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Edição e revisão: Hélio Consolaro
Capa: Hugo Santos Rocha
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Contos vencedores 2013. -- 1. ed. -- Araçatuba, SP : Editora Somos, 2013.
	 Vários autores.
	 “26º Concurso de Contos Cidade de Araçatuba”.
	 ISBN: 978-85-60886-69-2
	
	 1. Contos brasileiros - Coletâneas.
13-09081 					 CDD-869.9308
Vários autores
Araçatuba, 2013
Contos
vencedores
2013
O livro
Prefácio
Emília Goulart*
O
concurso de Contos Cidade de Araçatuba em 2013 nos surpreendeu com
o grande número de participantes, mas não foi apenas o número. A quali-
dade também está chegando junto. Tive o privilégio de ler ótimos contos,
a certeza de que o concurso caminha para ocupar lugar de destaque no âmbito
internacional.
Sou veterana em concursos de contos, participo para vencer, mas, ganhar
nem sempre é possível. Há dois anos não participo deste, pois venho participando
de sua Comissão Julgadora, mas concorri em outros.
Bebi “Licor Beirão”, mas era dia de “A Borboleta Azul” fazer sua festa. Ado-
rei ver a “Mariposa” pousar ao lado “Da Joana. Só...”, ambas estavam no mesmo
“Navio”. “O Salto” para “A Terceira Conexão” me permitiu numa “Fotografia Antiga”
rever “O Chão Longínquo das Quimeras”. Era um “Santo Feriado”!
Sim, bebi desta fonte enriquecedora, ver no mesmo gênero de literatura,
estilos diferentes disputarem o primeiro lugar. Outro prazer que desfrutei nestas
leituras foi constatar de que os contos regionais têm condições de concorrer com
os internacionais e nacionais. Um bom conto é aquele bem apresentado, sem gor-
duras expostas, sua estrutura vai se adequar ao regulamento sem perder a estéti-
ca. Ótimo conto é aquele que vai além, prende a atenção do leitor, cria expectativas
e surpreende no final. Encontra-se tudo isso nos vencedores. Não apenas neste,
mas, em todos os concursos. Não é tão fácil ser classificado num concurso de con-
tos, porém vale ouro participar. Parabéns aos vencedores, parabéns aqueles que
receberam menção honrosa e parabéns a todos aqueles que participaram.
Já estamos na 26.ª edição do Concurso de Contos Cidade de Araçatuba,
desde 1985.Tomara que ele nunca saia das ações da Secretaria Municipal de Cul-
tura de Araçatuba-SP-Brasil. Por ele, muitos ganham visibilidade e consagração.
* Emília Goulart, escritora, contista, participante do concurso por várias vezes, atualmente
sendo membro da Comissão Julgadora, membro da Academia Araçatubense de Lertas e
da União Brasileira de Escritores.
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7
Sumário
Categoria regional
1.º lugar - O navio
Carlos Eduardo Marotta Peters - Araçatuba-SP................................................ 12
2.º lugar - MARIPOSA
Maria Luzia Villela - Araçatuba-SP................................................................... 18
3.º lugar - Joana, só ...
Regina Ruth Rincon Caires - Araçatuba-SP..................................................... 22
1.ª menção honrosa - Cachos de menina
Breno da Costa Alves - Penápolis-SP.............................................................. 29
2.ª menção honrosa - Coisas de Diário
Larissa Ruffato de Angelis - Araçatuba-SP....................................................... 32
3.ª menção honrosa - Conto de um amor sem limites
Marcelo Otávio de Souza - Birigui-SP.............................................................. 35
4.ª menção honrosa - Relógio de pêndulo
Pedro César Alves - Araçatuba-SP.................................................................. 40
5.ª menção honrosa - Tiros de pólvora na boca desarmada
Valdecir Roberto de Oliveira - Araçatuba-SP.................................................... 44
8
Categoria nacional
1.º lugar - A Borboleta Azul
Andreia Fernandes Soares Leite - Rio de Janeiro-RJ........................................ 46
2.º lugar - O Salto
André Silva Pomponet - Salvador-BA............................................................... 52
33.º lugar - A Terceira Desconexão
Hilário de Sousa Francelino - Cerqueira César – SP......................................... 56
1.ª menção honrosa - Sobre Velhos e Pombas
Marcelo Lilla - São Paulo-SP.......................................................................... 60
2.º menção honrosa - A margem oposta
Gilson Borges Corrêa - Rio Grande - RS.......................................................... 64
3.ª menção honrosa - Em fogo baixo
Ivane Laurete Perotti - Sete Lagoas-MG.......................................................... 69
4.ª menção honrosa - Hassan-i Sabbah
Arthur Cristóvão Prado - São Paulo-SP............................................................ 74
5.ª menção honrosa - Mistérios do Indizível
Valmir Luís Saldanha da Silva - Araraquara-SP................................................ 81
9
Categoria internacional (mundo lusófono)
1.º lugar - A fotografia antiga
Daniela Macário Resende - Vila Nova de Paiva - Portugal................................. 86
2.º lugar - O chão longínquo das quimeras
Rui Miguel Dias Carvalho - Alfornelos Amadora - Portugal................................ 95
3.º lugar - Santo Feriado
Marcella Rodrigues dos Reis - Queluz - Portugal............................................ 102
1.ª menção honrosa - Depois do escape
Antônio João Maduro Guerreiro - Peniche - Portugal...................................... 108
2.ª menção honrosa - Licor beirão
Teresa de Jesus Ferreira Teixeira - Vila Nova de Gaia - Portugal...................... 115
3.ª menção honrosa - O Anjo Purificador
Joaquim Bispo - Odivelas - Portugal............................................................................121
4.ª menção honrosa - Sombrinha Colorida
Solange Fischer Bernardino - Balingen - Alemanha........................................ 125
5.ª menção honrosa - Vista para o rio
Maria de Fátima Correia Santos - Lagos - Portugal ...................................... 128
10
Contos da comissão julgadora
O bilhete
Antonio Luceni............................................................................................. 134
O Cão e o chapéu
Emília Goulart.............................................................................................. 137
Dados sobre o concurso de 2013
Comissões julgadoras
Comissão A - Comissão B............................................................................ 142
Homenageado
CÉLIO PINHEIRO – “UM HOMEM ABSORVIDO PELAS LETRAS”........................ 143
11
Categoria
regional
12
O navio
Carlos Eduardo Marotta Peters – 1.º lugar – categoria regional – Araçatuba-SP
O
navio ancorou no porto às cinco da manhã. Seu apito agudo acordou a
cidade. O negrume da noite ainda era intenso. A chuva não dava trégua.
O vento frio sibilava por entre as ruelas estreitas, filhas de uma arquitetura
antiga que se mantinha de pé a duras penas e conseguia ainda estabelecer limites
para o fluxo intenso de homens dos novos tempos. E, no entanto, quão desertas
permaneciam no raiar do dia. A ausência de pessoas permitia aos caminhantes
noturnos observar o brilho da fraca luz dos lampiões refletir na pedra negra das
calçadas. As fachadas de pedra lavada pareciam túmulos grosseiros, cuja solidez
era vez por outra interrompida por portas e janelas de tamanhos e estilos variados,
colocados ali, como podia perceber qualquer observador atento, muito tempo de-
pois das construções terem sido erigidas.
Pouco a pouco, entregadores, padeiros, quitandeiras, carteiros, pedreiros,
engraxates, sapateiros, domésticas, andarilhos, policiais, taberneiros, médicos, ad-
vogados; toda a gente da cidade saiu da toca. O sol não estava no céu para recebê-
-los, nem o dia se fez belo, com aromas primaveris e pássaros em êxtase sobre as
árvores. O dia nasceu no prolongamento da noite; um irmão mais novo que imita
seu ídolo como uma sombra exígua.
Os passageiros do navio começaram a se preparar na noite anterior. Esta-
vam espalhados pelos hotéis vagabundos próximos do cais do porto, vigiados de
perto por policiais elegantemente trajados com uniformes negros. Eram policiais
diferentes. Não estavam ali para combater nenhum crime ou evitar tumultos à
beira da praia. Sua função era vigiar e propiciar um embarque eficiente no gigante
ancorado solitário no porto. Eu, por outro lado, pude escolher uma pensão distante,
apesar de ser também passageiro do navio. Acordara por volta das quatro da ma-
drugada, incomodado com o miado dos gatos do beco. Minha pequena mala ficou
pronta poucos minutos depois. Havia pouca coisa para levar. Havia muita coisa para
esquecer.
Na noite anterior, contatei uma dessas mulheres que fazem ponto nos ba-
res da orla. Eram raras nesses dias, e também caras. Sua profissão já quase se
13
extinguira e seu medo de ser flagrada fez o acordo demorar longos e preciosos
minutos para ser fechado. Armamos um grande esquema e ela conseguiu entrar
pela janela de meu quarto modesto. Era já uma mulher madura, experiente nessa
vida das ruas. Conservava ainda certo frescor no corpo, mas seu rosto carregava
marcas indeléveis de anos de incertezas e frustrações. Ela chegava a ser bela, mas
daquelas belezas tênues, que já parecem prontas para evanescer com um sopro
sutil. Vou carregar na memória a imagem de seu corpo nu diante da luz amarela
da lâmpada empoeirada e os gestos gentis e suaves que fez ao deitar-se na cama.
A pobre mulher deve ter se surpreendido também, mas com meu nervosismo e
cavalheirismo. Ela foi para mim uma espécie de prêmio antes da partida. Dei a ela
quase todo o meu dinheiro. Teria dado tudo, se não tivesse que pagar pelo quarto
e comer na manhã seguinte.
Após sair da pensão, pela manhã, caminhei pelas cercanias do porto por
um tempo. Dali observei a cidade que se projetava morro acima. Não era grande.
Era um amontoado escuro e ensebado de construções velhas e anacrônicas, que
permaneciam em pé não se sabe bem por que, enquanto as ruas se enchiam de
coisas que lembravam vários tempos. Aquilo parecia um amontoado de memórias
bêbadas, arranjadas de súbito para alguma festa, mistura intragável de cores, sa-
bores e formas. Carruagens elegantes e roupas francesas não combinavam com
aquele monstro antigo e cascudo. Mas estavam lá, pavoneados displicentemente
por quem pudesse pagar por eles. Eu também era antigo e anacrônico. Era um
filho da cidade, daqueles que nascem, crescem e morrem com ela. Não gostava
da agitação e das novidades da metrópole, mas era um não gostar arrependido,
preguiçoso, fruto da falta de vitalidade ou de educação adequada. Não gostava de
luzes incisivas que não deixavam espaço para sombras e nuances.
Naquela manhã cinzenta, a cidade pareceu excessiva para o número de ha-
bitantes. Com muita dificuldade eles ocupavam seus espaços. Pareciam os homens
dali pequenos diante das construções mais verticalizadas. O silêncio era solidário
com a insuficiência de homens. A cidade funcionava com murmúrios. Fazia anos
que a cacofonia local havia arrefecido. Sequer a feira semanal era capaz de desper-
tar um velho de sono leve. Cidade estranha, cidade tornada estranha.
Aquela caminhada foi minha despedida. O navio partiria em uma hora. Fu-
mei meu último cigarro em terra. A fumaça que saía dele era mais viva que aquele
céu enegrecido. Aquelas pequenas nuvens tóxicas lembravam-me que ainda esta-
va vivo.Tomei um café horrível no bar mais próximo. Folheei o jornal do dia sem in-
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teresse. Eram todos iguais esses jornais matutinos, assim como eram iguais quase
todos os dias.Tirei do bolso papéis velhos e inúteis (bilhetes de trem, anotações de
itinerários, uma carta mal lida de um parente distante...) e joguei no lixo.
Na escada de acesso para o navio todos estavam mudos. Chapéus, casacos
e guarda-chuvas disputavam espaço com uma civilidade fria e distante. O silêncio
só era maior na via de acesso. Poucas pessoas acenavam. Ninguém realmente se
despedia. Parei por um instante para fitar os rostos. Nenhuma esposa, nenhum
filho, nenhuma lágrima verdadeira ou falsa...
O navio partiu como chegou. Solitário e sorrateiro. Apitou como quem o faz
por pura obrigação. Seu casco avermelhado contrastava com a água escura do
mar. Então, uma multidão silenciosa se aproximou sorrateira do porto. Para os mais
atentos no interior do navio, o espetáculo era bizarro.A cidade parara. Quedara em
silêncio total diante da partida. Milhares de cabecinhas estáticas podiam ser vistas
nas janelas, nas varandas do alto da colina e na praia. Durante alguns minutos o
tempo deixou de existir. A cidade era só despedida, mas uma despedida seca, de
soslaio e vergonhosa. Até mesmo os animais pareciam ter emudecido ou sumido
dentro de si. Não havia gaivotas no ar, nem golfinhos na baía. Não vi cães naquele
dia, esses seres de alegria estúpida e constante. Aquele não era um dia para eles.
O sol não nasceu naquela curta viagem. Permaneceu ausente, escondido
atrás de nuvens grossas e ameaçadoras que pareciam querer desabar sobre o
mundo como um deus primordial. O vento não esquentou nas manhãs e as águas
do mar não se fizeram plácidas para os viajantes. Todos saíam pelo convés ao
amanhecer trajando roupas pesadas e escuras. Os homens com casacos, coletes e
sapatos lustrosos; as mulheres com vestidos longos, luvas, chapéus e sombrinhas.
Não houve conversas nos primeiros dias. Fumar, passear a esmo pelo navio, fitar o
horizonte ou simplesmente esperar o tempo passar eram as únicas atividades dos
viajantes. Eles mal se olhavam nos olhos. Nem sequer se cumprimentavam.
Permaneci sentado num canto do convés todo o tempo. Organizava pen-
samentos e contabilizava desventuras. Saía dali apenas para me alimentar com a
parca ração do refeitório ou descansar num dormitório que mal acomodava minha
pequena mala. Interessei-me, vez por outra, por uma daquelas figuras espectrais
e silenciosas: uma mulher pálida, de olhos verdes; uma menina com um bichinho
de pelúcia nos braços e uma velha senhora, agitada e provavelmente falastrona,
mas que mantinha o silêncio à custa de soluços e lágrimas. Mas não me aproximei
de nenhuma delas. Aqueles dias não haviam sido feitos para conversas pequenas.
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Eram dias de perplexidade e resolvi ficar assim, perplexo, ainda que com pouca
convicção.
Era o grupo de pessoas mais eclético que a cidade mandara para o navio
desde o início do fenômeno. No início, as autoridades locais faziam grande alarde
de suas decisões. Convocavam representantes dos sete departamentos para parti-
ciparem dos debates e das cerimônias públicas; faziam ver suas ideias no jornal e
nos editais pregados nas paredes dos bares, tavernas e prostíbulos; apresentavam
as soluções do momento como racionais, morais, benditas, fruto da evolução do
espírito humano e da higienização do espaço urbano.
A primeira leva de passageiros foi composta basicamente de detentos e
egressos das cadeias locais. Depois foram as prostitutas, os andarilhos, os bê-
bados e os estrangeiros. Lembro-me de um navio recheado de ciganos, homens,
mulheres e crianças que, por azar, se fixaram nas cercanias do município.A cidade
reluzia com fogos, fogueiras e festas de júbilo e purgação. Sacrifícios eram sempre
penosos, mas serviam para salvar almas e propiciar certeza de salvação aos vivos.
Então veio a escassez de homens maus. A escolha ficou mais difícil, sor-
rateira, interessada. Quilos de documentos e horas de discursos foram produzidos
nas dependências da câmara local. Alianças foram feitas, nomes e parentelas fo-
ram blindados e as listas ficaram cada vez mais surpreendentes e obscuras. Crian-
ças sujas, mulheres faladeiras, homens puídos, apostadores, dizimistas relapsos,
doentes de febre tênue...
De cem a cem foram embarcados. Não sei se faz meses ou anos que tudo
começou. Minha memória já anda falha. Sei que meu nome apareceu na lista no
último mês. Eu, homem de cinquenta e poucos anos, solteiro, escriturário, solitário
e resguardado. Talvez minha vida incomodasse os membros daquela câmara ou
seus olheiros.Talvez eu precisasse de um defensor naquela casa. Talvez não fosse
possível ser excluído. Talvez os critérios fossem técnicos demais para serem divul-
gados. As reuniões da câmara se tornaram cada vez menos públicas. As listas já
nem eram justificadas. Formou-se um conselho de homens bons, supostos repre-
sentantes da comunidade para assessorar e dar apoio aos membros da câmara. O
conselho era composto por líderes espirituais, juízes, representantes do comércio,
latifundiários e professores antigos. Também estavam lá agiotas, militares e mé-
dicos.
Meu nome apareceu na lista. Ela chegou a mim pelas mãos de um Oficial
de Comunicações. Ele pediu minha assinatura e afixou na porta de meu quarto na
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hospedaria um documento público. Nenhuma outra satisfação me foi dada.
Meu nome estava na lista, que agora tremulava na praça central como uma
bandeira, para que todos pudessem ver. Meu privilégio de não ser vigiado foi dado
pela herança que dispunha aplicada no banco local. Em caso de fuga, meu dinheiro
seria confiscado. Mas sei que não conseguiria fugir. Nem tentei isso. Fiz um docu-
mento deixando tudo para um parente distante, mas a cidade provavelmente iria
engolir o documento e expelir outro de suas entranhas. E agora me restava apenas
um canto no navio. Um canto e uma espera.
No último dia daquela viagem de três dias, a menina da boneca se aproxi-
mou de mim. Tentou conversar algo, mas não foi capaz de articular bem as frases.
Abri um sorriso por pura cortesia, mas ela deu as costas e foi embora. Foi o último
contato que se pode dizer humano que tive. No final da tarde uma nuvem rasteira
nasceu no horizonte. Seus raios eram estranhos, horizontais e furiosos. Sua cor era
ainda mais pesada do que a das nuvens do céu. Era uma nuvem ameaçadora e
linda. Senti pavor diante de sua aproximação, mas um pavor misturado com deleite.
O navio balançou diante da força dos ventos que saíram da nuvem. Os marinheiros
abandonaram o navio horas antes e foram resgatados não se sabe bem onde por
outras embarcações.
Estávamos sós. Cem almas diante de uma nuvem ancestral e faminta. To-
dos saíram para o convés. Ninguém gritou. Nenhum choro foi ouvido. De súbito, a
nuvem projetou seus monstros. Navios de casco verde apareceram como que por
encanto. Eram de diversos tamanhos e tinham uma aparência agressiva. Pareciam
ser alongados, pesados, maciços e possuíam canhões e torres. O pânico se alas-
trou no nosso navio. Matou o silêncio sem piedade.
A morte daquelas pessoas não foi plácida e honrosa. Não foi um sacrifício
frio e rápido. Os homens daqueles navios eram cruéis e violentos. Prolongaram o
sofrimento enquanto puderam. Riam de choros e de pedidos de clemência. Um
homem que portava uma estranha insígnia no braço subiu a bordo com seu rosto
autoritário. Gritou alguma coisa numa língua que não consegui entender e fez ges-
tos indicando que os soldados deveriam separar os sobreviventes em pequenos
grupos. Depois veio a triagem. E novo massacre. Velhos e doentes foram mortos.
Não sei por que fui poupado. Levei apenas uma coronhada na cabeça. O sangue
jorrou sobre minhas costas e cai pesadamente no chão. Meus companheiros de
navio me puxaram para cima. Sussurraram que se permanecesse deitado seria
executado.
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Embarcaram-nos então naqueles navios espectrais. Era o fim. O sacrifício
se completara. A vida daquelas pessoas seria tragada pouco a pouco por aqueles
monstros sanguinários. Nossa cidade estava salva por mais alguns meses. O ritual
estava completo. Havíamos sido trocados por uma trégua humilhante. A cidade
alimentava aquele minotauro faminto em seu labirinto político. Em contrapartida,
permanecia formalmente livre.
Acordei no dia seguinte com gritos ameaçadores. Eram os soldados. Nossa
jornada chegava ao fim. Pela fresta do compartimento onde estávamos presos,
pude ver um campo de trabalhos forçados. O som de tiros esporádicos cortava
o silêncio daquele lugar de tempos em tempos. A certeza da morte calava meus
companheiros de cárcere. Eu olhava para os lados procurando um interlocutor,
mas ninguém mais se dispunha a abrir a boca. Agora éramos todos iguais: velhos,
doentes, ciganos, radicais, críticos, hereges, mendigos, artistas de circo, bêbados,
amantes da liberdade, jornalistas, escritores, catadores de lixo, prostitutas... Não
tínhamos mais futuro ou esperança.
Carlos Eduardo Marotta Peters é professor universitário, Araçatuba-SP
E-mail: marottapeters@yahoo.com.br
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MARIPOSA
Maria Luzia Villela – 2.º lugar – categoria regional – Araçatuba-SP
J
oão da Silva Homem, homem bom. Melhor não havia.Talvez alguns como ele.
A beleza o avassalava, quiçá por ser destituído dela. Seus olhos negros,
de órbitas pequenas e redondas, davam-lhe uma expressão de boneco, os
cabelos também negros, tinha-os crespos e desalinhados: resultado do mau hábito
de enfiar os dedos tortos pelo reumatismo na densa cabeleira - em gestos de aca-
nhamento, pensamentos de saudades ou perturbadores - e a guedelha, amansada
ao se levantar de manhã com água e pente, ia-se eriçando. Vivia onde sempre
vivera: na velha casa, sede da fazenda da família.
Após a morte do pai, vira a fazenda ir-se desmanchando, vendida a nacos,
a cada aperto financeiro.A mãe gerindo como podia. Primeiro se foi a metade dela,
depois, para tentar sorte na cidade grande, os irmãos, mal raiada a maioridade, iam
se desfazendo da herança. Era quase como o pombal do Raimundo Correia, só que
não havia volta, filosofava João.
Ele não. Ficou, onde tinha fincadas as suas raízes. Nas tardes, na varanda,
sentava-se na velha cadeira de balanço, toda de madeira, que já resistira a dezenas
de anos e ainda muito serviria. Naquele dia, como nos outros, nela se aboletou.
Alisou os braços da cadeira, como se acariciasse a mãe. Ali, ela embalara
as crianças. Netos não. Que morrera sem tê-los! Nova ainda! Deixando-o só, diziam
os outros... Ele não se dizia só, pois tinha os livros por companheiros fiéis, e a terra,
e a paisagem... Tudo nutria sua alma. E a saudade... Sentado costumava olhar o
dentro e o fora.
Entre duas mangueiras de frondosas sombras, rasgava-se um palco de luz
e azul esgarçado deixando ver o Sol explodindo em cores, emagrecendo no hori-
zonte, já não esfera, como roído por seu próprio exibicionismo. Cruzes voando vol-
tavam aos ninhos. E das mangueiras vinha a “canção” das boas vindas: em pipilos,
trissos e chilreios. O fora era lindo! O dentro... Agridoce. Numa tarde assim, o pai
caíra do cavalo e uma costela perfura-lhe o pulmão; numa tarde assim, a prima
Cotinha dera-lhe seu primeiro beijo... Ainda presente em seus lábios toda vez que
nela pensava. Numa tarde assim Cotinha... Rechaçou o sombrio pensamento.
19
Passado e presente, preto e vermelho, luz e sombra se alternando.
A boca de João, polpuda e pequena, apinhou-se como um beijo lançado,
fazia isso com frequência. Tique: diziam uns, outros, nem reparavam, tantos anos
de convivência. Aquilo começara depois do beijo de Cotinha. Como uma busca.
Gostaria de não pensar nela, mas vinha de assalto! E agora mais que nunca. A
carta, entre a frente do bolso e o tecido da camisa, queimava-lhe a pele.
Ali, balançando-se na cadeira, olhava o poente e pensava na carta que
recebera há seis dias! Tiago, seu irmão, ditara o conteúdo. Dizia-se fraco até para
escrever-lhe... Doente, sem dinheiro, com esposa e duas filhas, precisava dele, do
seu teto e de seu braço.
Seria transtorno em sua vida de solteirão. Que nenhuma mulher lhe fora
como Cotinha, seu primeiro e último amor!
Vida arrumadinha! Ordem e silêncio para ler,cochilar e o fazer seus próprios
horários. Não queria, mas precisava ajudar o mano. Renda alta, para mandar-lhes
sustento contínuo, não tinha. Verdade que, de insignificante sitiante, transformara-
-se em “rico em potencial”. A cidade crescera e batia às portas da sua proprieda-
de. Era lotear e encher-se de dinheiro. Mas vender pedaços de terra seria como
vender-se em açougue!
A carta da sua indecisão, ainda no bolso da camisa, era como brasa.Tocou-
-a novamente. A delgada foice do Sol no horizonte já anunciava a extinção do dia.
A noite era iminente.
Eis que, porteira adentro, avançou um automóvel, com o “TÁXI” bem desta-
cado na capota. Parou ao pé da varanda. João, apinhando os lábios em contraturas
sequenciais, desceu devagar os poucos degraus indo ver quem chegava. Distin-
guiu o vulto de uma mulher curvada falando com o motorista e junto a ela: duas
meninas. O chofer desceu, abriu o porta-malas, começou a tirar a bagagem; as
mulheres arrepanhavam no interior do veículo casacos, revistas, sacolas e por fim
emergiram.
A mulher falou às meninas, que prontamente obedeceram:
- Peçam bênção pro tio.
João ficou uns momentos como não entendendo.
- Cunhado! Não está me reconhecendo? Sou eu! Não posso ter mudado
tanto!
A voz e os olhos eram os mesmos. Mas a cintura delgada, o longo e frágil
pescoço e a pele translúcida haviam desaparecido. Pensou numa frase de sua
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mãe: “A gordura sepulta a beleza”.
- Você?
