho.



CENA XIV

SIMÃO todo amarrotado é jogado na cela pelo POLICIAL. Ele fica lá
deitado no chão. MARIANA entra apressada com uma garrafa de pinga e um
saco de pão, papel e caneta.

                                 SIMÃO

                          (sentando no chão)

                Mariana? O que você está fazendo aqui?
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                                 MARIANA

                        (sentando-se ao lado dele)

Vim assim que soube que foi preso. (entrega-lhe a pinga e o pão) Não é
 muita coisa, mas era só o que tinha pronto em casa. Fiquei preocupada
 depois que soube que seu pai estava no momento em que foi preso e não
                         fez nada para ajudar.

                                  SIMÃO

                            Eu não tenho pai.

MARIANA abraça SIMÃO.

                                 MARIANA

    Eu sinto muito, Simão. Mas olha, eu lhe trouxe papel e caneta.



SIMÃO pega o papel e caneta. Enquanto escrevia, chega o POLICIAL.



                                 POLICIAL

Senhor! Aprume-se. O juiz está vindo para lhe julgar. Queira a senhora
                        se retirar, por favor.



SIMÃO e MARIANA se levantam, ficando um ao lado do outro. MARIANA se
agarra ao braço de SIMÃO.



                                 MARIANA

Mas de jeito nenhum. (bate o pé no chão) Aqui estou e daqui ninguém me
                                 tira.

                                 POLICIAL

                 Tudo bem, mas tente não interferir.

O JUIZ entra.

                                   JUIZ

                Simão, tem algo a dizer em sua defesa.



MARIANA olha para ele esperançosa.
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                                SIMÃO

Não senhor, eu matei Baltasar Coutinho estou aqui para ser punido por
                                isso.

                                 JUIZ

Pois admite isso então? Sem se importar que seu destino seja a forca?

                                SIMÃO

   Digo que o meu coração é indiferente ao destino de minha cabeça.



O JUIZ dá sinal para que o POLICIAL e a moça se retirem, deixando
SIMÃO sozinho novamente na cela. A MENDIGA entra em cena.



                                SIMÃO

Pobre senhora. Lamento não ter sequer uma moeda no momento. Mas o que
                            tens para mim?



A MENDIGA lhe entrega a carta de TEREZA e sai.



                                SIMÃO

                           (lendo a carta)

   “SIMÃO, MEU ESPOSO. Sei de tudo...Está conosco a morte. Olha que te
  escrevo sem, lágrimas. A minha agonia começou há tempo. Deus é bom,
  que me poupou ao crime. Ouvi a notícia da tua própria morte, e então
  compreendi porque estou morrendo hora a hora. Aqui está o nosso fim,
 Simão!...Olha as nossas esperanças Quando tu me dizias os teus sonhos
 de felicidade, e eu que te dizia os meus!... Que mal fariam a Deus os
     nosso desejos?!...Ver-nos-emos num outro mundo, Simão? Ao menos,
morrer é esquecer. Eu também estou condenada, e sem remédio. Segue-me,
   Simão! Não tenha saudades da vida, não tenhas, ainda que a razão te
   diga que podias ser feliz, se não me tivesses encontrado no caminho
por onde te levei a morte...E que morte, meu Deus!...Aceita-a ! Não te
      arrependas. Se houve crime, a justiça de Deus te perdoará pelas
    angústias que tens de sofrer no cárcere...e nos últimos dias, e na
                              presença da...”
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CENA XV



Simão passou 19 meses de cárcere num navio em direção à índia
almejando um raio de sol, um pouco de ar que não fosse filtrado pelas
barras metálicas. Já não tinha mais ânsia de amar e sim de viver.

Teresa pedira a Simão que aceitasse dez anos de cadeia e esperasse aí
sua redenção por ela.



“Dez anos! Em dez anos terá morrido meu pai meu pai e eu serei tua
esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe se não tiveres cumprido a
sentença. Se vais ao degredo, para sempre te perdi, Simão, porque
morrerás, ou não acharás memória de mim, quando voltares”



Simão sem qualquer tipo de esperança, responde a carta com palavras
melancólicas

“Não esperes nada, mártir. A luta com a desgraça é inútil, e eu não
posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada
neste mundo. Caminharemos ao encontro da morte. Há um segredo que só
no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos?

As palavras únicas de Tereza, em resposta àquela carta, significativa
da turbação do infeliz, foram estas:

"Morrerei Simão, morrerei. Perdoa tu ao meu destino... Perdi-te... Bem
saber que sorte eu queria dar-te... e morro, porque não posso, nem
poderei jamais resgatar-te. Se podes, vive; Não te peço que morras,
Simão; Quero que vivas para me chorares. Consolar-te á o meu
espírito.. Estou tranquila. Vejo a aurora da paz... “Adeus até o céu,
Simão”.



No dia 10 de março de 1807, Simão recebe a intimação para sair na
primeira embarcação que levava âncora do Douro para a Índia.

Nenhum estorvo impedia o embarque da Mariana, que se apresentou ao
corregedor do crime como criada do degredo, como passagem paga por seu
amo.



CENA XVI

17 de março de 1807, saiu dos cárceres da Relação, Simão Antônio
Botelho e embarcou no cais da Ribeira, com 75 companheiros. O
magistrado, fiel amigo de D. Rita Preciosa, foi a bordo da nau
recomendou ao comandante que distinguisse o condenado Simão,
consentindo-o na tolda, e sentando-o à sua mesa. Chamou Simão de
parte, e deu-lhe um cartucho de dinheiro em ouro, que sua mãe lhe
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enviara. Simão aceitou o dinheiro, e, na presença de Mourão Mosqueira,
pediu ao comandante que fizesse distribuir pelos seus companheiros de
degredo o dinheiro que lhe dava.



                            DESEMBARGADOR

                      É demente o senhor Simão?!

                                SIMÃO

            Nem ao menos sei quem me mandou este dinheiro

                            DESEMBARGADOR

                             Foi sua mãe

                                SIMÃO

 Não tenho mãe. Quer vossa excelência devolver esta esmola rejeitada?

                            DESEMBARGADOR

                             Não, senhor

                                SIMÃO

Senhor comandante cumpra o que lhe peço, ou eu atiro o dinheiro no rio



   (O comandante aceitou o dinheiro, e o DESEMBARGADOR sai de bordo
                espantado da sinistra condição do moço)

                                SIMÃO

                          Onde é Monchique?

                      (Pergunta SIMÃO à MARIANA)

                               MARIANA

                        É acolá, senhor Simão.

   (Respondeu lhe indicando o mosteiro se debruça sobre a margem do
                          Douro, em Miragaia)

  Simão cruzou os braços, e viu através do gradeamento do mirante um
                                vulto.

Era Teresa que na véspera recebera o adeus de Simão, e respondera
enviando-lhe a trança dos seus cabelos. Ao anoitecer daquele dia,
pediu Teresa os sacramentos, e comungou à grade do coro, onde se foi
amparada à sua criada, Parte das horas da noite passou-as sentada ao
pé do santuário de sua tia, que toda a noite orou, Algumas vezes pediu
que a levassem à janela que se abria para o mar, e não sentia ali a
frialdade da viração. Conversa serenamente com as freiras, e despede-
se de todas, uma a uma, indo por seu pé às celas das senhoras
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entrevadas para lhes dar o beijo da despedida. Todas cuidavam em
reanimá-la, e Teresa sorria, sem responder aos piedosos artifícios com
que as boas almas a si mesmas queriam simular esperanças. Ao abrir da
manhã, Teresa leu uma a uma a cartas de Simão Botelho. Emaçou depois
as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de raminhos de
flores murchas, que Simão, dois anos antes, lhe atirara da sua janela
ao quarto dela. As pétalas das flores soltas quase todas se
desfizeram, e Teresa, contemplando-as, disse:

                                TERESA

                          Como a minha vida

  (Chora beijando os cálices desfolhados das primeiras que recebera)



Às nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse ao
mirante. Foi então que Simão Botelho a viu.

 Ouviu-se a voz de levas âncora e largas amarras. Simão encontrou-se à
    amurada do navio, com os olhos fixo ao mirante. Viu se agitar um
   lenço, e ele respondeu com o seu à aquele aceno. O navio desceu ao
 mar, e passou fronteira ao convento. Distintamente Simão viu um rosto
   e uns braços suspensos das reixas de ferro; Mas não era de Teresa
aquele rosto; Seria antes um cadáver que subiu da claustra ao mirante,
       com os ossos da cara içados ainda das herpes da sepultura.

                                SIMÃO

                              É Teresa?

                               MARIANA

                          É, senhor, é ela.

De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu
Simão um movimento impetuoso de alguns braços e o desaparecimento de
Teresa e do vulto de Constança. Mais tarde adiou-se a saída para o dia
seguinte. Ao escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou,
com os olhos embaciados de lágrimas. O desterrado, que contemplava as
primeiras estrelas, iminentes ao mirante.

                              COMANDANTE

                          Procura-a no céu?

                                SIMÃO

                         Se a procuro no céu!

                              COMANDANTE

                    Sim!... No céu deve ela estar.

                                SIMÃO

                             Quem, senhor?
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                              COMANDANTE

                                Teresa.

                                SIMÃO

                          Teresa...! Morreu?!

                              COMANDANTE

         Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando.

(O COMANDANTE bate nas costas de SIMÃO e tenta animá-lo)

                              COMANDANTE

 Coragem, grande desgraçado, coragem! Os homens do mar crêem em Deus!

  (MARIANA estava um passo atrás de SIMÃO, e tinha as mãos erguidas)

                                SIMÃO

 Acabou-se tudo!... Eis-me livre... Para a morte... Senhor comandante
                  eu não me suicido. Pode deixar-me.

                              COMANDANTE

  Peço-lhe que se recolha à câmara. O seu beliche está ao pé do meu.

                                SIMÃO

                      É obrigatório recolher-me?

                              COMANDANTE

 Para vossa senhoria não há obrigações; há rogos: peço-lhe, não mando.

                                SIMÃO

                     Vou, e agradeço a compaixão.

SIMÃO encara MARIANA, e diz ao comandante:

                                SIMÃO

                            E esta infeliz?

                              COMANDANTE

                          Que deus o siga...

  (SIMÃO recolheu-se ao beliche, e o COMANDANTE sentou-se em frente
         dele, e MARIANA ficou no escuro da câmara a chorar).

                              COMANDANTE

                Fale, senhor Simão! Desafogue e chore.

                                SIMÃO
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                            Chorei, senhor!

                              COMANDANTE

  Eu não tinha imaginado uma angústia igual à sua. A invenção humana
 não criou ainda um quadro tão atroz. Que desgraçado moço o senhor é!

                                 SIMÃO

                          Por pouco tempo...

