2. Juízes é um livro bem direto. Sua teologia espelha as
advertências de Deuteronômio 28.15-68, pois o povo
comete idolatria, sofre as consequências do seu pecado,
arre- pende-se e clama a Yahweh por ajuda, recebe auxílio
e então volta-se de novo para a idolatria (v. Jz 2.6—3.6). A
idolatria envolvida soa parecida com a de Êxodo 32—34 e
Números 25, como também soa parecida a resposta do
Senhor à transgressão. Ademais, Israel tem uma sequência
de líderes que aparentemente ocupam o lugar de Moisés e
Josué, mas que não alcançam os mesmos padrões
estabelecidos por aqueles dois homens ou por
Deuteronômio.
3. O livro descreve o que acontece quando um povo que estabeleceu
uma aliança com Deus abandona essa aliança e faz o que cada
indivíduo ou tribo bem entende em vez de seguir a palavra revelada
do Criador de todas as terras e povos (v. 17.6; 21.25). O livro assim
o faz mediante descrição do que parece ser um ciclo de pecado,
arrependimento, livramento e pecado repetido, mas que na verdade
é um declínio na direção de um abismo moral cada vez mais
profundo e que ameaça a existência de Israel na terra.
Esse declínio desenrola-se em três etapas em Juízes. Primeiro, o
autor antecipa o declínio na introdução do livro (1.1—3.6). Relatam-
se mais uma vez o sucesso militar inicial de Israel e fracassos
posteriores como lembretes de que Israel chegou a Canaã por
consequência da obra de Deus a seu favor (1.1—2.5). Seguindo-se a
essa introdução histórica, uma introdução teológica declara que a
idolatria levou Israel a abandonar a aliança. Por isso o Senhor decidiu
“testar” o povo, ao permitir que os inimigos do povo permaneçam
na terra (2.6—3.6). Nessa seção Yahweh age como o Deus que
testa o povo, um papel não desempenhado com tanto vigor desde
Gênesis 22.
4. Segundo, o declínio é expresso no trecho mais longo do
livro (3.7— 16.31). Aqui uma série de doze juizes de maior e
menor importância e com caráter variável conduz Israel à
liberdade de seus opressores. Esses líderes vão diminuindo
em conteúdo teológico até que o último demonstra ser
alguém de apetite sexual, intelectual e físico tanto quanto é
um homem de Deus. Nesses capítulos o Senhor chama os
juizes como resposta aos clamores de Israel por ajuda,
contudo assim mesmo envia os opressores para castigar a
idolatria de Israel. Nessas passagens Yahweh é o Deus que
responde. O Senhor responde devido ao seu senso de justiça
e às decisões de vida do povo escolhido. Em todos os
momentos Yahweh é fiel à aliança, mas às vezes Israel não
desfruta essa fidelidade.
5. Terceiro, a depravação total de uma nação onde cada um faz o que
cada um bem entende vem à tona quando a descida chega ao fim
(17.1— 21.25). Atos terríveis acontecem, equiparáveis aos mais
abjetos atos encontrados em qualquer texto da literatura antiga. A
essa altura Yahweh entrega o povo à própria impiedade. Agora a
nação castiga a si mesma. Agora o problema do pecado na nação
santa parece ser tão real quanto no mundo em geral. Ainda muitos
outros escritos canônicos serão necessários para aliviar esses
fardos teológicos.
Em Juizes nenhuma outra questão é mais importante do que o
compromisso de Israel com o monoteísmo pactuai. Qualquer
desvio desse princípio resulta em catástrofe para a nação. Cada vez
que o autor declara que Israel desagrada a Deus, é a idolatria que
provoca a disjunção relacional. Outros tipos de pecado podem ser
perdoados quando indivíduos voltam- se para o Deus perdoador,
mas os adoradores de ídolos separam-se da realidade teológica e
de um relacionamento com o Deus vivo. O juízo é a única
conseqüência possível.