- Eu mesma. Essas mocinhas são minhas filhas. Essa é Patrícia, de 12 anos
e esta Amélia, de 10. Mandei-lhe uma carta há uma semana, recebeu?
- Sim recebi, estava a pensar sobre ela... Mas diga-me: e o mano? Por que
não veio?
- João! Desligado como sempre foi... Não percebeu que estou de vestido
preto? É luto. Escrevi-lhe que Tiago estava muito mal e que precisávamos de sua
ajuda. Sem sua resposta optei pelo: “quem cala consente”.
Fez uma pausa deixando tempo para João dizer alguma coisa. Mas ele
digeria novidades devagar.
Em seguida, a cunhada emendou, com sinceridade, que realmente não ha-
via outro modo: era a fazenda ou debaixo do viaduto.
João gaguejava, que ansiava muito por mandá-los vir, mas a carta, só lhe
chegara às mãos há poucas horas. Piedosa mentira. Ainda encolhia-se, timorato, a
mulher era... Era a prima Cotinha, que numa tarde de igual fulgor o beijara. A mão
levantou-se, como um ser independente e acariciou os lábios que ardiam como se
o beijo fosse ali e agora. Também se fez presente a angústia que sentira quando
ela, numa outra tarde esplendorosa, lhe dissera: “Não quero nada com você. Você
é feio! Estou namorando Tiago”.
O motorista, em pé ao lado das malas, pigarreou.
- Oh! Esqueci-me do motorista. Pode pagar o táxi? Não tenho dinheiro.
Pensou em mandá-la embora. Dezoito anos sem vê-la, já não sentia o co-
ração disparar, coisa que acontecia com frequência quando ela vivia apenas na
sua saudade! Sentiu-se roubado, perdera o sonho! Também se sentiu liberto. Era
um embaraçado novelo de sentimentos. Mas as sobrinhas eram belas e pareciam
meigas. Tão parecidas com a Cotinha que morara em sua lembrança! E o sangue?
O irmão...
João pôde se aproximar da beleza, tocá-la. Estendeu a mão nodosa e a
escorreu, leve e cariciosa, pelos cabelos loiros e brilhantes das sobrinhas que lhe
sorriam. Os últimos raios de sol rebrilhavam neles. E João os viu como emitidos por
elas. Encantado, girou em translação, como mariposa na luz!
A luz o aceitou. Sentiu. Pequenas mãos enlaçaram sua cintura e doces
cabeças nele se apoiaram. Foram momentos de grande emoção e da descoberta
de quão solitário e infeliz inconfesso ele era! Dominou a emoção que lhe trancava
21
a garganta, como se um nó ali estivesse, tornando dolorida a passagem da saliva,
Estendeu a carteira para que a cunhada pagasse o táxi; curvado pelo peso
das malas, levou- as para dentro da casa. Já vassalo.
As mulheres o seguiram. Lágrimas de alívio por terem a certeza de um lar
desciam lentas e nublando-lhes a visão as faziam tropeçar na escada às escuras.
João estendeu a mão ao interruptor: opondo-se ao céu que enegrecera, a
casa brilhou como se sorrisse ao recuperar a vida e dinâmica que a juventude lhe
trazia.
*Maria Luzia Villela é professora aposentada, acadêmica da Academia Araçatubense de
Letras. E-mail: lyg930@hotmail.com
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Joana, só ...
Regina Ruth Rincon Caires - 3.º lugar – categoria regional – Araçatuba-SP
F
inal da primavera de 1951. Madrugada de lua cheia...
Pela janela aberta, a claridade prateada inunda o quarto. Sentada ao pé da
cama, encostada na parede, abraçada às pernas e com o queixo recostado
sobre os joelhos, Joana observa o rosto sereno do filho que dorme feito um anjo.
Por que tinha que ser assim? Por que a vida tomou esse rumo?
Olha do lado, na outra cama, e vislumbra por entre as cobertas os rostinhos
das duas filhas.A mais velha, de cabelos dourados, fartos cachos que com a luz da
lua cintilam feito uma nuvem de vagalumes, e a mais nova, de pele alva como leite
e cabelos negros azulados, ambas dormem profundamente, alheias aos percalços
que a vida silenciosamente arquiteta.
Tudo começou naquela triste tarde, quase noite. Antônio ainda não havia
chegado da roça. Joana acabara de banhar as crianças, sentia-se enjoada com o
princípio da nova gravidez, e fazia um esforço tremendo para esquentar as panelas
no fogão de lenha, no preparo da comida, quando de repente ouviu o estampido,
um tiro.
Correu para perto das meninas, e assustada olhou pela janela da cozinha
sem compreender o que estava acontecendo.
Ficou por um tempo agarrada a elas, e assim que recobrou o tino, perce-
bendo que havia barulho de choro abafado, pediu para que as meninas ficassem
quietinhas, e foi olhar o que acontecia.
Já na varanda, olhou para a direção da casa do pai de Antônio, e com certa
dificuldade por causa da penumbra que a noite trazia, percebeu que havia movi-
mento de pessoa e constatou que o choro vinha de lá, e as vozes também.
Atônita seguiu na direção dos sons e assim que chegou perto parou petrifi-
cada. Na entrada do alpendre da casa do pai de Antônio, perto da cisterna, estava
um homem estirado no chão, rodeado por uma poça de sangue.
Joana forçou as vistas e percebeu que se tratava do colono Malaquias,
homem forte, queimado de sol, e de poucas palavras.
O choro que ouvira era da mãe de Antônio. Ela chorava, lamentava, implo-
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rava aos céus por orientação, estava completamente desnorteada, e andava de um
lado para o outro perguntando ao marido o que deveria fazer...
Olhando mais adiante, perto da porta da cozinha, Joana viu o pai de Antônio
parado junto à parede, e mais atrás estava Seu Avelino, que tinha o rosto crispado,
os olhos fixos no homem estirado no chão.
Seu Avelino estava com os braços caídos rentes ao corpo, e trazia em uma
das mãos uma carabina.
Num sobressalto, Joana percebendo que o colono estava morto e sem dizer
qualquer palavra, entendeu que o tiro havia partido daquela carabina e que, prova-
velmente, Seu Avelino teria feito o disparo. E acertou.
Mais tarde soube que o colono teve um desentendimento com o pai de
Antônio há algum tempo, que a mágoa foi se avolumando, e que naquela tarde,
por causa de uma pendenga sobre uma saca de feijão, o colono armado com um
facão foi até lá, e depois de uma nova discussão, investiu contra o pai de Antônio
jurando que o mataria.
Seu Avelino era outro colono da fazenda, casado com Dona Célia, um ho-
mem calmo, sério, pai de oito filhos, compadre e amigo do pai de Antônio, contou
que durante toda a tarde ouviu Malaquias esbravejar exaltado, praguejando e ar-
quitetando a ida até à casa do pai de Antônio para fazer o que dizia ser o “ajuste
final das contas”.
Percebendo que algo muito sério estava por acontecer, Seu Avelino ficou à
espreita, e quando viu que Malaquias se armou e seguiu para a sede da fazenda,
não titubeou e numa corrida desenfreada esgueirou-se por entre os pés de café,
chegando à casa do pai de Antônio minutos antes de Malaquias.
Entrou pela porta da sala, sabia que o compadre estaria sentado no alpen-
dre dos fundos, como sempre, fumando seu cigarro de palha, com um cotovelo
apoiado no canto da mesa.
Seu Avelino passou pelo corredor que ladeava o quarto principal, pegou a
carabina carregada que ficava costumeiramente dependurada atrás da porta deste
quarto, e seguiu para a cozinha. Nem teve tempo para explicar ao pai de Antônio o
que estava para acontecer porque antes de chegar ao alpendre, antes mesmo de
atravessar a porta da cozinha, Seu Avelino avistou Malaquias no terreiro, chegando
ao degrau do alpendre.
Seu Avelino parou, percebeu que o pai de Antônio ficara assustado com a
chegada intempestiva do colono Malaquias vociferando transtornado.
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A discussão foi rápida, quase só Malaquias falava, esbravejava. E quando o
colono fez menção de se jogar contra o pai de Antônio com o facão em punho, Seu
Avelino mirou a arma e atirou no peito do colono.
Foi um único e certeiro disparo, o mesmo estampido que assustou Joana e
que fez com que a mãe de Antônio saísse correndo do galinheiro, onde recolhia os
ovos daquele dia, e sem entender o que estava acontecendo, caísse em prantos e
clamasse aos céus por clemência e orientação.
Tudo foi muito rápido. Aconteceu e estava feito. Não tinha volta. Agora era a
realidade e não havia nada a fazer para consertar.
Aos poucos Seu Avelino foi recobrando os pensamentos, estava trêmulo,
com os olhos vermelhos, e continuava calado.
O pai de Antônio, depois de ralhar com a mulher exigindo que ela parasse
com o choro e com as lamentações, virou-se para o compadre e pegou a arma.
Disse a ele que ficasse calmo, que fosse para casa, e que não comentasse nada
sobre o ocorrido, nem mesmo com a Dona Célia.
Seu Avelino olhou mais uma vez para o corpo daquele homem imerso numa
poça de sangue, rodopiou sobre os calcanhares e, mecanicamente, saiu pelo mes-
mo lugar por onde havia entrado momentos antes.
Ninguém viu Joana ali, e ela calada, sem fazer qualquer ruído, voltou para
casa.
A noite havia chegado de vez, e com ela Antônio chegou ao terreiro. Estava
todo suado, com a roupa suja de terra, resultado de um dia de trabalho pesado na
roça de café.
Era costume ao final do dia, quando voltava da roça e antes de se recolher,
passar pela casa dos pais para tomar a bênção. E aquele dia não foi diferente.
Foi sim... Naquele dia tudo foi diferente.
Antônio chegava com o corpo cansado, mas com a alma leve, estava tran-
quilo, feliz com mais um dia trabalhado, feliz de voltar para a sua família, feliz como
há muito tempo se sentia, ou como sempre se sentiu. Mas, a cena que encontrou
foi como um nocaute. Seus miolos não conseguiam atinar o que havia acontecido
ali.
Olhou aquele homem caído, mais adiante viu seu pai sentado no canto do
alpendre, apoiado na mesa, o brilho da lamparina clareava seu rosto abatido, os
olhos assustados, o cigarro de palha apagado no canto da boca, e ouviu o choro
abafado da mãe que vinha da cozinha.
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O pai, vendo o espanto do filho, chamou-o para perto, explicou o acontecido,
e pediu a ele que preparasse um cavalo, que fosse na vila providenciar o sepulta-
mento e comunicar o acontecido para a autoridade do Cartório.
Explicou a Antônio que Seu Avelino atirara para protegê-lo, que o compadre
não poderia ser envolvido no caso, que ele tinha oito filhos para criar, e que não
havia testemunha do disparo a não ser ele mesmo, o pai de Antônio.
Então,Antônio foi orientado a dizer para a autoridade na vila que ele mesmo,
Antônio, havia disparado o tiro para proteger seu pai.
E assim foi feito. No escuro da noite, montado no seu cavalo de lida,Antônio
foi até à vila que era razoavelmente próxima. A autoridade providenciou a retirada
do corpo poucas horas depois, e como não havia delegacia e nem delegado na vila,
não havia telefone e nem telégrafo, a comunicação foi feita por carta para a central
regional da polícia, e dessa maneira, só restava esperar a chegada da autoridade
competente para que fosse enfrentado o desdobramento do caso.
O pai de Antônio explicou a ele que como o tiro fora disparado para defender
a vida do pai, Antônio certamente, assumindo a culpa como fizera, seria apenado
com poucos meses de prisão, e que tudo seria resolvido rapidamente. Pena que
certamente seria muito mais severa se fosse aplicada para Seu Avelino, que não
seria beneficiado por não ter grau de parentesco com o pai de Antônio. Era assim
que o pai de Antônio pensava, e foi nisso que Antônio acreditou.
Antônio estava desarvorado. Temia pelos filhos, pela mulher e por ele mes-
mo. Nunca saíra do seu canto. Nunca acordara em outro lugar. Suava frio quando
pensava que teria que viajar para longe, sozinho. Nunca fizera isso! Mas, sabia que
teria que resignar-se, aliás, já estava resignado, e não falava sobre isso. Nem com
Joana. O que seu pai decidiu era o mais correto a ser feito. Afinal, poucos meses
passariam rapidamente, e não seria justo que Seu Avelino ficasse preso. Como
poderia sustentar a mulher e seus oito filhos?
Antônio nem conseguia dormir tamanha a insegurança que tinha na alma, e
sabia que Joana, mesmo quietinha na cama, também não conseguia, e a cada dia
que se passava a agonia dos dois se avolumava. Não falavam sobre isso.As coisas
seriam como deveriam ser, e pronto.
Depois de duas semanas sofridas, o jipe da polícia chegou. O delegado
conversou com o pai de Antônio, entregou uns papéis, e Joana foi destacada para
ir até à roça para chamar Antônio.
Vieram em silêncio, vagarosamente, como não querendo chegar. Joana ar-
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rumou a mala com as poucas roupas, e Antônio vestiu-se com a melhor troca,
despediu-se discretamente diante das crianças, e seguiu no jipe da polícia junta-
mente com o delegado e o milico. Estava calado, com os olhos apavorados, mas
não chorava.
O choro ficou apenas para as mulheres. A mãe de Antônio, vendo o jipe
sumir por entre os pés de café e a nuvem de poeira, enxugou os olhos na ponta do
avental e voltou para a cozinha.
Joana, segurando as meninas pelas mãos e carregando o mais novo na
barriga, com a alma em soluços, rumou para casa. Meu Deus, como seriam esses
meses?
E as noites foram longas... E as lágrimas não cessavam... E a barriga cres-
cia cada vez mais, feito a saudade.
Não chegava carta. Antônio não sabia escrever, e nunca pediria para que
alguém o ajudasse. Imagina se ele contaria alguma coisa para qualquer estranho!
E o filho nasceu... Um menino grande e forte, como o pai. A ele foi dado o
nome do avô. Joana sabia que Antônio, distante, estaria aflito, apavorado e muito
triste por não estar junto dela naquele momento. Pelas contas deles, quando a
criança nascesse, certamente a pena de Antônio já estaria cumprida, ele já estaria
em liberdade. Mas, isso não aconteceu. A pena estava sendo muito maior que o
esperado.
Era a vida... E um ano se passou...
Nada de Antônio ser colocado em liberdade, e então Joana foi informada
pelo pai de Antônio que ele fora condenado a uma pena total de três anos de prisão.
Quanta dor! Apenas um ano havia se passado, e havia mais dois pela frente.
Quanta solidão!
As meninas, com quatro e dois anos, o menino com seis meses, e a vida
precisava seguir em frente.
E seguia, só Deus sabe como...
Joana contava os dias, calada. Conversava com os pais de Antônio apenas
o trivial, o corriqueiro, era o costume. Não se falava em tempo de espera, em sau-
dade, em dor.
Todos sentiam tudo, mas ninguém falava...
A mãe de Antônio cuidava de ajudar Joana nas tarefas, principalmente no
cuidado com as roupas e no preparo dos pães. Era bondosa, de olhos mansos,
piedosa, mas submissa. E Joana, também.
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Apesar de forte, de extremamente organizada e generosa, a mãe de Antônio
era devotadamente submissa ao marido. Não exigia explicação alguma, não ques-
tionava nada, não contestava, apenas vivia, ou melhor, respirava...
Passados três longos anos, a colheita de café agitava os colonos num vai-
vém incessante, o sol estava começando a declinar naquela quarta-feira, quando
Joana ouviu o som de uma condução que se aproximava.
Com o coração aos pulos foi para a janela e avistou o jipe da polícia. Nem
sabia o que fazer. Queria estar bem bonita para o reencontro com Antônio, mas
num ímpeto, nem se lembrando disso, correu para o terreiro, sem mesmo tirar o
avental.
E viu Antônio... E se assustou...
Antônio estava magro, excessivamente magro, amarelo, olhos fundos, en-
tristecido, curvado, abatido, com uma palidez macilenta, e quando falou seu nome,
Joana percebeu sua voz muito fraca. Só o carinho que Joana viu em seus olhos
lembrava o seu Antônio que havia partido há três anos.
Antônio estendeu a mão num cumprimento, e procurou rapidamente, com
os olhos, os seus filhos. Eles vinham correndo buscando a mãe. As meninas não
reconheceram o pai, e o menino ainda não havia sido apresentado a ele.
Antônio despediu-se dos policiais, pediu a bênção dos pais, pegou a mala e
rumou vagarosamente para casa, seguido por Joana e pelos filhos.
Os policiais ficaram conversando um bom tempo com os pais de Antônio, e
depois se foram.
Antônio entrou em casa e ficou um bom tempo olhando para as paredes
como se estivesse matando a saudade que sentia no peito, e demorou a soltar a
mala.
Joana estava feliz com a chegada do seu Antônio, mas o coração apertado
tentava contrariar a sua vontade, e colocava uma névoa de preocupação na sua
alegria. Sentia que Antônio não estava bem.
E não estava mesmo. Na prisão Antônio havia contraído várias doenças, e a
tuberculose havia minado suas forças quase por completo. A falta de sol, a falta de
se exercitar como fazia na roça, a alimentação precária e a solidão daqueles anos
todos lhe roubaram a saúde.
E mesmo feliz por estar de volta, Antônio não conseguia reagir aos males
do corpo. A febre não cedia, a prostração o dominou. Antônio foi se finando, foi se
esvaindo, até que a vida lhe escapou das mãos.
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Foram dias difíceis, angustiantes. Na verdade, nesses dias Joana teve a
impressão de ter sido levada, de ter sido arrastada porque não se lembra de muitos
detalhes.
Depois de tanta espera, depois da volta, em apenas poucos meses Joana se
via novamente só. Não havia o que esperar. O seu Antônio não voltaria mais, havia
partido para sempre.
Agora ali, olhando os rostos serenos dos filhos, com o coração enlutado,
com as forças querendo abandoná-la, relembra tudo e nem revolta sente. Não re-
clama, não blasfema, não se insurge, não maldiz, não se inflama. Continua apática,
abatida, resignada. É o costume...
Queria apenas entender...
Assim que amanhecer irá de mudança para a vila. É chegada a hora da filha
mais velha começar na escola. O pai de Antônio arrumou uma casa na vila para ela
e para as duas meninas. O menino ficará ali, com o pai e com a mãe de Antônio.
Será criado por eles no costume do sítio para pegar gosto pelo trabalho na terra.
Joana está amargurada com mais esta separação. Assim foi decidido e
assim será...
O sol clareou o terreiro, a parca mudança foi colocada num velho caminhão
que chegara. Joana e as meninas amontoaram-se na pequena cabine juntamente
com o motorista, e o choro gritado do filho, que se contorcia para sair do colo da
mãe de Antônio à procura dos seus braços, entrava por seus ouvidos e parecia
querer explodir seu peito com tamanha aflição.
A dor que Joana sentiu ao parir foi infinitamente menor comparada a essa
que apertava seu peito nessa separação. Era agora como uma lança em chamas a
rasgar sua carne, seu ventre, retirando seu filho do seu convívio. Não iria mais estar
presente nos dias da vida dele, não iria acompanhar seu crescimento, não iria mais
velar seu sono, não estaria presente para aliviar seu medo nas noites de chuva...
Mas, era a sua vida...
O caminhão seguiu pela estrada poeirenta.
Joana também deveria seguir em frente...
E seguiu...
*Regina Ruth Rincon Caires é bancária aposentada, Araçatuba-SP
E-mail: reginaruthrinconcaires@gmail.com
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Cachos de menina
Breno da Costa Alves - 1.ª menção honrosa - categoria regional - Penápolis-SP
N
otaram a presença de Raquel pela primeira vez no ato de seu nascimento,
quando, após um trabalhoso parto, chorou. Um choro de estranhamento e
graça. Criança formosa, rechonchuda. Os familiares e vizinhos encantavam-
-se com a pequena criatura. Tão inocente, tão pura.
Cinco anos após o nascimento, os parentes do sul estavam hospedados
na casa de Ícaro e Mabel, pais da criança, para comemorar o aniversário da pe-
quenina. Porém, para espanto de todos, algo inusitado aconteceu naquela noite.
Os cabelos da adorável criança iniciaram um processo de metamorfose repentina.
Tornaram-se encaracolados o que antes eram lisos e sedosos.
Os distantes familiares aproximaram os olhos para compreender melhor o
ocorrido, espreitando os cabelos em busca de um ensejo perfeito. Entreolharam-se.
Suspiraram desconfiados. Tossiram para disfarçar. Em vão culparam a genética,
o DNA. Mas a prova ali estava; visivelmente real e encaracolada. Encaracolados
fizeram-se os cabelos. O primeiro cacho saltou envergonhado. O segundo menos
tímido. Os demais, desesperados.A saleta inundou-se num profundo e inconforma-
do espanto. Aproximando-se, disse Dalton:
- Curioso este fato, Ícaro – estranhou Dalton, irmão de Ícaro, em um suspiro
demorado e autêntico.
Falava em segredo:
- A criança em nada lhe parece. Nem pés chatos, cor mediana, olhos ca-
ramelos, rosto magro. Nem as mãos, nariz ou testa... Em nada! E agora, até o
cabelo se transfigura. Meu irmão, que as acusações estejam distantes de minha
boca, mas tal dessemelhança apavora-me. Há em nossa família alguém, por mais
remoto, com parecidas características? Custo a acreditar. Conheço seu amor por
Mabel, a ponto de reconhecer sua extensão desmedida, e, também, compreendo
as mudanças provocadas pelo tempo nas pequenas criaturas. Porém, não é preciso
ser médico como és para entender que o filho deve se parecer com o progenitor.
Não cometa enganos. Poupe-se dos sórdidos afazeres de pai.
Ícaro fitava a menina estarrecido. Percebeu algumas distinções a partir do
cochicho alheio.
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Tadeu aproximou-se falando em tom baixo:
- Caro sobrinho, percebo a inquietação da sua alma e entendo bem os
motivos. Esta sala transborda em maus pensamentos e acusações extremamente
desconfiáveis, que certamente o levará à meditação incômoda. Não medite. As
circunstâncias esclarecem nitidamente o verdadeiro. Acostume-se.
Havia uma serenidade impaciente em sua voz.As palavras vinham à boca e
extravasavam sombriamente nos olhos:
- Veja meu exemplo: meu filho, Pedrinho, é bastardo. Sou estéril. O sangue
que corre em suas veias difere, em sua totalidade, daquele que preenche as mi-
nhas, mas incomodar-me com pormenores jamais me importunou. Pedi para um
amigo fazer aquilo que é impossível a mim. De bom grado, aceitou. Minha falecida
esposa concordou igualmente. Após o menino nascer agradeci aos céus por ele
não ter herdado a cor escura do pai, afinal, desconfiariam.
Afastou-se Tadeu.
As vozes confundiam Ícaro e a movimentação tonteava-o a ponto de causar-
-lhe vertigem. Chamou Mabel para acompanhá-lo até o cômodo adjacente. Na
saleta, os comentários continuaram.
- Muitas discussões assolaram meu casamento, contudo por motivos mais
relevantes que um mísero cacho de cabelo. As crianças são arteiras; correm pela
casa, pelo quintal. Sujam a roupa, suam... Suor, talvez esse seja o motivo da rebel-
dia no cabelo – Pronunciou Tadeu em sua calmaria atrevida e insolente.
- Suspeitei ao ver a menina no colo. Nem de longe possuía a audácia, a
perspicácia de nossa família. Entretanto, estou a recordar algo que muito me cha-
mou a atenção: o umbigo. Sim, o umbigo da criança é perfeitamente idêntico ao de
meu menino. Poderia compará-lo e chegaríamos a um resultado satisfatório. Como
não notei antes? – Enquanto falava, Dalton olhava a menina.
Repentinamente, Ícaro voltou à saleta com duas malas em suas mãos.
Anunciou uma viagem repentina à África. A convite de um grupo de estudiosos iria
exercer medicina preventiva, desenvolvendo no continente africano um antídoto
para a Malária. Saiu despedindo-se razoavelmente. Mabel chorava descompas-
sada.
Todos, boquiabertos, preocuparam-se com o futuro da família.
Meses depois, Mabel estava mais magra, mais pálida, menos viva. Recebeu
a notícia da morte de Ícaro com grande pesar. Na noite da viagem, a mecânica
falhou. O céu caiu e o sonho audaz também. Fatal. O avião caiu no mar, levando
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à morte todos os passageiros. A criança ficou sem o pai e a África sem a cura da
malária.
Esquelética e desgostosa, Mabel dizia à filha:
- Não corra pela casa, querida. Seu suor é mortífero e vai desmanchar a
chapinha.
*Breno da Costa Alves é estudante universitário em Araçatuba, 19 anos, mora em Penápolis
E-mail: al_breno@hotmail.com
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Coisas de Diário
Larissa Ruffato de Angelis – 2.ª menção honrosa – categoria regional – Araçatuba-SP
E
ra meu segundo dia na Holanda e, sinceramente, já contava as horas para o
dia acabar. Os passados em Paris foram encantadores. Sei que esse encanto
deveu-se ao fato de a cidade e eu não termos nenhum compromisso entre
nós. Mas, ao fim dos cinco dias, juntei-me a uma excursão. Paguei essa parte da
viagem em prestações de um ano e meio. “CONHEÇA O MELHOR DA EUROPA EM
10 DIAS!” Não preciso nem dizer o quanto desesperador e decepcionante é tentar
atravessar uma parte que seja do velho mundo em um espaço tão curto de tempo.
Somos arrastados por caminhos que não escolhemos e, na ânsia de vermos tudo,
acabamos muito mais perdendo de vista. Mas, quando seu desejo pelo universo
é intenso, então ele se digna a compaixão. Não sei se é uma regra, mas... Parto
amanhã, e agora sem nenhuma decepção.
