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Sílvio Mendes, 2010
a Catarina,
Índice Página 3
-
Semear o homem, resistir, colher. Páginas 4-12
Semear, resistir à cidade, colher. Páginas 11-17
Semear, resistir, colher a palavra. Páginas 18-21
-
Nota do autor. Página 22




Autor Sílvio Mendes
Paginação Pedro Falcão
Data de publicação Janeiro de 2011
Tiragem PDF de partilha infinita
-
www.idiotequesw.blogspot.com
www.pedrofalcao.net

                                                    3
SEMEAR O HOMEM, RESISTIR, COLHER.




Quis

Quis impressionar, tanto pela
forma como no modo de fazer
a coisa impressionante. Uma
certa geometria hesitante, uma
doença que avança de olhos
fechados e o homem – impressionado –
à espera dela. Quis ser forte
como a estátua de ferro, alta,
larga, feroz, imperfeita, a ver
passar os carros e a gente. Quis
chorar já perto do fim mas o
rectângulo acabou-se e ficou
demasiado tarde.




No jardim

No jardim de Pires os homens são
como dias claros, maestros, sem custos
no acordar. É na página um, caderno de economia,
que os homens se fazem número e começam a ganhar
corpo – homens de muitos dígitos por cabeça, vidas
de gráficos alinhados pelo rugido de um comboio,
alguns segredos, uma ponte: a bolsa abriu em queda
e muitos homens juntos desnudam instrumentos,
preparam armadilhas para a próxima sinfonia,
músicos sem dó, uma forma de corpo a nascer na
sombra de um papagaio amarelo.
Repetição! Atenção! «juntos… juntos… juntos…
sem custos… juntos!», alguns segredos, uma ponte,
um intenso cheiro a cão. «sumptuosa soma de lucros»,
lê-se no caderno. E o corpo do novo homem que nasce.
Morto.


                                                       4
Isto

Isto é o passado.
A culpa de um homem, em caso de dúvida, começa aqui.
Quando se sente só, se acha perdido, é no passado que se deita,
aqui, onde a mãe o viu crescer com o nó de mãe no peito,
onde disse o primeiro palavrão com o pânico da desordem,
onde se engasgou para sempre cravando a estaca do seu esconderijo
definitivo.




Chove

Chove extraordinariamente,
ris extraordinariamente,
cantas extraordinariamente
e depois dormes,
embalas extraordinários sonhos,
sonhas enquanto o mundo chora.
Extraordinariamente acordados,
os homens, de manhã, saltam
à corda nas esperas e
libertam-se da música que lhes prende os músculos
na chuva. Cantam.




                                                                    5
Quem é?

Quem é?
Salta-lhe uma luz ao olho,
já soube todas as respostas num tempo de ócio
e pensamento. Agora pergunta,
Quem és?, atira-se à dúvida,
bate em todas as portas. E chove.

Há quem faça perguntas e há
quem derrame lume.
Quem são, tantos, os que ardem?
Por que nos fecham na cidade se somos homens e os homens não voam?




Como alcançar

Como alcançar um amigo que nasce,
se ainda tem vida e tantas dúvidas
sobre isto-tudo. Abraçá-lo com
que pretexto? Quantas vezes é amigo
o meu amigo, quantas dúvidas e
quanta vontade de as dissolver,
curioso faroleiro à procura de
luz e uma bata branca: você devia
ter tido mais cuidado com a vida
que tanto lhe estende um braço de ternura
como o consome de seguida.
Como alcançar toda a beleza
antes que ela nos extinga.




                                                                     6
Príncipe nocturno

Príncipe nocturno, é tua essa navalha de espelhos e bruma?
Vendes pão com sabor inglês e uma serra universal para quebrar
e comer todas as palavras. Chamas poesia à fome após o primeiro
trago de uísque e amor a todas as tuas insónias depois do último
vómito. Voltas para o palácio sem penas e com a noite já esventrada.
Sonhos caem com o amanhecer, desejado mas não aparecido,
foste fome mas ainda és amor.