                              COMANDANTE

Por pouco tempo, creio eu, mas se os amigos pudessem salvá-lo, senhor,
eu dar-lhes-ia na Índia mais fiéis que em Portugal. Prometo-lhe, sob a
minha palavra de honra, alcançar do vizo-rei a sua residência em Goa.
Prometo segurar-lhe um decente principio de vida e as comodidades que
fazem a existência tão saudável como ela é na Ásia. Não o intimide a
ideia do degredo, senhor Simão. Viva, faça por vencer-se, e será
feliz!

                                SIMÃO

                O seu silêncio, por piedade, senhor...

                              COMANDANTE

 Bem sei que é cedo ainda para planejar futuros. Desculpe à simpatia
     que me inspira a indiscrição, mas aceite um amigo nesta hora
                              atribulada.

                                SIMÃO

Aceito, e preciso dele... Mariana! Venha aqui, se este cavalheiro o
permite. Esta mulher tem sido a minha providência porque ela me valeu,
não senti a fome em dois anos e nove meses de cárcere. Tudo que tinha
vendeu para me sustentar e vestir. Se eu morrer, senhor comandante,
aceite o legado de ampará-la com a sua caridade como se ela fosse
minha irmã. Se ela quiser voltar à sua pátria, seja o seu protetor na
passagem.

                    (E estendendo lhe a mão disse)

                           O senhor promete?

                              COMANDANTE

                                Juro.

O COMANDANTE, obrigado a subir ao tombadilho, deixou SIMÃO com
MARIANA.

                                SIMÃO

            Estou tranquilo pelo seu futuro, minha amiga.

                               MARIANA
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                     Eu já o estava, senhor Simão

SIMÃO apoiou a face sobre a mesa, e apertou com as mãos as fontes
arquejantes. MARIANA, de pé, ao lado dele, fitava os olhos na luz
mortiça da lâmpada oscilante, e cismava, como ele, na morte.

Às onze horas da noite, o comandante recolhera-se num beliche de
passageiro, e Mariana, sentada no pavimento, com o rosto sobre os
joelhos, parecia sucumbir ao quebranto das trabalhosas e aflitivas
horas daquele dia. Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os
braços cruzados sobre o peito, e os olhos fitos na luz que balançava
pendente de um arame. À meia-noite, estendeu Simão o braço trêmulo ao
maço das cartas que Teresa lhe enviara, e contemplou um pouco a que
estava ao de cima, que era dela. Rompeu a obreia, e dispôs-se no
camarote para alcançar o baço clarão da lâmpada. Dizia assim a carta:

"É já o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A tua
pobre Teresa, à hora em que leres esta carta, se Deus não me engana,
está em descanso. Eu devia poupar-te a esta última tortura; não devia
escrever-te; mas perdoa à tua esposa do céu a culpa, pela consolação
que sinto em conversar contigo a esta hora, hora final da noite da
minha vida. Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma? Daqui a
pouco perderás de vista este mosteiro; correrás milhares de léguas, e
não acharás, em parte alguma do mundo, voz humana que te diga: A
infeliz espera-te noutro mundo,e pede ao Senhor que te resgate. Se te
pudesses iludir, meu amigo, quererias antes pensar que eu ficava com a
vida e com esperança de ver-te na volta do degredo? Assim pode ser,
mas, ainda agora, neste solene momento, me domina a vontade de fazer-
te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade tem
às vezes vaidade de mostrar que o é, até não podê-lo ser mais! Quero
que digas: Está morta, e morreu quando eu lhe tirei a última
esperança. Isto não é queixar-me, Simão: não é. Talvez, que eu pudesse
resistir alguns dias à morte, se tu ficasses; mas, de um modo ou de
outro, era inevitável fechar os olhos quando se rompesse o último fio,
este último que se está partindo, e eu mesma o ouço partir.
Não vão estas palavras acrescentar a tua pena. Deus me livre de
ajuntar um remorso injusto à tua saudade. Se eu pudesse ainda ver-te
feliz neste mundo; se Deus permitisse à minha alma esta visão!...
Feliz, tu, meu pobre condenado!... Sem o querer, o meu amor agora te
fazia injúria, julgando-te capaz de felicidade! Tu morrerás de
saudade, se o clima do desterro te não matar ainda antes de sucumbires
à dor do espírito. A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como
tu pintavas nas tuas cartas, que li há pouco! Estou vendo a casinha
que tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e
aves. A tua imaginação passeava comigo às margens do Mondego, à hora
pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a
água. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada
por teu sorriso, inclinava a face ao teu seio, como se fosse ao de
minha mãe. Tudo isto li nas tuas cartas; e parece que cessa o
despedaçar da agonia enquanto a alma se está recordando. Noutra carta,
me falavas em triunfos e glórias e imortalidade do teu nome. Também eu
ia após da tua aspiração, ou adiante dela, porque o maior quinhão dos
teus prazeres de espírito queria eu que fosse meu. Era criança há três
anos, Simão, e já entendia os teus anelos de glória, e imaginava-os
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realizados como obra minha, se tu me dizias, como disseste muitas
vezes, que não serias nada sem o estimulo do meu amor.
Ó Simão, de que céu tão lindo caímos! A hora que te escrevo, tu estás
para entrar na nau dos degredados, e eu na sepultura. Que importa
morrer, se não podemos jamais ter nesta vida a nossa esperança de há
três anos? Poderias tu com a desesperança e com a vida, Simão? Eu não
podia. Os instantes do dormir eram os escassos benefícios que Deus me
concedia; a morte é mais que uma necessidade, é uma misericórdia
divina, uma bem-aventurança para mim. E que farias tu da vida sem a
tua companheira de martírio? Onde tu irás aviventar o coração que a
desgraça te esmagou, sem o esquecimento da imagem desta dócil mulher,
que seguiu cegamente a estrela da tua malfadada sorte?!
Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma
vez visses passar rapidamente a minha sombra por diante dos teus olhos
enxutos? Sofre, sofre ao coração da tua amiga estas derradeiras
perguntas, a que tu responderás, no alto mar, quando esta carta leres.
Rompe a manhã. Vou ver a minha última aurora... a última dos meus
dezoito anos! Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre de
uma agonia longa. Todas as minhas angústias lhe ofereço em desconto
das tuas culpas. Se algumas impaciências a justiça divina me condena,
oferece tu a Deus, meu amigo, os teus padecimentos, para que eu seja
perdoada. Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão

Ergueu-se o degredado, olhou em redor de si e fitou com espasmo
MARIANA, que levantava a cabeça ao menor movimento dele.

                               MARIANA

                        Que tem, senhor Simão?

                       (disse ela, erguendo-se)

                                SIMÃO

             Estava aqui, Mariana?... Não vai se deitar?!

                               MARIANA

          Não vou; o comandante deu-me licença de ficar aqui.

                                SIMÃO

    Mas há de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque não é
                     necessário o seu sacrifício.

                               MARIANA

         Se o não incomodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.

                                SIMÃO

        Esteja, minha amiga, esteja... Poderei subir ao convés?

                              COMANDANTE

                  Quer ir ao convés, senhor Botelho?
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                                SIMÃO

                      Queria, senhor comandante.

                              COMANDANTE

                            Iremos juntos.

Simão ajuntou a carta de Teresa ao maço das suas, e saiu cambaleando.
No convés sentou-se num monte de cordame, e contemplou o mirante do
Monchique, que avultava negro ao sopé da serra penhascosa em que
atualmente vai a Rua da Restauração. O capitão passeava da proa à ré,
mas com o ouvido fito aos movimentos do degredado. Receara ele o
propósito do suicídio, porque Mariana lhe incutira semelhante
suspeita. Queria o marítimo falar-lhe palavras consoladoras, mas
pensava consigo: "O que há de dizer-se a um homem que sofre assim?" E
parava junto dele algumas vezes, como para desviar-lhe o espírito
daquele mirante.

                                SIMÃO

Eu não me suicido! Se a sua generosidade, senhor capitão. Se interessa
   em que eu viva, pode dormir descansado a sua noite, que eu não me
                                suicido.

                              COMANDANTE

    Mas mereço-lhe eu a condescendência de descer comigo à câmara?

                                SIMÃO

                Irei; mas eu, lá, sofro mais, senhor.

                              COMANDANTE

                                 Não!

Replicou o COMANDANTE, e continuou a passear no convés apesar das
rajadas de vento.



 MARIANA estava agachada entre os pacotes da carga, a pouca distância
 de Simão. O COMANDANTE viu-a, falou-lhe, e retirou-se. Às três horas
   da manhã, Simão Botelho segurou entre as mãos a testa, que se lhe
  abria abrasada pela febre. Não pôde ter-se sentado, e deixou cair o
     meio corpo. A cabeça, ao declinar, pousou no seio de Mariana.

                                SIMÃO

                  O Anjo da compaixão sempre comigo!

                            (murmurou ele)

                    Teresa foi muito desgraçada...
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                               MARIANA

                       Quer descer ao camarote?

                                SIMÃO

                 Não poderei... Ampare-me, minha irmã.

Deu alguns passos para a escadinha, e olhou ainda sobre o mirante.
Desceu a íngreme escada, apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o
colchão, e pediu água que bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o
estarrecimento, e as ânsias, com intervalo de delírio. De manhã veio a
bordo um facultativo, por convite do capitão. Examinando o condenado,
disse que era febre maligna a doença, e bem podia ser que ele achasse
a sepultura no caminho da Índia. Mariana ouviu o prognóstico, e não
chorou. As onze horas saiu barra fora a nau. As ânsias da doença
acresceram as do enjôo. A pedido do comandante, Simão bebia remédios,
que bolsava logo, revoltos pelas contrações do vômito. Ao segundo dia
de viagem, Mariana disse a Simão:

                               MARIANA

Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer àquelas cartas que    vão na
                                caixa?

Pasmosa serenidade a desta pergunta!

                                SIMÃO

   Se eu morrer no mar. Mariana, atire ao mar todos os meus papéis,
  todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro também.

     Passada uma ânsia, que lhe embargava a voz, Simão continuou:

                                SIMÃO

              Se eu morrer, que tenciona fazer, Mariana?

                               MARIANA

                       Morrerei, senhor Simão.

                                SIMÃO

         Morrerás?!... Tanta gente desgraçada que eu fiz!...

A febre aumentava. Os sintomas da morte eram visíveis aos olhos do
capitão, que tinha sobeja experiência de ver morrerem centenas de
condenados, feridos da febre no mar, e desprovidos de algum
medicamento. Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de
Cascais, sobreveio tormenta súbita. O navio fez-se ao largo muitas
milhas, e, perdido o rumo de Lisboa, navegou desnorteado. Ao sexto dia
de navegação incerta, por entre espessas brumas, partiu-se o leme
defronte de Gibraltar. E, em seguida ao desastre, aplacaram as
refregas, desencapelaram-se as ondas, e nasceu, com a aurora do dia
seguinte, um formoso dia de primavera. Era o dia de primavera. Era o
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dia 27 de março, o nono da enfermidade de Simão Botelho. Mariana tinha
envelhecido. O comandante, encarando nela, exclamou:

                                COMANDANTE

 Parece que volta da índia com os dez anos de trabalhos já passados!