“Deus criou o mundo, mas a Holanda foi criada pelos holandeses.” Desco-
nheço o autor. Ouvi dizer que era uma terra coberta por água, tomada pelo mar.
Mas os seres humanos que cá vivem, decidiram viver aqui e assim o fizeram a todo
o custo.
Prometeram-me flores. Vi poucas. Tudo bem. A história me encantou. Di-
zem-se um povo livre. Acredito porque me disseram e talvez o sejam por dizerem.
Dar-me-ei ao luxo de contar uma história que talvez seja verdade apenas porque
a conto.
Foi-nos prometido conhecer os frutos proibidos no “nosso mundo”. Fazia
parte do itinerário, conheceríamos as drogas e as putas de Amsterdan. As drogas
que abrem o corpo para outras sensações quase tão proibidas quanto. E as pu-
tas... Bem, as putas, o mundo inteiro sabe bem, mas que eu vi como nunca havia
imaginado.
O caminho era longo. Várias belezas se espalhavam por esse país encan-
tadoramente estranho. Muita gente, o que em sinceridade não me agrada. Alguns
passavam habitualmente, outros fingiam encantos ou se encantavam mesmo, não
me preocupei em lhes observar a autenticidade. Eu procurava flores. Prometeram
que elas cresciam aos montes naquela época do ano, belas e livres. Não sei se foi
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mentira ou ilusão alheia, sei que me esforcei na procura.
Meu corpo já estava cansado. Se eu resguardava alguma expectativa, ela
com certeza me escorregara dos bolsos. Já andava com os olhos baixos. E me ob-
servando, acredito que o universo teve compaixão: encontrei a flor. Sim, em artigo
definido, pois sei que era ela que no fundo eu esperava encontrar entre milhares.As
milhares não vieram, mas ela foi fiel, jogada no asfalto cotidiano. Não sei de onde
veio. Se caiu de um cesto, se cresceu ali ou se despencou do céu. Só estava lá. Lin-
da, viva, vermelha, livre. Livre para crescer e ser onde tudo simplesmente passava.
Mas, assim como eu, com meus olhos baixos de cansaço, ela deixava escapar de si
uma tristeza involuntária, talvez por ser demasiadamente livre e, portanto, solitária.
Tomei uma corajosa decisão: parei no meio da rua apressada e colhi a flor
de sua liberdade. Abraçamo-nos como dois queridos reencontrados. Quando me
dei conta, estava diante das drogas e das putas. O Bairro Vermelho, onde o pecado
merece respeito.
A rua era comprida, dividida por um canal como é em toda a parte por aqui.
Tudo muito amontoado: cores, cheiros, sons e até as vontades. Parecia que, ao
mesmo tempo, tudo e todos buscavam a liberdade esguia naquele asfalto cru. De
minha parte,
não me senti mais livre, nem menos também.
As putas ficavam dispostas em vitrines exibindo seu produto, à espera de
um desejo que se desatasse de todo o emaranhado e as viesse convidar. Havia
poucas, quase nenhuma. Ainda era cedo para aquele tipo de comércio. Vitrines eu
vi aos montes, porém vazias, pedindo aos meus olhos um significado. Eu poderia
elaborar muitas comparações para aquela situação peculiar aos olhos ingênuos
e adestrados. Mulheres e vitrines. Corpos e vitrines. O desejo podendo observar
pelo vidro o desejado. Mas, metaforicamente, é mais capitalismo do que minha
poesia pode suportar. Fui dando aos meus passos o consentimento para seguirem
distraídos enquanto me dedicava à flor. Nessas excursões quase nunca se para.
Nem para ver. E tão cegamente meus pés obedeceram que subi os degraus de uma
charmosa soleira, assim por acaso, por distração. Só percebi quando meu corpo
tocou desastrosamente aquela puta:
- Perdão! – num susto.
Ela não respondeu. Olhou-me esguia como quase nem se olha. Manteve a
face e o corpo voltados para algo que parecia uma procura; uma espera. Acele-
rei meus movimentos desencontrados para escapar àquela cena, mas a ingênua
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curiosidade me conteve e eu gaguejei meu comentário tão desnecessário:
- Você não está em uma vitrine...
Não me passou pela cabeça a possibilidade de ela não entender o meu
inglês mal treinado. Recebi um sorriso sem o seu olhar. E por um instante, dei conta
de que eu deitava meus olhos sobre ela no seu corpo desnudo paradoxalmente
vestido de puta. Não sei quanto tempo me demorei olhando e nem se ela se inco-
modava, mas a inércia da situação me impulsionou uma atitude – desnecessária?
Estendi-lhe a mão que guardava a flor:
- Isso não me paga. – sorriu com desdém, de lado.
- Estava no chão. – minha voz eram cacos, meu corpo se encolhia em sub-
missão a algo que ela parecia possuir e a tornava superior.
Silêncio.
- Não me pertence. – quebrei.
- Nem a mim.
- Pode pertencer se você aceitar. – os cacos se juntaram firmes e o corpo
tomou a coragem do desvendar.
Pela primeira vez, ela me olhou e eu olhei seus olhos em resposta. Dessa
vez, sorrimos pelo olhar.
Ela me convidou para entrar. Eu disse que não podia pagar. Ela deu de om-
bros. Eu sorri minha timidez com os lábios. Ela segurou minha mão. Eu senti a pele
morna na minha fria. Ela me puxou para perto. Eu me ergui nos pés e beijei-lhe a
face. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Tragou o ar feito uma droga, carregado
do sentimento que criamos. Eu me demorei no beijo, apertei-lhe a mão e me fui. Ela
aceitou a flor, é tudo que sei, mas, quando penso, gosto de acreditar que também
tenha chorado e não trabalhado aquele dia.
Depois disso, para mim, mesmo nos dias de trabalho, ela não era mais puta.
Era mulher. A falta do vidro entre nossos corpos permitiu que eu enxergasse nos
olhos dela a vitrine de sua alma. E tudo o que eu vi é segredo.
Larissa Ruffato de Angelis é professora de Inglês, Araçatuba – SP
E-mail: Larissa_rda@hotmail.com
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Conto de um amor
sem limites
Marcelo Otávio de Souza – 3.ª menção honrosa – categoria regional – Birigui-SP
F
altavam poucas horas para tudo, definitivamente, acabar. Poucas horas, en-
tão, tudo aquilo se transformaria em lembranças. Boas. Ruins. Mas, somente,
lembranças.
De repente, tudo desapareceria. Para sempre. Todo sempre. As ruas. As
casas. As praças. Tudo seria engolido pelas águas. Logo, a cidade transformar-se-
-ia em história. Submersa. Solitária no fundo de uma imensidão sem fim de água.
O progresso é cruel. Não há sentimentos, portanto, não há compaixão. O
país precisa de energia elétrica. Precisa crescer. A usina hidrelétrica estava pronta.
Em poucas horas as comportas se fechariam. E tudo o que ali estava, desaparece-
ria por completo. Desapareceria para sempre. Tudo se transformaria em um mar
de água doce. Um grande mar de água doce que traria conforto e progresso para
milhares, milhões de pessoas.
Por isso, a cidade estava fazia. Totalmente deserta. Só restavam lembran-
ças. Histórias passadas.Vividas. Fantasmas de um povo que viveu por centenas de
anos, e, que foi obrigado a abandonar as suas casas. Seus lares. Suas vidas. Suas
histórias.
No silêncio da cidade morta. Um barulho. Um barulho?
Dona Menina está sentada em sua cadeira de balanço, na varanda de sua
casa. O barulho é do balanço, que, incansável, vai de um lado para o outro. De um
lado para o outro. De um lado para outro.
O tempo passa. Esgota-se. E Dona Menina a balançar. Alheia a tudo, Dona
Menina vai de um lado para outro, de um lado para outro.
Mas, há um problema, Dona Menina não está alheia a tudo. Pelo contrário,
Dona Menina está muito ciente de tudo. Sabe que o tempo é curto. Sabe que em
horas, tudo não passará de história. Lembranças do que um dia foi. Mas, mesmo
assim, esta lá, sentada em sua cadeira de balanço indo e voltando, indo e voltan-
do, a balançar. A esperar. Ela não espera a morte. Apesar de a morte ser um ser
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iminente, ela, não a espera. Ela espera algo mais importante. Algo que esperou por
sua vida inteira. E não arredará o pé, antes, que este chegue.
Vizinhos.Amigos. Os poucos familiares que lhe restaram.Até o prefeito veio
até Dona Menina a fim de persuadi-la a sair dali. Mas, em vão. Então, sendo mulher
feita, consciente e sabedora dos infortúnios que a aguardam, foi abandonada à
própria sorte, ou, a sua própria vontade. Afinal só ela pode se salvar.
Aos 75 anos, Dona Menina passará a sua vida inteira, ali, sentada na varan-
da a esperar. A olhar para o horizonte perdido. Em sua cadeira de balanço de um
lado para outro, de um lado para outro.
Olhando o horizonte, relembra os bons e maus momentos que vivera. Lem-
bra-se do amor de sua vida. Aquele a quem ela se entregou, de corpo, alma e
coração.Aquele a quem amou todos os dias da sua vida.Aquele, que, por covardia,
perdeu.
Olhando para o horizonte sem fim, espera. Espera a chegada daquele que
foi o fruto do seu amor. Resultado de um amor que nem o tempo conseguiu apagar.
Dona Menina era jovem e bela, a mais bela da cidade. Naquela época era
a única mulher na cidade com formação superior, fruto de vários anos na capital
do estado. Bom partido, o melhor da cidade, vivia sendo cortejada pelos homens.
Homens ricos, influentes. Homens considerados de bem.
Mas, Dona Menina não podia mandar no coração, aliás, ninguém consegue
fazê-lo, por isso, apesar de inúmeros pretendentes, Menina apaixonou-se por um
homem de fora da cidade. Um forasteiro como diziam os moradores.
Foi amor à primeira vista.
De repente, estava apaixonada.
Estavam apaixonados. Perdidamente apaixonados.
A guerra começou. Todos eram contra o namoro de Menina que brigou,
lutou, fez chover, mas, não conseguiu demovê-los, não conseguiu a aprovação da
família quanto ao seu namoro e as reais intenções de seu namorado.
- É um vagabundo! – dizia o pai – Uma pessoa sem eira nem beira!
- Ele só quer brincar com você, Menina. – completava a mãe – Será que só
você não vê? Será que você não percebe isso?
Mas, Menina não queria nem saber o que os pais diziam, por isso come-
çou a encontrá-lo às escondidas, na calada da noite. Com a desculpa de ir à reza
na casa de uma ou de outra amiga, saía e se encontrava com seu grande amor.
Perdidamente apaixonada, entregou-se a ele, no dia, a que considerava o dia mais
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feliz da sua vida. O dia que nunca se esqueceu. Mesmo com o passar dos anos.
Os muitos anos, sem que nunca, por um dia sequer, se esquecesse daquele dia.
Um dia, a notícia, ele iria embora. Teria que ir embora. Por causa do seu
envolvimento com Menina, ele fora despedido do emprego, e, ninguém, ninguém
na cidade tinha coragem de lhe contratar, ou melhor, ousava contratá-lo, pois, todos
tinham medo do pai dela.
Naquele dia, ele estava triste, arrasado. Definitivamente acabado. Sem di-
nheiro e sem posses teria que ir embora. Deixar a cidade em busca da sua sobre-
vivência.
Pediu, para que Menina fosse embora com ele. Disse que a amava e queria
casar-se. Menina pensou, pensou, mas não foi. Não teve coragem de abandonar
sua vida, sua família. Amava aquele homem, era verdade. Amava-o mais do que
qualquer pessoa pudesse imaginar. Mais do que a própria vida. Menina não con-
seguiu desafiar o pai. Não tinha forças para isso. Na verdade, não fora criada para
isso.
Chorando, Menina viu-o partir. Para sempre. Viu seu amor, sua felicidade
escapar pelos dedos das mãos como areia fina.Viu-o partir, para nunca mais voltar.
Aquilo foi demais para Menina, que passou duas, três semanas sem ao
menos sair do quarto. Não conversava com ninguém. Não ouvia ninguém. E comia
pouco, muito pouco. Comia o suficiente para manter-se viva.
De repente, percebeu que algo estranho estava acontecendo com ela. Sen-
tia fraqueza. Enjoos. De repente percebeu estar grávida. A princípio ficou feliz. De-
pois, desesperada. Grávida. Sem um marido. Aquilo seria seu fim. Uma vergonha,
para si, e, principalmente para a sua família.
Devia ter ido embora, mas, não fora, agora, teria que enfrentar aquela situ-
ação de frente.
A noticia da gravidez caiu como uma bomba na família. Menina foi ofendida,
humilhada pelos pais. Se perder a virgindade antes do casamento já era motivo de
vergonha na família naquela época, imagina uma gravidez.
Dias depois, Menina e sua mãe deixaram a cidade com destino à capital.
Para que Menina estudasse, disseram. Meses depois, ela deu a luz a um menino.
“A cara do pai” – pensou – ao receber o filho pela primeira vez em seus braços.
Nesse momento, chorou de alegria. Chorou, também, por lembrar-se dos momen-
tos maravilhosos que vivera com o pai dele.
Após o nascimento da criança, Menina e a mãe viveram por um tempo na
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capital. Tinham uma vida boa, mas, silenciosa, Menina vivia quase o tempo todo
em silêncio. Quase não conversava com a mãe ou com qualquer outra pessoa
que viesse visitá-las. Vivia para o filho: banhava-o, amamentava-o, dedicava-se
completamente a ele. Que era a sua alegria. A única alegria que tivera, naquela
infeliz vida.
Em uma manhã, sua mãe, pediu para ela arrumasse as malas, pois volta-
riam para casa. Menina arrumou tudo e pôs-se a esperar, brincando com o filho
que insistia a sorrir-lhe o tempo todo.
Horas antes de partir, uma tia chegou a casa. Friamente sua mãe pediu-lhe
para a filha dar o menino à tia. A partir daquele momento ela seria a mãe do filho
de Menina.
Aquilo deixou Menina desesperada. Ela chorou. Pediu. Implorou. Ameaçou
fugir. Mas, não demoveu a mãe da decisão.
Sem qualquer ressentimento a tia pegou o filho dos braços de Menina e se
foi. A criança chorava desesperadamente, mas, nada fez com que desistissem de
toda a maldade para com Menina e seu filho.
Ao ver o filho partir, Menina ainda correu atrás do carro onde estavam a tia
e o filho. A tia parou o carro e por um minuto Menina olhou a criança chorando,
que, ao sentir um leve toque das mãos de sua mãe no rosto, parou de chorar. Me-
nina sabia que aquele seria a ultima vez que veria seu filho, então fez um pedido
a tia; Pediu para que ela falasse ao seu filho sobre ela. Que dissesse a ele que
ela o amava, e que ele nunca fora abandonado. Pediu a tia para que um dia ela
o deixasse conhecê-la. Vendo o desespero da sobrinha ela aceitou. Fez-lhe uma
promessa. E se foi.
Desde então Dona Menina vive ali, sentada a esperar. A esperar pelo filho
que nunca veio. Não até aquele momento, mas ela sabia que um dia ele viria. Viria
vê-la. Então, abraçá-lo-ia. Beijá-lo-ia. Far-lhe-ia inúmeras declarações de amor.
Esperando pelo filho, Menina foi vivendo ali, dia após dia, todos os dias de
sua vida.
Acompanhou a morte dos pais. Dos irmãos mais velhos. E esperou.
Sempre olhando o horizonte e a balançar. Vai e vem. Vem e vai. Sempre
olhando o horizonte e a esperar. Esperar, pelo filho amado. Único fruto de um gran-
de e verdadeiro amor. Único fruto do seu amor.
E mesmo com a iminência da morte, não conseguia sair dali.
“E se ele viesse logo hoje. E não me encontrasse? Poderia achar que eu não
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o amo. Poderia pensar que eu realmente o abandonei”.
Nada passava na sua cabeça, além da volta do filho para os seus braços.
Aquela criatura frágil, pequena, tão indefesa. Que agora, imaginava, seria um ho-
menzarrão. Lindo, forte, cheio de saúde. Com uma família linda. Filhos. Netos. Logo
ele estaria ali, no seu portão. Então, este, seria o dia mais feliz da sua vida. Mais
feliz. Por isso, não podia sair dali, prometera que estaria a sua espera. Prometera.
E promessa é dívida.
Não quebraria uma promessa. Principalmente a promessa feita ao seu filho
tão amado.
De repente, no meio daquele silêncio todo, um barulho ensurdecedor. De-
pois, outro. E mais outro. O fim se aproximara. O fim da cidade. Da história. Dos
sonhos. O fim de Dona Menina estava chegando.
Então, uma criança chega ao seu portão. Ela olha e sorri. Um sorriso lindo.
Cheio de vida. O menino abre o portão e corre para os braços de Menina, que o
abraça e o beija amavelmente.
- Eu sabia que você viria... – diz ela aos prantos – Eu sabia.
Outro barulho, então, o fim! A água toma conta de tudo, sem dó, nem pie-
dade. Em segundos, tudo se esvai para sempre, submerso na imensidão azul de
água doce.
* Marcelo Otávio de Souza é funcionário público, mora em Birigui-SP
marcsouz@yahoo.com.br
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Relógio de pêndulo
Pedro César Alves – 4.ª menção honrosa –categoria regional – Araçatuba-SP
O
tempo corria silenciosamente – a leve brisa passeava pela sala, às vezes no
sentido da cozinha para a rua, às vezes no sentido contrário. Quando vinha
da rua, trazia o suave perfume das rosas vermelhas, colhidas do próprio
jardim, e no oposto trazia o suave aroma do café.
De tempo em tempo era ouvido um murmurar: o desfiar das rezas em inten-
ções da alma que partira e, segundo os mais religiosos, fora em vida uma pessoa
de bom coração, caridosa por excelência. Os mais próximos diziam que a falecida
ia diretamente ao descanso dos justos.
Logo se silenciava tudo. Olhares contristados. O pesar continuava e era
quebrado, às vezes, por:
- Servido de um cafezinho?
E o tempo corria silenciosamente, fazendo a noite chegar envolta em seu
manto escuro, salpicado de estrelas cintilantes. As pessoas iam, aos poucos, se
ausentando prometendo voltar ao amanhecer para acompanhar o féretro ao seu
destino final antes do sol estender plenamente o seu cetro, que se faz ao meio-dia.
Aproximavam-se os ponteiros do relógio de ficarem sobrepostos na marca
inicial do novo dia – como muitos dizem. Em volta da avó, do corpo da avó coberta
de flores vermelhas cultivadas há muito tempo por ela mesma e seu desejo cum-
prido, apenas os mais próximos: filhas, genros, netos, dois ou três bisnetos – não
tivera filhos. Num canto da sala uma belíssima coroa de flores enviadas pelas Mu-
lheres da Glória – uma associação religiosa que ajudara a criar e que auxiliava os
menos favorecidos. Nos castiçais velas iluminavam – simbolicamente – o caminho
daquela alma bondosa.
Anos antes, naquela mesma sala, o corpo do avô fora velado. Mas naquela
época, sobre os castiçais, na parede, o velho relógio de pêndulo de hora em hora
emitia o seu som. Mas naquela madrugada de seu funeral soou até quatro horas
da manhã – o restante da madrugada fez-se silencioso – e continuou por todos
aqueles quinze longos anos que os separavam.
Tempos depois fora colocado, a pedido da avó, em seu quarto, o primeiro da
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casa e que dava para a sala de visitas – casa antiga. A avó, quase sempre perdida
no tempo, parecia contar o tempo junto com os ponteiros, que pareciam não se
cansarem de subir e descer.
As filhas quiseram tirá-lo dali, mas nos poucos minutos de lucidez pelo qual
passa a avó, não deixava. Alegava grande estimação por ele. Quando começava a
atrasar, pedia que renovassem as forças do mesmo – e não importava que meca-
nismo fosse que o fizesse funcionar. Era assim feito – quando demoravam a fazer
o pedido, começava a não passar bem.
Nos dois últimos anos as filhas revezavam para cuidar da mãe. Os espaços
de falta de lucidez eram bem maiores. A idade, que não era tanta ainda, mas era,
respondia a todas as indagações de seu estado de saúde.
No último semestre, com os netos e bisnetos precisando de mais cuidados,
as filhas contrataram enfermeiras para cuidarem da avó. Com todas as recomen-
dações feitas, as filhas passaram a frequentar a casa alternadamente.
Madrugada fria. O tempo corria silenciosamente fazendo-a tornar-se mais
gélida. Alguns, recostados nas poltronas próximas do féretro, ressonavam; outros,
servidos a café contínuo, papeavam sobre os mais diversos assuntos. Outros, ain-
da, haviam procurado um dos quatro quartos da casa para recostar em algum leito
– principalmente os mais jovens.
Entre os poucos presentes, acordado àquela hora e sem bocejar nenhu-
ma vez, estava ele: Toninho. Apesar do nome carinhoso, passava de um metro
e noventa, de corpo atlético, solteiro, e com mais de sete décadas de existência.
Parentesco longínquo da falecida. Criado, quando jovem, no mesmo pedaço de
chão – aquela pacata cidade interiorana. Pouco se sabia dele, ou quase nada, pois
costumava passar longas temporadas fora da cidade e, quando era anunciada a
sua chegada, comentavam:
- Alguém vai partir!
E era sempre alguém ligado a ele – mesmo que em grau de parentesco dis-
tante. Parecia um enunciador da morte; um anjo torto e negro. Chegara, em ambos
os casos – do avô e da avó – dois dias antes destes partirem para o outro lado da
vida. E os mais maldosos de alma diziam que o dia dele também chegaria – e ele
tinha consciência do fato. Pressentia a partida dos mais próximos, tanto dos que
odiavam como dos que amavam – e daquela casa pressentiu os dois lados: tanto
pelo que odiava como pelo que amava. E ela fora a única que amou em vida.
A avó fora o único grande amor em sua vida, mas que não fora correspon-
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dido – o avô chegara de outro vilarejo e na época a tomara para si. Na época não
lutara pelo seu amor, mas durante toda a vida não se afastara dali – mantinha casa
ali e à beira-mar, sua segunda paixão.
A madrugada corria silenciosamente, assim como a brisa...
O relógio de pêndulo ecoou o seu som: quatro horas da manhã! Todos se
entreolharam arrepiados e nada disseram; apenas Toninho disse:
- É o avô chegando – em tom muito baixo, que apenas os de perto ouviram,
e com certa dificuldade.
Levantou e postou-se à cabeceira direita do féretro, e resmungou em meio
tom:
- Eu não disse para você não voltar?
- ...
- Eu sei que você não prometeu, mas podia dar-me a honra de não ter este
desagravo com você.
- ...
- Sim, eu sei. Sei que fui covarde. A minha covardia fez com que o respeito
estivesse presente durante todos os dias de nossa vida.
- ...
- Entendo. Então vou partir agora...
- ...
- Claro que vou! É o meu desejo que eu faço valer agora – o que não pude
exercer a vida toda por ser um covarde.
- ...
- Não adianta falar mais nada, pois se é assim que você quer, assim vai ser
a nossa batalha final...
E largou a posição que se encontrava e dirigiu-se à cozinha – e foi acom-
panhado por mais alguns que estranharam a atitude. Na sala, a filha mais velha
que conhecia toda a história do ‘tio’ Toninho – pois era assim chamado por todos
da casa, disse:
- Só pode estar ficando louco!
Foi um alvoroço só na cozinha. Alguns gritos se ouviram no quintal, pois
seguiu para este – e o som de espadas era ouvido.
Vários homens da casa tentavam chegar perto para segurá-lo, mas não
conseguiam. A velocidade de seus braços e pernas era intensa – não parecia,
naquele momento, ter a idade que tinha.
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E durante meia hora a batalha prosseguiu. E palavras incompreensíveis
eram ditas pelo tio Toninho. Os que tentavam acalmá-lo, depois de quase dez mi-
nutos, desistiram e passaram a contemplar a luta – e comentavam entre si que era
uma luta espiritual.
Exausto, tio Toninho caiu ao chão. E simplesmente disse:
- Ele venceu mais esta vez.
Entreolharam-se – alguns entenderam, outros não. E acrescentou:
- Na próxima vida não darei chance a ele, pois me persegue há mais de
três gerações.
Em poucos minutos estava de pé novamente – como se nada tivesse acon-
tecido. Retornaram para perto do féretro. Na sala o silêncio era quebrado apenas
pelo som do pêndulo do relógio que começava a ranger cada vez mais com a
proximidade do raiar do dia...
*Pedro César Alves é professor de Português, membro do Grupo Experimental da Acade-
mia Araçatubense de Letras e filiado à União Brasileira de Escritores.
E-mail: aallcceeppee@terra.com.br
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Tiros de pólvora na
boca desarmada
Valdecir Roberto de Oliveira – 5.ª menção honrosa – categoria regional – Araçatuba-SP
S
e escondia ao meio fio da pilastra de uma casa antiga no meio do quarteirão.
Boca nervosa, o perigo na vidraça. Lá de cima alguém olhava... Holofotes,
sirenes se ouviam do outro lado da cidade, que repartia o céu escuro em
crimes e aviões noturnos.A fumaça subia em círculos, o lábio escarlate o salto alto.
Um gosto de Cibalena mastigada amargamente para aliviar a dor que casti-
gava o diafragma. Uma lua prateada feito papel alumínio em um cenário de teatro
pendurada, a imagem de um deus Jorge matando o dragão sem a espada. Um
homem de pulôver vermelho rondava na madrugada.
A rua deserta, o medo de ser descoberta aquela hora depois da meia noite.