Astros em elevação

Astros em elevação. Alguns graus muito-muito-longe, duas feras reanimam
a nuvem de fogo: uma guerra de luz inventa novos poços de energia, tudo é
seco como a última máscara da civilização.
Para onde vão o equilíbrio, as espécies por catalogar, os insondáveis livros de
arte e as sondas arcaicas de três dedos azuis?
Há uma guitarra perdida, a anos-luz-de-silêncio de qualquer espaço: é um
poema morto, cavernoso, secular, religioso. Para onde vamos, nós que nada
sabemos?
Acidentes de sabão, serões bíblicos, vidas de mármore ancoradas na
distância. Astros, meu amor, pessoas de carne que matam antes de morrer e
morrem antes de voltar. Astros secos, desenhados no movimento.
Hoje, uma espécie animal pensou e saiu a pensar por todas as galáxias, cai a
máscara, soma vermelha contra a gravidade: um poema, dois homens velhos
sem tempo para festejar o fim do conflito, ocupados com cores interiores.
Chove no planeta um-quatro-seis-seis. É um prazer voluntário, a memória
já não é nada e a guitarra afasta-se a cada nota sangrenta. Fria, gelada… sou
um homem-astro, equilibro em mim todos os esquecimentos. Sonho. Páro
para sonhar. Lembram-se da Lua na Terra? Esqueçam a lua da terra, meu
coração está pronto para fugir, é uma válvula tremenda a caçar, uma fantasia
na direcção da morte, em sentido contrário. Eu sou um homem-luz e levo
um casaco com bolsos para as estrelas, para os pensamentos, para a tristeza
dos anos consecutivos.
Antes da guerra, o suicídio falhado, mais galáxia menos galáxia. Sou uma
conquista adiada, morro lentamente. Os segredos que guardo nos meus
botões servem para viver – mato-me amanhã, no Brasil do passado, muito
presente em mim, ainda filho do amanhã. Eu também sinto, eu também
estico as pernas para dançar, atravesso continentes, durmo pouco, namoro
o chão. Cruzo as pernas e chove, cruzo as pernas e grito. Bebo para gritar: o
poema, o silêncio.
                                                                                  7
Menos café

Menos café, menos adoçante, aquela não sei quê foi em união de facto, raiva
nos olhos, comove-te ao menos por poderes dizê-lo, ele apareceu uma vez
nu, só deus sabe em que prantos, e perguntou, tens arrepios, queimam-te o
corpo?




Onde

Onde vais tu crescer, terra molhada?
Teus ventres ainda são de húmus?

Sigam os passos destas mulheres:
atravessam portas mágicas, passagens proibidas,
respiram com dificuldade e adormecem com a cabeça dentro
de um livro.
Muitas portas e poucas saídas – eis, sem reservas, o futuro.




                                                                              8
Sempre

Sempre fui músico, é sabido, outros tempos de outras artes: muito uísque
para desfigurar as formas, muita visão periférica, por vezes os olhos
trocados. Até partir um copo tem uma certa arte, é preciso conhecer com
exactidão as leis da física para poder dizer: eu conheço com exactidão as leis
da física e não me parece que este copo vá cair assim. Repetir isto mil vezes
até o copo transbordar de convicção: atirá-lo ao ar e admirar a sua milagrosa
suspensão, à altura do braço, a desintegrar-se com o passar dos séculos,
solidário com o tempo, as tempestades e todos os fenómenos de erosão
do planeta. Só bebo se me apetecer, não tenho qualquer problema com a
bebida, nunca me tratou mal, nunca a denegri, raramente discutimos, não
preciso de copos para nada.
Uma casa feita de copos, um copo como castiçal de cerimónias religiosas,
oferecer copos vazios aos amigos, ideias meio cheias e meio vazias de
ridículo. Bebo pela garrafa e, se for caso disso, por um sapato. Os copos
são outra história: arte, hipnose, suspensão no tempo, espaço e ciência.
E, digamos, dedico a minha vida a definir-lhes prioridades, limites e
propriedades. Não sou alcoólico, sou músico profissional.




O homem cansado

O homem cansado anula terra e mar e procura-se nas nuvens. Por força
desses homens é que se inventou, primeiro, a palavra e, depois, o avião.
Porém, o homem cansado não levanta voo sem um último suspiro. E é nesse
momento que se fragmenta em dúvidas urgentes. O homem cansado pensa:
e se chove? Pensa: e se cego a grande altitude, como aterrar? Pensa: que
horas são?
O homem cansado cansa-se tanto enquanto pensa que se propões a trocar
todas as nuvens do céu por um minuto no fundo do mar, desde que o avião
não caia.




                                                                                 9
Na terra

Na terra das muchas cosas não há muitas coisas com que se preocupar. O
dia é curto e as distâncias tratam de o encurtar. Tome-se por exemplo esta
não remota possibilidade: um homem que se esquece dos pés em casa é um
manco para trás e para a frente e quanto mais devagar esse homem caminha
mais depressa o tempo passa. A isto chama-se a elasticidade dos corpos
fundida com o pêndulo de Foucault, dizem os rápidos. Por seu turno, um
homem com três pernas e três pés muito grandes não consegue multiplicar
o tempo, por mais rápidos que sejam os seus cálculos mentais. É a lei da
rotatividade dos corpos aliada às fezes escuras de um cão igual ao de Pavlov,
mas cego.
Tudo isto, é claro, cria muitas turbulências tanto na terra de muchas cosas
como numa província de quelque chose. Atentemos: se o homem abre uma
ventana, fecha-se uma janela, se o mesmo homem transita na carretera,
desvia-se do seu caminho. É então obrigado, por perro + pêndulo, a
procurar uma terceira língua e eis que inventa o catalão. Ainda não regulou
a ideia e já só sonha com palavras novas, órfão das terrenas.
Da turbulência nasce o novo, regista o sábio em caracteres esconsos,
sem papa para línguas. Há ainda, como é justo assinalar, uma fortíssima
possibilidade de a história das coisas não ser exactamente assim.
Exemplificando: quando o homem das nuvens aterra a grande velocidade, o
tempo não se altera mas muitas das suas crenças ficam retidas na aterragem.
Já em solo, o homem ladra e volta para trás, não tanto por já não saber quem
é, mas por ter esquecido a língua que fala.