6. Exatamente o que é um juiz é algo que tem provocado muito
debate no meio acadêmico. Vista fora de seu contexto, a
palavra, julgar possui implicações judiciais, e pelo menos um
juiz enquadra-se nessa função (v. 4.4). G. E Moore afirma que
no contexto geral do livro o verbo significa “defender”,
“livrar”, “vingar” e “castigar”, bem como “governar”.9 J.
Alberto Soggin diz que os juizes principais, ou os que
ocupam maior espaço nos relatos, possuem uma função
militar.10 Em outras palavras, o trabalho desses indivíduos
deve assemelhar-se ao de Josué, um líder militar e religioso,
embora num contexto diferente. Israel recusa-se a ouvir os
juizes enviados por Deus (2.17) ou somente segue Yahweh
enquanto juizes excepcionalmente fortes estão vivos (2.19).
7. Apesar desse momento de alívio, o compromisso pactuai da nação
não se torna duradouro. De forma igualmente trágica, mesmo juizes
capacitados pelo Espírito, como é o caso de Jefté (11.29) e Sansão
(13.25; 14.6,9; 15.14,19), são pessoalmente incapazes de ser fiéis à
aliança. Numa carta diplomática Jefté fala favoravelmente do deus de
Edom (v. 11.24), um gesto pragmático que revela que ele é alguém
que praticamente não está inclinado a remover os não-deuses
denunciados por Moisés.18 Pior ainda, ele contamina a adoração de
Yahweh. Ele faz um voto de, caso Deus lhe conceda vitória na guerra,
sacrificar, quando estiver de volta, o que quer que saia de sua casa
(11.30,31), sem dúvida esperando que algum animal saísse da casa de
um único cômodo onde muito provavelmente morava Em vez disso,
sua filha sai para encontrar-se com ele, e, violando leis acerca da
redenção de primogênitos (v. Nm 18.16; Lv27.1,2) e leis que proibiam
sacrifícios humanos (e.g., Lv 18.21), ele cumpre o voto. Esse sacrifício
também oferece um contraste gritante com os princípios implícitos
no livramento de Isaque em Gênesis 22. Na melhor das hipóteses,
Jefté é alguém que mistura a adoração de Yahweh com práticas
politeístas e não conhece os reais padrões divinos.20 Dessa forma ele
representa a condição espiritual do povo em geral.
8. Síntese canônica: o preço da depravação sexual
São raros os usos canônicos desses capítulos. Oséias 9.9 e
Oséias 10.9 referem-se às batalhas de Juizes 20 para advertir
ouvintes do século oitavo a.C. a evitar a depravação e a derrota
que aconteceram naqueles dias. A tentativa pelo populacho de
estuprar os homens em Juizes 19 relembra o episódio de
Gênesis 19.1-11. Charles Fox Burney assinala os vários paralelos
lingüísticos entre os dois textos,30 ao passo que Klein assinala
tanto as semelhanças quanto as diferenças entre os dois
relatos.31 Pelo menos é possível alegar que a terrível depravação
dos desejos do populacho chocam-se com as regras de conduta
sexual estabelecidas em Levítico 20.13 e Deuteronômio 22.23-
27. Paulo cita tais práticas sexuais como indicadores de que
pessoas de mente depravada foram “entregues” aos próprios
pecados por um Deus que tentou sem sucesso fazê-las viver de
acordo com a verdade revelada (Rm 1.26,27). Essa interpretação
do contexto social de Paulo equipara-se ao tom de Juizes, visto
que a sexualidade descontrolada caracteriza os dois contextos.
9. Em cada oportunidade o autor declara que essa idolatria faz
Yahweh enviar exércitos opressores ou entregar Israel aos
próprios pecados. Aqui o princípio de adorar um só e único
Deus é um tema centralizador tanto quanto, ou até mesmo
mais do que, na Lei. O monoteísmo será o critério teológico
para a interpretação do restante dos Profetas Anteriores.
10. Os juízes eram estadistas, homens e mulheres que Deus levantava para liderar o
povo a fim de livra-los das mãos dos opressores.