Mas ali estava. Queria carne na carne, mão na virilha, amor na casa antiga. Ela
espiava.
Chegou do nada. Um aroma Chanel, um vento do atlântico, lascou-lhe um
beijo molhado, língua na língua, um arrocho de motel. Quebrou-se a vidraça. Ne-
nhum pároco, nenhum ateu, apenas uma bala perdida e dois corpos na calçada.
*Valdecir Roberto de Oliveira é professor de Português, Araçatuba-SP
E-mail: valdecir_r.oliveira@hotmail.com
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Categoria
nacional
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A Borboleta Azul
Andreia Fernandes Soares Leite – 1.º lugar -categoria nacional – Rio de Janeiro-RJ
A
estação do metrô, cheia. Os trilhos vibram e, em instantes, o facho de luz
surge, os faróis saltam do túnel negro. O trem aproxima-se, veloz. Pessoas
se aglomeram e se empurram. Uma mulher de cabelos compridos, pretos,
blusa branca, na beirada da plataforma. Santiago a vê, de costas. Vê também o
esbarrão, proposital. Ela cai. Agonia de ferros. O ruído estridente. Faíscas. Tudo
escurece. Uma borboleta azul voa em meio ao breu.
A visão ocorreu pela primeira vez, quando Santiago atravessava a Rua Ba-
rata Ribeiro, na faixa de pedestres. De repente, o chão se rasgou, ele despencou.
Nas profundezas, crimes e borboletas. E já estava de volta à rua. Mas entre buzinas
e gritos.As pernas trêmulas, vertigem. O sinal tornara a abrir e ele parado, no meio
dos carros. No meio do tumulto. Com esforço chegou até a esquina, sentou-se
numa lanchonete. Pediu um café.
Permaneceu quieto, deixou a bebida esfriar. Pensou que estava enlouque-
cendo, pensou em ir à polícia, pensou em procurar um pai de santo. Deixou-se ficar
no bar, olhava as pessoas, os carros e, quando o tremor das pernas e a vertigem
passaram, pagou o café que não tomara e foi trabalhar.
Alguns dias depois, o crime no metrô apareceu estampado nos jornais. A
imagem, captada pelas câmeras de segurança, idêntica à que ele vira. Apenas
duas coisas não coincidiam. A manchete noticiava a morte como acidente. E a
borboleta azul não aparecia na foto.
Após esse incidente, outras visões aconteceram. Foram poucas, mas tudo
se concretizava conforme previa. Não foi à polícia. Marcou e desmarcou algumas
vezes a consulta com o psiquiatra, tinha no celular o telefone de um pai de santo.
Resolveu, sozinho, investigar. Da última vez, não impediu a tragédia por alguns
minutos. Faltou acreditar o suficiente.
No momento, Santiago observa a Praça do Lido. Não tem certeza. Nunca
tem. “É nessa praça”, pensa. “Passava aqui quando aconteceu.”
Uma mulher caía do alto de um prédio. Nítido, somente os cabelos pretos
sobressaindo nas paredes brancas de um edifício velho. Mas na Praça do Lido, são
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muitas as construções antigas, com paredes brancas.
Santiago olha o relógio. Deveria estar no metrô, a caminho do escritório.
Deveria. Cumprir horários. Deveria também parar com toda a insensatez, a in-
consequência. Já era homem de paletó e gravata, tinha importância atestada em
inúmeras contas a pagar e conta bancária no vermelho. No entanto, sua pressa é
somente descobrir de onde cairia o corpo. A premonição lhe aparece com apenas
dias de antecedência. Precisa agir rápido.
A praça, cheia de gente. Nos pontos de ônibus, nos bares, nas calçadas.
Segunda-feira. Extremamente sem importância, com dúzias de pessoas que do-
bram esquinas, acertam o ritmo no compasso dos ipods.Apressam-se. Ele imagina
quantos, entre tantos, são assassinos. Se suas almas nunca ficaram perdidas em
alguma noite tenebrosa. Se os sonhos não escaparam em remotas madrugadas.
No entanto, a rua fervilha de insignificâncias.
Os olhos se dirigem instintivamente para as sombras que se movem no
apartamento do oitavo andar de um edifício antigo. Na janela aberta, uma colcha
grená serve de cortina. Uma figura feminina aparece rapidamente. Santiago tem
um sobressalto, o coração dispara. Um leve tremor nas pernas, vertigem. A mulher
fecha os vidros, ele demora em recompor-se. Olha toda a volta e outras janelas
estão abertas. “Calma. Não se precipite”. Vai até um bar. Pede um café.
No botequim da esquina, senta-se numa mesa, à calçada, sem perder de
vista os prédios. Desistira de ir ao escritório. Com um suspiro de alívio, lembra
que não é mais imprescindível. Ninguém sentiria sua falta. Somente ele, no dia do
pagamento. Propôs-se a ficar de guarda, iria até o fim. Quem sabe possa impedir
alguma coisa.
É uma segunda-feira nublada, de céu carregado de nuvens feito chumbo.
Fecha os olhos e o corpo que cai surge, nítido. Na praia, o Atlântico ruge. Ressaca.
Rostos e restos de uma vida sem grandes atribulações atravessam a cabeça.
Marisa, linda. O pai, o irmão, Vinícius, a borboleta azul, a moça no metrô.
Uma garota, desconhecida e nua na sua cama. Vinícius no caixão. Marisa, sempre
linda, com as malas e as crianças no aeroporto. O embarque para Uruguaiana. A
borboleta, Marisa grávida dos gêmeos. Os faróis do trem, faíscas azuis. Toma um
gole do café, frio. A bebida desce amarga. Marisa levara para o Sul, os filhos pe-
quenos. A falta dos meninos espatifou-se na calçada.
Vinícius. Madrugadas inteiras a pretexto de estudar. Não abriam o livro. O
silêncio entrecortado por música e mar. Vinícius tocava piano, violão e flauta trans-
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versa, de ouvido. Santiago não tocava nada, era incapaz de juntar duas notas sem
desafinar. Mas ouvia de qualquer lugar de Copacabana, o Atlântico.
Enquanto Vinícius compunha, Santiago escutava o bramido do oceano. Foi
quando compreendeu o rugido que, de vez em quando, ouvia. Desde menino.Ama-
nhecia e os dois saíam com cara de ontem, a espantar o mundo.
— Somos espantalhos de nós mesmos — dizia Vinicius. — Precisamos
nos defender dos pássaros agourentos que nos vêm devorar a alma...
Veio o namoro com Marisa. Linda, parecia de outro mundo.
Vinicius avisou:
— Cuidado. Uruguaiana não é outro mundo. Mas pode ser o fim do mundo.
“Ciúmes!”, pensou Santiago. Tornou-se advogado, casou-se. E com o ami-
go, brincava:
— Inveja sua, porque ela é mais bonita que você!
Vinícius continuou nas madrugadas, vivendo na beira do mundo, pendurado
em um instrumento. E, com cara de ontem, espantava o mundo e os corvos prontos
a devorá-lo. Mas foi um caminhão que engoliu Vinicius por inteiro. Um dia, Santiago
passeava com a mulher e os filhos na praia e percebeu as ondas longínquas, dis-
tantes. Já não retumbavam no peito. Desacostumara-se ao mar, perdera a afinação
com o oceano. Ele não sabe se foi antes ou depois do acidente. Entretanto, só com
a separação, Santiago foi até o fim do mundo.
Após a faculdade, prestou alguns concursos, fez carreira, ficou importante,
lidava com o alto escalão. De repente, abandonou tudo. Foi também nessa época
que não só o chão, mas a terra inteira rasgou-se. Santiago foi atirado às pedras
e depois ao mar. Braçava afogado, no fim do mundo. Tentava alcançar a mulher,
porém ela foi embora com as crianças para o Sul. O pai suicidou-se, o irmão pirou,
porque as desgraças andam todas de braços dados, irmãs que são.
Navegou em profundezas, fez algumas descobertas. Dentro dele, habitavam
muitos. Um entrevia fantasmas, outro nadava ao lado de Janaina. Havia ainda um
poeta que sabia de cor versos de Camões. Um chato, leitor assíduo de José de
Alencar. E um louco ouvia o Oceano Atlântico de qualquer lugar de Copacabana.
Não cabiam dentro do paletó.
Então tangenciou a correnteza e voltou para casa. Sozinho.Voltou também a
escutar o bramido do oceano. E como as desgraças ora vêm em torrentes, ora em
conta gotas, mas nos rodeiam todos os dias, largou o emprego público.
— Ficou maluco, Santiago? — perguntaram os amigos.
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— Não. Afrouxei o nó da gravata.
Absorto em pensamentos, ele não percebe as nuvens mais carregadas no
céu. Toda a Praça acinzentou-se, escura. Apesar do mau tempo, agita-se. É vés-
pera de Natal. Só então olha para cima e percebe a janela do oitavo andar. Está
aberta de novo.
O coração dispara, as mãos tremem.Tenta segurar a xícara, derruba o café.
Outras lembranças o assaltam. Ana. O rosto desfocado. Anucha. Nas feições difu-
sas, só os olhos. Negros.
“Misturas que dão encanto à vida...” a frase dita há muitos anos. Ana não
deixou de ser um resto, um ponto, um nó. Uma mancha quase apagada. Quase. Há
vinte anos. Nunca mais se viram.
O corpo dele encolhia-se quando ela sentava-se ao seu lado, no banco da
escola. Ele, um dos melhores alunos da classe, ela, uma das últimas. Ele destinado
a uma carreira promissora, ela desde os tempos de colégio, a saia curta, as pernas
cruzadas, os botões da blusa abertos no limite do sutiã, além do permitido.
— Ana não é para você. — diziam os colegas.
Mais tarde descobriu o contrário. Encontraram-se numa festa de Ano Novo,
ele casado, ela divorciada pela segunda vez. Dançaram juntos, uma única música.
— Você tinha medo de mim — ela lhe segredou ao ouvido.
— Claro. Seus olhos misturavam todas as loucuras do mundo. A solidão
gelada e devastadora das estepes russas e o calor dos corpos suados em pleno
bloco de carnaval.
— Que loucura, Beto! — Beto era o apelido de juventude.
— Para um garoto de quinze anos, assustador. Ainda não sabia que são
essas misturas que dão encanto à vida.
—Mesmo que junto do encanto venha a insanidade?
— A loucura chega de um modo ou de outro.
Santiago lembra-se do instante em que se olharam. A fagulha da adoles-
cência teimava nalgum canto dos olhos. No rosto, ranhuras leves de alegrias e de-
cepções. Nos ombros, já pesavam traições, remorsos e outras pequenas tragédias.
Ana se tornara bailarina, integrava uma companhia no exterior. Naquela
noite, Santiago soube que o caso duraria enquanto durassem as férias no Brasil.
Soube também, que começava naufragar. Imaginou o que teria sido deles se no
lugar de se assustar com os seios, tivesse mergulhado em seus olhos, aos quinze
anos. Separaram-se. Nunca mais a viu.
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Ele espanta a imagem de Ana, mas a lembrança ressurge. Ela o deixou a ver
navios e o gosto do sal deixado na boca, despertou um mar inteiro. Com o tempo,
certas coisas voltaram a ter sabor de infância. O caldo verde de um botequim perto
de casa. Tomado lá pelas três da manhã, curtido no fogo. Nas madrugadas de
sábado, chegam os travestis, as putas, mendigos de rua, curiosos e desavisados.
Ao meio-dia ainda tem gente bebendo, comemorando não se sabe o quê. Falando
bobagem. Ou delirando, sonhando, enlouquecendo.
No oitavo andar, a janela aberta. A cortina grená balança. Santiago sente o
coração disparar. A visão da mulher caindo do alto atravessa os pensamentos. Os
cabelos negros, no branco. O cérebro apressa-se. Sente a urgência, quase certeza.
Levanta-se, paga a conta, cruza a praça. Segue em direção ao edifício, sem desviar
os olhos da janela aberta, a cortina grená. No caminho, certifica-se da antiga arma
no bolso do casaco, comprada quando era delegado de polícia. Está um pouco
enferrujada, mas ele não presta a menor atenção a este pormenor.
Na portaria, um turbilhão de pessoas, fazendo as últimas compras. O prédio
é um misto de residencial e comercial.Analisa a posição da janela, sobe ao primeiro
andar. Procura a loja correspondente: é a de número 111. Retorna. O porteiro entre
confuso e espantado diz que a moradora do apartamento 811, chama-se Teresa.
O elevador lotado é lento e para em quase todos os andares. Santiago sente
a pouca certeza desaparecer. “Você é mesmo louco”, pensa. “Filho e irmão de
maluco”. Imaginou-se tocando a campainha, a porta se abrindo. “Dizer o quê? O
melhor é ir embora.” Um leve tremor nas pernas, vertigem. No elevador fechado, o
mar ruge. Rostos e restos na cabeça. O pai, o irmão, Marisa, os filhos.Anucha.Ana
alguma coisa. Criada pela avó, imigrante russa. Decide saltar no próximo pavimento
e descer pelas escadas. Justamente o oitavo andar parece não ser o destino de
ninguém. Todos se entreolham. Santiago, ainda meio tonto, sai do elevador.
No corredor escuro, escuta vozes sobressaltadas. Corre. Vêm exatamente
do 811. A porta escancarada aumenta o tremor, a vertigem. Ele pega o revolver,
avança com a arma em punho. Roupas e objetos pelo chão. No quarto conjugado,
um homem tenta sufocar uma mulher, na cama.
— Parados!
O homem se assusta. Empurra o suposto policial de encontro à parede e
desaparece pela porta aberta. Santiago aproxima-se da mulher, imóvel. De repente,
para, incrédulo, diante do que vê.
Ana Teresa abre os olhos, zonza. Respira com dificuldade. Mal consegue por
51
em ordem os pensamentos. Um homem há pouco tentava sufocá-la e agora outro,
armado, está diante dela. O rosto desfocado, adquire nitidez. Murmura:
— Beto...
— Anucha... — ele balbucia.A expressão de horror, o olhar fixo para o lado
de fora.
Ela vira-se para janela. Do outro lado da Praça, o corpo de uma mulher
despenca do alto de um edifício. O cabelo preto sobressai nas paredes brancas.
*Andreia Fernandes Soares Leite, profissional do teatro, Rio de Janeiro – RJ
E-mail: andreia.fernandes@oi.com.br
52
O Salto
André Silva Pomponet – 2.º lugar – categoria nacional – Salvador-BA
Q
uando chegou ao alto do monte, sobre as pedras, resfolegava. Uma cabra
berrava, diminuta, num capinzal verdejante no sopé do monte, na periferia
de Itaberaba. Alguns sujeitos corriam atrás de uma bola de couro, num
campo de barro, dezenas de metros abaixo. Um caminhão engendrava manobras
difíceis na estrada estreita, barrenta, lá embaixo. Mais distantes, luzes se acendiam
em casebres pobres, no Jardim das Palmeiras. Sons alcançavam o cume do mor-
ro, distorcidos. Eram imprecações, canções, conversas em tom rude, ralhos com
crianças, resmungos.
Atrás, fincadas no solo ressequido do monte, repousavam imponentes tor-
res metálicas. Quando a noite caía, acendiam-se no topo pequenas lâmpadas ver-
melhas, muito vivas. Contrastavam com a luz alaranjada das lâmpadas dos postes
da iluminação pública.
As imensas rochas escurecidas pelo limo eram imponentes. No sopé do
monte, disputavam estreitas faixas de terra fértil com o capim viçoso. O tempo
aplainara a aspereza das pedras, arredondando-as.
Suspirou. Fechou os olhos. As têmporas latejaram. Olhou a vegetação ras-
teira dos morros em volta. O sol repetia o imemorial mergulho no horizonte. Nuvens
róseas e azuladas acumulavam-se no poente. Aves brancas voavam com sincronia
sobre a cidade.
Precisava dar o salto definitivo. Não havia jeito, era uma questão de honra.
Ainda que não o testemunhasse, ainda que não colhesse o olhar de espanto e res-
peito dos que o conheciam. Por que permanecer na interminável roda, amando e
odiando, comendo e bebendo, sofrendo e rejubilando-se, observando impassível ou
agindo febrilmente, perpetuando o ciclo, o interminável fim e o eterno recomeçar?
Por que testemunhar sorrisos e lágrimas, expectativas e frustrações, desprendi-
53
mentos e iniquidades, triunfos incontestáveis e derrotas acachapantes?
Melhor o salto. Mas e os sofrimentos decorrentes? Maria e as crianças...
Seus pais... Seus irmãos... Os companheiros de jornada... Pensava demais nos
outros, era um defeito imperdoável. Carecia da objetividade, do egoísmo material.A
abnegação é a virtude dos fracos, dos pusilânimes. Sempre tão correto, tão auste-
ro, tão movido por uma força interior, tão racional, tão previsível, tão agradável, tão
cheio de virtudes, de preocupações com o próximo. Um fraco, um decadente, um
cristão, um enamorado por uma humanidade utópica, inexistente.
Dois passos e o salto, a Liberdade imperdível, completa, sem concessões,
sem subterfúgios, sem máscara. E o grande momento, o instante mais marcante,
o corpo caindo e o êxtase arrebentando no peito, arrebentando o próprio peito em
alguns segundos, abrindo-lhe perspectivas, caminhos jamais trilhados, desafios
inimaginados, mesmo que o mergulho o afunde no Grande Nada, na ignorância que
transcende a indiferença mineral, na absoluta solidão da inexistência, cuja sutileza
escapa às limitações do seu cérebro humano. Como equiparar seus preconceitos
a este grande momento?
A mulher. Os filhos. Os pais. Amigos, colegas. A opinião pública. A religião.
Os preconceitos. Os dogmas.A ideologia cristã. Nada se equiparava, nada. Nada. O
Grande Nada era a ideologia das possibilidades, o último refúgio, o refúgio eterno.
Mas e a coragem? Faltava-lhe... Um choque na rocha a uma velocidade
crescente destroçaria o frágil corpo, torná-lo-ia irreconhecível. Bombeiros prague-
jariam, escalando o penhasco, para resgatá-lo e conceder-lhe um enterro cristão.
Enrubesceu ao pensar que arranjaria tarefa embaraçosa para outros, mesmo de-
pois de morto. E se prosperasse a versão de que ele caíra acidentalmente? E se
dissessem que foi empurrado, talvez vítima de um criminoso ignóbil? Não trouxera
papel, não poderia escrever uma mensagem lacônica despedindo-se, não com-
binava com a postura despojada que pretendia adotar, partindo sem despedidas
prévias, sem os grilhões das explicações corriqueiras, das inevitáveis e penosas
justificativas. Só que lhe faltava a coragem, a insensatez de romper, de revoltar-se.
O salto era a redenção, a suprema inspiração, um momento brilhante res-
54
plandecendo em meio à mediocridade da vida cotidiana. Carecia daquele instan-
te notável, que o redimiria de todos os pecados anteriores. Comia. Bebia. Fodia.
Suportava a mulher, que suportava-o. Educava os filhos com preceitos vagos,
esquecíveis. Demonstrava amabilidade com os pais. Era um amigo prestimoso.
Nos eventos sociais, desfiava conceitos respeitáveis. Não apregoava revoluções.
Respeitava a propriedade privada dos meios de produção. Concordava com os
editorialistas dos jornais, que coincidentemente pensavam o mesmo que a classe
patronal. Entretinha-se com as reportagens banais e absorvia vorazmente os con-
ceitos implícitos que exaltavam e exultavam o despertar de uma cidadania aleijada.
Enfim, era um pústula, como todo mundo.
Aos domingos visitava shoppings com a mulher e os filhos. Bebericava
chope, enquanto as crianças devoravam sorvetes. Depois comprava uma camisa
colorida, demonstrando sua perfeita sintonia com a vida. Íntimo da vida, alegre
com a vida. Celebrando a vida através do consumo. Gozava as férias em janeiro,
partindo para destinos que sua respeitabilidade previa, mergulhando no turbilhão
de consumo que sua condição social impunha, extasiando-se com as mesmas
interjeições dos que frequentavam seu círculo e até mesmo enfastiando-se com o
mesmo fastio dos que vivem sob confortáveis condições materiais.
Depois, a rotina, o repetir das manhãs e tardes da repartição, o aconche-
gante repouso noturno em seu lar burguês, a manhã e a tarde seguintes, as reu-
niões familiares nos finais de semana e o aguardar ansioso das próximas férias,
que seriam precedidas por projetos sustentados com os mesmos argumentos das
férias dos anos anteriores. Por fim, era o suceder dos anos e as preocupações de
cada faixa etária e a inquietação crescente à espera do momento definitivo, de
ajustar contas consigo mesmo e resvalar para a cova.
Eis o resumo da ópera. E eis o epílogo a ser transformado com mais dois
passos. Um pequeno e inexplicável passo para a humanidade, mas o passo mais
importante de sua vida insípida. Mas cadê a coragem? Cadê a intrepidez dos gran-
des espíritos que praguejaram contra a mediocridade, a rotina, o corriqueiro? Fra-
quejava! A ideia atiçara-lhe o espírito, mas ele fraquejava, covardemente.
Recuou. Recuou dois passos. Alguns passos. Muitos passos, até chocar-se
55
com uma rocha e agarrá-la com firmeza, como se estivesse à beira do precipício.
Galgou-a, contornou a igreja que não frequentava por desleixo havia meses, come-
çou a descer a ladeira íngreme que conduzia à cidade, de retorno. Mas foi caute-
loso, porque havia lama acumulada e ele temia machucar-se, caso escorregasse
e caísse...
André Silva Pomponet é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental na
Secretaria do Planejamento da Bahia, mora em Salvador
E-mail: andrepomponet@hotmail.com
56
A Terceira Desconexão
Hilário de Sousa Francelino- 3.º lugar – categoria nacional – Cerqueira César – SP
P
ostagens na tela do memorímer mostram-me a calorosa discussão sobre
anencéfalos, na aleatoriedade da rede social. Conceito de vida em furiosa
construção. Não que as publicações polêmicas sejam incomuns, mais do
que isso; a discussão do que define tudo o que é animado me devolve a memória
dos tempos em que Fabrisbão e eu éramos bons amigos. Embora eu fosse de
esquecer essas notícias, senti-me particularmente ofendido por minhas ações sem
pensar, sem razão: haveria pena de morte sobre mim? Houve um tempo em que
impunha minhas definições, a troco de relações, no câmbio desumano. Desânimo
do desnecessário: agora meus conceitos eram outros, e tenho uma amizade a
menos. Pago sempre pela forte opinião.
No entanto, nem mesmo a memória de Fabrisbão desviou minha mente das
então atormentações do amor, há muito tempo sido ideais. Mandei uma mensagem
para Evania, a saber, qualquer coisa sobre a vida; buscando conciliação? Hoje o
conceito de amor, inabalável, estava como de costume, nas indefinições de tudo
o que é contemporâneo. A tela movia-se ao sabor dos meus dedos sequiosos por
atualizações do perfil público de Evania, pertencida. Não a mim. Será? Desfiz-me
do luxo de generalizar o território de seu reinado, somente porque a idade trouxe al-
guma espécie de cautela. Alguns toques, os dedos: eslidando, deslisandinos. Des-
deslizes. Naquela hora eu não sabia dizer se eu estava na faculdade, no trabalho,
ou no quer-que-seja, tão repentinas foram as mudanças, e tão atemporais também,
como em mesma intensidade a minha atenção foi escassa. Falafael, de sobrenome
impronunciável, pregava um grande respeito às mariposas de refeitório, que não
aterrissariam na cafeteria ao acaso. As das asas de ramos desenhadas. Dizia que
sempre houve os mensageiros borboletais, cuja presença na mente do homem
era fato previsto e certo. Missões advisórias, ofuscantes de calma. Contudo novo,
elas estariam completando a atualização que permitiria acessar o cerne humano
via telefone móvel, ou memorímer - que se usa mais. É que não se pode mais
fazê-lo diretamente, desde uns anos. Procurando pelo fluxo, corpos de pessoas
numa massa só, certeiras, compassadamente: era, sem dúvida, o fim do meu dia
57
na voz das tarefas. Eu bem provável. A qualquer momento um sorriso que fosse,
Evania transmutaria bites em batimentos do meu coração, ou o que fossem os
reais químicos correspondentes a caracteres. Desentendemo-nos e ela demarcou
distância, já faz dois tempos.Viver perde muito do sentido na falta de Evania, manti-
das minhas definições, as biológicas, o fundo do respirado, uma vez reprovadas na
fala de Fabrisbão. Há, e o que acho, pistas e só, e termina que vida não se define;
mas este sou eu. O que mais se antagoniza? Demanda de me informar. Nem isso.
A discussão tomou rumos adolescentes, naquela época, e agora não posso pousar
olhos adultos sobre minhas ações se meus dedos atualizam irracionalmente uma
tela de rede social; embaralhamentos.