                                                                                10
não dou

é claro que isso é um homem e é óbvio que serve para alguma coisa. é isso
que me dizem: ela está pesada, ainda por cima, e não há estrutura óssea
que a aguente. é isso: a vida, uma vida de comboio, a brincar às viagens, às
distâncias e ao silêncio dos percursos.

é claro que um homem se arrisca a morrer num comboio, não conhece os
obstáculos, não sabe a que velocidade segue a carruagem nem o local exacto
onde está, move-se a uma velocidade impossível para qualquer geógrafo. é:
o homem que nunca está no mesmo local não está em local algum. sei que
finjo. este homem não me interessa particularmente, uso-o para ignorar os
meus próprios medos.

é claro que é um homem e é óbvio que os meus sintomas, hoje, crescem
em movimento. é isso que lhe dizem: homem, esgotas-te no teu nome de
miragem – foges-te. é isso: quando o amor nos esgana, não há limite para a
nossa fúria.

o homem adormece na carruagem como um animal morto. é: por que
choras tu, pirilampo, se foste condenado à luz. é claro que serve para alguma
coisa, inútil seria negá-lo. é isso que me diz: fazes-me sentir uma flor, fazes-
me sentir uma vassoura ou uma flor com espinhos atravessados na garganta.
sentes-me? sinto o meu corpo como um país estrangeiro, diz o homem com
uma guerra em marcha, dentro e fora. é isso que eu digo: todos os militares
escondem a sua meninice dentro da cabeça de homem forte.

é isso: há homens que servem para qualquer coisa. é: e outros para os
destruir.




                                                                                   11
Nuvens pesadas

Nuvens pesadas suspensas sobre muitos homens não os deixam pensar.
Ainda que ergam a cabeça, estão isentos de ideias, de contrições e de amor.

É uma fórmula: um homem dedica o seu dia à escuridão do gesto, submete
o corpo aos instintos mais pesados, toma banho de pijama, não olha pela
janela nem atravessa pontes.
E o resultado: um dia de chumbo em excesso para o somatório de cicatrizes,
um nível abaixo do penteado.

A liberdade é, nestes casos, o maior desperdício de um homem-livro, uma
tirania difícil de inalar.

Dão-lhe a poesia e ele escreve tempestades.




                                                                              12
SEMEAR, RESISTIR À CIDADE, COLHER.




Um rosto

Um rosto de cidades fechadas,
muitos animais e desenhos
cómicos do tempo, para trás.
A nuvem de chaves atravessa
o oceano, andorinhas fintam ratoeiras,
muitos homens batem à porta. Quem é?
A sistemática indiferença de uma pedra
vai a todas as cidades, consciente, movimenta-se
na suspensão dos homens, promete-lhes algum
repouso e pouca eternidade.




Dar a volta

Dar a volta ao tempo, isto:
26 de Abril, uma mentira, isto,
almoço com um galego, uma aula,
sala de cinema sem ar condicionado,
escura, e eu sei lá se isto é verdade.
Uma indisposição, uma avenida muito
bem iluminada e vai tudo por água abaixo,
eu sei lá.




                                                   13
O rio

O rio secou, ou
água moeu, eu
agora a nadar, ar
sujo e profano, ano
bissexto como a lente, ente
querido que não sou, ou
que ainda vai nascer, ser
uma sombra sequer, quer
fotografar-me como sou, ou
aquele que já temeu, eu.




Bemposta

Bemposta, a vida, repousa em terra, uma vida só.
A manhã nas praças: a Graça é Gracinha, o Príncipe é Real
e o Moniz é bastardo, há fruta senhores, há jackpot.
E dentro de um poço o grito de poeta:
mimosa serva de maria,
religiosa de olhos fechados!

Maré vaza, até ver, um sofá e um pombo de espelhos.

Bem-idas, as sementes de África, um continente só.
A tarde nas avenidas: a Liberdade é liberdadezinha,
o Marquês é do Pombal e o Defensor é de Chaves,
há poços por abrir fregueses, há maquinaria da boa.

Na hora do banquete, a viagem e a saúde:
a via do sentido completo, onde ainda é proibido fumar.




                                                            14
Mingo

O que trama isto tudo é que não consigo pensar,
devo muito à inteligência e sou um poço de cansaço.
Nesse capítulo, nada de novo: muita gente
a fazer barulho, um enorme declive
e todos cá em baixo sem forças para subir.

Depois é a grande espera, o silêncio dos que duvidam,
não sei se durma não sei se grite,
e uma solidão maior que a do cão estrangeiro.

Domingo: mulheres que tropeçam no asfalto
porque não souberam esperar.
Domingo: muitas casas mudas, muitas ruas mudas.
Domingo: não sei quem são os que me olham.
Domingo: amanhã será por mim, sossega.

O que dá cabo disto tudo é não saber para onde ir a seguir,
por muito que suba,
ainda que fale alemão.