                                 MARIANA

                      Já acabados... de certo...

Ao anoitecer desse dia o condenado delirou pela última vez, e dizia
assim no seu delírio: "A casinha, defronte de Coimbra, cercada de
árvores, flores e aves. Passeavas comigo à margem do Mondego, à hora
pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a
água. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada
por teu sorriso, inclinada a face ao teu seio, como se fosse o de
minha mãe... De que céu tão lindo caímos!... A tua amiga morreu... A
tua pobre Teresa... E que farias tu da vida, sem a tua companheira de
martírio?... Onde irás tu aviventar o coração que a desgraça te
esmagou?!... Rompe a manhã... Vou ver a minha última aurora... a
última dos meus dezoito anos. Oferece a Deus os teus padecimentos,
para que eu seja perdoado...Mariana..."
Mariana colocou os ouvidos aos lábios roxos do moribundo, quando
cuidou ouvir o seu nome. "Tu virás ter conosco; ser-te-emos irmãos no
céu... O mais puro anjo serás tu... se és deste mundo, irmã; se és
deste mundo, Mariana..."

A transição do delírio para a letargia completa era o anúncio
infalível do trespasse.

Ao romper da manhã apagara-se   a lâmpada. Mariana saíra a pedir luz, e
ouvira um gemido estertoroso.   Voltando às escuras, com os braços
estendidos para tatear a face   do agonizante, encontrou a mão convulsa,
que lhe apertou uma das suas,   e relaxou de súbito a pressão dos dedos.

Entrou o COMANDANTE com uma lâmpada, e aproximou-lha da respiração,
que não embaciou levemente o vidro.

                                COMANDANTE

                                Está morto!

MARIANA curvou-se sobre o cadáver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro
beijo. Ajoelhou depois ao pé do beliche com as mãos erguidas, e não
orava nem chorava.

Algumas horas volvidas, o comandante disse a Mariana:

                                COMANDANTE

   Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo... É
ventura morrer quando se vem a este mundo com tal estrela. Passe a
senhora Mariana ali para a câmara que vai ser levado daqui o defunto.
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Mariana tirou o maço das cartas debaixo do travesseiro, e foi a uma
caixa buscar os papéis de Simão. Atou o rolo no avental, que ele tinha
daquelas lágrimas dela, choradas no dia da sua demência, e cingiu o
embrulho à cintura. Foi o cadáver envolto num lençol, e transportado
ao convés. Mariana seguiu-o.

Do porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às
pernas com um pedaço de cabo. O comandante contemplava a cena triste
com os olhos úmidos, e os soldados que guarneciam a nau, tão funeral
respeito os impressionara, que insensivelmente se descobriram.

Mariana estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia
estupidamente encarar aqueles empuxões que o marujo dava ao cadáver,
para segurar a pedra na cintura.

Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o
balanço para o arremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se
fizesse ouvir na água, todos viram, e ninguém já pôde segurar Mariana,
que se atirara ao mar.

A voz do comandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram homens
para salvar Mariana.

  Salvem na!...

Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir à morte mas para
abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O
comandante olhou para o sítio donde Mariana se atirara, e viu, enleado
no cordame, o avental, e à flor da água, um rolo de papéis, que os
marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondência de
Teresa e Simão.

Da família de Simão Botelho vive ainda, em Vila-Real-de-Trás os-
Montes, a senhora D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã
predileta dele. A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi
Manoel Botelho, pai do autor deste livro.