Um olho no memorímer e outro no braço sem relógio. Banco de trem finje
que não sai do lugar. Assim, sentei como se normalmente não mais, nem um trem
comporta, em alternações, o padrão preenchido, povoado; bilhete na mão, sorriso
cerrando. Muito embora cansaço por cansaço, admitido na precipitação do segun-
do. A voz e a vez, como o cobrador recebe o bilhete no cru daquele instante, e eu
sentindo falta de antigamente. Não quis saber o destino, como eu bem poderia
a princípio. Que Evania não me ignorasse mais... Senti que desejáveis. Nem dei
atenção para os computadores, informamundos, cheios de itinerários, mas sem
informações de consolo. Servidores. Embarquei para procurá-la ou, menos preci-
samente, rumei à casa; a minha? Contei nos dedos os pontos negativos que enfei-
tavam as chances de eu encontrar alguém; acertos de que mesmo? Atualmente,
a meada já vem desfiada. Quando criança, o medo de se perder estava estam-
pado no bilhete do trem. Os anos passaram sem esforço; as provisões acabam,
e desapercebe-se, negligenciadas, tornando-se ilusões do inútil. Os mais novos
retiram o néctar do momento, minutórios.As previsões são madrastas, cabalísticas;
mas ignoradas, em um balanço penoso. Não andei tanto, mas para a frente que
fui, eu iria virar para trás, voltarrego, desistente? Funciona, porém; então deixai a
continuação das gerações tomarem suas formas. Sem reserva de baterias, uma
esperança baseada em razão para não enlouquecer em aguardar uma mensagem-
-resposta. A tela alheiava-se. Com esperança, peço aos céus um retorno certo,
preciso. Dança de trem no verso dos trilhos com a barra do dia. Tardezarrão que
puxa a noite pelos cabelos e eu só vendo, no balanço do coletivo. Pensamento no
intangível, eu esqueceria o bocado demorado, para mais um desencontro? A bordo
de ti, conquanto longe? Trendências. O amor renova as esperanças na entidade
do erro, instigando novas tentativas ininteligíveis. Inquietação maior foi aquela, no
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O livro

  • 1. 1
  • 2. Copyright © vários autores Edição e revisão: Hélio Consolaro Capa: Hugo Santos Rocha Editoração gráfica: Celso Nicolete CTP e Impressão: Editora Somos - (18) 3636.7790 Secretaria Municipal da Cultura Rua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280 Araçatuba - SP secretariacult@gmail.com - (18) 3636.1270 concursodecontos.blogspot.com Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Índices para catálogo sistemático: Contos vencedores 2013. -- 1. ed. -- Araçatuba, SP : Editora Somos, 2013. Vários autores. “26º Concurso de Contos Cidade de Araçatuba”. ISBN: 978-85-60886-69-2 1. Contos brasileiros - Coletâneas. 13-09081 CDD-869.9308
  • 5. Prefácio Emília Goulart* O concurso de Contos Cidade de Araçatuba em 2013 nos surpreendeu com o grande número de participantes, mas não foi apenas o número. A quali- dade também está chegando junto. Tive o privilégio de ler ótimos contos, a certeza de que o concurso caminha para ocupar lugar de destaque no âmbito internacional. Sou veterana em concursos de contos, participo para vencer, mas, ganhar nem sempre é possível. Há dois anos não participo deste, pois venho participando de sua Comissão Julgadora, mas concorri em outros. Bebi “Licor Beirão”, mas era dia de “A Borboleta Azul” fazer sua festa. Ado- rei ver a “Mariposa” pousar ao lado “Da Joana. Só...”, ambas estavam no mesmo “Navio”. “O Salto” para “A Terceira Conexão” me permitiu numa “Fotografia Antiga” rever “O Chão Longínquo das Quimeras”. Era um “Santo Feriado”! Sim, bebi desta fonte enriquecedora, ver no mesmo gênero de literatura, estilos diferentes disputarem o primeiro lugar. Outro prazer que desfrutei nestas leituras foi constatar de que os contos regionais têm condições de concorrer com os internacionais e nacionais. Um bom conto é aquele bem apresentado, sem gor- duras expostas, sua estrutura vai se adequar ao regulamento sem perder a estéti- ca. Ótimo conto é aquele que vai além, prende a atenção do leitor, cria expectativas e surpreende no final. Encontra-se tudo isso nos vencedores. Não apenas neste, mas, em todos os concursos. Não é tão fácil ser classificado num concurso de con- tos, porém vale ouro participar. Parabéns aos vencedores, parabéns aqueles que receberam menção honrosa e parabéns a todos aqueles que participaram. Já estamos na 26.ª edição do Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, desde 1985.Tomara que ele nunca saia das ações da Secretaria Municipal de Cul- tura de Araçatuba-SP-Brasil. Por ele, muitos ganham visibilidade e consagração. * Emília Goulart, escritora, contista, participante do concurso por várias vezes, atualmente sendo membro da Comissão Julgadora, membro da Academia Araçatubense de Lertas e da União Brasileira de Escritores.
  • 6. 6
  • 7. 7 Sumário Categoria regional 1.º lugar - O navio Carlos Eduardo Marotta Peters - Araçatuba-SP................................................ 12 2.º lugar - MARIPOSA Maria Luzia Villela - Araçatuba-SP................................................................... 18 3.º lugar - Joana, só ... Regina Ruth Rincon Caires - Araçatuba-SP..................................................... 22 1.ª menção honrosa - Cachos de menina Breno da Costa Alves - Penápolis-SP.............................................................. 29 2.ª menção honrosa - Coisas de Diário Larissa Ruffato de Angelis - Araçatuba-SP....................................................... 32 3.ª menção honrosa - Conto de um amor sem limites Marcelo Otávio de Souza - Birigui-SP.............................................................. 35 4.ª menção honrosa - Relógio de pêndulo Pedro César Alves - Araçatuba-SP.................................................................. 40 5.ª menção honrosa - Tiros de pólvora na boca desarmada Valdecir Roberto de Oliveira - Araçatuba-SP.................................................... 44
  • 8. 8 Categoria nacional 1.º lugar - A Borboleta Azul Andreia Fernandes Soares Leite - Rio de Janeiro-RJ........................................ 46 2.º lugar - O Salto André Silva Pomponet - Salvador-BA............................................................... 52 33.º lugar - A Terceira Desconexão Hilário de Sousa Francelino - Cerqueira César – SP......................................... 56 1.ª menção honrosa - Sobre Velhos e Pombas Marcelo Lilla - São Paulo-SP.......................................................................... 60 2.º menção honrosa - A margem oposta Gilson Borges Corrêa - Rio Grande - RS.......................................................... 64 3.ª menção honrosa - Em fogo baixo Ivane Laurete Perotti - Sete Lagoas-MG.......................................................... 69 4.ª menção honrosa - Hassan-i Sabbah Arthur Cristóvão Prado - São Paulo-SP............................................................ 74 5.ª menção honrosa - Mistérios do Indizível Valmir Luís Saldanha da Silva - Araraquara-SP................................................ 81
  • 9. 9 Categoria internacional (mundo lusófono) 1.º lugar - A fotografia antiga Daniela Macário Resende - Vila Nova de Paiva - Portugal................................. 86 2.º lugar - O chão longínquo das quimeras Rui Miguel Dias Carvalho - Alfornelos Amadora - Portugal................................ 95 3.º lugar - Santo Feriado Marcella Rodrigues dos Reis - Queluz - Portugal............................................ 102 1.ª menção honrosa - Depois do escape Antônio João Maduro Guerreiro - Peniche - Portugal...................................... 108 2.ª menção honrosa - Licor beirão Teresa de Jesus Ferreira Teixeira - Vila Nova de Gaia - Portugal...................... 115 3.ª menção honrosa - O Anjo Purificador Joaquim Bispo - Odivelas - Portugal............................................................................121 4.ª menção honrosa - Sombrinha Colorida Solange Fischer Bernardino - Balingen - Alemanha........................................ 125 5.ª menção honrosa - Vista para o rio Maria de Fátima Correia Santos - Lagos - Portugal ...................................... 128
  • 10. 10 Contos da comissão julgadora O bilhete Antonio Luceni............................................................................................. 134 O Cão e o chapéu Emília Goulart.............................................................................................. 137 Dados sobre o concurso de 2013 Comissões julgadoras Comissão A - Comissão B............................................................................ 142 Homenageado CÉLIO PINHEIRO – “UM HOMEM ABSORVIDO PELAS LETRAS”........................ 143
  • 12. 12 O navio Carlos Eduardo Marotta Peters – 1.º lugar – categoria regional – Araçatuba-SP O navio ancorou no porto às cinco da manhã. Seu apito agudo acordou a cidade. O negrume da noite ainda era intenso. A chuva não dava trégua. O vento frio sibilava por entre as ruelas estreitas, filhas de uma arquitetura antiga que se mantinha de pé a duras penas e conseguia ainda estabelecer limites para o fluxo intenso de homens dos novos tempos. E, no entanto, quão desertas permaneciam no raiar do dia. A ausência de pessoas permitia aos caminhantes noturnos observar o brilho da fraca luz dos lampiões refletir na pedra negra das calçadas. As fachadas de pedra lavada pareciam túmulos grosseiros, cuja solidez era vez por outra interrompida por portas e janelas de tamanhos e estilos variados, colocados ali, como podia perceber qualquer observador atento, muito tempo de- pois das construções terem sido erigidas. Pouco a pouco, entregadores, padeiros, quitandeiras, carteiros, pedreiros, engraxates, sapateiros, domésticas, andarilhos, policiais, taberneiros, médicos, ad- vogados; toda a gente da cidade saiu da toca. O sol não estava no céu para recebê- -los, nem o dia se fez belo, com aromas primaveris e pássaros em êxtase sobre as árvores. O dia nasceu no prolongamento da noite; um irmão mais novo que imita seu ídolo como uma sombra exígua. Os passageiros do navio começaram a se preparar na noite anterior. Esta- vam espalhados pelos hotéis vagabundos próximos do cais do porto, vigiados de perto por policiais elegantemente trajados com uniformes negros. Eram policiais diferentes. Não estavam ali para combater nenhum crime ou evitar tumultos à beira da praia. Sua função era vigiar e propiciar um embarque eficiente no gigante ancorado solitário no porto. Eu, por outro lado, pude escolher uma pensão distante, apesar de ser também passageiro do navio. Acordara por volta das quatro da ma- drugada, incomodado com o miado dos gatos do beco. Minha pequena mala ficou pronta poucos minutos depois. Havia pouca coisa para levar. Havia muita coisa para esquecer. Na noite anterior, contatei uma dessas mulheres que fazem ponto nos ba- res da orla. Eram raras nesses dias, e também caras. Sua profissão já quase se
  • 13. 13 extinguira e seu medo de ser flagrada fez o acordo demorar longos e preciosos minutos para ser fechado. Armamos um grande esquema e ela conseguiu entrar pela janela de meu quarto modesto. Era já uma mulher madura, experiente nessa vida das ruas. Conservava ainda certo frescor no corpo, mas seu rosto carregava marcas indeléveis de anos de incertezas e frustrações. Ela chegava a ser bela, mas daquelas belezas tênues, que já parecem prontas para evanescer com um sopro sutil. Vou carregar na memória a imagem de seu corpo nu diante da luz amarela da lâmpada empoeirada e os gestos gentis e suaves que fez ao deitar-se na cama. A pobre mulher deve ter se surpreendido também, mas com meu nervosismo e cavalheirismo. Ela foi para mim uma espécie de prêmio antes da partida. Dei a ela quase todo o meu dinheiro. Teria dado tudo, se não tivesse que pagar pelo quarto e comer na manhã seguinte. Após sair da pensão, pela manhã, caminhei pelas cercanias do porto por um tempo. Dali observei a cidade que se projetava morro acima. Não era grande. Era um amontoado escuro e ensebado de construções velhas e anacrônicas, que permaneciam em pé não se sabe bem por que, enquanto as ruas se enchiam de coisas que lembravam vários tempos. Aquilo parecia um amontoado de memórias bêbadas, arranjadas de súbito para alguma festa, mistura intragável de cores, sa- bores e formas. Carruagens elegantes e roupas francesas não combinavam com aquele monstro antigo e cascudo. Mas estavam lá, pavoneados displicentemente por quem pudesse pagar por eles. Eu também era antigo e anacrônico. Era um filho da cidade, daqueles que nascem, crescem e morrem com ela. Não gostava da agitação e das novidades da metrópole, mas era um não gostar arrependido, preguiçoso, fruto da falta de vitalidade ou de educação adequada. Não gostava de luzes incisivas que não deixavam espaço para sombras e nuances. Naquela manhã cinzenta, a cidade pareceu excessiva para o número de ha- bitantes. Com muita dificuldade eles ocupavam seus espaços. Pareciam os homens dali pequenos diante das construções mais verticalizadas. O silêncio era solidário com a insuficiência de homens. A cidade funcionava com murmúrios. Fazia anos que a cacofonia local havia arrefecido. Sequer a feira semanal era capaz de desper- tar um velho de sono leve. Cidade estranha, cidade tornada estranha. Aquela caminhada foi minha despedida. O navio partiria em uma hora. Fu- mei meu último cigarro em terra. A fumaça que saía dele era mais viva que aquele céu enegrecido. Aquelas pequenas nuvens tóxicas lembravam-me que ainda esta- va vivo.Tomei um café horrível no bar mais próximo. Folheei o jornal do dia sem in-
  • 14. 14 teresse. Eram todos iguais esses jornais matutinos, assim como eram iguais quase todos os dias.Tirei do bolso papéis velhos e inúteis (bilhetes de trem, anotações de itinerários, uma carta mal lida de um parente distante...) e joguei no lixo. Na escada de acesso para o navio todos estavam mudos. Chapéus, casacos e guarda-chuvas disputavam espaço com uma civilidade fria e distante. O silêncio só era maior na via de acesso. Poucas pessoas acenavam. Ninguém realmente se despedia. Parei por um instante para fitar os rostos. Nenhuma esposa, nenhum filho, nenhuma lágrima verdadeira ou falsa... O navio partiu como chegou. Solitário e sorrateiro. Apitou como quem o faz por pura obrigação. Seu casco avermelhado contrastava com a água escura do mar. Então, uma multidão silenciosa se aproximou sorrateira do porto. Para os mais atentos no interior do navio, o espetáculo era bizarro.A cidade parara. Quedara em silêncio total diante da partida. Milhares de cabecinhas estáticas podiam ser vistas nas janelas, nas varandas do alto da colina e na praia. Durante alguns minutos o tempo deixou de existir. A cidade era só despedida, mas uma despedida seca, de soslaio e vergonhosa. Até mesmo os animais pareciam ter emudecido ou sumido dentro de si. Não havia gaivotas no ar, nem golfinhos na baía. Não vi cães naquele dia, esses seres de alegria estúpida e constante. Aquele não era um dia para eles. O sol não nasceu naquela curta viagem. Permaneceu ausente, escondido atrás de nuvens grossas e ameaçadoras que pareciam querer desabar sobre o mundo como um deus primordial. O vento não esquentou nas manhãs e as águas do mar não se fizeram plácidas para os viajantes. Todos saíam pelo convés ao amanhecer trajando roupas pesadas e escuras. Os homens com casacos, coletes e sapatos lustrosos; as mulheres com vestidos longos, luvas, chapéus e sombrinhas. Não houve conversas nos primeiros dias. Fumar, passear a esmo pelo navio, fitar o horizonte ou simplesmente esperar o tempo passar eram as únicas atividades dos viajantes. Eles mal se olhavam nos olhos. Nem sequer se cumprimentavam. Permaneci sentado num canto do convés todo o tempo. Organizava pen- samentos e contabilizava desventuras. Saía dali apenas para me alimentar com a parca ração do refeitório ou descansar num dormitório que mal acomodava minha pequena mala. Interessei-me, vez por outra, por uma daquelas figuras espectrais e silenciosas: uma mulher pálida, de olhos verdes; uma menina com um bichinho de pelúcia nos braços e uma velha senhora, agitada e provavelmente falastrona, mas que mantinha o silêncio à custa de soluços e lágrimas. Mas não me aproximei de nenhuma delas. Aqueles dias não haviam sido feitos para conversas pequenas.
  • 15. 15 Eram dias de perplexidade e resolvi ficar assim, perplexo, ainda que com pouca convicção. Era o grupo de pessoas mais eclético que a cidade mandara para o navio desde o início do fenômeno. No início, as autoridades locais faziam grande alarde de suas decisões. Convocavam representantes dos sete departamentos para parti- ciparem dos debates e das cerimônias públicas; faziam ver suas ideias no jornal e nos editais pregados nas paredes dos bares, tavernas e prostíbulos; apresentavam as soluções do momento como racionais, morais, benditas, fruto da evolução do espírito humano e da higienização do espaço urbano. A primeira leva de passageiros foi composta basicamente de detentos e egressos das cadeias locais. Depois foram as prostitutas, os andarilhos, os bê- bados e os estrangeiros. Lembro-me de um navio recheado de ciganos, homens, mulheres e crianças que, por azar, se fixaram nas cercanias do município.A cidade reluzia com fogos, fogueiras e festas de júbilo e purgação. Sacrifícios eram sempre penosos, mas serviam para salvar almas e propiciar certeza de salvação aos vivos. Então veio a escassez de homens maus. A escolha ficou mais difícil, sor- rateira, interessada. Quilos de documentos e horas de discursos foram produzidos nas dependências da câmara local. Alianças foram feitas, nomes e parentelas fo- ram blindados e as listas ficaram cada vez mais surpreendentes e obscuras. Crian- ças sujas, mulheres faladeiras, homens puídos, apostadores, dizimistas relapsos, doentes de febre tênue... De cem a cem foram embarcados. Não sei se faz meses ou anos que tudo começou. Minha memória já anda falha. Sei que meu nome apareceu na lista no último mês. Eu, homem de cinquenta e poucos anos, solteiro, escriturário, solitário e resguardado. Talvez minha vida incomodasse os membros daquela câmara ou seus olheiros.Talvez eu precisasse de um defensor naquela casa. Talvez não fosse possível ser excluído. Talvez os critérios fossem técnicos demais para serem divul- gados. As reuniões da câmara se tornaram cada vez menos públicas. As listas já nem eram justificadas. Formou-se um conselho de homens bons, supostos repre- sentantes da comunidade para assessorar e dar apoio aos membros da câmara. O conselho era composto por líderes espirituais, juízes, representantes do comércio, latifundiários e professores antigos. Também estavam lá agiotas, militares e mé- dicos. Meu nome apareceu na lista. Ela chegou a mim pelas mãos de um Oficial de Comunicações. Ele pediu minha assinatura e afixou na porta de meu quarto na
  • 16. 16 hospedaria um documento público. Nenhuma outra satisfação me foi dada. Meu nome estava na lista, que agora tremulava na praça central como uma bandeira, para que todos pudessem ver. Meu privilégio de não ser vigiado foi dado pela herança que dispunha aplicada no banco local. Em caso de fuga, meu dinheiro seria confiscado. Mas sei que não conseguiria fugir. Nem tentei isso. Fiz um docu- mento deixando tudo para um parente distante, mas a cidade provavelmente iria engolir o documento e expelir outro de suas entranhas. E agora me restava apenas um canto no navio. Um canto e uma espera. No último dia daquela viagem de três dias, a menina da boneca se aproxi- mou de mim. Tentou conversar algo, mas não foi capaz de articular bem as frases. Abri um sorriso por pura cortesia, mas ela deu as costas e foi embora. Foi o último contato que se pode dizer humano que tive. No final da tarde uma nuvem rasteira nasceu no horizonte. Seus raios eram estranhos, horizontais e furiosos. Sua cor era ainda mais pesada do que a das nuvens do céu. Era uma nuvem ameaçadora e linda. Senti pavor diante de sua aproximação, mas um pavor misturado com deleite. O navio balançou diante da força dos ventos que saíram da nuvem. Os marinheiros abandonaram o navio horas antes e foram resgatados não se sabe bem onde por outras embarcações. Estávamos sós. Cem almas diante de uma nuvem ancestral e faminta. To- dos saíram para o convés. Ninguém gritou. Nenhum choro foi ouvido. De súbito, a nuvem projetou seus monstros. Navios de casco verde apareceram como que por encanto. Eram de diversos tamanhos e tinham uma aparência agressiva. Pareciam ser alongados, pesados, maciços e possuíam canhões e torres. O pânico se alas- trou no nosso navio. Matou o silêncio sem piedade. A morte daquelas pessoas não foi plácida e honrosa. Não foi um sacrifício frio e rápido. Os homens daqueles navios eram cruéis e violentos. Prolongaram o sofrimento enquanto puderam. Riam de choros e de pedidos de clemência. Um homem que portava uma estranha insígnia no braço subiu a bordo com seu rosto autoritário. Gritou alguma coisa numa língua que não consegui entender e fez ges- tos indicando que os soldados deveriam separar os sobreviventes em pequenos grupos. Depois veio a triagem. E novo massacre. Velhos e doentes foram mortos. Não sei por que fui poupado. Levei apenas uma coronhada na cabeça. O sangue jorrou sobre minhas costas e cai pesadamente no chão. Meus companheiros de navio me puxaram para cima. Sussurraram que se permanecesse deitado seria executado.
  • 17. 17 Embarcaram-nos então naqueles navios espectrais. Era o fim. O sacrifício se completara. A vida daquelas pessoas seria tragada pouco a pouco por aqueles monstros sanguinários. Nossa cidade estava salva por mais alguns meses. O ritual estava completo. Havíamos sido trocados por uma trégua humilhante. A cidade alimentava aquele minotauro faminto em seu labirinto político. Em contrapartida, permanecia formalmente livre. Acordei no dia seguinte com gritos ameaçadores. Eram os soldados. Nossa jornada chegava ao fim. Pela fresta do compartimento onde estávamos presos, pude ver um campo de trabalhos forçados. O som de tiros esporádicos cortava o silêncio daquele lugar de tempos em tempos. A certeza da morte calava meus companheiros de cárcere. Eu olhava para os lados procurando um interlocutor, mas ninguém mais se dispunha a abrir a boca. Agora éramos todos iguais: velhos, doentes, ciganos, radicais, críticos, hereges, mendigos, artistas de circo, bêbados, amantes da liberdade, jornalistas, escritores, catadores de lixo, prostitutas... Não tínhamos mais futuro ou esperança. Carlos Eduardo Marotta Peters é professor universitário, Araçatuba-SP E-mail: marottapeters@yahoo.com.br
  • 18. 18 MARIPOSA Maria Luzia Villela – 2.º lugar – categoria regional – Araçatuba-SP J oão da Silva Homem, homem bom. Melhor não havia.Talvez alguns como ele. A beleza o avassalava, quiçá por ser destituído dela. Seus olhos negros, de órbitas pequenas e redondas, davam-lhe uma expressão de boneco, os cabelos também negros, tinha-os crespos e desalinhados: resultado do mau hábito de enfiar os dedos tortos pelo reumatismo na densa cabeleira - em gestos de aca- nhamento, pensamentos de saudades ou perturbadores - e a guedelha, amansada ao se levantar de manhã com água e pente, ia-se eriçando. Vivia onde sempre vivera: na velha casa, sede da fazenda da família. Após a morte do pai, vira a fazenda ir-se desmanchando, vendida a nacos, a cada aperto financeiro.A mãe gerindo como podia. Primeiro se foi a metade dela, depois, para tentar sorte na cidade grande, os irmãos, mal raiada a maioridade, iam se desfazendo da herança. Era quase como o pombal do Raimundo Correia, só que não havia volta, filosofava João. Ele não. Ficou, onde tinha fincadas as suas raízes. Nas tardes, na varanda, sentava-se na velha cadeira de balanço, toda de madeira, que já resistira a dezenas de anos e ainda muito serviria. Naquele dia, como nos outros, nela se aboletou. Alisou os braços da cadeira, como se acariciasse a mãe. Ali, ela embalara as crianças. Netos não. Que morrera sem tê-los! Nova ainda! Deixando-o só, diziam os outros... Ele não se dizia só, pois tinha os livros por companheiros fiéis, e a terra, e a paisagem... Tudo nutria sua alma. E a saudade... Sentado costumava olhar o dentro e o fora. Entre duas mangueiras de frondosas sombras, rasgava-se um palco de luz e azul esgarçado deixando ver o Sol explodindo em cores, emagrecendo no hori- zonte, já não esfera, como roído por seu próprio exibicionismo. Cruzes voando vol- tavam aos ninhos. E das mangueiras vinha a “canção” das boas vindas: em pipilos, trissos e chilreios. O fora era lindo! O dentro... Agridoce. Numa tarde assim, o pai caíra do cavalo e uma costela perfura-lhe o pulmão; numa tarde assim, a prima Cotinha dera-lhe seu primeiro beijo... Ainda presente em seus lábios toda vez que nela pensava. Numa tarde assim Cotinha... Rechaçou o sombrio pensamento.