Aconcheguemo-nos, conhecidos e desconhecidos, cabemos todos
e viagem não esmaga.

Subamos enquanto os homens que gritam
ameaçam com pássaros
os homens que dormem.
Subamos o domingo: a escadaria dos que ficam no fundo.




                                                              15
Lisanov.

Eis a sinfonia dos distraídos.
Antes um bairro que um poema
mas abrir as portas a quem?

Há uma maneira de ver isto:
um dia, qualquer um, sair de casa
e nunca mais ser encontrado.
ilusionismo ou fogo posto na cabeça
- uma questão de memória.

-uma questão de sonho.
Se vês uma multidão em harmonia e caminhas em sentido oposto, não é a tua
multidão.
Se, mesmo fintando a multidão, desapareces, então a multidão venceu-te.
E não acordas.

Eis a última sintonia dos distraídos.
Antes a morte misteriosa que um equívoco neutro.




                                                                            16
Intensamente

Intensamente sem campo grande
de papoila, o homem-caule reluz.
Fala sozinho para a seiva, querem
saber a sua opinião, o que pensas disto,
o que achas daquilo, o homem
nem sabe o que é uma pergunta
quanto mais espalhar sementes de resposta.
CH2 serve para transformar a macedónia em
zinco, responde-lhes intensamente, sem
campo pequeno de tulipa.

Na noite passada nem dormiu, a contas com tantas preocupações
científicas. Mas esta manhã, a cada hora, plantou mais flores.




                                                                 17
SEMEAR, RESISTIR, COLHER A PALAVRA.




Quarto crescente

Tantos cavalos, tantos Camões, não é?
um homem é um poema que passa a correr
mas há-de voltar, não é?
a memória curta de um gladiador, dizes tu.
quatro pernas robustas: o poema.
o cavalo que corre na passada
e o homem que não o alcança.
o poema: dança.




Semear

Semear, gota a gota, os filhos
da palavra, os únicos que
sentem, sílaba a sílaba, a
sua forma, os significados
primordiais do sentido
e uma inaceitável estrutura
de conforto. Semear, página
a página, todas as faces do mundo,
uma a uma, reconvertidas. E depois
colher.




                                             18
Resistir

Resistir aos papéis de todas as
coisas: livros, cheques, recibos
de chapéus e da noite passada.
Aqui em espanto aguardo que
desapareça a sombra da
árvore, num sol que tudo
faz desvanecer.

Viajar até um país infantil,
se me apetecer, embora
alguns movimentos não me digam
muito.




Gosto

Gosto de asfixiar páginas
com palavras, ainda que
seja apenas isso, sobretudo
quando é apenas isso: um
homem, uma página, palavras.
Gosto de as escrever como
se fossem minhas ainda que
não tenham destino, lê-las
uma segunda vez, certificar-me
que a página fica totalmente asfixiada
e, no conforto da asfixia, e deixar
assim: a página do homem fica bem assim.




                                           19
Tanta

Tanta literatura há-de ter pastor,
méeeé, no verdete das pontes há
um rio que nasce, sujo, para envenenar
ervas daninhas, méeé,
e um jorro de velocidade apressado,
a caminho de lhe tratar do pêlo,
méeeé, e nisto: os autores de cristal, vacas sagradas,
homens cavernosos, vacas magras, abandonam
as suas criaturas num descampado de vontades,
múuuú.




A história

A história da imaginação por
pontos um com carícias pode
afundar-se um navio dois nas
águas internacionais impera
o ilegal três quem cuida de
ti se não és de ninguém
quatro futurismo religioso
num gato cheio de sinos e
pêlos cinco é a liberdade e
esta arma e a sua morte seis
um poema cegou-me para
sempre sete mas nem o vi.




                                                         20
Visão

Visão de uma palavra só
e todas as janelas partidas,
cresce dentro de casa
um cavalo mudo, vidros
envidraçados,
janelas que ninguém vê
na solidão de uma palavra só.
Partiste quando era ainda
muito cedo para perder,
mas o passado não tem olhos,
vibra no interior do pensamento.
Nunca-foste-sempre.




No céu

No céu uma passarola fora de tempo,
Baltasar a desafiar a história da ficção
com sete-sóis em cada mão.
Na terra todos os homens fechados,
dois olhos de fome que os vêem por dentro,
sete vezes sete luas, sete vezes catorze poços escuros.
Apagou-se a luz lúcida, perdeu-se tacto no reino dos cegos.
Morreu, sem intermitências em vida, um nome de todos
com a sensibilidade à solta, à boleia de um cravo.
E estas palavras, um grito.




                                                              21
NOTA DO AUTOR




A vida
A vida sobe, pá, a vida sabe.

Bater palmas, sacudir as pernas com as mãos, compreender a agonia de uma
gaivota de inverno, afastar qualquer responsabilidade sobre os destinos do
homem, da cidade ou da palavra.
Textos assim, como gaivotas enjauladas, escritos nas correrias do metro,
no ócio do comboio, no aperto do autocarro ou na agonia alheia do avião.
O ano dois zero um zero registado a pulso, entre esperas e chegadas, sem
critério, conceito, edição ou revisão. Essencialmente é isso o que há para
oferecer. E não há que hesitar: um homem fica tão pesado que deve sacudir
as suas palavras, erguer a cabeça, e continuar a caminhar.