                                 FIM

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Família em conflito

  • 1. Página 1 de 39 Cena I D. RITA está na sala de sua casa, lendo um livro na cadeira quando DOMINGOS entra esbaforido com um papel em mãos. Ele anda de um lado para o outro da sala na frente da mulher até que esta se irrita. D. RITA (irritada e deixando o livro de lado pra olhar séria para o marido) Diz logo o que aconteceu? A carta veio da cidade? DOMINGOS (parando em frente à mulher) Veio de Manuel. D. RITA (levanta da cadeira abruptamente e leva a mão ao coração, fazendo cara de preocupada) De Manuel? O que diz aí? Lê logo a carta. DOMINGOS (lendo a carta) Manuel diz que não quer morar mais com Simão. Diz que ele é de péssimo gênio... D. RITA Que mais? DOMINGOS ...que vem gastando em pistolas o dinheiro dos livros... D. RITA E o que mais? DOMINGOS (impaciente) Vai me deixar ler ou quer ler você mesmo? D. RITA Continua logo! DOMINGOS Anda com os piores tipos da academia, perturba a ordem da vizinhança e vem se envolvendo em políticas.
  • 2. Página 2 de 39 D. RITA Ora essa! O que será de uma família arruinada por esses malditos comunistas? Meu querido Simão sendo despejado de casa pelo próprio irmão! DOMINGOS Ordenemos que o garoto volte para casa ainda este verão, antes que dê tempo de acontecer algo mais grave. DOMINGOS se retira da sala com seu andar empertigado e deixa a mulher sozinha. D. RITA senta-se em sua cadeira e volta a ler o livro. D. RITA (divagando enquanto lê seu livro) A boa notícia é que terei meu filhinho de volta. Quem sabe não o matriculo no clube de tênis e o visto com as melhores marcas? CENA II D. RITA está na sala com DOMINGOS. DOMINGOS lê o jornal do dia. D. RITA está tricotando. Um empregado entra na sala com malas e as deixa no chão. Pede licença e se retira. Logo em seguida, SIMÃO entra na sala com o boletim de notas em mãos. D. RITA deixa o tricô de lado e o abraça. SIMÃO se solta do abraço da mãe e vai até o pai. SIMÃO (beijando a mão do pai) A benção, pai. DOMINGOS Deus lhe abençoe meu filho. (bagunça o cabelo do filho) E que abençoe essa sua cabecinha de vento. SIMÃO Pois acho que também não se interessa pelos méritos que essa cabecinha de vento conquistou nos últimos dois anos. (estende o boletim para o pai de maneira presunçosa) DOMINGOS (analisando, admirado, as notas do filho) Parabenizo-o pelas notas, mas me parece que ainda há muito a ser explicado sobre seu comportamento nos últimos meses, ainda mais para com seu irmão. SIMÃO
  • 3. Página 3 de 39 (sentando-se ao lado do pai) Ora meu caro pai, Manuel, assim como todos da academia, são uns chatos. Tão parados que só lhe faltavam algumas velas aromáticas para ficarem mais monásticos. Aliás, agradeço a oportunidade de voltar para casa. D. RITA Mas Simão... SIMÃO (levanta-se, vai até a mãe e passa o braço ao redor de seu ombro, como que para tranquiliza-la) Mas nada, mamãe. As vezes até me esquecia como era viver aqui, esqueço os discos que a senhora sempre tocava na vitrola, o papai lendo o jornal, o sabor dos bolos de fruta... D. RITA Olha só Domingos, como é carinhosos esse nosso menino! DOMINGOS concorda com a cabeça. SIMÃO Ah, e as velhas companhias! Como poderia esquecer as velhas companhias. D. RITA (libertando-se do abraço do filho e levando a mão a testa de maneira dramática) Oh, não! As velhas companhias não! SIMÃO (assovia para a porta) Pessoal, entra aí pra dar um oi pro pai e pra mãe. Três rapazes vestidos pobremente entram. RAPAZ 1 Opa. Tudo beleza, D. Rita? D.RITA Mas era só o que me faltava, esse insolente me dirigindo a palavra! (dá um tapa na cabeça do marido) Venha, Domingos! DOMINGOS segue a esposa para outro aposento. Ambos saem de cena. SIMÃO
  • 4. Página 4 de 39 Pois é caras. Parece-me que vocês terão de renascer em família rica pra dirigir a palavra à dama do Paço. (dá uma batidinha no ombro do amigo e os dirige à porta) Até mais tarde. Os RAPAZES saem de cena e SIMÃO fica só. RITINHA, a irmã mais nova, entra saltitante na sala com uma HQ nas mãos. Abraça o irmão. SIMÃO Olá irmãzinha. RITINHA Simão, o que está acontecendo? Ah, deixa pra lá. Estou feliz que você finalmente está em casa. Você não sabe o inferno que é isso aqui quando você me abandona. SIMÃO Credo Rita. Tão dramática que está ficando igual as sua irmãs. RITINHA Deus me livre. Bom, você vai me levar pra tomar sorvete hoje, né? SIMÃO Claro, claro. Só vou por as malas lá em cima. SIMÃO e RITINHA saem de cena. CENA III Uma festa onde tem alguns jovens bêbados. Um dos empregados derruba bebida em alguns jovens sem querer e estes partem para cima do empregado. SIMÃO e seus amigos que estavam passando por lá veem a confusão e resolvem entrar no meio. SIMÃO Aí pessoal. Tão fazendo festinha sem a gente. SIMÃO pega eu bastão e vai para o meio da briga. Seus amigos fazem o mesmo. CENA IV Na sala dos Botelho, DOMINGOS e D. RITA recebem a visita do vizinho TADEU DE ALBUQUERQUE e seu sobrinho BALTASAR COUTINHO. TADEU e DOMINGOS discutem sobre os eventos da noite passada. D. RITA está sentada na cadeira observando. BALTASAR está em pé ao lado do tio, com seu ar presunçoso. TADEU (de modo visivelmente alterado e expansivo)
  • 5. Página 5 de 39 E o que me diz sobre o prejuízo de meus empregados e a injúria de meu sobrinho? DOMINGOS (tentado ficar calmo) Podemos falar com um pouco de calma? TADEU Me pede calma, meu senhor? Ora essa. Foi assim que me prejudicou e jogou lama sobre a honra dos Albuquerque em outro carnavais, não foi? SIMÃO entra na sala. Alheio à conversa, ele parece ignorar as visitas. TADEU Ora, aqui está o rapaz que, em suma, representa tudo que a família Botelho tenta esconder da elite durante todos esses anos. Ainda não entendo como tão bela senhora como D. Preciosa deu a luz à tão vil criatura. DOMINGOS (perdendo a linha) Muita audácia da sua parte vir à minha casa, insultar meu brasão e fazer gracejos a minha mulher. TADEU Vai negar então que seu filho é um baderneiro da pior espécie. SIMÃO Alguém pode me explicar como meu nome tá rolando nessa conversa? DOMINGOS Parece me que andou aprontando de novo, meu filho. SIMÃO AH, a festa de ontem? A gente só estava se divertindo. TADEU (virando-se para o sobrinho) Está vendo, Baltasar, é exatamente gente da laia dos Botelhos que mancham a reputação da nossa cidade. SIMÃO Peraí, você que é o Baltasar? Acho que vi você apanhando feio ontem... BALTASAR se descontrola e tenta partir pra cima de SIMÃO, mas é segurado pelo tio. SIMÃO tenta revidar e é impedido pelo pai.
  • 6. Página 6 de 39 TADEU Faça o favor de levar esse seu cãozinho para longe, onde ele não possa manchar-me a honra. DOMINGOS (ainda segurando filho, meio relutante, vira-se para a esposa) Querida, por favor, acompanhe Simão lá para cima, sim? D. RITA pega no braço do filho e ambos saem de cena. TADEU se aproxima ameaçadoramente de DOMINGOS. TADEU Agora é guerra, meu caro. TADEU sai da sala com passos duros, segurando o sobrinho pela manga da camisa. SIMÃO aparece na sala novamente seguido de sua mãe. SIMÃO (meio zombeteiro) Acho que minha reputação tá manchada por aqui também. DOMINGOS Simão, você será preso. D. RITA Meu filho, preso? Como assim? Ele é seu filho, seu crápula sem coração. DOMINGOS Sinto muito, vou a delegacia dizer que meu filho estava metido na confusão e quando voltar espero que esteja com as malas prontas e tenha feito todas as despedidas. DOMINGOS sai de cena. D. RITA pega sua bolsinha e tira um maço de dinheiro e entrega ao filho. D. RITA Pega criatura, vai embora daqui. SIMÃO (surpreso) Ir embora? Pra onde? D. RITA
  • 7. Página 7 de 39 Eu sei lá meu filho. Você não tem amigos nas cidades vizinhas não? Pega e vai embora. SIMÃO Mas mãe... D. RITA Vai embora logo antes que seu pai volte com os homens da lei. Vai (enxotando o filho pra fora) D. RITA senta-se na cadeira para esperar o marido. Está impaciente. DOMINGOS volta com um policial. DOMINGOS (grita da porta) Riiiiiiiiita, cadê o moleque? D. RITA Não sei. DOMINGOS Como assim não sabe? D. RITA (cai de joelhos aos pés do marido) Oh, Domingos. Simão ainda é uma criança. Não pode ser preso não. Mandei ele ir embora, vai ser um bom menino a partir de agora. DOMINGOS Só podia ser coisa sua mesmo. (vira-se para o policial) Muito obrigado pela sua paciência, senhor policial. E sinto muito pelo papelão da D. Rita. Sabe como é, essas mães tem o coração muito mole. O POLICIAL acena com a cabeça e sai de cena. CENA V SIMÃO está sentado em um banco, num parque próximo de sua casa, segurando uma flor e cantarolando para si mesmo a espera de TEREZA. TEREZA entra em cena, apressada e senta-se ao lado dele. SIMÃO (vira-se para ela e toca seu rosto com o polegar) Estou radiante de finalmente poder ver tanta beleza pessoalmente, tão de perto. Tens um rosto tão doce e tão belo que diria se tratar de um anjo se não soubesse que o seu pai é o Capiroto em pessoa.
  • 8. Página 8 de 39 TEREZA Não seja tão rude, Simão. Meu pai só é assim porque se preocupa comigo... SIMÃO cala a boca dela pondo o indicador sobre os lábios dela. SIMÃO Não, não vamos falar sobre o seu pai. Falaremos sobre nós dois. TEREZA O que, meu amor? O que falaremos sobre nós dois? SIMÃO (olhando sonhadoramente para cima segurando firmemente as mãos de TEREZA entre as suas) Sobre a nossa paixão, sobre o nosso futuro, sobre o que vai ser de nós dois daqui pra frente. Vamos falar sobre o amor, vamos viver o amor. Amaremos e seremos amados. Oh, esse louco e desvairado amor que se apossou de um incauto coração.Diga, Tereza. Diga que me ama! TEREZA (aproximando-se mais de SIMÃO) Eu te amo, Simão. E nada nos impedirá de vivermos juntos e felizes para sempre. Pausa, silêncio. SIMÃO A não ser o meu sobrenome... TEREZA Oh, meu amor. Porque insistes em entristecer-me com a tragédia de nosso amor? Não se preocupe, deixe que de meu pai cuido eu. Agora é tarde, devo voltar para casa antes que ele note minha ausência. Os dois se levantam de mãos dadas e ficam de frente um para o outro. SIMÃO Volte, meu amor. Volta para casa, mas antes me prometa que me encontrará aqui amanhã, para me ver antes que eu parta para Coimbra. TEREZA Sim, querido. Voltarei, mas agora preciso me apressar. Adeus, Simão. SIMÃO (beija a mão de TEREZA e a solta, ele a vê partindo) Adeus, Tereza.
  • 9. Página 9 de 39 CENA VI D. RITA e DOMINGOS conversando na sala. D. RITA Mas eu já disse que preciso de um vestido novo para ir a esse casamento... SIMÃO entra apressado na sala. SIMÃO A benção, pai. A benção, mãe. SIMÃO sai de cena. D. RITA olha admirada para o filho deixando a sala. D. RITA Tá vendo só? Nosso menino anda uma benção. Mal sai de casa, e quando sai é com a irmã. Não anda mais com aqueles favelados, não teve nem reclamação da vizinhança. Tá até chegando cedo em casa, antes madrugava na farra. Desde que voltou de Coimbra tá parecendo uma pessoa nova... DOMINGOS (impaciente) Tá, Rita, já entendi. O menino tá direito agora. Também, depois desse último corretivo! Só espero que não volte a aprontar em Coimbra... D. RITA (fazendo o sinal da cruz) Vira essa boca pra lá, homem. Simão vai estudar, vai ficar bem de vida e quando ele voltar encontraremos uma moça de boa família para ele se casar. DOMINGOS Deus te ouça, Rita. Deus te ouça. Saem de cena. CENA VII SIMÃO está a espere de TEREZA no parque. Ele está em pé, ansioso, olhando o relógio compulsivamente, com as malas ao lado, pronto para ir para Coimbra. TEREZA entra em cena inquieta. SIMÃO (abrindo os braços para abraça-la) Oh, minha querida. TEREZA ignora o abraço de SIMÃO.