  • 19. 19 Passado e presente, preto e vermelho, luz e sombra se alternando. A boca de João, polpuda e pequena, apinhou-se como um beijo lançado, fazia isso com frequência. Tique: diziam uns, outros, nem reparavam, tantos anos de convivência. Aquilo começara depois do beijo de Cotinha. Como uma busca. Gostaria de não pensar nela, mas vinha de assalto! E agora mais que nunca. A carta, entre a frente do bolso e o tecido da camisa, queimava-lhe a pele. Ali, balançando-se na cadeira, olhava o poente e pensava na carta que recebera há seis dias! Tiago, seu irmão, ditara o conteúdo. Dizia-se fraco até para escrever-lhe... Doente, sem dinheiro, com esposa e duas filhas, precisava dele, do seu teto e de seu braço. Seria transtorno em sua vida de solteirão. Que nenhuma mulher lhe fora como Cotinha, seu primeiro e último amor! Vida arrumadinha! Ordem e silêncio para ler,cochilar e o fazer seus próprios horários. Não queria, mas precisava ajudar o mano. Renda alta, para mandar-lhes sustento contínuo, não tinha. Verdade que, de insignificante sitiante, transformara- -se em “rico em potencial”. A cidade crescera e batia às portas da sua proprieda- de. Era lotear e encher-se de dinheiro. Mas vender pedaços de terra seria como vender-se em açougue! A carta da sua indecisão, ainda no bolso da camisa, era como brasa.Tocou- -a novamente. A delgada foice do Sol no horizonte já anunciava a extinção do dia. A noite era iminente. Eis que, porteira adentro, avançou um automóvel, com o “TÁXI” bem desta- cado na capota. Parou ao pé da varanda. João, apinhando os lábios em contraturas sequenciais, desceu devagar os poucos degraus indo ver quem chegava. Distin- guiu o vulto de uma mulher curvada falando com o motorista e junto a ela: duas meninas. O chofer desceu, abriu o porta-malas, começou a tirar a bagagem; as mulheres arrepanhavam no interior do veículo casacos, revistas, sacolas e por fim emergiram. A mulher falou às meninas, que prontamente obedeceram: - Peçam bênção pro tio. João ficou uns momentos como não entendendo. - Cunhado! Não está me reconhecendo? Sou eu! Não posso ter mudado tanto! A voz e os olhos eram os mesmos. Mas a cintura delgada, o longo e frágil pescoço e a pele translúcida haviam desaparecido. Pensou numa frase de sua
  • 20. 20 mãe: “A gordura sepulta a beleza”. - Você? - Eu mesma. Essas mocinhas são minhas filhas. Essa é Patrícia, de 12 anos e esta Amélia, de 10. Mandei-lhe uma carta há uma semana, recebeu? - Sim recebi, estava a pensar sobre ela... Mas diga-me: e o mano? Por que não veio? - João! Desligado como sempre foi... Não percebeu que estou de vestido preto? É luto. Escrevi-lhe que Tiago estava muito mal e que precisávamos de sua ajuda. Sem sua resposta optei pelo: “quem cala consente”. Fez uma pausa deixando tempo para João dizer alguma coisa. Mas ele digeria novidades devagar. Em seguida, a cunhada emendou, com sinceridade, que realmente não ha- via outro modo: era a fazenda ou debaixo do viaduto. João gaguejava, que ansiava muito por mandá-los vir, mas a carta, só lhe chegara às mãos há poucas horas. Piedosa mentira. Ainda encolhia-se, timorato, a mulher era... Era a prima Cotinha, que numa tarde de igual fulgor o beijara. A mão levantou-se, como um ser independente e acariciou os lábios que ardiam como se o beijo fosse ali e agora. Também se fez presente a angústia que sentira quando ela, numa outra tarde esplendorosa, lhe dissera: “Não quero nada com você. Você é feio! Estou namorando Tiago”. O motorista, em pé ao lado das malas, pigarreou. - Oh! Esqueci-me do motorista. Pode pagar o táxi? Não tenho dinheiro. Pensou em mandá-la embora. Dezoito anos sem vê-la, já não sentia o co- ração disparar, coisa que acontecia com frequência quando ela vivia apenas na sua saudade! Sentiu-se roubado, perdera o sonho! Também se sentiu liberto. Era um embaraçado novelo de sentimentos. Mas as sobrinhas eram belas e pareciam meigas. Tão parecidas com a Cotinha que morara em sua lembrança! E o sangue? O irmão... João pôde se aproximar da beleza, tocá-la. Estendeu a mão nodosa e a escorreu, leve e cariciosa, pelos cabelos loiros e brilhantes das sobrinhas que lhe sorriam. Os últimos raios de sol rebrilhavam neles. E João os viu como emitidos por elas. Encantado, girou em translação, como mariposa na luz! A luz o aceitou. Sentiu. Pequenas mãos enlaçaram sua cintura e doces cabeças nele se apoiaram. Foram momentos de grande emoção e da descoberta de quão solitário e infeliz inconfesso ele era! Dominou a emoção que lhe trancava
  • 21. 21 a garganta, como se um nó ali estivesse, tornando dolorida a passagem da saliva, Estendeu a carteira para que a cunhada pagasse o táxi; curvado pelo peso das malas, levou- as para dentro da casa. Já vassalo. As mulheres o seguiram. Lágrimas de alívio por terem a certeza de um lar desciam lentas e nublando-lhes a visão as faziam tropeçar na escada às escuras. João estendeu a mão ao interruptor: opondo-se ao céu que enegrecera, a casa brilhou como se sorrisse ao recuperar a vida e dinâmica que a juventude lhe trazia. *Maria Luzia Villela é professora aposentada, acadêmica da Academia Araçatubense de Letras. E-mail: lyg930@hotmail.com
  • 22. 22 Joana, só ... Regina Ruth Rincon Caires - 3.º lugar – categoria regional – Araçatuba-SP F inal da primavera de 1951. Madrugada de lua cheia... Pela janela aberta, a claridade prateada inunda o quarto. Sentada ao pé da cama, encostada na parede, abraçada às pernas e com o queixo recostado sobre os joelhos, Joana observa o rosto sereno do filho que dorme feito um anjo. Por que tinha que ser assim? Por que a vida tomou esse rumo? Olha do lado, na outra cama, e vislumbra por entre as cobertas os rostinhos das duas filhas.A mais velha, de cabelos dourados, fartos cachos que com a luz da lua cintilam feito uma nuvem de vagalumes, e a mais nova, de pele alva como leite e cabelos negros azulados, ambas dormem profundamente, alheias aos percalços que a vida silenciosamente arquiteta. Tudo começou naquela triste tarde, quase noite. Antônio ainda não havia chegado da roça. Joana acabara de banhar as crianças, sentia-se enjoada com o princípio da nova gravidez, e fazia um esforço tremendo para esquentar as panelas no fogão de lenha, no preparo da comida, quando de repente ouviu o estampido, um tiro. Correu para perto das meninas, e assustada olhou pela janela da cozinha sem compreender o que estava acontecendo. Ficou por um tempo agarrada a elas, e assim que recobrou o tino, perce- bendo que havia barulho de choro abafado, pediu para que as meninas ficassem quietinhas, e foi olhar o que acontecia. Já na varanda, olhou para a direção da casa do pai de Antônio, e com certa dificuldade por causa da penumbra que a noite trazia, percebeu que havia movi- mento de pessoa e constatou que o choro vinha de lá, e as vozes também. Atônita seguiu na direção dos sons e assim que chegou perto parou petrifi- cada. Na entrada do alpendre da casa do pai de Antônio, perto da cisterna, estava um homem estirado no chão, rodeado por uma poça de sangue. Joana forçou as vistas e percebeu que se tratava do colono Malaquias, homem forte, queimado de sol, e de poucas palavras. O choro que ouvira era da mãe de Antônio. Ela chorava, lamentava, implo-
  • 23. 23 rava aos céus por orientação, estava completamente desnorteada, e andava de um lado para o outro perguntando ao marido o que deveria fazer... Olhando mais adiante, perto da porta da cozinha, Joana viu o pai de Antônio parado junto à parede, e mais atrás estava Seu Avelino, que tinha o rosto crispado, os olhos fixos no homem estirado no chão. Seu Avelino estava com os braços caídos rentes ao corpo, e trazia em uma das mãos uma carabina. Num sobressalto, Joana percebendo que o colono estava morto e sem dizer qualquer palavra, entendeu que o tiro havia partido daquela carabina e que, prova- velmente, Seu Avelino teria feito o disparo. E acertou. Mais tarde soube que o colono teve um desentendimento com o pai de Antônio há algum tempo, que a mágoa foi se avolumando, e que naquela tarde, por causa de uma pendenga sobre uma saca de feijão, o colono armado com um facão foi até lá, e depois de uma nova discussão, investiu contra o pai de Antônio jurando que o mataria. Seu Avelino era outro colono da fazenda, casado com Dona Célia, um ho- mem calmo, sério, pai de oito filhos, compadre e amigo do pai de Antônio, contou que durante toda a tarde ouviu Malaquias esbravejar exaltado, praguejando e ar- quitetando a ida até à casa do pai de Antônio para fazer o que dizia ser o “ajuste final das contas”. Percebendo que algo muito sério estava por acontecer, Seu Avelino ficou à espreita, e quando viu que Malaquias se armou e seguiu para a sede da fazenda, não titubeou e numa corrida desenfreada esgueirou-se por entre os pés de café, chegando à casa do pai de Antônio minutos antes de Malaquias. Entrou pela porta da sala, sabia que o compadre estaria sentado no alpen- dre dos fundos, como sempre, fumando seu cigarro de palha, com um cotovelo apoiado no canto da mesa. Seu Avelino passou pelo corredor que ladeava o quarto principal, pegou a carabina carregada que ficava costumeiramente dependurada atrás da porta deste quarto, e seguiu para a cozinha. Nem teve tempo para explicar ao pai de Antônio o que estava para acontecer porque antes de chegar ao alpendre, antes mesmo de atravessar a porta da cozinha, Seu Avelino avistou Malaquias no terreiro, chegando ao degrau do alpendre. Seu Avelino parou, percebeu que o pai de Antônio ficara assustado com a chegada intempestiva do colono Malaquias vociferando transtornado.
  • 24. 24 A discussão foi rápida, quase só Malaquias falava, esbravejava. E quando o colono fez menção de se jogar contra o pai de Antônio com o facão em punho, Seu Avelino mirou a arma e atirou no peito do colono. Foi um único e certeiro disparo, o mesmo estampido que assustou Joana e que fez com que a mãe de Antônio saísse correndo do galinheiro, onde recolhia os ovos daquele dia, e sem entender o que estava acontecendo, caísse em prantos e clamasse aos céus por clemência e orientação. Tudo foi muito rápido. Aconteceu e estava feito. Não tinha volta. Agora era a realidade e não havia nada a fazer para consertar. Aos poucos Seu Avelino foi recobrando os pensamentos, estava trêmulo, com os olhos vermelhos, e continuava calado. O pai de Antônio, depois de ralhar com a mulher exigindo que ela parasse com o choro e com as lamentações, virou-se para o compadre e pegou a arma. Disse a ele que ficasse calmo, que fosse para casa, e que não comentasse nada sobre o ocorrido, nem mesmo com a Dona Célia. Seu Avelino olhou mais uma vez para o corpo daquele homem imerso numa poça de sangue, rodopiou sobre os calcanhares e, mecanicamente, saiu pelo mes- mo lugar por onde havia entrado momentos antes. Ninguém viu Joana ali, e ela calada, sem fazer qualquer ruído, voltou para casa. A noite havia chegado de vez, e com ela Antônio chegou ao terreiro. Estava todo suado, com a roupa suja de terra, resultado de um dia de trabalho pesado na roça de café. Era costume ao final do dia, quando voltava da roça e antes de se recolher, passar pela casa dos pais para tomar a bênção. E aquele dia não foi diferente. Foi sim... Naquele dia tudo foi diferente. Antônio chegava com o corpo cansado, mas com a alma leve, estava tran- quilo, feliz com mais um dia trabalhado, feliz de voltar para a sua família, feliz como há muito tempo se sentia, ou como sempre se sentiu. Mas, a cena que encontrou foi como um nocaute. Seus miolos não conseguiam atinar o que havia acontecido ali. Olhou aquele homem caído, mais adiante viu seu pai sentado no canto do alpendre, apoiado na mesa, o brilho da lamparina clareava seu rosto abatido, os olhos assustados, o cigarro de palha apagado no canto da boca, e ouviu o choro abafado da mãe que vinha da cozinha.
  • 25. 25 O pai, vendo o espanto do filho, chamou-o para perto, explicou o acontecido, e pediu a ele que preparasse um cavalo, que fosse na vila providenciar o sepulta- mento e comunicar o acontecido para a autoridade do Cartório. Explicou a Antônio que Seu Avelino atirara para protegê-lo, que o compadre não poderia ser envolvido no caso, que ele tinha oito filhos para criar, e que não havia testemunha do disparo a não ser ele mesmo, o pai de Antônio. Então,Antônio foi orientado a dizer para a autoridade na vila que ele mesmo, Antônio, havia disparado o tiro para proteger seu pai. E assim foi feito. No escuro da noite, montado no seu cavalo de lida,Antônio foi até à vila que era razoavelmente próxima. A autoridade providenciou a retirada do corpo poucas horas depois, e como não havia delegacia e nem delegado na vila, não havia telefone e nem telégrafo, a comunicação foi feita por carta para a central regional da polícia, e dessa maneira, só restava esperar a chegada da autoridade competente para que fosse enfrentado o desdobramento do caso. O pai de Antônio explicou a ele que como o tiro fora disparado para defender a vida do pai, Antônio certamente, assumindo a culpa como fizera, seria apenado com poucos meses de prisão, e que tudo seria resolvido rapidamente. Pena que certamente seria muito mais severa se fosse aplicada para Seu Avelino, que não seria beneficiado por não ter grau de parentesco com o pai de Antônio. Era assim que o pai de Antônio pensava, e foi nisso que Antônio acreditou. Antônio estava desarvorado. Temia pelos filhos, pela mulher e por ele mes- mo. Nunca saíra do seu canto. Nunca acordara em outro lugar. Suava frio quando pensava que teria que viajar para longe, sozinho. Nunca fizera isso! Mas, sabia que teria que resignar-se, aliás, já estava resignado, e não falava sobre isso. Nem com Joana. O que seu pai decidiu era o mais correto a ser feito. Afinal, poucos meses passariam rapidamente, e não seria justo que Seu Avelino ficasse preso. Como poderia sustentar a mulher e seus oito filhos? Antônio nem conseguia dormir tamanha a insegurança que tinha na alma, e sabia que Joana, mesmo quietinha na cama, também não conseguia, e a cada dia que se passava a agonia dos dois se avolumava. Não falavam sobre isso.As coisas seriam como deveriam ser, e pronto. Depois de duas semanas sofridas, o jipe da polícia chegou. O delegado conversou com o pai de Antônio, entregou uns papéis, e Joana foi destacada para ir até à roça para chamar Antônio. Vieram em silêncio, vagarosamente, como não querendo chegar. Joana ar-
  • 26. 26 rumou a mala com as poucas roupas, e Antônio vestiu-se com a melhor troca, despediu-se discretamente diante das crianças, e seguiu no jipe da polícia junta- mente com o delegado e o milico. Estava calado, com os olhos apavorados, mas não chorava. O choro ficou apenas para as mulheres. A mãe de Antônio, vendo o jipe sumir por entre os pés de café e a nuvem de poeira, enxugou os olhos na ponta do avental e voltou para a cozinha. Joana, segurando as meninas pelas mãos e carregando o mais novo na barriga, com a alma em soluços, rumou para casa. Meu Deus, como seriam esses meses? E as noites foram longas... E as lágrimas não cessavam... E a barriga cres- cia cada vez mais, feito a saudade. Não chegava carta. Antônio não sabia escrever, e nunca pediria para que alguém o ajudasse. Imagina se ele contaria alguma coisa para qualquer estranho! E o filho nasceu... Um menino grande e forte, como o pai. A ele foi dado o nome do avô. Joana sabia que Antônio, distante, estaria aflito, apavorado e muito triste por não estar junto dela naquele momento. Pelas contas deles, quando a criança nascesse, certamente a pena de Antônio já estaria cumprida, ele já estaria em liberdade. Mas, isso não aconteceu. A pena estava sendo muito maior que o esperado. Era a vida... E um ano se passou... Nada de Antônio ser colocado em liberdade, e então Joana foi informada pelo pai de Antônio que ele fora condenado a uma pena total de três anos de prisão. Quanta dor! Apenas um ano havia se passado, e havia mais dois pela frente. Quanta solidão! As meninas, com quatro e dois anos, o menino com seis meses, e a vida precisava seguir em frente. E seguia, só Deus sabe como... Joana contava os dias, calada. Conversava com os pais de Antônio apenas o trivial, o corriqueiro, era o costume. Não se falava em tempo de espera, em sau- dade, em dor. Todos sentiam tudo, mas ninguém falava... A mãe de Antônio cuidava de ajudar Joana nas tarefas, principalmente no cuidado com as roupas e no preparo dos pães. Era bondosa, de olhos mansos, piedosa, mas submissa. E Joana, também.
  • 27. 27 Apesar de forte, de extremamente organizada e generosa, a mãe de Antônio era devotadamente submissa ao marido. Não exigia explicação alguma, não ques- tionava nada, não contestava, apenas vivia, ou melhor, respirava... Passados três longos anos, a colheita de café agitava os colonos num vai- vém incessante, o sol estava começando a declinar naquela quarta-feira, quando Joana ouviu o som de uma condução que se aproximava. Com o coração aos pulos foi para a janela e avistou o jipe da polícia. Nem sabia o que fazer. Queria estar bem bonita para o reencontro com Antônio, mas num ímpeto, nem se lembrando disso, correu para o terreiro, sem mesmo tirar o avental. E viu Antônio... E se assustou... Antônio estava magro, excessivamente magro, amarelo, olhos fundos, en- tristecido, curvado, abatido, com uma palidez macilenta, e quando falou seu nome, Joana percebeu sua voz muito fraca. Só o carinho que Joana viu em seus olhos lembrava o seu Antônio que havia partido há três anos. Antônio estendeu a mão num cumprimento, e procurou rapidamente, com os olhos, os seus filhos. Eles vinham correndo buscando a mãe. As meninas não reconheceram o pai, e o menino ainda não havia sido apresentado a ele. Antônio despediu-se dos policiais, pediu a bênção dos pais, pegou a mala e rumou vagarosamente para casa, seguido por Joana e pelos filhos. Os policiais ficaram conversando um bom tempo com os pais de Antônio, e depois se foram. Antônio entrou em casa e ficou um bom tempo olhando para as paredes como se estivesse matando a saudade que sentia no peito, e demorou a soltar a mala. Joana estava feliz com a chegada do seu Antônio, mas o coração apertado tentava contrariar a sua vontade, e colocava uma névoa de preocupação na sua alegria. Sentia que Antônio não estava bem. E não estava mesmo. Na prisão Antônio havia contraído várias doenças, e a tuberculose havia minado suas forças quase por completo. A falta de sol, a falta de se exercitar como fazia na roça, a alimentação precária e a solidão daqueles anos todos lhe roubaram a saúde. E mesmo feliz por estar de volta, Antônio não conseguia reagir aos males do corpo. A febre não cedia, a prostração o dominou. Antônio foi se finando, foi se esvaindo, até que a vida lhe escapou das mãos.
  • 28. 28 Foram dias difíceis, angustiantes. Na verdade, nesses dias Joana teve a impressão de ter sido levada, de ter sido arrastada porque não se lembra de muitos detalhes. Depois de tanta espera, depois da volta, em apenas poucos meses Joana se via novamente só. Não havia o que esperar. O seu Antônio não voltaria mais, havia partido para sempre. Agora ali, olhando os rostos serenos dos filhos, com o coração enlutado, com as forças querendo abandoná-la, relembra tudo e nem revolta sente. Não re- clama, não blasfema, não se insurge, não maldiz, não se inflama. Continua apática, abatida, resignada. É o costume... Queria apenas entender... Assim que amanhecer irá de mudança para a vila. É chegada a hora da filha mais velha começar na escola. O pai de Antônio arrumou uma casa na vila para ela e para as duas meninas. O menino ficará ali, com o pai e com a mãe de Antônio. Será criado por eles no costume do sítio para pegar gosto pelo trabalho na terra. Joana está amargurada com mais esta separação. Assim foi decidido e assim será... O sol clareou o terreiro, a parca mudança foi colocada num velho caminhão que chegara. Joana e as meninas amontoaram-se na pequena cabine juntamente com o motorista, e o choro gritado do filho, que se contorcia para sair do colo da mãe de Antônio à procura dos seus braços, entrava por seus ouvidos e parecia querer explodir seu peito com tamanha aflição. A dor que Joana sentiu ao parir foi infinitamente menor comparada a essa que apertava seu peito nessa separação. Era agora como uma lança em chamas a rasgar sua carne, seu ventre, retirando seu filho do seu convívio. Não iria mais estar presente nos dias da vida dele, não iria acompanhar seu crescimento, não iria mais velar seu sono, não estaria presente para aliviar seu medo nas noites de chuva... Mas, era a sua vida... O caminhão seguiu pela estrada poeirenta. Joana também deveria seguir em frente... E seguiu... *Regina Ruth Rincon Caires é bancária aposentada, Araçatuba-SP E-mail: reginaruthrinconcaires@gmail.com
  • 29. 29 Cachos de menina Breno da Costa Alves - 1.ª menção honrosa - categoria regional - Penápolis-SP N otaram a presença de Raquel pela primeira vez no ato de seu nascimento, quando, após um trabalhoso parto, chorou. Um choro de estranhamento e graça. Criança formosa, rechonchuda. Os familiares e vizinhos encantavam- -se com a pequena criatura. Tão inocente, tão pura. Cinco anos após o nascimento, os parentes do sul estavam hospedados na casa de Ícaro e Mabel, pais da criança, para comemorar o aniversário da pe- quenina. Porém, para espanto de todos, algo inusitado aconteceu naquela noite. Os cabelos da adorável criança iniciaram um processo de metamorfose repentina. Tornaram-se encaracolados o que antes eram lisos e sedosos. Os distantes familiares aproximaram os olhos para compreender melhor o ocorrido, espreitando os cabelos em busca de um ensejo perfeito. Entreolharam-se. Suspiraram desconfiados. Tossiram para disfarçar. Em vão culparam a genética, o DNA. Mas a prova ali estava; visivelmente real e encaracolada. Encaracolados fizeram-se os cabelos. O primeiro cacho saltou envergonhado. O segundo menos tímido. Os demais, desesperados.A saleta inundou-se num profundo e inconforma- do espanto. Aproximando-se, disse Dalton: - Curioso este fato, Ícaro – estranhou Dalton, irmão de Ícaro, em um suspiro demorado e autêntico. Falava em segredo: - A criança em nada lhe parece. Nem pés chatos, cor mediana, olhos ca- ramelos, rosto magro. Nem as mãos, nariz ou testa... Em nada! E agora, até o cabelo se transfigura. Meu irmão, que as acusações estejam distantes de minha boca, mas tal dessemelhança apavora-me. Há em nossa família alguém, por mais remoto, com parecidas características? Custo a acreditar. Conheço seu amor por Mabel, a ponto de reconhecer sua extensão desmedida, e, também, compreendo as mudanças provocadas pelo tempo nas pequenas criaturas. Porém, não é preciso ser médico como és para entender que o filho deve se parecer com o progenitor. Não cometa enganos. Poupe-se dos sórdidos afazeres de pai. Ícaro fitava a menina estarrecido. Percebeu algumas distinções a partir do cochicho alheio.