Sílvio Mendes, 30 de Dezembro de 2010




                                                                             22
Já em solo, o homem ladra e volta para trás,
não tanto por já não saber quem é,
mas por ter esquecido a língua que fala.

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Semear, Resistir, Colher.

  • 3. Índice Página 3 - Semear o homem, resistir, colher. Páginas 4-12 Semear, resistir à cidade, colher. Páginas 11-17 Semear, resistir, colher a palavra. Páginas 18-21 - Nota do autor. Página 22 Autor Sílvio Mendes Paginação Pedro Falcão Data de publicação Janeiro de 2011 Tiragem PDF de partilha infinita - www.idiotequesw.blogspot.com www.pedrofalcao.net 3
  • 4. SEMEAR O HOMEM, RESISTIR, COLHER. Quis Quis impressionar, tanto pela forma como no modo de fazer a coisa impressionante. Uma certa geometria hesitante, uma doença que avança de olhos fechados e o homem – impressionado – à espera dela. Quis ser forte como a estátua de ferro, alta, larga, feroz, imperfeita, a ver passar os carros e a gente. Quis chorar já perto do fim mas o rectângulo acabou-se e ficou demasiado tarde. No jardim No jardim de Pires os homens são como dias claros, maestros, sem custos no acordar. É na página um, caderno de economia, que os homens se fazem número e começam a ganhar corpo – homens de muitos dígitos por cabeça, vidas de gráficos alinhados pelo rugido de um comboio, alguns segredos, uma ponte: a bolsa abriu em queda e muitos homens juntos desnudam instrumentos, preparam armadilhas para a próxima sinfonia, músicos sem dó, uma forma de corpo a nascer na sombra de um papagaio amarelo. Repetição! Atenção! «juntos… juntos… juntos… sem custos… juntos!», alguns segredos, uma ponte, um intenso cheiro a cão. «sumptuosa soma de lucros», lê-se no caderno. E o corpo do novo homem que nasce. Morto. 4
  • 5. Isto Isto é o passado. A culpa de um homem, em caso de dúvida, começa aqui. Quando se sente só, se acha perdido, é no passado que se deita, aqui, onde a mãe o viu crescer com o nó de mãe no peito, onde disse o primeiro palavrão com o pânico da desordem, onde se engasgou para sempre cravando a estaca do seu esconderijo definitivo. Chove Chove extraordinariamente, ris extraordinariamente, cantas extraordinariamente e depois dormes, embalas extraordinários sonhos, sonhas enquanto o mundo chora. Extraordinariamente acordados, os homens, de manhã, saltam à corda nas esperas e libertam-se da música que lhes prende os músculos na chuva. Cantam. 5
  • 6. Quem é? Quem é? Salta-lhe uma luz ao olho, já soube todas as respostas num tempo de ócio e pensamento. Agora pergunta, Quem és?, atira-se à dúvida, bate em todas as portas. E chove. Há quem faça perguntas e há quem derrame lume. Quem são, tantos, os que ardem? Por que nos fecham na cidade se somos homens e os homens não voam? Como alcançar Como alcançar um amigo que nasce, se ainda tem vida e tantas dúvidas sobre isto-tudo. Abraçá-lo com que pretexto? Quantas vezes é amigo o meu amigo, quantas dúvidas e quanta vontade de as dissolver, curioso faroleiro à procura de luz e uma bata branca: você devia ter tido mais cuidado com a vida que tanto lhe estende um braço de ternura como o consome de seguida. Como alcançar toda a beleza antes que ela nos extinga. 6
  • 7. Príncipe nocturno Príncipe nocturno, é tua essa navalha de espelhos e bruma? Vendes pão com sabor inglês e uma serra universal para quebrar e comer todas as palavras. Chamas poesia à fome após o primeiro trago de uísque e amor a todas as tuas insónias depois do último vómito. Voltas para o palácio sem penas e com a noite já esventrada. Sonhos caem com o amanhecer, desejado mas não aparecido, foste fome mas ainda és amor. Astros em elevação Astros em elevação. Alguns graus muito-muito-longe, duas feras reanimam a nuvem de fogo: uma guerra de luz inventa novos poços de energia, tudo é seco como a última máscara da civilização. Para onde vão o equilíbrio, as espécies por catalogar, os insondáveis livros de arte e as sondas arcaicas de três dedos azuis? Há uma guitarra perdida, a anos-luz-de-silêncio de qualquer espaço: é um poema morto, cavernoso, secular, religioso. Para onde vamos, nós que nada sabemos? Acidentes de sabão, serões bíblicos, vidas de mármore ancoradas na distância. Astros, meu amor, pessoas de carne que matam antes de morrer e morrem antes de voltar. Astros secos, desenhados no movimento. Hoje, uma espécie animal pensou e saiu a pensar por todas as galáxias, cai a máscara, soma vermelha contra a gravidade: um poema, dois homens velhos sem tempo para festejar o fim do conflito, ocupados com cores interiores. Chove no planeta