  • 10. Página 10 de 39 TEREZA Não, NÃO TEMOS TEMPO. Temo que meu pai tenha descoberto sobre nossos encontros. O que será de nós agora? Os dois se olham com ternura e desespero. TEREZA dá um beijo na bochecha de SIMÃO. TADEU entra em cena de supetão. TADEU Tereza! O que significa isso? (puxa a filha pelo braço tirando-a de perto de SIMÃO) Seu verme nojento, está desvirtuando minha filha? SIMÃO (atônito) Mas... mas... TADEU (bravo) Mas nada. Já chega. Já vi tudo que tinha pra se ver nesta vida. Vamos embora, Tereza, nunca mais quero vê-la perto desse Botelho imprestável. TADEU sai de cena pisando duro, arrastando a filha, que sai chorando. SIMÃO fica desolado assistindo sua amada partir. DOMINGOS entra em cena. DOMINGOS Simão, meu filho. O que se passa? DOMINGOS põe a mão na testa do filho e o sente febril. DOMINGOS Você está febril. Tem certeza que quer partir agora? SIMÃO (pegando a mala) Sim, meu pai. Parece-me que não há razão para ficar. DOMINGOS sai de cena apressadamente e quando SIMÃO está para sair de cena logo atrás do pai, a MENDIGA aparece com um papel dobrado na mão. Ela cutuca o ombro de SIMÃO. SIMÃO O que você quer? MENDIGA (tenta se comunicar através de sua mímica desajeitada, pois não sabe falar) SIMÃO
  • 11. Página 11 de 39 Vamos! Diga sua velha inútil MENDIGA (Tenta avisar a respeito da carta, se atrapalhando no meio das mímicas) SIMÃO O que é isso? Não quero porcarias de um inseto miserável MENDIGA (Perde a paciência diante de tamanho tumulto, abre o bilhete e “esfrega-o” no rosto de Simão) SIMÃO Se eu pegar vai me deixar em paz? MENDIGA (Acena confirmando o combinado) SIMÃO Ah! Uma carta! MENDIGA (Faz cara de inconformada e vai embora resmungando silenciosamente) SIMÃO (Lendo a carta recebida) “Meu pai diz que vai me colocar num convento por sua causa. Não me esqueça, pois se acha que vai sair por aí fazendo a festa com qualquer uma que aparecer pode esquecer. Vá para Coimbra. Lá entregarão minhas cartas; E na primeira direi em que nome irá responder as minhas cartas.” SIMÃO fica radiante. SIMÃO Muito obrigado, minha senhora. (devolve o papel pra MENDIGA) Agora preciso ir. Parto para Coimbra, mas vou na esperança de receber as doces palavras de minha amada para alegrar meus dias. Os dois saem de cena. CENA VIII TEREZA está sentada na sala de sua casa, lendo uma revista. BALTASAR chega e senta ao seu lado. TEREZA deixa a revista de lado. BALTASAR
  • 12. Página 12 de 39 É hora de abrir o coração, prima. (pega a mão de TEREZA) Está disposta a ouvir-me? TEREZA (rudemente) Eu estou sempre disposta a ouvi-lo, primo Baltasar. BALTASAR Acho que nossos corações estão unidos; agora é preciso que as nossas casas se unam. TEREZA fica surpresa e tira sua mão das mãos dele de maneira brusca. BALTASAR (surpreso) Eu disse algo desagradável? TEREZA Disse o que é impossível de se fazer. Está enganado se acha que nossos corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa. Nem me lembrei que você pensa nisso. BALTASAR Quer dizer que me aborrece, prima Tereza? TEREZA Não. Já disse que o admiro muito, e por isso mesmo não devo ser esposa de um amigo a quem não posso amar. A infelicidade não seria só minha... BALTASAR Muito bem... Eu Posso saber... (sorri maliciosamente) quem é que me disputa seu coração? TEREZA (relutante) Que diferença faz? BALTASAR A diferença é que, pelo menos, saberei que a minha prima ama outro homem... É exato? TEREZA É. BALTASAR
  • 13. Página 13 de 39 (levanta-se) É com tamanha paixão que desobedece a seu pai? TEREZA (levanta-se pra ficar de frente com o primo) Não desobedeço; o coração é mais forte que a mera vontade de um pai. Desobedeceria se casasse contra a vontade de meu pai; mas eu não disse ao primo Baltasar que casava; disse-lhe unicamente que amava. BALTASAR (andando de um lado para o outro da sala, TEREZA o acompanha com o olhar) Estou espantado com seu modo de falar! Quem pensaria que os seus dezesseis anos estavam tão abundantes de palavras! TEREZA (exaltada) Não são só palavras, primo. São sentimentos que merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se eu lhe mentisse, você ficaria mais bem visto como meu primo. Se o primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e será de hoje em diante meu inimigo. BALTASAR Pelo contrário, muito pelo contrário... Eu lhe provei que sou seu amigo, se alguma vez a vir casada com algum miserável indigno de si. (sarcasticamente) Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau, valentão de aguadeiros, distinto cavalheiro, que passa os anos letivos encarcerado em Coimbra... TEREZA leva a mão ao coração e senta-se novamente, abismada. TEREZA Não tem mais que me dizer, primo Baltasar? BALTASAR senta-se novamente e põe a mão no ombro da prima. BALTASAR Tenho prima. Queira acalmar-se. Não cuida que está falando com o namorado infeliz. Por hora sou seu mais próximo parente, mais sincero amigo e mais decidido guarda de sua dignidade e fortuna. Eu sabia que minha prima, contra a expressa vontade de seu pai, uma ou outra vez conversara da janela com o filho do corregedor. Não dei valor ao sucesso, e tomei-o por brincadeira própria da sua idade. Quando soube, pasmei-me da boa-fé da priminha; depois entendi que a sua inocência devia ser o seu anjo da guarda. Agora, como seu amigo, compunjo-me de a ver ainda fascinada pela perversidade de seu vizinho. Não se recorda de ver Simão Botelho suciando com a ínfima vilanagem desta terra? Não viu seus criados e esse que vos fala com as cabeças quebradas pelo tal
  • 14. Página 14 de 39 varredor de feiras? Não lhe constou que ele, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava pelas ruas armado como um salteador e estradas, proclamando à canalha a guerra aos nobres e aos reis, e à religião de nossos pais? A prima ignoraria isso? TEREZA Ignorava parte disso e não me incomoda sabê-lo. Desde que conheci Simão, não me consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua família, nem ouço falar mal dele. BALTASAR E por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de costumes? TEREZA (vira a cara pra ele e fala com arrogância) Não sei, nem penso nisso. BALTASAR Não se zangue, prima. Eu hei de, enquanto viver, trabalhar por salva- la das garras de Simão Botelho. Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos ataques do seu demônio, eu farei ver ao valentão que a vitória sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu de Albuquerque. TEREZA (volta-se para ele irritada) Então o primo quer-me governar!? BALTASAR Quero-a dirigir enquanto sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo e eu serei indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima Tereza. BALTASAR se dirige a porta, pisando duro, meio contrariado. Sai de cena. TEREZA vai andando atrás dele. TEREZA (irritada) Ótimo, Baltasar. Sai, vai dar uma volta que você já me fez perder a paciência. TEREZA volta a se sentar, pega papel e caneta e começa a escrever freneticamente. Algum tempo depois, a MENDIGA entra em cena. TEREZA (levantando-se e indo até ela com o papel)
  • 15. Página 15 de 39 Ah, que ótimo que você está aqui. TEREZA dobra o papel e entrega a ela. TEREZA Faz o seguinte: entrega essa carta para o mesmo rapaz. Lembra-se de Simão, filho do corregedor aí do lado? A MENDIGA acena (confirmando) com a cabeça. TEREZA Então, faz tudo direitinho. Mas não vá errar heim? Não deixa o pai ver você aqui e não entregue pra ninguém além do rapaz. A MENDIGA presta atenção nas instruções de TEREZA, confirmando com a cabeça. TEREZA Tá, agora vai que ele tá vindo aí. TEREZA empurra a MENDIGA para fora de cena. Senta e pega a revista, fingindo estar distraída quando TADEU entra em cena. TEREZA ignora a presença do pai, que senta ao seu lado. TADEU Hoje dará a mão a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência. Mas repara minha querida filha, que a violência dum pai é sempre amor. Não te consultei outra vez sobre esse casamento por temer que a reflexão fizesse mal ao zelo de boa filha com que tu vais abraçar teu pai, e agradecer-lhe a prudência com que ele respeitou o teu gênio, velando sempre a hora de te encontrar digna do seu amor. TEREZA vira a página da revista com tanta violência que faz barulho. O pai logo percebe que ela não lhe prestava atenção. TADEU Não me respondes, Tereza?! TEREZA vira-se para olhar o pai. TEREZA E por que haveria de te responder, meu pai? TADEU Dás-me o que te peço? Enches de contentamento os poucos dias que me restam?
  • 16. Página 16 de 39 TEREZA E você será feliz com o meu sacrifício? TADEU Não diga sacrifício, Tereza. Teu primo é um conjunto das melhores virtudes. Como se a gentileza e a riqueza não lhe bastassem para formar um marido excelente. TEREZA E ele me quer, depois de eu ter negado? TADEU Se ele está apaixonado? Tenho bastante confiança em ti para crer que hás de amá-lo muito! TEREZA (sarcasticamente) Será mais certo eu odiá-lo para sempre. Eu agora mesmo o abomino como nunca pensei que se pudesse abominar! TEREZA se joga aos pés do pai de forma extremamente dramática. TEREZA Meu pai me mate; mas não me force a casar com meu primo. Evite violência, porque eu não caso! TADEU fica nervoso, levanta-se e tira a filha do chão. TADEU Ah, mas há de casar sim senhora! Se não, serás amaldiçoada para sempre. Serás trancada num convento. Se fores uma alma vil não me pertence, não és minha filha. Maldita sejas! Entra nesse quarto e espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um raio de sol. Em lágrimas, TEREZA sai de cena. BALTASAR aparece e vê o tio furioso. BALTASAR Tá tudo bem por aqui? TADEU (triste) Não te posso dar minha filha, porque já não tenho mais filha. A miserável, a quem eu dei este nome, perdeu-se para nós e para ela. BALTASAR (passando o braço pelos ombros do tio)
  • 17. Página 17 de 39 Não se preocupa, a gente dá um jeito nisso. São apenas as bobagens da adolescência. Os dois saem de cena. CENA IX SIMÃO está conversando com JOÃO DA CRUZ quando a MENDIGA se aproxima. Ele vê a MENDIGA chegar com um papel dobrado. SIMÃO Trazes notícias de minha amada, cara amiga? A MENDIGA lhe entrega o papel. SIMÃO começa a ler a carta. Silêncio por alguns segundos. Avançando a leitura, SIMÃO fica mais furioso. SIMÃO (gritando) Desgraçado! JOÃO (tentando acalmar SIMÃO) O que foi, homem? Há de se acalmar, pelo amor de Deus! SIMÃO Acalmar, acalmar nada. (empurra a carta pra MENDIGA) Tereza me conta que seu pai teve a audácia de lhe prometer a mão ao primo, Baltasar. Aquele de que lhe contei que espanquei com uns amigos algum tempo atrás em Viseu. E me conta todas as barbaridades que esse imbecil lhe disse. As ameaças, as ofensas... JOÃO Mas se atreve esse rapaz... SIMÃO (com um pouco de doçura na voz) Mas pelo menos minha amada me chama para visita-la essa noite, em segredo. Poderia me acompanhar, bom amigo João? JOÃO hesita em responder mas por fim assente com a cabeça. CENA X Casa dos Albuquerque. Está vazia quando SIMÃO entra. SIMÃO Tereza? Meu amor?