  • 30. 30 Tadeu aproximou-se falando em tom baixo: - Caro sobrinho, percebo a inquietação da sua alma e entendo bem os motivos. Esta sala transborda em maus pensamentos e acusações extremamente desconfiáveis, que certamente o levará à meditação incômoda. Não medite. As circunstâncias esclarecem nitidamente o verdadeiro. Acostume-se. Havia uma serenidade impaciente em sua voz.As palavras vinham à boca e extravasavam sombriamente nos olhos: - Veja meu exemplo: meu filho, Pedrinho, é bastardo. Sou estéril. O sangue que corre em suas veias difere, em sua totalidade, daquele que preenche as mi- nhas, mas incomodar-me com pormenores jamais me importunou. Pedi para um amigo fazer aquilo que é impossível a mim. De bom grado, aceitou. Minha falecida esposa concordou igualmente. Após o menino nascer agradeci aos céus por ele não ter herdado a cor escura do pai, afinal, desconfiariam. Afastou-se Tadeu. As vozes confundiam Ícaro e a movimentação tonteava-o a ponto de causar- -lhe vertigem. Chamou Mabel para acompanhá-lo até o cômodo adjacente. Na saleta, os comentários continuaram. - Muitas discussões assolaram meu casamento, contudo por motivos mais relevantes que um mísero cacho de cabelo. As crianças são arteiras; correm pela casa, pelo quintal. Sujam a roupa, suam... Suor, talvez esse seja o motivo da rebel- dia no cabelo – Pronunciou Tadeu em sua calmaria atrevida e insolente. - Suspeitei ao ver a menina no colo. Nem de longe possuía a audácia, a perspicácia de nossa família. Entretanto, estou a recordar algo que muito me cha- mou a atenção: o umbigo. Sim, o umbigo da criança é perfeitamente idêntico ao de meu menino. Poderia compará-lo e chegaríamos a um resultado satisfatório. Como não notei antes? – Enquanto falava, Dalton olhava a menina. Repentinamente, Ícaro voltou à saleta com duas malas em suas mãos. Anunciou uma viagem repentina à África. A convite de um grupo de estudiosos iria exercer medicina preventiva, desenvolvendo no continente africano um antídoto para a Malária. Saiu despedindo-se razoavelmente. Mabel chorava descompas- sada. Todos, boquiabertos, preocuparam-se com o futuro da família. Meses depois, Mabel estava mais magra, mais pálida, menos viva. Recebeu a notícia da morte de Ícaro com grande pesar. Na noite da viagem, a mecânica falhou. O céu caiu e o sonho audaz também. Fatal. O avião caiu no mar, levando
  • 31. 31 à morte todos os passageiros. A criança ficou sem o pai e a África sem a cura da malária. Esquelética e desgostosa, Mabel dizia à filha: - Não corra pela casa, querida. Seu suor é mortífero e vai desmanchar a chapinha. *Breno da Costa Alves é estudante universitário em Araçatuba, 19 anos, mora em Penápolis E-mail: al_breno@hotmail.com
  • 32. 32 Coisas de Diário Larissa Ruffato de Angelis – 2.ª menção honrosa – categoria regional – Araçatuba-SP E ra meu segundo dia na Holanda e, sinceramente, já contava as horas para o dia acabar. Os passados em Paris foram encantadores. Sei que esse encanto deveu-se ao fato de a cidade e eu não termos nenhum compromisso entre nós. Mas, ao fim dos cinco dias, juntei-me a uma excursão. Paguei essa parte da viagem em prestações de um ano e meio. “CONHEÇA O MELHOR DA EUROPA EM 10 DIAS!” Não preciso nem dizer o quanto desesperador e decepcionante é tentar atravessar uma parte que seja do velho mundo em um espaço tão curto de tempo. Somos arrastados por caminhos que não escolhemos e, na ânsia de vermos tudo, acabamos muito mais perdendo de vista. Mas, quando seu desejo pelo universo é intenso, então ele se digna a compaixão. Não sei se é uma regra, mas... Parto amanhã, e agora sem nenhuma decepção. “Deus criou o mundo, mas a Holanda foi criada pelos holandeses.” Desco- nheço o autor. Ouvi dizer que era uma terra coberta por água, tomada pelo mar. Mas os seres humanos que cá vivem, decidiram viver aqui e assim o fizeram a todo o custo. Prometeram-me flores. Vi poucas. Tudo bem. A história me encantou. Di- zem-se um povo livre. Acredito porque me disseram e talvez o sejam por dizerem. Dar-me-ei ao luxo de contar uma história que talvez seja verdade apenas porque a conto. Foi-nos prometido conhecer os frutos proibidos no “nosso mundo”. Fazia parte do itinerário, conheceríamos as drogas e as putas de Amsterdan. As drogas que abrem o corpo para outras sensações quase tão proibidas quanto. E as pu- tas... Bem, as putas, o mundo inteiro sabe bem, mas que eu vi como nunca havia imaginado. O caminho era longo. Várias belezas se espalhavam por esse país encan- tadoramente estranho. Muita gente, o que em sinceridade não me agrada. Alguns passavam habitualmente, outros fingiam encantos ou se encantavam mesmo, não me preocupei em lhes observar a autenticidade. Eu procurava flores. Prometeram que elas cresciam aos montes naquela época do ano, belas e livres. Não sei se foi
  • 33. 33 mentira ou ilusão alheia, sei que me esforcei na procura. Meu corpo já estava cansado. Se eu resguardava alguma expectativa, ela com certeza me escorregara dos bolsos. Já andava com os olhos baixos. E me ob- servando, acredito que o universo teve compaixão: encontrei a flor. Sim, em artigo definido, pois sei que era ela que no fundo eu esperava encontrar entre milhares.As milhares não vieram, mas ela foi fiel, jogada no asfalto cotidiano. Não sei de onde veio. Se caiu de um cesto, se cresceu ali ou se despencou do céu. Só estava lá. Lin- da, viva, vermelha, livre. Livre para crescer e ser onde tudo simplesmente passava. Mas, assim como eu, com meus olhos baixos de cansaço, ela deixava escapar de si uma tristeza involuntária, talvez por ser demasiadamente livre e, portanto, solitária. Tomei uma corajosa decisão: parei no meio da rua apressada e colhi a flor de sua liberdade. Abraçamo-nos como dois queridos reencontrados. Quando me dei conta, estava diante das drogas e das putas. O Bairro Vermelho, onde o pecado merece respeito. A rua era comprida, dividida por um canal como é em toda a parte por aqui. Tudo muito amontoado: cores, cheiros, sons e até as vontades. Parecia que, ao mesmo tempo, tudo e todos buscavam a liberdade esguia naquele asfalto cru. De minha parte, não me senti mais livre, nem menos também. As putas ficavam dispostas em vitrines exibindo seu produto, à espera de um desejo que se desatasse de todo o emaranhado e as viesse convidar. Havia poucas, quase nenhuma. Ainda era cedo para aquele tipo de comércio. Vitrines eu vi aos montes, porém vazias, pedindo aos meus olhos um significado. Eu poderia elaborar muitas comparações para aquela situação peculiar aos olhos ingênuos e adestrados. Mulheres e vitrines. Corpos e vitrines. O desejo podendo observar pelo vidro o desejado. Mas, metaforicamente, é mais capitalismo do que minha poesia pode suportar. Fui dando aos meus passos o consentimento para seguirem distraídos enquanto me dedicava à flor. Nessas excursões quase nunca se para. Nem para ver. E tão cegamente meus pés obedeceram que subi os degraus de uma charmosa soleira, assim por acaso, por distração. Só percebi quando meu corpo tocou desastrosamente aquela puta: - Perdão! – num susto. Ela não respondeu. Olhou-me esguia como quase nem se olha. Manteve a face e o corpo voltados para algo que parecia uma procura; uma espera. Acele- rei meus movimentos desencontrados para escapar àquela cena, mas a ingênua
  • 34. 34 curiosidade me conteve e eu gaguejei meu comentário tão desnecessário: - Você não está em uma vitrine... Não me passou pela cabeça a possibilidade de ela não entender o meu inglês mal treinado. Recebi um sorriso sem o seu olhar. E por um instante, dei conta de que eu deitava meus olhos sobre ela no seu corpo desnudo paradoxalmente vestido de puta. Não sei quanto tempo me demorei olhando e nem se ela se inco- modava, mas a inércia da situação me impulsionou uma atitude – desnecessária? Estendi-lhe a mão que guardava a flor: - Isso não me paga. – sorriu com desdém, de lado. - Estava no chão. – minha voz eram cacos, meu corpo se encolhia em sub- missão a algo que ela parecia possuir e a tornava superior. Silêncio. - Não me pertence. – quebrei. - Nem a mim. - Pode pertencer se você aceitar. – os cacos se juntaram firmes e o corpo tomou a coragem do desvendar. Pela primeira vez, ela me olhou e eu olhei seus olhos em resposta. Dessa vez, sorrimos pelo olhar. Ela me convidou para entrar. Eu disse que não podia pagar. Ela deu de om- bros. Eu sorri minha timidez com os lábios. Ela segurou minha mão. Eu senti a pele morna na minha fria. Ela me puxou para perto. Eu me ergui nos pés e beijei-lhe a face. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Tragou o ar feito uma droga, carregado do sentimento que criamos. Eu me demorei no beijo, apertei-lhe a mão e me fui. Ela aceitou a flor, é tudo que sei, mas, quando penso, gosto de acreditar que também tenha chorado e não trabalhado aquele dia. Depois disso, para mim, mesmo nos dias de trabalho, ela não era mais puta. Era mulher. A falta do vidro entre nossos corpos permitiu que eu enxergasse nos olhos dela a vitrine de sua alma. E tudo o que eu vi é segredo. Larissa Ruffato de Angelis é professora de Inglês, Araçatuba – SP E-mail: Larissa_rda@hotmail.com
  • 35. 35 Conto de um amor sem limites Marcelo Otávio de Souza – 3.ª menção honrosa – categoria regional – Birigui-SP F altavam poucas horas para tudo, definitivamente, acabar. Poucas horas, en- tão, tudo aquilo se transformaria em lembranças. Boas. Ruins. Mas, somente, lembranças. De repente, tudo desapareceria. Para sempre. Todo sempre. As ruas. As casas. As praças. Tudo seria engolido pelas águas. Logo, a cidade transformar-se- -ia em história. Submersa. Solitária no fundo de uma imensidão sem fim de água. O progresso é cruel. Não há sentimentos, portanto, não há compaixão. O país precisa de energia elétrica. Precisa crescer. A usina hidrelétrica estava pronta. Em poucas horas as comportas se fechariam. E tudo o que ali estava, desaparece- ria por completo. Desapareceria para sempre. Tudo se transformaria em um mar de água doce. Um grande mar de água doce que traria conforto e progresso para milhares, milhões de pessoas. Por isso, a cidade estava fazia. Totalmente deserta. Só restavam lembran- ças. Histórias passadas.Vividas. Fantasmas de um povo que viveu por centenas de anos, e, que foi obrigado a abandonar as suas casas. Seus lares. Suas vidas. Suas histórias. No silêncio da cidade morta. Um barulho. Um barulho? Dona Menina está sentada em sua cadeira de balanço, na varanda de sua casa. O barulho é do balanço, que, incansável, vai de um lado para o outro. De um lado para o outro. De um lado para outro. O tempo passa. Esgota-se. E Dona Menina a balançar. Alheia a tudo, Dona Menina vai de um lado para outro, de um lado para outro. Mas, há um problema, Dona Menina não está alheia a tudo. Pelo contrário, Dona Menina está muito ciente de tudo. Sabe que o tempo é curto. Sabe que em horas, tudo não passará de história. Lembranças do que um dia foi. Mas, mesmo assim, esta lá, sentada em sua cadeira de balanço indo e voltando, indo e voltan- do, a balançar. A esperar. Ela não espera a morte. Apesar de a morte ser um ser
  • 36. 36 iminente, ela, não a espera. Ela espera algo mais importante. Algo que esperou por sua vida inteira. E não arredará o pé, antes, que este chegue. Vizinhos.Amigos. Os poucos familiares que lhe restaram.Até o prefeito veio até Dona Menina a fim de persuadi-la a sair dali. Mas, em vão. Então, sendo mulher feita, consciente e sabedora dos infortúnios que a aguardam, foi abandonada à própria sorte, ou, a sua própria vontade. Afinal só ela pode se salvar. Aos 75 anos, Dona Menina passará a sua vida inteira, ali, sentada na varan- da a esperar. A olhar para o horizonte perdido. Em sua cadeira de balanço de um lado para outro, de um lado para outro. Olhando o horizonte, relembra os bons e maus momentos que vivera. Lem- bra-se do amor de sua vida. Aquele a quem ela se entregou, de corpo, alma e coração.Aquele a quem amou todos os dias da sua vida.Aquele, que, por covardia, perdeu. Olhando para o horizonte sem fim, espera. Espera a chegada daquele que foi o fruto do seu amor. Resultado de um amor que nem o tempo conseguiu apagar. Dona Menina era jovem e bela, a mais bela da cidade. Naquela época era a única mulher na cidade com formação superior, fruto de vários anos na capital do estado. Bom partido, o melhor da cidade, vivia sendo cortejada pelos homens. Homens ricos, influentes. Homens considerados de bem. Mas, Dona Menina não podia mandar no coração, aliás, ninguém consegue fazê-lo, por isso, apesar de inúmeros pretendentes, Menina apaixonou-se por um homem de fora da cidade. Um forasteiro como diziam os moradores. Foi amor à primeira vista. De repente, estava apaixonada. Estavam apaixonados. Perdidamente apaixonados. A guerra começou. Todos eram contra o namoro de Menina que brigou, lutou, fez chover, mas, não conseguiu demovê-los, não conseguiu a aprovação da família quanto ao seu namoro e as reais intenções de seu namorado. - É um vagabundo! – dizia o pai – Uma pessoa sem eira nem beira! - Ele só quer brincar com você, Menina. – completava a mãe – Será que só você não vê? Será que você não percebe isso? Mas, Menina não queria nem saber o que os pais diziam, por isso come- çou a encontrá-lo às escondidas, na calada da noite. Com a desculpa de ir à reza na casa de uma ou de outra amiga, saía e se encontrava com seu grande amor. Perdidamente apaixonada, entregou-se a ele, no dia, a que considerava o dia mais
  • 37. 37 feliz da sua vida. O dia que nunca se esqueceu. Mesmo com o passar dos anos. Os muitos anos, sem que nunca, por um dia sequer, se esquecesse daquele dia. Um dia, a notícia, ele iria embora. Teria que ir embora. Por causa do seu envolvimento com Menina, ele fora despedido do emprego, e, ninguém, ninguém na cidade tinha coragem de lhe contratar, ou melhor, ousava contratá-lo, pois, todos tinham medo do pai dela. Naquele dia, ele estava triste, arrasado. Definitivamente acabado. Sem di- nheiro e sem posses teria que ir embora. Deixar a cidade em busca da sua sobre- vivência. Pediu, para que Menina fosse embora com ele. Disse que a amava e queria casar-se. Menina pensou, pensou, mas não foi. Não teve coragem de abandonar sua vida, sua família. Amava aquele homem, era verdade. Amava-o mais do que qualquer pessoa pudesse imaginar. Mais do que a própria vida. Menina não con- seguiu desafiar o pai. Não tinha forças para isso. Na verdade, não fora criada para isso. Chorando, Menina viu-o partir. Para sempre. Viu seu amor, sua felicidade escapar pelos dedos das mãos como areia fina.Viu-o partir, para nunca mais voltar. Aquilo foi demais para Menina, que passou duas, três semanas sem ao menos sair do quarto. Não conversava com ninguém. Não ouvia ninguém. E comia pouco, muito pouco. Comia o suficiente para manter-se viva. De repente, percebeu que algo estranho estava acontecendo com ela. Sen- tia fraqueza. Enjoos. De repente percebeu estar grávida. A princípio ficou feliz. De- pois, desesperada. Grávida. Sem um marido. Aquilo seria seu fim. Uma vergonha, para si, e, principalmente para a sua família. Devia ter ido embora, mas, não fora, agora, teria que enfrentar aquela situ- ação de frente. A noticia da gravidez caiu como uma bomba na família. Menina foi ofendida, humilhada pelos pais. Se perder a virgindade antes do casamento já era motivo de vergonha na família naquela época, imagina uma gravidez. Dias depois, Menina e sua mãe deixaram a cidade com destino à capital. Para que Menina estudasse, disseram. Meses depois, ela deu a luz a um menino. “A cara do pai” – pensou – ao receber o filho pela primeira vez em seus braços. Nesse momento, chorou de alegria. Chorou, também, por lembrar-se dos momen- tos maravilhosos que vivera com o pai dele. Após o nascimento da criança, Menina e a mãe viveram por um tempo na
  • 38. 38 capital. Tinham uma vida boa, mas, silenciosa, Menina vivia quase o tempo todo em silêncio. Quase não conversava com a mãe ou com qualquer outra pessoa que viesse visitá-las. Vivia para o filho: banhava-o, amamentava-o, dedicava-se completamente a ele. Que era a sua alegria. A única alegria que tivera, naquela infeliz vida. Em uma manhã, sua mãe, pediu para ela arrumasse as malas, pois volta- riam para casa. Menina arrumou tudo e pôs-se a esperar, brincando com o filho que insistia a sorrir-lhe o tempo todo. Horas antes de partir, uma tia chegou a casa. Friamente sua mãe pediu-lhe para a filha dar o menino à tia. A partir daquele momento ela seria a mãe do filho de Menina. Aquilo deixou Menina desesperada. Ela chorou. Pediu. Implorou. Ameaçou fugir. Mas, não demoveu a mãe da decisão. Sem qualquer ressentimento a tia pegou o filho dos braços de Menina e se foi. A criança chorava desesperadamente, mas, nada fez com que desistissem de toda a maldade para com Menina e seu filho. Ao ver o filho partir, Menina ainda correu atrás do carro onde estavam a tia e o filho. A tia parou o carro e por um minuto Menina olhou a criança chorando, que, ao sentir um leve toque das mãos de sua mãe no rosto, parou de chorar. Me- nina sabia que aquele seria a ultima vez que veria seu filho, então fez um pedido a tia; Pediu para que ela falasse ao seu filho sobre ela. Que dissesse a ele que ela o amava, e que ele nunca fora abandonado. Pediu a tia para que um dia ela o deixasse conhecê-la. Vendo o desespero da sobrinha ela aceitou. Fez-lhe uma promessa. E se foi. Desde então Dona Menina vive ali, sentada a esperar. A esperar pelo filho que nunca veio. Não até aquele momento, mas ela sabia que um dia ele viria. Viria vê-la. Então, abraçá-lo-ia. Beijá-lo-ia. Far-lhe-ia inúmeras declarações de amor. Esperando pelo filho, Menina foi vivendo ali, dia após dia, todos os dias de sua vida. Acompanhou a morte dos pais. Dos irmãos mais velhos. E esperou. Sempre olhando o horizonte e a balançar. Vai e vem. Vem e vai. Sempre olhando o horizonte e a esperar. Esperar, pelo filho amado. Único fruto de um gran- de e verdadeiro amor. Único fruto do seu amor. E mesmo com a iminência da morte, não conseguia sair dali. “E se ele viesse logo hoje. E não me encontrasse? Poderia achar que eu não
  • 39. 39 o amo. Poderia pensar que eu realmente o abandonei”. Nada passava na sua cabeça, além da volta do filho para os seus braços. Aquela criatura frágil, pequena, tão indefesa. Que agora, imaginava, seria um ho- menzarrão. Lindo, forte, cheio de saúde. Com uma família linda. Filhos. Netos. Logo ele estaria ali, no seu portão. Então, este, seria o dia mais feliz da sua vida. Mais feliz. Por isso, não podia sair dali, prometera que estaria a sua espera. Prometera. E promessa é dívida. Não quebraria uma promessa. Principalmente a promessa feita ao seu filho tão amado. De repente, no meio daquele silêncio todo, um barulho ensurdecedor. De- pois, outro. E mais outro. O fim se aproximara. O fim da cidade. Da história. Dos sonhos. O fim de Dona Menina estava chegando. Então, uma criança chega ao seu portão. Ela olha e sorri. Um sorriso lindo. Cheio de vida. O menino abre o portão e corre para os braços de Menina, que o abraça e o beija amavelmente. - Eu sabia que você viria... – diz ela aos prantos – Eu sabia. Outro barulho, então, o fim! A água toma conta de tudo, sem dó, nem pie- dade. Em segundos, tudo se esvai para sempre, submerso na imensidão azul de água doce. * Marcelo Otávio de Souza é funcionário público, mora em Birigui-SP marcsouz@yahoo.com.br
  • 40. 40 Relógio de pêndulo Pedro César Alves – 4.ª menção honrosa –categoria regional – Araçatuba-SP O tempo corria silenciosamente – a leve brisa passeava pela sala, às vezes no sentido da cozinha para a rua, às vezes no sentido contrário. Quando vinha da rua, trazia o suave perfume das rosas vermelhas, colhidas do próprio jardim, e no oposto trazia o suave aroma do café. De tempo em tempo era ouvido um murmurar: o desfiar das rezas em inten- ções da alma que partira e, segundo os mais religiosos, fora em vida uma pessoa de bom coração, caridosa por excelência. Os mais próximos diziam que a falecida ia diretamente ao descanso dos justos. Logo se silenciava tudo. Olhares contristados. O pesar continuava e era quebrado, às vezes, por: - Servido de um cafezinho? E o tempo corria silenciosamente, fazendo a noite chegar envolta em seu manto escuro, salpicado de estrelas cintilantes. As pessoas iam, aos poucos, se ausentando prometendo voltar ao amanhecer para acompanhar o féretro ao seu destino final antes do sol estender plenamente o seu cetro, que se faz ao meio-dia. Aproximavam-se os ponteiros do relógio de ficarem sobrepostos na marca inicial do novo dia – como muitos dizem. Em volta da avó, do corpo da avó coberta de flores vermelhas cultivadas há muito tempo por ela mesma e seu desejo cum- prido, apenas os mais próximos: filhas, genros, netos, dois ou três bisnetos – não tivera filhos. Num canto da sala uma belíssima coroa de flores enviadas pelas Mu- lheres da Glória – uma associação religiosa que ajudara a criar e que auxiliava os menos favorecidos. Nos castiçais velas iluminavam – simbolicamente – o caminho daquela alma bondosa. Anos antes, naquela mesma sala, o corpo do avô fora velado. Mas naquela época, sobre os castiçais, na parede, o velho relógio de pêndulo de hora em hora emitia o seu som. Mas naquela madrugada de seu funeral soou até quatro horas da manhã – o restante da madrugada fez-se silencioso – e continuou por todos aqueles quinze longos anos que os separavam. Tempos depois fora colocado, a pedido da avó, em seu quarto, o primeiro da
  • 41. 41 casa e que dava para a sala de visitas – casa antiga. A avó, quase sempre perdida no tempo, parecia contar o tempo junto com os ponteiros, que pareciam não se cansarem de subir e descer. As filhas quiseram tirá-lo dali, mas nos poucos minutos de lucidez pelo qual passa a avó, não deixava. Alegava grande estimação por ele. Quando começava a atrasar, pedia que renovassem as forças do mesmo – e não importava que meca- nismo fosse que o fizesse funcionar. Era assim feito – quando demoravam a fazer o pedido, começava a não passar bem. Nos dois últimos anos as filhas revezavam para cuidar da mãe. Os espaços de falta de lucidez eram bem maiores. A idade, que não era tanta ainda, mas era, respondia a todas as indagações de seu estado de saúde. No último semestre, com os netos e bisnetos precisando de mais cuidados, as filhas contrataram enfermeiras para cuidarem da avó. Com todas as recomen- dações feitas, as filhas passaram a frequentar a casa alternadamente. Madrugada fria. O tempo corria silenciosamente fazendo-a tornar-se mais gélida. Alguns, recostados nas poltronas próximas do féretro, ressonavam; outros, servidos a café contínuo, papeavam sobre os mais diversos assuntos. Outros, ain- da, haviam procurado um dos quatro quartos da casa para recostar em algum leito – principalmente os mais jovens. Entre os poucos presentes, acordado àquela hora e sem bocejar nenhu- ma vez, estava ele: Toninho. Apesar do nome carinhoso, passava de um metro e noventa, de corpo atlético, solteiro, e com mais de sete décadas de existência. Parentesco longínquo da falecida. Criado, quando jovem, no mesmo pedaço de chão – aquela pacata cidade interiorana. Pouco se sabia dele, ou quase nada, pois costumava passar longas temporadas fora da cidade e, quando era anunciada a sua chegada, comentavam: - Alguém vai partir! E era sempre alguém ligado a ele – mesmo que em grau de parentesco dis- tante. Parecia um enunciador da morte; um anjo torto e negro. Chegara, em ambos os casos – do avô e da avó – dois dias antes destes partirem para o outro lado da vida. E os mais maldosos de alma diziam que o dia dele também chegaria – e ele tinha consciência do fato. Pressentia a partida dos mais próximos, tanto dos que odiavam como dos que amavam – e daquela casa pressentiu os dois lados: tanto pelo que odiava como pelo que amava. E ela fora a única que amou em vida. A avó fora o único grande amor em sua vida, mas que não fora correspon-
  • 42. 42 dido – o avô chegara de outro vilarejo e na época a tomara para si. Na época não lutara pelo seu amor, mas durante toda a vida não se afastara dali – mantinha casa ali e à beira-mar, sua segunda paixão. A madrugada corria silenciosamente, assim como a brisa... O relógio de pêndulo ecoou o seu som: quatro horas da manhã! Todos se entreolharam arrepiados e nada disseram; apenas Toninho disse: - É o avô chegando – em tom muito baixo, que apenas os de perto ouviram, e com certa dificuldade. Levantou e postou-se à cabeceira direita do féretro, e resmungou em meio tom: - Eu não disse para você não voltar? - ... - Eu sei que você não prometeu, mas podia dar-me a honra de não ter este desagravo com você. - ... - Sim, eu sei. Sei que fui covarde. A minha covardia fez com que o respeito estivesse presente durante todos os dias de nossa vida. - ... - Entendo. Então vou partir agora... - ... - Claro que vou! É o meu desejo que eu faço valer agora – o que não pude exercer a vida toda por ser um covarde. - ... - Não adianta falar mais nada, pois se é assim que você quer, assim vai ser a nossa batalha final... E largou a posição que se encontrava e dirigiu-se à cozinha – e foi acom- panhado por mais alguns que estranharam a atitude. Na sala, a filha mais velha que conhecia toda a história do ‘tio’ Toninho – pois era assim chamado por todos da casa, disse: - Só pode estar ficando louco! Foi um alvoroço só na cozinha. Alguns gritos se ouviram no quintal, pois seguiu para este – e o som de espadas era ouvido. Vários homens da casa tentavam chegar perto para segurá-lo, mas não conseguiam. A velocidade de seus braços e pernas era intensa – não parecia, naquele momento, ter a idade que tinha.