um-quatro-seis-seis. É um prazer voluntário, a memória já não é nada e a guitarra afasta-se a cada nota sangrenta. Fria, gelada… sou um homem-astro, equilibro em mim todos os esquecimentos. Sonho. Páro para sonhar. Lembram-se da Lua na Terra? Esqueçam a lua da terra, meu coração está pronto para fugir, é uma válvula tremenda a caçar, uma fantasia na direcção da morte, em sentido contrário. Eu sou um homem-luz e levo um casaco com bolsos para as estrelas, para os pensamentos, para a tristeza dos anos consecutivos. Antes da guerra, o suicídio falhado, mais galáxia menos galáxia. Sou uma conquista adiada, morro lentamente. Os segredos que guardo nos meus botões servem para viver – mato-me amanhã, no Brasil do passado, muito presente em mim, ainda filho do amanhã. Eu também sinto, eu também estico as pernas para dançar, atravesso continentes, durmo pouco, namoro o chão. Cruzo as pernas e chove, cruzo as pernas e grito. Bebo para gritar: o poema, o silêncio. 7
  • 8. Menos café Menos café, menos adoçante, aquela não sei quê foi em união de facto, raiva nos olhos, comove-te ao menos por poderes dizê-lo, ele apareceu uma vez nu, só deus sabe em que prantos, e perguntou, tens arrepios, queimam-te o corpo? Onde Onde vais tu crescer, terra molhada? Teus ventres ainda são de húmus? Sigam os passos destas mulheres: atravessam portas mágicas, passagens proibidas, respiram com dificuldade e adormecem com a cabeça dentro de um livro. Muitas portas e poucas saídas – eis, sem reservas, o futuro. 8
  • 9. Sempre Sempre fui músico, é sabido, outros tempos de outras artes: muito uísque para desfigurar as formas, muita visão periférica, por vezes os olhos trocados. Até partir um copo tem uma certa arte, é preciso conhecer com exactidão as leis da física para poder dizer: eu conheço com exactidão as leis da física e não me parece que este copo vá cair assim. Repetir isto mil vezes até o copo transbordar de convicção: atirá-lo ao ar e admirar a sua milagrosa suspensão, à altura do braço, a desintegrar-se com o passar dos séculos, solidário com o tempo, as tempestades e todos os fenómenos de erosão do planeta. Só bebo se me apetecer, não tenho qualquer problema com a bebida, nunca me tratou mal, nunca a denegri, raramente discutimos, não preciso de copos para nada. Uma casa feita de copos, um copo como castiçal de cerimónias religiosas, oferecer copos vazios aos amigos, ideias meio cheias e meio vazias de ridículo. Bebo pela garrafa e, se for caso disso, por um sapato. Os copos são outra história: arte, hipnose, suspensão no tempo, espaço e ciência. E, digamos, dedico a minha vida a definir-lhes prioridades, limites e propriedades. Não sou alcoólico, sou músico profissional. O homem cansado O homem cansado anula terra e mar e procura-se nas nuvens. Por força desses homens é que se inventou, primeiro, a palavra e, depois, o avião. Porém, o homem cansado não levanta voo sem um último suspiro. E é nesse momento que se fragmenta em dúvidas urgentes. O homem cansado pensa: e se chove? Pensa: e se cego a grande altitude, como aterrar? Pensa: que horas são? O homem cansado cansa-se tanto enquanto pensa que se propões a trocar todas as nuvens do céu por um minuto no fundo do mar, desde que o avião não caia. 9
  • 10. Na terra Na terra das muchas cosas não há muitas coisas com que se preocupar. O dia é curto e as distâncias tratam de o encurtar. Tome-se por exemplo esta não remota possibilidade: um homem que se esquece dos pés em casa é um manco para trás e para a frente e quanto mais devagar esse homem caminha mais depressa o tempo passa. A isto chama-se a elasticidade dos corpos fundida com o pêndulo de Foucault, dizem os rápidos. Por seu turno, um homem com três pernas e três pés muito grandes não consegue multiplicar o tempo, por mais rápidos que sejam os seus cálculos mentais. É a lei da rotatividade dos corpos aliada às fezes escuras de um cão igual ao de Pavlov, mas cego. Tudo isto, é claro, cria muitas turbulências tanto na terra de muchas cosas como numa província de quelque chose. Atentemos: se o homem abre uma ventana, fecha-se uma janela, se o mesmo homem transita na carretera, desvia-se do seu caminho. É então obrigado, por perro + pêndulo, a procurar uma terceira língua e eis que inventa o catalão. Ainda não regulou a ideia e já só sonha com palavras novas, órfão das terrenas. Da turbulência nasce o novo, regista o sábio em caracteres esconsos, sem papa para línguas. Há ainda, como é justo assinalar, uma fortíssima possibilidade de a história das coisas não ser exactamente assim. Exemplificando: quando o homem das nuvens aterra a grande velocidade, o tempo não se altera mas muitas das suas crenças ficam retidas na aterragem. Já em solo, o homem ladra e volta para trás, não tanto por já não saber quem é, mas por ter esquecido a língua que fala. 10