  • 18. Página 18 de 39 SIMÃO vai entrando na sala. Não vê ninguém, mas ouve o barulho de algo caindo no chão. SIMÃO Quem está aí? Tereza? É você? Silêncio. TEREZA entra em cena. TEREZA (com o indicador esticado em frente aos lábios, pedindo silêncio) Shhhhh. Meu amor, você veio... (abraça SIMÃO calorosamente) Sinto muito, foi um tremendo engano pedir que viesse aqui hoje. SIMÃO Porque? Não se alegras com minha presença? TEREZA Oh, não. Jamais pense nisso, meu amor. Mas hoje estamos recebendo visita e corremos sérios riscos aqui. Peço-lhe que vá embora e volte amanhã. SIMÃO Claro, meu amor. Só deixe-me apreciar sua beleza mais uma vez antes que eu vá embora. Olhar apaixonado. TEREZA Claro, claro, agora vá antes que alguém te veja aqui. SIMÃO sai de cena. BALTASAR aparece. BALTASAR (ironicamente) Falando sozinha, priminha? Esse romance não lhe está fazendo bem aos miolos! TEREZA Ora essa Baltasar. Claro que não estou falando sozinha! Estou fazendo uma prece. Eu hein, será que uma moça não pode pedir a Deus que lhe proteja de assombração, feito você. TEREZA sai de cena. BALTASAR (esfregando as mãos maleficamente)
  • 19. Página 19 de 39 Então a priminha acha que pode me fazer de bobo? Sei muito bem que ela está recebendo o ignóbil. Como pode? Essas moças de hoje perderam os bons modos. Recebendo rapazes em casa sem o consentimento do pai! Mas deixe estar que eu cuido disso. E cuido agora mesmo! BALTASAR sai de cena. SIMÃO entra em cena. JOÃO vem logo atrás. JOÃO Simão!(cutuca o rapaz nas costas) SIMÃO vira-se para o amigo. SIMÃO Pois não. JOÃO (coçando a cabeça, hesitando em falar) Devia ter te avisado antes, sinto muito. Preciso lhe contar algo acerca do senhor de Castro Daire, Baltasar, esse que tanto lhe faz ferver o sangue. SIMÃO (impaciente) Pois conte logo! JOÃO Então, faz bem uns seis meses que ele me mandou chamar a Viseu, com um pedido um tanto peculiar. (pausa) SIMÃO assente com a cabeça, fazendo sinal para que prossiga. JOÃO Ele me pediu para que eu tirasse a vida de um homem. SIMÃO (confuso) E quem é esse homem que ele queria morto? JOÃO Santo pai! (exclama impaciente) O homem era você, Simão! Você! SIMÃO (sem demonstrar surpresa) E por que isso?
  • 20. Página 20 de 39 JOÃO Ora. Não há de negar que tens lhe dado motivo de sobra para ser malquisto por essa gente. Primeiro o incidente da festa, depois o senhor vem se engraçando com a prima e futura esposa do assassino. SIMÃO Futura esposa uma ova. Nunca que entregarei minha amada Tereza nas mãos de criatura tão vil. (anda de um lado para o outro, pensativo, até parar na frente de JOÃO). Amigo João me acompanha em minha desventura? JOÃO Ajudarei, Simão. Mas porque simpatizo contigo e com vosso pai, ainda que ache essa história de amor proibido uma bela duma enrascada. Devia pedir a permissão do pai da moça. SIMÃO nega com a cabeça. JOÃO Mas já que insiste, ajudo sim. Conte-me seu plano e verei o que posso fazer por você. SIMÃO (de maneira maquiavélica) Vamos à caça. Os dois saem de cena. JOÃO volta com uma pistola e TEREZA com o seu bastão. MARIANA entra em cena. MARIANA (correndo para abraçar o pai) Pai, aonde vai? JOÃO (compreensivo) Querida, não vê que temos companhia. Não cumprimenta Simão? MARIANA vê SIMÃO. MARIANA (toda derretida) Olá, Simão. SIMÃO toma-lhe a mão e beija. SIMÃO
  • 21. Página 21 de 39 Prazer em conhecê-la, senhorita. Uma pena as circunstâncias não me permitirem apreciar seus belos, porém tristes olhos. O que lhe aflige? MARIANA Aflige saber que o senhor e meu pai se enfiam em tamanha empreitada. Para onde vão com pistolas e bastões? SIMÃO Lutar por amor, minha cara. Amor. MARIANA faz cara de choro, fica meio triste. MARIANA Que Deus lhe abençoe então. (sai de cena correndo como quem vai chorar) SIMÃO João, vai por ali procurar o canalha que eu fico por aqui vigiando. JOÃO Vai com calma, amigo. JOÃO sai de cena. SIMÃO dá umas voltas pelo cenário, com o bastão apoiado no ombro. BALTASAR aparece bem na sua frente. BALTASAR (aponta uma faca na direção de seu pescoço, sem aproximar-se muito) Botelho. SIMÃO (pressiona a ponta do bastão no estômago do rival) Coutinho. BALTASAR O que faz aqui? Sabes que é persona nom grata nas propriedades de um Albuquerque, não? E de qualquer outra família que se preze, claro. SIMÃO Lamento não poder dar uma resposta a altura. (finge tristeza) Estou de luto. BALTASAR (olha surpreso, levantando uma sobrancelha) Luto? Luto por quem? Já está antecipando a sua morte? SIMÃO
  • 22. Página 22 de 39 Não, meu caro. JOÃO aparece por trás de BALTASAR apontando a pistola para sua cabeça, sem que o mesmo perceba. SIMÃO A sua morte. SIMÃO dá uma piscadinha para o amigo. JOÃO atira em BALTASAR que cai morto. SIMÃO se agacha perto do morto e cutuca-o com o bastão para se certificar de que ele está morto. Olha para JOÃO. Silêncio. CENA XI TEREZA está na sala de sua casa, escrevendo uma carta para SIMÃO, para se desculpar pelo incidente do dia anterior. TADEU entra e cena, pegando a filha pelo braço violentamente. TADEU Criatura insolente! Pode me explicar o que anda acontecendo nessa casa? TEREZA (assustada) Papai? Está me machucando! E não sei do que está falando. TADEU joga a filha no chão com violência e começa a gritar. TADEU Não sabe do que estou falando? É de meu conhecimento que mandou Simão vir a seu encontro ontem. Como pode? TEREZA se levanta, alisando a saia do vestido. TEREZA Quem lhe contou? Quanto a isso, eu posso explicar... TADEU Explicar? Explique então porque o corpo de seu primo está estendido no quintal com um buraco de bala no crânio. TEREZA (levando a mão a testa, cambaleando) Baltasar está morto? TADEU assente. TEREZA desmaia dramaticamente e fica lá no chão. TADEU não se comove com a cena. Ainda muito irritado, chega mais perto da filha. TADEU
  • 23. Página 23 de 39 E quanto a você, mocinha, acho bom levantar e fazer as malas. Vou te mandar para o convento. TEREZA (levantando-se rapidamente) O que? Não pode fazer isso. TADEU Mas é claro que posso. Desde quando você está no direito de decidir sua própria vida? Agora não lhe restam opções: seu ex-futuro marido está morto. Vá, faça as malas enquanto eu vou a caça do assassino. (faz menção de se retirar) Ou devo dizer: Simão Botelho. TADEU sai de cena. TEREZA Não, não pode ser verdade. Preciso escrever a Simão. (rabisca freneticamente num papel, dobra e sai de cena) CENA XII SIMÃO e MARIANA estão a conversar. JOÃO chega apressado com um papel. JOÃO (empurrando a filha de lado) A pobre lhe trouxe algo. D. Teresa já deve estar informada do ocorrido. SIMÃO, desesperadamente, arranca o papel da mão do amigo. SIMÃO (lendo a carta em voz alta) Querido Simão, as ameaças por fim se concretizaram. Meu pai me colocou no convento de Viseu. Ainda que tive a sorte de conseguir alguns papeis para escrever-lhe. Logo serei transferida para outro convento ainda mais longe. Espero que não me esqueças, pois sempre serás meu amado Simão. Soube da morte do crápula. Não se preocupe, sei que não foi obra de suas mãos, mas meu pai está a sua procura com o meirinho geral e o juiz de fora. Beijos, da amada Teresa. SIMÃO cai aos prantos. MARIANA leva a mão ao coração. SIMÃO Ora essa! Vou atrás dela e tirá-la daquele convento na força. (ele reflete por alguns segundos) Vou fazer melhor, vou fugir com ela quando estiver indo para o outro convento. Claro, não poderia ter ideia melhor. SIMÃO vai se retirando mas MARIANA o impede de sair.
  • 24. Página 24 de 39 MARIANA Simão, tive uma ideia. Que tal planejar as coisas melhor? Eu tenho uma conhecida no convento onde D. Teresa está. Porque não lhe escreve pedindo para que se prepare? Isso pode evitar que essa semana se transforme num evento funesto. SIMÃO (abraçando MARIANA ternamente) Farias mesmo isso por mim, cara Mariana? MARIANA (dá um sorriso triste) Mas é claro. SIMÃO põe-se a escrever, dobra o papel e entrega a MARIANA. SIMÃO Muito obrigada, Mariana. Em você pude achar uma amiga. Muito mais, aliás. Uma irmã. Eles saem de cena. CENA XIII TERESA está ajoelhada no convento, orando e segurando um terço. MARIANA entra apressada. TERESA se levanta. TERESA (ajeitando o vestido, assustada) Pois não? MARIANA Venho da parte de Simão, senhora. (estende a carta para TERESA) TERESA Novidades? (arranca a carta da mão de MARIANA) Querida Teresa... TERESA vai andando de um lado para o outro da sala enquanto lê a carta para si mesma. MARIANA apenas a observa. TERESA (parando abruptamente ao lado de MARIANA) Ele vai vir me sequestrar na hora que eu for transferida? Mas ele está ficando louco? Isso é impossível! (segura nos ombros de MARIANA e a
  • 25. Página 25 de 39 sacode) Moça, não dá. Você tem de dizer a ele que é perigoso. Você tem de impedi-lo! MARIANA (libertando-se das mãos de TERESA) Eu disse a ele, mas você sabe como é... TERESA De qualquer jeito, faça o possível. Não posso perder o amor de minha vida numa tola empreitada. Uma pena que não posso lhe escrever: tiraram-me papel e caneta depois que souberam para quem estava escrevendo. MARIANA Mas se estou, ora essa! TERESA Claro, claro. Diga então a ele que não venha, pois é perigoso demais. Diga que vá para longe, muito longe porque os homens da lei tem certeza absoluta de que matou Baltasar e me escreva assim que estiver em segurança, escreva para o convento de Monchique. E diga também que eu o amo. MARIANA Tens sorte de ser amada por um homem como Simão. TERESA (aflita e tocando MARIANA para fora do aposento) Sim, sim. Mas agora vá e entregue meu recado. Logo alguém chegará. MARIANA sai e TERESA ajoelha-se e se põe a rezar. SIMÃO entra em cena. TERESA levanta-se e passa os braços pelo ombro do amado. TERESA Simão, o que faz aqui? Não recebeu o recado? Por que veio? É perigoso levar esse plano adiante. SIMÃO (se soltando do abraço) Vim para te buscar Teresa. As paredes desse convento não são o suficiente para me separar de você. Venha, vamos. TERESA Por onde você entrou, aliás? TADEU, DOMINGOS e um POLICIAL entram em cena.
  • 26. Página 26 de 39 TADEU Ali, ali o infame. (aponta para os dois) DOMINGOS Prenda-o, seu guarda. O POLICIAL vai até ele e o rende. TERESA cai aos prantos. TADEU vai até ela e a pega pelo braço. TADEU Vamos, minha filha. Já temos muita dessas palhaçadas. Está na hora de ir. TADEU sai levando a filha. TERESA resiste um pouco, mas logo sai puxada pelo pai. DOMINGOS (olhando para o filho que está de cabeça baixa com as mãos nas costas, segurado pelo POLICIAL) Filho, matou mesmo o sobrinho de Tadeu? SIMÃO (levantando a cabeça) Matei, matei pai. Não tenho vergonha ou remorsos de dizer que matei o algoz de tão doce criatura como Teresa. DOMINGOS dá um tapa no filho. DOMINGOS Pois és um tolo. (faz sinal para o POLICIAL) Leva, leva essa criatura daqui. Não tenho mais filho. CENA XIV SIMÃO todo amarrotado é jogado na cela pelo POLICIAL. Ele fica lá deitado no chão. MARIANA entra apressada com uma garrafa de pinga e um saco de pão, papel e caneta. SIMÃO (sentando no chão) Mariana? O que você está fazendo aqui?