  • 43. 43 E durante meia hora a batalha prosseguiu. E palavras incompreensíveis eram ditas pelo tio Toninho. Os que tentavam acalmá-lo, depois de quase dez mi- nutos, desistiram e passaram a contemplar a luta – e comentavam entre si que era uma luta espiritual. Exausto, tio Toninho caiu ao chão. E simplesmente disse: - Ele venceu mais esta vez. Entreolharam-se – alguns entenderam, outros não. E acrescentou: - Na próxima vida não darei chance a ele, pois me persegue há mais de três gerações. Em poucos minutos estava de pé novamente – como se nada tivesse acon- tecido. Retornaram para perto do féretro. Na sala o silêncio era quebrado apenas pelo som do pêndulo do relógio que começava a ranger cada vez mais com a proximidade do raiar do dia... *Pedro César Alves é professor de Português, membro do Grupo Experimental da Acade- mia Araçatubense de Letras e filiado à União Brasileira de Escritores. E-mail: aallcceeppee@terra.com.br
  • 44. 44 Tiros de pólvora na boca desarmada Valdecir Roberto de Oliveira – 5.ª menção honrosa – categoria regional – Araçatuba-SP S e escondia ao meio fio da pilastra de uma casa antiga no meio do quarteirão. Boca nervosa, o perigo na vidraça. Lá de cima alguém olhava... Holofotes, sirenes se ouviam do outro lado da cidade, que repartia o céu escuro em crimes e aviões noturnos.A fumaça subia em círculos, o lábio escarlate o salto alto. Um gosto de Cibalena mastigada amargamente para aliviar a dor que casti- gava o diafragma. Uma lua prateada feito papel alumínio em um cenário de teatro pendurada, a imagem de um deus Jorge matando o dragão sem a espada. Um homem de pulôver vermelho rondava na madrugada. A rua deserta, o medo de ser descoberta aquela hora depois da meia noite. Mas ali estava. Queria carne na carne, mão na virilha, amor na casa antiga. Ela espiava. Chegou do nada. Um aroma Chanel, um vento do atlântico, lascou-lhe um beijo molhado, língua na língua, um arrocho de motel. Quebrou-se a vidraça. Ne- nhum pároco, nenhum ateu, apenas uma bala perdida e dois corpos na calçada. *Valdecir Roberto de Oliveira é professor de Português, Araçatuba-SP E-mail: valdecir_r.oliveira@hotmail.com
  • 46. 46 A Borboleta Azul Andreia Fernandes Soares Leite – 1.º lugar -categoria nacional – Rio de Janeiro-RJ A estação do metrô, cheia. Os trilhos vibram e, em instantes, o facho de luz surge, os faróis saltam do túnel negro. O trem aproxima-se, veloz. Pessoas se aglomeram e se empurram. Uma mulher de cabelos compridos, pretos, blusa branca, na beirada da plataforma. Santiago a vê, de costas. Vê também o esbarrão, proposital. Ela cai. Agonia de ferros. O ruído estridente. Faíscas. Tudo escurece. Uma borboleta azul voa em meio ao breu. A visão ocorreu pela primeira vez, quando Santiago atravessava a Rua Ba- rata Ribeiro, na faixa de pedestres. De repente, o chão se rasgou, ele despencou. Nas profundezas, crimes e borboletas. E já estava de volta à rua. Mas entre buzinas e gritos.As pernas trêmulas, vertigem. O sinal tornara a abrir e ele parado, no meio dos carros. No meio do tumulto. Com esforço chegou até a esquina, sentou-se numa lanchonete. Pediu um café. Permaneceu quieto, deixou a bebida esfriar. Pensou que estava enlouque- cendo, pensou em ir à polícia, pensou em procurar um pai de santo. Deixou-se ficar no bar, olhava as pessoas, os carros e, quando o tremor das pernas e a vertigem passaram, pagou o café que não tomara e foi trabalhar. Alguns dias depois, o crime no metrô apareceu estampado nos jornais. A imagem, captada pelas câmeras de segurança, idêntica à que ele vira. Apenas duas coisas não coincidiam. A manchete noticiava a morte como acidente. E a borboleta azul não aparecia na foto. Após esse incidente, outras visões aconteceram. Foram poucas, mas tudo se concretizava conforme previa. Não foi à polícia. Marcou e desmarcou algumas vezes a consulta com o psiquiatra, tinha no celular o telefone de um pai de santo. Resolveu, sozinho, investigar. Da última vez, não impediu a tragédia por alguns minutos. Faltou acreditar o suficiente. No momento, Santiago observa a Praça do Lido. Não tem certeza. Nunca tem. “É nessa praça”, pensa. “Passava aqui quando aconteceu.” Uma mulher caía do alto de um prédio. Nítido, somente os cabelos pretos sobressaindo nas paredes brancas de um edifício velho. Mas na Praça do Lido, são
  • 47. 47 muitas as construções antigas, com paredes brancas. Santiago olha o relógio. Deveria estar no metrô, a caminho do escritório. Deveria. Cumprir horários. Deveria também parar com toda a insensatez, a in- consequência. Já era homem de paletó e gravata, tinha importância atestada em inúmeras contas a pagar e conta bancária no vermelho. No entanto, sua pressa é somente descobrir de onde cairia o corpo. A premonição lhe aparece com apenas dias de antecedência. Precisa agir rápido. A praça, cheia de gente. Nos pontos de ônibus, nos bares, nas calçadas. Segunda-feira. Extremamente sem importância, com dúzias de pessoas que do- bram esquinas, acertam o ritmo no compasso dos ipods.Apressam-se. Ele imagina quantos, entre tantos, são assassinos. Se suas almas nunca ficaram perdidas em alguma noite tenebrosa. Se os sonhos não escaparam em remotas madrugadas. No entanto, a rua fervilha de insignificâncias. Os olhos se dirigem instintivamente para as sombras que se movem no apartamento do oitavo andar de um edifício antigo. Na janela aberta, uma colcha grená serve de cortina. Uma figura feminina aparece rapidamente. Santiago tem um sobressalto, o coração dispara. Um leve tremor nas pernas, vertigem. A mulher fecha os vidros, ele demora em recompor-se. Olha toda a volta e outras janelas estão abertas. “Calma. Não se precipite”. Vai até um bar. Pede um café. No botequim da esquina, senta-se numa mesa, à calçada, sem perder de vista os prédios. Desistira de ir ao escritório. Com um suspiro de alívio, lembra que não é mais imprescindível. Ninguém sentiria sua falta. Somente ele, no dia do pagamento. Propôs-se a ficar de guarda, iria até o fim. Quem sabe possa impedir alguma coisa. É uma segunda-feira nublada, de céu carregado de nuvens feito chumbo. Fecha os olhos e o corpo que cai surge, nítido. Na praia, o Atlântico ruge. Ressaca. Rostos e restos de uma vida sem grandes atribulações atravessam a cabeça. Marisa, linda. O pai, o irmão, Vinícius, a borboleta azul, a moça no metrô. Uma garota, desconhecida e nua na sua cama. Vinícius no caixão. Marisa, sempre linda, com as malas e as crianças no aeroporto. O embarque para Uruguaiana. A borboleta, Marisa grávida dos gêmeos. Os faróis do trem, faíscas azuis. Toma um gole do café, frio. A bebida desce amarga. Marisa levara para o Sul, os filhos pe- quenos. A falta dos meninos espatifou-se na calçada. Vinícius. Madrugadas inteiras a pretexto de estudar. Não abriam o livro. O silêncio entrecortado por música e mar. Vinícius tocava piano, violão e flauta trans-
  • 48. 48 versa, de ouvido. Santiago não tocava nada, era incapaz de juntar duas notas sem desafinar. Mas ouvia de qualquer lugar de Copacabana, o Atlântico. Enquanto Vinícius compunha, Santiago escutava o bramido do oceano. Foi quando compreendeu o rugido que, de vez em quando, ouvia. Desde menino.Ama- nhecia e os dois saíam com cara de ontem, a espantar o mundo. — Somos espantalhos de nós mesmos — dizia Vinicius. — Precisamos nos defender dos pássaros agourentos que nos vêm devorar a alma... Veio o namoro com Marisa. Linda, parecia de outro mundo. Vinicius avisou: — Cuidado. Uruguaiana não é outro mundo. Mas pode ser o fim do mundo. “Ciúmes!”, pensou Santiago. Tornou-se advogado, casou-se. E com o ami- go, brincava: — Inveja sua, porque ela é mais bonita que você! Vinícius continuou nas madrugadas, vivendo na beira do mundo, pendurado em um instrumento. E, com cara de ontem, espantava o mundo e os corvos prontos a devorá-lo. Mas foi um caminhão que engoliu Vinicius por inteiro. Um dia, Santiago passeava com a mulher e os filhos na praia e percebeu as ondas longínquas, dis- tantes. Já não retumbavam no peito. Desacostumara-se ao mar, perdera a afinação com o oceano. Ele não sabe se foi antes ou depois do acidente. Entretanto, só com a separação, Santiago foi até o fim do mundo. Após a faculdade, prestou alguns concursos, fez carreira, ficou importante, lidava com o alto escalão. De repente, abandonou tudo. Foi também nessa época que não só o chão, mas a terra inteira rasgou-se. Santiago foi atirado às pedras e depois ao mar. Braçava afogado, no fim do mundo. Tentava alcançar a mulher, porém ela foi embora com as crianças para o Sul. O pai suicidou-se, o irmão pirou, porque as desgraças andam todas de braços dados, irmãs que são. Navegou em profundezas, fez algumas descobertas. Dentro dele, habitavam muitos. Um entrevia fantasmas, outro nadava ao lado de Janaina. Havia ainda um poeta que sabia de cor versos de Camões. Um chato, leitor assíduo de José de Alencar. E um louco ouvia o Oceano Atlântico de qualquer lugar de Copacabana. Não cabiam dentro do paletó. Então tangenciou a correnteza e voltou para casa. Sozinho.Voltou também a escutar o bramido do oceano. E como as desgraças ora vêm em torrentes, ora em conta gotas, mas nos rodeiam todos os dias, largou o emprego público. — Ficou maluco, Santiago? — perguntaram os amigos.
  • 49. 49 — Não. Afrouxei o nó da gravata. Absorto em pensamentos, ele não percebe as nuvens mais carregadas no céu. Toda a Praça acinzentou-se, escura. Apesar do mau tempo, agita-se. É vés- pera de Natal. Só então olha para cima e percebe a janela do oitavo andar. Está aberta de novo. O coração dispara, as mãos tremem.Tenta segurar a xícara, derruba o café. Outras lembranças o assaltam. Ana. O rosto desfocado. Anucha. Nas feições difu- sas, só os olhos. Negros. “Misturas que dão encanto à vida...” a frase dita há muitos anos. Ana não deixou de ser um resto, um ponto, um nó. Uma mancha quase apagada. Quase. Há vinte anos. Nunca mais se viram. O corpo dele encolhia-se quando ela sentava-se ao seu lado, no banco da escola. Ele, um dos melhores alunos da classe, ela, uma das últimas. Ele destinado a uma carreira promissora, ela desde os tempos de colégio, a saia curta, as pernas cruzadas, os botões da blusa abertos no limite do sutiã, além do permitido. — Ana não é para você. — diziam os colegas. Mais tarde descobriu o contrário. Encontraram-se numa festa de Ano Novo, ele casado, ela divorciada pela segunda vez. Dançaram juntos, uma única música. — Você tinha medo de mim — ela lhe segredou ao ouvido. — Claro. Seus olhos misturavam todas as loucuras do mundo. A solidão gelada e devastadora das estepes russas e o calor dos corpos suados em pleno bloco de carnaval. — Que loucura, Beto! — Beto era o apelido de juventude. — Para um garoto de quinze anos, assustador. Ainda não sabia que são essas misturas que dão encanto à vida. —Mesmo que junto do encanto venha a insanidade? — A loucura chega de um modo ou de outro. Santiago lembra-se do instante em que se olharam. A fagulha da adoles- cência teimava nalgum canto dos olhos. No rosto, ranhuras leves de alegrias e de- cepções. Nos ombros, já pesavam traições, remorsos e outras pequenas tragédias. Ana se tornara bailarina, integrava uma companhia no exterior. Naquela noite, Santiago soube que o caso duraria enquanto durassem as férias no Brasil. Soube também, que começava naufragar. Imaginou o que teria sido deles se no lugar de se assustar com os seios, tivesse mergulhado em seus olhos, aos quinze anos. Separaram-se. Nunca mais a viu.
  • 50. 50 Ele espanta a imagem de Ana, mas a lembrança ressurge. Ela o deixou a ver navios e o gosto do sal deixado na boca, despertou um mar inteiro. Com o tempo, certas coisas voltaram a ter sabor de infância. O caldo verde de um botequim perto de casa. Tomado lá pelas três da manhã, curtido no fogo. Nas madrugadas de sábado, chegam os travestis, as putas, mendigos de rua, curiosos e desavisados. Ao meio-dia ainda tem gente bebendo, comemorando não se sabe o quê. Falando bobagem. Ou delirando, sonhando, enlouquecendo. No oitavo andar, a janela aberta. A cortina grená balança. Santiago sente o coração disparar. A visão da mulher caindo do alto atravessa os pensamentos. Os cabelos negros, no branco. O cérebro apressa-se. Sente a urgência, quase certeza. Levanta-se, paga a conta, cruza a praça. Segue em direção ao edifício, sem desviar os olhos da janela aberta, a cortina grená. No caminho, certifica-se da antiga arma no bolso do casaco, comprada quando era delegado de polícia. Está um pouco enferrujada, mas ele não presta a menor atenção a este pormenor. Na portaria, um turbilhão de pessoas, fazendo as últimas compras. O prédio é um misto de residencial e comercial.Analisa a posição da janela, sobe ao primeiro andar. Procura a loja correspondente: é a de número 111. Retorna. O porteiro entre confuso e espantado diz que a moradora do apartamento 811, chama-se Teresa. O elevador lotado é lento e para em quase todos os andares. Santiago sente a pouca certeza desaparecer. “Você é mesmo louco”, pensa. “Filho e irmão de maluco”. Imaginou-se tocando a campainha, a porta se abrindo. “Dizer o quê? O melhor é ir embora.” Um leve tremor nas pernas, vertigem. No elevador fechado, o mar ruge. Rostos e restos na cabeça. O pai, o irmão, Marisa, os filhos.Anucha.Ana alguma coisa. Criada pela avó, imigrante russa. Decide saltar no próximo pavimento e descer pelas escadas. Justamente o oitavo andar parece não ser o destino de ninguém. Todos se entreolham. Santiago, ainda meio tonto, sai do elevador. No corredor escuro, escuta vozes sobressaltadas. Corre. Vêm exatamente do 811. A porta escancarada aumenta o tremor, a vertigem. Ele pega o revolver, avança com a arma em punho. Roupas e objetos pelo chão. No quarto conjugado, um homem tenta sufocar uma mulher, na cama. — Parados! O homem se assusta. Empurra o suposto policial de encontro à parede e desaparece pela porta aberta. Santiago aproxima-se da mulher, imóvel. De repente, para, incrédulo, diante do que vê. Ana Teresa abre os olhos, zonza. Respira com dificuldade. Mal consegue por
  • 51. 51 em ordem os pensamentos. Um homem há pouco tentava sufocá-la e agora outro, armado, está diante dela. O rosto desfocado, adquire nitidez. Murmura: — Beto... — Anucha... — ele balbucia.A expressão de horror, o olhar fixo para o lado de fora. Ela vira-se para janela. Do outro lado da Praça, o corpo de uma mulher despenca do alto de um edifício. O cabelo preto sobressai nas paredes brancas. *Andreia Fernandes Soares Leite, profissional do teatro, Rio de Janeiro – RJ E-mail: andreia.fernandes@oi.com.br
  • 52. 52 O Salto André Silva Pomponet – 2.º lugar – categoria nacional – Salvador-BA Q uando chegou ao alto do monte, sobre as pedras, resfolegava. Uma cabra berrava, diminuta, num capinzal verdejante no sopé do monte, na periferia de Itaberaba. Alguns sujeitos corriam atrás de uma bola de couro, num campo de barro, dezenas de metros abaixo. Um caminhão engendrava manobras difíceis na estrada estreita, barrenta, lá embaixo. Mais distantes, luzes se acendiam em casebres pobres, no Jardim das Palmeiras. Sons alcançavam o cume do mor- ro, distorcidos. Eram imprecações, canções, conversas em tom rude, ralhos com crianças, resmungos. Atrás, fincadas no solo ressequido do monte, repousavam imponentes tor- res metálicas. Quando a noite caía, acendiam-se no topo pequenas lâmpadas ver- melhas, muito vivas. Contrastavam com a luz alaranjada das lâmpadas dos postes da iluminação pública. As imensas rochas escurecidas pelo limo eram imponentes. No sopé do monte, disputavam estreitas faixas de terra fértil com o capim viçoso. O tempo aplainara a aspereza das pedras, arredondando-as. Suspirou. Fechou os olhos. As têmporas latejaram. Olhou a vegetação ras- teira dos morros em volta. O sol repetia o imemorial mergulho no horizonte. Nuvens róseas e azuladas acumulavam-se no poente. Aves brancas voavam com sincronia sobre a cidade. Precisava dar o salto definitivo. Não havia jeito, era uma questão de honra. Ainda que não o testemunhasse, ainda que não colhesse o olhar de espanto e res- peito dos que o conheciam. Por que permanecer na interminável roda, amando e odiando, comendo e bebendo, sofrendo e rejubilando-se, observando impassível ou agindo febrilmente, perpetuando o ciclo, o interminável fim e o eterno recomeçar? Por que testemunhar sorrisos e lágrimas, expectativas e frustrações, desprendi-
  • 53. 53 mentos e iniquidades, triunfos incontestáveis e derrotas acachapantes? Melhor o salto. Mas e os sofrimentos decorrentes? Maria e as crianças... Seus pais... Seus irmãos... Os companheiros de jornada... Pensava demais nos outros, era um defeito imperdoável. Carecia da objetividade, do egoísmo material.A abnegação é a virtude dos fracos, dos pusilânimes. Sempre tão correto, tão auste- ro, tão movido por uma força interior, tão racional, tão previsível, tão agradável, tão cheio de virtudes, de preocupações com o próximo. Um fraco, um decadente, um cristão, um enamorado por uma humanidade utópica, inexistente. Dois passos e o salto, a Liberdade imperdível, completa, sem concessões, sem subterfúgios, sem máscara. E o grande momento, o instante mais marcante, o corpo caindo e o êxtase arrebentando no peito, arrebentando o próprio peito em alguns segundos, abrindo-lhe perspectivas, caminhos jamais trilhados, desafios inimaginados, mesmo que o mergulho o afunde no Grande Nada, na ignorância que transcende a indiferença mineral, na absoluta solidão da inexistência, cuja sutileza escapa às limitações do seu cérebro humano. Como equiparar seus preconceitos a este grande momento? A mulher. Os filhos. Os pais. Amigos, colegas. A opinião pública. A religião. Os preconceitos. Os dogmas.A ideologia cristã. Nada se equiparava, nada. Nada. O Grande Nada era a ideologia das possibilidades, o último refúgio, o refúgio eterno. Mas e a coragem? Faltava-lhe... Um choque na rocha a uma velocidade crescente destroçaria o frágil corpo, torná-lo-ia irreconhecível. Bombeiros prague- jariam, escalando o penhasco, para resgatá-lo e conceder-lhe um enterro cristão. Enrubesceu ao pensar que arranjaria tarefa embaraçosa para outros, mesmo de- pois de morto. E se prosperasse a versão de que ele caíra acidentalmente? E se dissessem que foi empurrado, talvez vítima de um criminoso ignóbil? Não trouxera papel, não poderia escrever uma mensagem lacônica despedindo-se, não com- binava com a postura despojada que pretendia adotar, partindo sem despedidas prévias, sem os grilhões das explicações corriqueiras, das inevitáveis e penosas justificativas. Só que lhe faltava a coragem, a insensatez de romper, de revoltar-se. O salto era a redenção, a suprema inspiração, um momento brilhante res-
  • 54. 54 plandecendo em meio à mediocridade da vida cotidiana. Carecia daquele instan- te notável, que o redimiria de todos os pecados anteriores. Comia. Bebia. Fodia. Suportava a mulher, que suportava-o. Educava os filhos com preceitos vagos, esquecíveis. Demonstrava amabilidade com os pais. Era um amigo prestimoso. Nos eventos sociais, desfiava conceitos respeitáveis. Não apregoava revoluções. Respeitava a propriedade privada dos meios de produção. Concordava com os editorialistas dos jornais, que coincidentemente pensavam o mesmo que a classe patronal. Entretinha-se com as reportagens banais e absorvia vorazmente os con- ceitos implícitos que exaltavam e exultavam o despertar de uma cidadania aleijada. Enfim, era um pústula, como todo mundo. Aos domingos visitava shoppings com a mulher e os filhos. Bebericava chope, enquanto as crianças devoravam sorvetes. Depois comprava uma camisa colorida, demonstrando sua perfeita sintonia com a vida. Íntimo da vida, alegre com a vida. Celebrando a vida através do consumo. Gozava as férias em janeiro, partindo para destinos que sua respeitabilidade previa, mergulhando no turbilhão de consumo que sua condição social impunha, extasiando-se com as mesmas interjeições dos que frequentavam seu círculo e até mesmo enfastiando-se com o mesmo fastio dos que vivem sob confortáveis condições materiais. Depois, a rotina, o repetir das manhãs e tardes da repartição, o aconche- gante repouso noturno em seu lar burguês, a manhã e a tarde seguintes, as reu- niões familiares nos finais de semana e o aguardar ansioso das próximas férias, que seriam precedidas por projetos sustentados com os mesmos argumentos das férias dos anos anteriores. Por fim, era o suceder dos anos e as preocupações de cada faixa etária e a inquietação crescente à espera do momento definitivo, de ajustar contas consigo mesmo e resvalar para a cova. Eis o resumo da ópera. E eis o epílogo a ser transformado com mais dois passos. Um pequeno e inexplicável passo para a humanidade, mas o passo mais importante de sua vida insípida. Mas cadê a coragem? Cadê a intrepidez dos gran- des espíritos que praguejaram contra a mediocridade, a rotina, o corriqueiro? Fra- quejava! A ideia atiçara-lhe o espírito, mas ele fraquejava, covardemente. Recuou. Recuou dois passos. Alguns passos. Muitos passos, até chocar-se
  • 55. 55 com uma rocha e agarrá-la com firmeza, como se estivesse à beira do precipício. Galgou-a, contornou a igreja que não frequentava por desleixo havia meses, come- çou a descer a ladeira íngreme que conduzia à cidade, de retorno. Mas foi caute- loso, porque havia lama acumulada e ele temia machucar-se, caso escorregasse e caísse... André Silva Pomponet é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental na Secretaria do Planejamento da Bahia, mora em Salvador E-mail: andrepomponet@hotmail.com
  • 56. 56 A Terceira Desconexão Hilário de Sousa Francelino- 3.º lugar – categoria nacional – Cerqueira César – SP P ostagens na tela do memorímer mostram-me a calorosa discussão sobre anencéfalos, na aleatoriedade da rede social. Conceito de vida em furiosa construção. Não que as publicações polêmicas sejam incomuns, mais do que isso; a discussão do que define tudo o que é animado me devolve a memória dos tempos em que Fabrisbão e eu éramos bons amigos. Embora eu fosse de esquecer essas notícias, senti-me particularmente ofendido por minhas ações sem pensar, sem razão: haveria pena de morte sobre mim? Houve um tempo em que impunha minhas definições, a troco de relações, no câmbio desumano. Desânimo do desnecessário: agora meus conceitos eram outros, e tenho uma amizade a menos. Pago sempre pela forte opinião. No entanto, nem mesmo a memória de Fabrisbão desviou minha mente das então atormentações do amor, há muito tempo sido ideais. Mandei uma mensagem para Evania, a saber, qualquer coisa sobre a vida; buscando conciliação? Hoje o conceito de amor, inabalável, estava como de costume, nas indefinições de tudo o que é contemporâneo. A tela movia-se ao sabor dos meus dedos sequiosos por atualizações do perfil público de Evania, pertencida. Não a mim. Será? Desfiz-me do luxo de generalizar o território de seu reinado, somente porque a idade trouxe al- guma espécie de cautela. Alguns toques, os dedos: eslidando, deslisandinos. Des- deslizes. Naquela hora eu não sabia dizer se eu estava na faculdade, no trabalho, ou no quer-que-seja, tão repentinas foram as mudanças, e tão atemporais também, como em mesma intensidade a minha atenção foi escassa. Falafael, de sobrenome impronunciável, pregava um grande respeito às mariposas de refeitório, que não aterrissariam na cafeteria ao acaso. As das asas de ramos desenhadas. Dizia que sempre houve os mensageiros borboletais, cuja presença na mente do homem era fato previsto e certo. Missões advisórias, ofuscantes de calma. Contudo novo, elas estariam completando a atualização que permitiria acessar o cerne humano via telefone móvel, ou memorímer - que se usa mais. É que não se pode mais fazê-lo diretamente, desde uns anos. Procurando pelo fluxo, corpos de pessoas numa massa só, certeiras, compassadamente: era, sem dúvida, o fim do meu dia
  • 57. 57 na voz das tarefas. Eu bem provável. A qualquer momento um sorriso que fosse, Evania transmutaria bites em batimentos do meu coração, ou o que fossem os reais químicos correspondentes a caracteres. Desentendemo-nos e ela demarcou distância, já faz dois tempos.Viver perde muito do sentido na falta de Evania, manti- das minhas definições, as biológicas, o fundo do respirado, uma vez reprovadas na fala de Fabrisbão. Há, e o que acho, pistas e só, e termina que vida não se define; mas este sou eu. O que mais se antagoniza? Demanda de me informar. Nem isso. A discussão tomou rumos adolescentes, naquela época, e agora não posso pousar olhos adultos sobre minhas ações se meus dedos atualizam irracionalmente uma tela de rede social; embaralhamentos. Um olho no memorímer e outro no braço sem relógio. Banco de trem finje que não sai do lugar. Assim, sentei como se normalmente não mais, nem um trem comporta, em alternações, o padrão preenchido, povoado; bilhete na mão, sorriso cerrando. Muito embora cansaço por cansaço, admitido na precipitação do segun- do. A voz e a vez, como o cobrador recebe o bilhete no cru daquele instante, e eu sentindo falta de antigamente. Não quis saber o destino, como eu bem poderia a princípio. Que Evania não me ignorasse mais... Senti que desejáveis. Nem dei atenção para os computadores, informamundos, cheios de itinerários, mas sem informações de consolo. Servidores. Embarquei para procurá-la ou, menos preci- samente, rumei à casa; a minha? Contei nos dedos os pontos negativos que enfei- tavam as chances de eu encontrar alguém; acertos de que mesmo? Atualmente, a meada já vem desfiada. Quando criança, o medo de se perder estava estam- pado no bilhete do trem. Os anos passaram sem esforço; as provisões acabam, e desapercebe-se, negligenciadas, tornando-se ilusões do inútil. Os mais novos retiram o néctar do momento, minutórios.As previsões são madrastas, cabalísticas; mas ignoradas, em um balanço penoso. Não andei tanto, mas para a frente que fui, eu iria virar para trás, voltarrego, desistente? Funciona, porém; então deixai a continuação das gerações tomarem suas formas. Sem reserva de baterias, uma esperança baseada em razão para não enlouquecer em aguardar uma mensagem- -resposta. A tela alheiava-se. Com esperança, peço aos céus um retorno certo, preciso. Dança de trem no verso dos trilhos com a barra do dia. Tardezarrão que puxa a noite pelos cabelos e eu só vendo, no balanço do coletivo. Pensamento no intangível, eu esqueceria o bocado demorado, para mais um desencontro? A bordo de ti, conquanto longe? Trendências. O amor renova as esperanças na entidade do erro, instigando novas tentativas ininteligíveis. Inquietação maior foi aquela, no