  • 11. não dou é claro que isso é um homem e é óbvio que serve para alguma coisa. é isso que me dizem: ela está pesada, ainda por cima, e não há estrutura óssea que a aguente. é isso: a vida, uma vida de comboio, a brincar às viagens, às distâncias e ao silêncio dos percursos. é claro que um homem se arrisca a morrer num comboio, não conhece os obstáculos, não sabe a que velocidade segue a carruagem nem o local exacto onde está, move-se a uma velocidade impossível para qualquer geógrafo. é: o homem que nunca está no mesmo local não está em local algum. sei que finjo. este homem não me interessa particularmente, uso-o para ignorar os meus próprios medos. é claro que é um homem e é óbvio que os meus sintomas, hoje, crescem em movimento. é isso que lhe dizem: homem, esgotas-te no teu nome de miragem – foges-te. é isso: quando o amor nos esgana, não há limite para a nossa fúria. o homem adormece na carruagem como um animal morto. é: por que choras tu, pirilampo, se foste condenado à luz. é claro que serve para alguma coisa, inútil seria negá-lo. é isso que me diz: fazes-me sentir uma flor, fazes- me sentir uma vassoura ou uma flor com espinhos atravessados na garganta. sentes-me? sinto o meu corpo como um país estrangeiro, diz o homem com uma guerra em marcha, dentro e fora. é isso que eu digo: todos os militares escondem a sua meninice dentro da cabeça de homem forte. é isso: há homens que servem para qualquer coisa. é: e outros para os destruir. 11
  • 12. Nuvens pesadas Nuvens pesadas suspensas sobre muitos homens não os deixam pensar. Ainda que ergam a cabeça, estão isentos de ideias, de contrições e de amor. É uma fórmula: um homem dedica o seu dia à escuridão do gesto, submete o corpo aos instintos mais pesados, toma banho de pijama, não olha pela janela nem atravessa pontes. E o resultado: um dia de chumbo em excesso para o somatório de cicatrizes, um nível abaixo do penteado. A liberdade é, nestes casos, o maior desperdício de um homem-livro, uma tirania difícil de inalar. Dão-lhe a poesia e ele escreve tempestades. 12
  • 13. SEMEAR, RESISTIR À CIDADE, COLHER. Um rosto Um rosto de cidades fechadas, muitos animais e desenhos cómicos do tempo, para trás. A nuvem de chaves atravessa o oceano, andorinhas fintam ratoeiras, muitos homens batem à porta. Quem é? A sistemática indiferença de uma pedra vai a todas as cidades, consciente, movimenta-se na suspensão dos homens, promete-lhes algum repouso e pouca eternidade. Dar a volta Dar a volta ao tempo, isto: 26 de Abril, uma mentira, isto, almoço com um galego, uma aula, sala de cinema sem ar condicionado, escura, e eu sei lá se isto é verdade. Uma indisposição, uma avenida muito bem iluminada e vai tudo por água abaixo, eu sei lá. 13
  • 14. O rio O rio secou, ou água moeu, eu agora a nadar, ar sujo e profano, ano bissexto como a lente, ente querido que não sou, ou que ainda vai nascer, ser uma sombra sequer, quer fotografar-me como sou, ou aquele que já temeu, eu. Bemposta Bemposta, a vida, repousa em terra, uma vida só. A manhã nas praças: a Graça é Gracinha, o Príncipe é Real e o Moniz é bastardo, há fruta senhores, há jackpot. E dentro de um poço o grito de poeta: mimosa serva de maria, religiosa de olhos fechados! Maré vaza, até ver, um sofá e um pombo de espelhos. Bem-idas, as sementes de África, um continente só. A tarde nas avenidas: a Liberdade é liberdadezinha, o Marquês é do Pombal e o Defensor é de Chaves, há poços por abrir fregueses, há maquinaria da boa. Na hora do banquete, a viagem e a saúde: a via do sentido completo, onde ainda é proibido fumar. 14
  • 15. Mingo O que trama isto tudo é que não consigo pensar, devo muito à inteligência e sou um poço de cansaço. Nesse capítulo, nada de novo: muita gente a fazer barulho, um enorme declive e todos cá em baixo sem forças para subir. Depois é a grande espera, o silêncio dos que duvidam, não sei se durma não sei se grite, e uma solidão maior que a do cão estrangeiro. Domingo: mulheres que tropeçam no asfalto porque não souberam esperar. Domingo: muitas casas mudas, muitas ruas mudas. Domingo: não sei quem são os que me olham. Domingo: amanhã será por mim, sossega. O que dá cabo disto tudo é não saber para onde ir a seguir, por muito que suba, ainda que fale alemão. Aconcheguemo-nos, conhecidos e desconhecidos, cabemos todos e viagem não esmaga. Subamos enquanto os homens que gritam ameaçam com pássaros os homens que dormem. Subamos o domingo: a escadaria dos que ficam no fundo. 15