  • 27. Página 27 de 39 MARIANA (sentando-se ao lado dele) Vim assim que soube que foi preso. (entrega-lhe a pinga e o pão) Não é muita coisa, mas era só o que tinha pronto em casa. Fiquei preocupada depois que soube que seu pai estava no momento em que foi preso e não fez nada para ajudar. SIMÃO Eu não tenho pai. MARIANA abraça SIMÃO. MARIANA Eu sinto muito, Simão. Mas olha, eu lhe trouxe papel e caneta. SIMÃO pega o papel e caneta. Enquanto escrevia, chega o POLICIAL. POLICIAL Senhor! Aprume-se. O juiz está vindo para lhe julgar. Queira a senhora se retirar, por favor. SIMÃO e MARIANA se levantam, ficando um ao lado do outro. MARIANA se agarra ao braço de SIMÃO. MARIANA Mas de jeito nenhum. (bate o pé no chão) Aqui estou e daqui ninguém me tira. POLICIAL Tudo bem, mas tente não interferir. O JUIZ entra. JUIZ Simão, tem algo a dizer em sua defesa. MARIANA olha para ele esperançosa.
  • 28. Página 28 de 39 SIMÃO Não senhor, eu matei Baltasar Coutinho estou aqui para ser punido por isso. JUIZ Pois admite isso então? Sem se importar que seu destino seja a forca? SIMÃO Digo que o meu coração é indiferente ao destino de minha cabeça. O JUIZ dá sinal para que o POLICIAL e a moça se retirem, deixando SIMÃO sozinho novamente na cela. A MENDIGA entra em cena. SIMÃO Pobre senhora. Lamento não ter sequer uma moeda no momento. Mas o que tens para mim? A MENDIGA lhe entrega a carta de TEREZA e sai. SIMÃO (lendo a carta) “SIMÃO, MEU ESPOSO. Sei de tudo...Está conosco a morte. Olha que te escrevo sem, lágrimas. A minha agonia começou há tempo. Deus é bom, que me poupou ao crime. Ouvi a notícia da tua própria morte, e então compreendi porque estou morrendo hora a hora. Aqui está o nosso fim, Simão!...Olha as nossas esperanças Quando tu me dizias os teus sonhos de felicidade, e eu que te dizia os meus!... Que mal fariam a Deus os nosso desejos?!...Ver-nos-emos num outro mundo, Simão? Ao menos, morrer é esquecer. Eu também estou condenada, e sem remédio. Segue-me, Simão! Não tenha saudades da vida, não tenhas, ainda que a razão te diga que podias ser feliz, se não me tivesses encontrado no caminho por onde te levei a morte...E que morte, meu Deus!...Aceita-a ! Não te arrependas. Se houve crime, a justiça de Deus te perdoará pelas angústias que tens de sofrer no cárcere...e nos últimos dias, e na presença da...”
  • 29. Página 29 de 39 CENA XV Simão passou 19 meses de cárcere num navio em direção à índia almejando um raio de sol, um pouco de ar que não fosse filtrado pelas barras metálicas. Já não tinha mais ânsia de amar e sim de viver. Teresa pedira a Simão que aceitasse dez anos de cadeia e esperasse aí sua redenção por ela. “Dez anos! Em dez anos terá morrido meu pai meu pai e eu serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe se não tiveres cumprido a sentença. Se vais ao degredo, para sempre te perdi, Simão, porque morrerás, ou não acharás memória de mim, quando voltares” Simão sem qualquer tipo de esperança, responde a carta com palavras melancólicas “Não esperes nada, mártir. A luta com a desgraça é inútil, e eu não posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo. Caminharemos ao encontro da morte. Há um segredo que só no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos? As palavras únicas de Tereza, em resposta àquela carta, significativa da turbação do infeliz, foram estas: "Morrerei Simão, morrerei. Perdoa tu ao meu destino... Perdi-te... Bem saber que sorte eu queria dar-te... e morro, porque não posso, nem poderei jamais resgatar-te. Se podes, vive; Não te peço que morras, Simão; Quero que vivas para me chorares. Consolar-te á o meu espírito.. Estou tranquila. Vejo a aurora da paz... “Adeus até o céu, Simão”. No dia 10 de março de 1807, Simão recebe a intimação para sair na primeira embarcação que levava âncora do Douro para a Índia. Nenhum estorvo impedia o embarque da Mariana, que se apresentou ao corregedor do crime como criada do degredo, como passagem paga por seu amo. CENA XVI 17 de março de 1807, saiu dos cárceres da Relação, Simão Antônio Botelho e embarcou no cais da Ribeira, com 75 companheiros. O magistrado, fiel amigo de D. Rita Preciosa, foi a bordo da nau recomendou ao comandante que distinguisse o condenado Simão, consentindo-o na tolda, e sentando-o à sua mesa. Chamou Simão de parte, e deu-lhe um cartucho de dinheiro em ouro, que sua mãe lhe
  • 30. Página 30 de 39 enviara. Simão aceitou o dinheiro, e, na presença de Mourão Mosqueira, pediu ao comandante que fizesse distribuir pelos seus companheiros de degredo o dinheiro que lhe dava. DESEMBARGADOR É demente o senhor Simão?! SIMÃO Nem ao menos sei quem me mandou este dinheiro DESEMBARGADOR Foi sua mãe SIMÃO Não tenho mãe. Quer vossa excelência devolver esta esmola rejeitada? DESEMBARGADOR Não, senhor SIMÃO Senhor comandante cumpra o que lhe peço, ou eu atiro o dinheiro no rio (O comandante aceitou o dinheiro, e o DESEMBARGADOR sai de bordo espantado da sinistra condição do moço) SIMÃO Onde é Monchique? (Pergunta SIMÃO à MARIANA) MARIANA É acolá, senhor Simão. (Respondeu lhe indicando o mosteiro se debruça sobre a margem do Douro, em Miragaia) Simão cruzou os braços, e viu através do gradeamento do mirante um vulto. Era Teresa que na véspera recebera o adeus de Simão, e respondera enviando-lhe a trança dos seus cabelos. Ao anoitecer daquele dia, pediu Teresa os sacramentos, e comungou à grade do coro, onde se foi amparada à sua criada, Parte das horas da noite passou-as sentada ao pé do santuário de sua tia, que toda a noite orou, Algumas vezes pediu que a levassem à janela que se abria para o mar, e não sentia ali a frialdade da viração. Conversa serenamente com as freiras, e despede- se de todas, uma a uma, indo por seu pé às celas das senhoras
  • 31. Página 31 de 39 entrevadas para lhes dar o beijo da despedida. Todas cuidavam em reanimá-la, e Teresa sorria, sem responder aos piedosos artifícios com que as boas almas a si mesmas queriam simular esperanças. Ao abrir da manhã, Teresa leu uma a uma a cartas de Simão Botelho. Emaçou depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de raminhos de flores murchas, que Simão, dois anos antes, lhe atirara da sua janela ao quarto dela. As pétalas das flores soltas quase todas se desfizeram, e Teresa, contemplando-as, disse: TERESA Como a minha vida (Chora beijando os cálices desfolhados das primeiras que recebera) Às nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse ao mirante. Foi então que Simão Botelho a viu. Ouviu-se a voz de levas âncora e largas amarras. Simão encontrou-se à amurada do navio, com os olhos fixo ao mirante. Viu se agitar um lenço, e ele respondeu com o seu à aquele aceno. O navio desceu ao mar, e passou fronteira ao convento. Distintamente Simão viu um rosto e uns braços suspensos das reixas de ferro; Mas não era de Teresa aquele rosto; Seria antes um cadáver que subiu da claustra ao mirante, com os ossos da cara içados ainda das herpes da sepultura. SIMÃO É Teresa? MARIANA É, senhor, é ela. De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu Simão um movimento impetuoso de alguns braços e o desaparecimento de Teresa e do vulto de Constança. Mais tarde adiou-se a saída para o dia seguinte. Ao escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou, com os olhos embaciados de lágrimas. O desterrado, que contemplava as primeiras estrelas, iminentes ao mirante. COMANDANTE Procura-a no céu? SIMÃO Se a procuro no céu! COMANDANTE Sim!... No céu deve ela estar. SIMÃO Quem, senhor?
  • 32. Página 32 de 39 COMANDANTE Teresa. SIMÃO Teresa...! Morreu?! COMANDANTE Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando. (O COMANDANTE bate nas costas de SIMÃO e tenta animá-lo) COMANDANTE Coragem, grande desgraçado, coragem! Os homens do mar crêem em Deus! (MARIANA estava um passo atrás de SIMÃO, e tinha as mãos erguidas) SIMÃO Acabou-se tudo!... Eis-me livre... Para a morte... Senhor comandante eu não me suicido. Pode deixar-me. COMANDANTE Peço-lhe que se recolha à câmara. O seu beliche está ao pé do meu. SIMÃO É obrigatório recolher-me? COMANDANTE Para vossa senhoria não há obrigações; há rogos: peço-lhe, não mando. SIMÃO Vou, e agradeço a compaixão. SIMÃO encara MARIANA, e diz ao comandante: SIMÃO E esta infeliz? COMANDANTE Que deus o siga... (SIMÃO recolheu-se ao beliche, e o COMANDANTE sentou-se em frente dele, e MARIANA ficou no escuro da câmara a chorar). COMANDANTE Fale, senhor Simão! Desafogue e chore. SIMÃO
  • 33. Página 33 de 39 Chorei, senhor! COMANDANTE Eu não tinha imaginado uma angústia igual à sua. A invenção humana não criou ainda um quadro tão atroz. Que desgraçado moço o senhor é! SIMÃO Por pouco tempo... COMANDANTE Por pouco tempo, creio eu, mas se os amigos pudessem salvá-lo, senhor, eu dar-lhes-ia na Índia mais fiéis que em Portugal. Prometo-lhe, sob a minha palavra de honra, alcançar do vizo-rei a sua residência em Goa. Prometo segurar-lhe um decente principio de vida e as comodidades que fazem a existência tão saudável como ela é na Ásia. Não o intimide a ideia do degredo, senhor Simão. Viva, faça por vencer-se, e será feliz! SIMÃO O seu silêncio, por piedade, senhor... COMANDANTE Bem sei que é cedo ainda para planejar futuros. Desculpe à simpatia que me inspira a indiscrição, mas aceite um amigo nesta hora atribulada. SIMÃO Aceito, e preciso dele... Mariana! Venha aqui, se este cavalheiro o permite. Esta mulher tem sido a minha providência porque ela me valeu, não senti a fome em dois anos e nove meses de cárcere. Tudo que tinha vendeu para me sustentar e vestir. Se eu morrer, senhor comandante, aceite o legado de ampará-la com a sua caridade como se ela fosse minha irmã. Se ela quiser voltar à sua pátria, seja o seu protetor na passagem. (E estendendo lhe a mão disse) O senhor promete? COMANDANTE Juro. O COMANDANTE, obrigado a subir ao tombadilho, deixou SIMÃO com MARIANA. SIMÃO Estou tranquilo pelo seu futuro, minha amiga. MARIANA