  • 16. Lisanov. Eis a sinfonia dos distraídos. Antes um bairro que um poema mas abrir as portas a quem? Há uma maneira de ver isto: um dia, qualquer um, sair de casa e nunca mais ser encontrado. ilusionismo ou fogo posto na cabeça - uma questão de memória. -uma questão de sonho. Se vês uma multidão em harmonia e caminhas em sentido oposto, não é a tua multidão. Se, mesmo fintando a multidão, desapareces, então a multidão venceu-te. E não acordas. Eis a última sintonia dos distraídos. Antes a morte misteriosa que um equívoco neutro. 16
  • 17. Intensamente Intensamente sem campo grande de papoila, o homem-caule reluz. Fala sozinho para a seiva, querem saber a sua opinião, o que pensas disto, o que achas daquilo, o homem nem sabe o que é uma pergunta quanto mais espalhar sementes de resposta. CH2 serve para transformar a macedónia em zinco, responde-lhes intensamente, sem campo pequeno de tulipa. Na noite passada nem dormiu, a contas com tantas preocupações científicas. Mas esta manhã, a cada hora, plantou mais flores. 17
  • 18. SEMEAR, RESISTIR, COLHER A PALAVRA. Quarto crescente Tantos cavalos, tantos Camões, não é? um homem é um poema que passa a correr mas há-de voltar, não é? a memória curta de um gladiador, dizes tu. quatro pernas robustas: o poema. o cavalo que corre na passada e o homem que não o alcança. o poema: dança. Semear Semear, gota a gota, os filhos da palavra, os únicos que sentem, sílaba a sílaba, a sua forma, os significados primordiais do sentido e uma inaceitável estrutura de conforto. Semear, página a página, todas as faces do mundo, uma a uma, reconvertidas. E depois colher. 18
  • 19. Resistir Resistir aos papéis de todas as coisas: livros, cheques, recibos de chapéus e da noite passada. Aqui em espanto aguardo que desapareça a sombra da árvore, num sol que tudo faz desvanecer. Viajar até um país infantil, se me apetecer, embora alguns movimentos não me digam muito. Gosto Gosto de asfixiar páginas com palavras, ainda que seja apenas isso, sobretudo quando é apenas isso: um homem, uma página, palavras. Gosto de as escrever como se fossem minhas ainda que não tenham destino, lê-las uma segunda vez, certificar-me que a página fica totalmente asfixiada e, no conforto da asfixia, e deixar assim: a página do homem fica bem assim. 19
  • 20. Tanta Tanta literatura há-de ter pastor, méeeé, no verdete das pontes há um rio que nasce, sujo, para envenenar ervas daninhas, méeé, e um jorro de velocidade apressado, a caminho de lhe tratar do pêlo, méeeé, e nisto: os autores de cristal, vacas sagradas, homens cavernosos, vacas magras, abandonam as suas criaturas num descampado de vontades, múuuú. A história A história da imaginação por pontos um com carícias pode afundar-se um navio dois nas águas internacionais impera o ilegal três quem cuida de ti se não és de ninguém quatro futurismo religioso num gato cheio de sinos e pêlos cinco é a liberdade e esta arma e a sua morte seis um poema cegou-me para sempre sete mas nem o vi. 20
  • 21. Visão Visão de uma palavra só e todas as janelas partidas, cresce dentro de casa um cavalo mudo, vidros envidraçados, janelas que ninguém vê na solidão de uma palavra só. Partiste quando era ainda muito cedo para perder, mas o passado não tem olhos, vibra no interior do pensamento. Nunca-foste-sempre. No céu No céu uma passarola fora de tempo, Baltasar a desafiar a história da ficção com sete-sóis em cada mão. Na terra todos os homens fechados, dois olhos de fome que os vêem por dentro, sete vezes sete luas, sete vezes catorze poços escuros. Apagou-se a luz lúcida, perdeu-se tacto no reino dos cegos. Morreu, sem intermitências em vida, um nome de todos com a sensibilidade à solta, à boleia de um cravo. E estas palavras, um grito. 21
  • 22. NOTA DO AUTOR A vida A vida sobe, pá, a vida sabe. Bater palmas, sacudir as pernas com as mãos, compreender a agonia de uma gaivota de inverno, afastar qualquer responsabilidade sobre os destinos do homem, da cidade ou da palavra. Textos assim, como gaivotas enjauladas, escritos nas correrias do metro, no ócio do comboio, no aperto do autocarro ou na agonia alheia do avião. O ano dois zero um zero registado a pulso, entre esperas e chegadas, sem critério, conceito, edição ou revisão. Essencialmente é isso o que há para oferecer. E não há que hesitar: um homem fica tão pesado que deve sacudir as suas palavras, erguer a cabeça, e continuar a caminhar. Sílvio Mendes, 30 de Dezembro de 2010 22
  • 23. Já em solo, o homem ladra e volta para trás, não tanto por já não saber quem é, mas por ter esquecido a língua que fala.