  • 34. Página 34 de 39 Eu já o estava, senhor Simão SIMÃO apoiou a face sobre a mesa, e apertou com as mãos as fontes arquejantes. MARIANA, de pé, ao lado dele, fitava os olhos na luz mortiça da lâmpada oscilante, e cismava, como ele, na morte. Às onze horas da noite, o comandante recolhera-se num beliche de passageiro, e Mariana, sentada no pavimento, com o rosto sobre os joelhos, parecia sucumbir ao quebranto das trabalhosas e aflitivas horas daquele dia. Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os braços cruzados sobre o peito, e os olhos fitos na luz que balançava pendente de um arame. À meia-noite, estendeu Simão o braço trêmulo ao maço das cartas que Teresa lhe enviara, e contemplou um pouco a que estava ao de cima, que era dela. Rompeu a obreia, e dispôs-se no camarote para alcançar o baço clarão da lâmpada. Dizia assim a carta: "É já o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A tua pobre Teresa, à hora em que leres esta carta, se Deus não me engana, está em descanso. Eu devia poupar-te a esta última tortura; não devia escrever-te; mas perdoa à tua esposa do céu a culpa, pela consolação que sinto em conversar contigo a esta hora, hora final da noite da minha vida. Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma? Daqui a pouco perderás de vista este mosteiro; correrás milhares de léguas, e não acharás, em parte alguma do mundo, voz humana que te diga: A infeliz espera-te noutro mundo,e pede ao Senhor que te resgate. Se te pudesses iludir, meu amigo, quererias antes pensar que eu ficava com a vida e com esperança de ver-te na volta do degredo? Assim pode ser, mas, ainda agora, neste solene momento, me domina a vontade de fazer- te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade tem às vezes vaidade de mostrar que o é, até não podê-lo ser mais! Quero que digas: Está morta, e morreu quando eu lhe tirei a última esperança. Isto não é queixar-me, Simão: não é. Talvez, que eu pudesse resistir alguns dias à morte, se tu ficasses; mas, de um modo ou de outro, era inevitável fechar os olhos quando se rompesse o último fio, este último que se está partindo, e eu mesma o ouço partir. Não vão estas palavras acrescentar a tua pena. Deus me livre de ajuntar um remorso injusto à tua saudade. Se eu pudesse ainda ver-te feliz neste mundo; se Deus permitisse à minha alma esta visão!... Feliz, tu, meu pobre condenado!... Sem o querer, o meu amor agora te fazia injúria, julgando-te capaz de felicidade! Tu morrerás de saudade, se o clima do desterro te não matar ainda antes de sucumbires à dor do espírito. A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como tu pintavas nas tuas cartas, que li há pouco! Estou vendo a casinha que tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves. A tua imaginação passeava comigo às margens do Mondego, à hora pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada por teu sorriso, inclinava a face ao teu seio, como se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li nas tuas cartas; e parece que cessa o despedaçar da agonia enquanto a alma se está recordando. Noutra carta, me falavas em triunfos e glórias e imortalidade do teu nome. Também eu ia após da tua aspiração, ou adiante dela, porque o maior quinhão dos teus prazeres de espírito queria eu que fosse meu. Era criança há três anos, Simão, e já entendia os teus anelos de glória, e imaginava-os
  • 35. Página 35 de 39 realizados como obra minha, se tu me dizias, como disseste muitas vezes, que não serias nada sem o estimulo do meu amor. Ó Simão, de que céu tão lindo caímos! A hora que te escrevo, tu estás para entrar na nau dos degredados, e eu na sepultura. Que importa morrer, se não podemos jamais ter nesta vida a nossa esperança de há três anos? Poderias tu com a desesperança e com a vida, Simão? Eu não podia. Os instantes do dormir eram os escassos benefícios que Deus me concedia; a morte é mais que uma necessidade, é uma misericórdia divina, uma bem-aventurança para mim. E que farias tu da vida sem a tua companheira de martírio? Onde tu irás aviventar o coração que a desgraça te esmagou, sem o esquecimento da imagem desta dócil mulher, que seguiu cegamente a estrela da tua malfadada sorte?! Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma vez visses passar rapidamente a minha sombra por diante dos teus olhos enxutos? Sofre, sofre ao coração da tua amiga estas derradeiras perguntas, a que tu responderás, no alto mar, quando esta carta leres. Rompe a manhã. Vou ver a minha última aurora... a última dos meus dezoito anos! Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre de uma agonia longa. Todas as minhas angústias lhe ofereço em desconto das tuas culpas. Se algumas impaciências a justiça divina me condena, oferece tu a Deus, meu amigo, os teus padecimentos, para que eu seja perdoada. Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão Ergueu-se o degredado, olhou em redor de si e fitou com espasmo MARIANA, que levantava a cabeça ao menor movimento dele. MARIANA Que tem, senhor Simão? (disse ela, erguendo-se) SIMÃO Estava aqui, Mariana?... Não vai se deitar?! MARIANA Não vou; o comandante deu-me licença de ficar aqui. SIMÃO Mas há de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque não é necessário o seu sacrifício. MARIANA Se o não incomodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão. SIMÃO Esteja, minha amiga, esteja... Poderei subir ao convés? COMANDANTE Quer ir ao convés, senhor Botelho?
  • 36. Página 36 de 39 SIMÃO Queria, senhor comandante. COMANDANTE Iremos juntos. Simão ajuntou a carta de Teresa ao maço das suas, e saiu cambaleando. No convés sentou-se num monte de cordame, e contemplou o mirante do Monchique, que avultava negro ao sopé da serra penhascosa em que atualmente vai a Rua da Restauração. O capitão passeava da proa à ré, mas com o ouvido fito aos movimentos do degredado. Receara ele o propósito do suicídio, porque Mariana lhe incutira semelhante suspeita. Queria o marítimo falar-lhe palavras consoladoras, mas pensava consigo: "O que há de dizer-se a um homem que sofre assim?" E parava junto dele algumas vezes, como para desviar-lhe o espírito daquele mirante. SIMÃO Eu não me suicido! Se a sua generosidade, senhor capitão. Se interessa em que eu viva, pode dormir descansado a sua noite, que eu não me suicido. COMANDANTE Mas mereço-lhe eu a condescendência de descer comigo à câmara? SIMÃO Irei; mas eu, lá, sofro mais, senhor. COMANDANTE Não! Replicou o COMANDANTE, e continuou a passear no convés apesar das rajadas de vento. MARIANA estava agachada entre os pacotes da carga, a pouca distância de Simão. O COMANDANTE viu-a, falou-lhe, e retirou-se. Às três horas da manhã, Simão Botelho segurou entre as mãos a testa, que se lhe abria abrasada pela febre. Não pôde ter-se sentado, e deixou cair o meio corpo. A cabeça, ao declinar, pousou no seio de Mariana. SIMÃO O Anjo da compaixão sempre comigo! (murmurou ele) Teresa foi muito desgraçada...
  • 37. Página 37 de 39 MARIANA Quer descer ao camarote? SIMÃO Não poderei... Ampare-me, minha irmã. Deu alguns passos para a escadinha, e olhou ainda sobre o mirante. Desceu a íngreme escada, apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o colchão, e pediu água que bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o estarrecimento, e as ânsias, com intervalo de delírio. De manhã veio a bordo um facultativo, por convite do capitão. Examinando o condenado, disse que era febre maligna a doença, e bem podia ser que ele achasse a sepultura no caminho da Índia. Mariana ouviu o prognóstico, e não chorou. As onze horas saiu barra fora a nau. As ânsias da doença acresceram as do enjôo. A pedido do comandante, Simão bebia remédios, que bolsava logo, revoltos pelas contrações do vômito. Ao segundo dia de viagem, Mariana disse a Simão: MARIANA Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer àquelas cartas que vão na caixa? Pasmosa serenidade a desta pergunta! SIMÃO Se eu morrer no mar. Mariana, atire ao mar todos os meus papéis, todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro também. Passada uma ânsia, que lhe embargava a voz, Simão continuou: SIMÃO Se eu morrer, que tenciona fazer, Mariana? MARIANA Morrerei, senhor Simão. SIMÃO Morrerás?!... Tanta gente desgraçada que eu fiz!... A febre aumentava. Os sintomas da morte eram visíveis aos olhos do capitão, que tinha sobeja experiência de ver morrerem centenas de condenados, feridos da febre no mar, e desprovidos de algum medicamento. Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de Cascais, sobreveio tormenta súbita. O navio fez-se ao largo muitas milhas, e, perdido o rumo de Lisboa, navegou desnorteado. Ao sexto dia de navegação incerta, por entre espessas brumas, partiu-se o leme defronte de Gibraltar. E, em seguida ao desastre, aplacaram as refregas, desencapelaram-se as ondas, e nasceu, com a aurora do dia seguinte, um formoso dia de primavera. Era o dia de primavera. Era o
  • 38. Página 38 de 39 dia 27 de março, o nono da enfermidade de Simão Botelho. Mariana tinha envelhecido. O comandante, encarando nela, exclamou: COMANDANTE Parece que volta da índia com os dez anos de trabalhos já passados! MARIANA Já acabados... de certo... Ao anoitecer desse dia o condenado delirou pela última vez, e dizia assim no seu delírio: "A casinha, defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves. Passeavas comigo à margem do Mondego, à hora pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada por teu sorriso, inclinada a face ao teu seio, como se fosse o de minha mãe... De que céu tão lindo caímos!... A tua amiga morreu... A tua pobre Teresa... E que farias tu da vida, sem a tua companheira de martírio?... Onde irás tu aviventar o coração que a desgraça te esmagou?!... Rompe a manhã... Vou ver a minha última aurora... a última dos meus dezoito anos. Oferece a Deus os teus padecimentos, para que eu seja perdoado...Mariana..." Mariana colocou os ouvidos aos lábios roxos do moribundo, quando cuidou ouvir o seu nome. "Tu virás ter conosco; ser-te-emos irmãos no céu... O mais puro anjo serás tu... se és deste mundo, irmã; se és deste mundo, Mariana..." A transição do delírio para a letargia completa era o anúncio infalível do trespasse. Ao romper da manhã apagara-se a lâmpada. Mariana saíra a pedir luz, e ouvira um gemido estertoroso. Voltando às escuras, com os braços estendidos para tatear a face do agonizante, encontrou a mão convulsa, que lhe apertou uma das suas, e relaxou de súbito a pressão dos dedos. Entrou o COMANDANTE com uma lâmpada, e aproximou-lha da respiração, que não embaciou levemente o vidro. COMANDANTE Está morto! MARIANA curvou-se sobre o cadáver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro beijo. Ajoelhou depois ao pé do beliche com as mãos erguidas, e não orava nem chorava. Algumas horas volvidas, o comandante disse a Mariana: COMANDANTE Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo... É ventura morrer quando se vem a este mundo com tal estrela. Passe a senhora Mariana ali para a câmara que vai ser levado daqui o defunto.
  • 39. Página 39 de 39 Mariana tirou o maço das cartas debaixo do travesseiro, e foi a uma caixa buscar os papéis de Simão. Atou o rolo no avental, que ele tinha daquelas lágrimas dela, choradas no dia da sua demência, e cingiu o embrulho à cintura. Foi o cadáver envolto num lençol, e transportado ao convés. Mariana seguiu-o. Do porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às pernas com um pedaço de cabo. O comandante contemplava a cena triste com os olhos úmidos, e os soldados que guarneciam a nau, tão funeral respeito os impressionara, que insensivelmente se descobriram. Mariana estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia estupidamente encarar aqueles empuxões que o marujo dava ao cadáver, para segurar a pedra na cintura. Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o arremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram, e ninguém já pôde segurar Mariana, que se atirara ao mar. A voz do comandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram homens para salvar Mariana. Salvem na!... Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir à morte mas para abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O comandante olhou para o sítio donde Mariana se atirara, e viu, enleado no cordame, o avental, e à flor da água, um rolo de papéis, que os marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondência de Teresa e Simão. Da família de Simão Botelho vive ainda, em Vila-Real-de-Trás os- Montes, a senhora D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã predileta dele. A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi Manoel Botelho, pai do autor deste livro. FIM