3. CAPÍTULO 1
“No nosso caminho há sempre uma pedra. Cabe-nos a nós saltá-la ou esculpi-la”
(Autor desconhecido)
— Ó Rodolfo, assim não dá, pá! Sabes bem que as editoras nascem neste país que
nem cogumelos. Se a gente não produzimos…
— Produz, Francisco, produz…
— Produzo? Tu é que tens de produzir, então! Brinquemos?
— Brincamos, Francisco, brincamos…
— Pois, brincamos. Mas sabes que, a brincar, a brincar, o macaco…
— Vá, Francisco, deixa-te lá dessa conversa. Sei bem que precisas que eu escreva
uma pequena maravilha para saíres do buraco, mas estas coisas não podem ser a mata-
cavalos, têm o seu tempo de maturação, enfim…
— Pois, mas, como já deves ter compreendido, tempo é coisa que não nos
podemos dar ao luxo de desperdiçar.
— Percebo, Francisco, mas ando completamente bloqueado, não há maneira de…
— Ouve lá: já ouviste falar em escrita automática?
Esta conversa ocorrera há dois dias.
Por mais que se esforçasse, Rodolfo apenas conseguia vislumbrar um imenso pano
de fundo branco, da cor da folha que se lhe apresentava à sua frente, ocupando o seu
pensamento. Não se conseguia adaptar, de maneira nenhuma, a escrever directamente
no computador, tendo imenso prazer na manipulação da esferográfica, na verdade uma
qualquer comum caneta de trinta cêntimos que estivesse disponível.
Por descargo de consciência, resolveu consultar alguns sites, tendo encontrado as
informações que procurava. Uma delas fê-lo recordar uma brincadeira dos seus tempos
de criança. Cada elemento de um grupo juntava uma palavra às restantes, fazendo com
que, podendo ler o que os outros haviam escrito, se desse um rumo à história que assim
ia sendo criada, normalmente bem diferente da idealizada pelos predecessores.
Na verdade, ao chegar novamente a vez de cada um, a história era novamente
reorientada, originando, finalmente e quase sempre, uma história sem pés nem cabeça.
Uma outra ligava a escrita automática à não-consciência do escritor, sendo este um
mero instrumento para a escrita. Em transe, ou perto disso, este serviria de mero pombo-
4. correio, dando a conhecer a mensagem que seres transcendentes quereriam revelar ao
mundo. Rodolfo interrogava-se do porquê de seres transcendentes, ultra-poderosos e
omniscientes, precisarem de alguém para escrever aquilo que poderiam, eles próprios,
redigir directamente, mas enfim…
Rapidamente percebeu que dificilmente teria sucesso com aquela metodologia.
Isto de estar sentado à frente do computador, com as mãos em cima do teclado, à espera
de uma qualquer intervenção divina para fazer brotar uma intempestiva criatividade, não
era, definitivamente, para si. Nem mesmo recorrendo ao papel e lápis, ou caneta, tal,
com ele, resultaria. É claro que a perspectiva de poder ser um mediador Cósmico, uma
espécie de médium, pronto a receber alguma mediática revelação, apesar do referido
cepticismo, lhe agradava. Contudo, era demasiado impaciente, orgulhoso e auto-
confiante para deixar ao desígnio dos deuses a realização de algo que sempre tinha feito
por si.
Certo, certo, é que, desta vez, por mais que se esforçasse, nenhuma ideia brilhante
parecia querer, sequer, aflorar à sua mente. Vendo bem, uma ajuda divina seria aceite de
bom grado…
Para além da escrita, tinha uma paixão imensa pelos números. Com a música,
poder-se-ia dizer estarmos perante a sua Trilogia da Paixão. Em última análise, para
ele, quase tudo se resumia a números. Jogava frequentemente com a métrica das frases,
com a simetria das palavras e com o número de letras destas, deleitando-se,
paralelamente, com os intervalos de quintas, as tercinas e as pausas. Contudo, apreciava
especialmente o que se relacionasse com as teorias das probabilidades. O conceito de
aleatoriedade era-lhe especialmente caro, tendo-o usado para jogar, embora com pouco
sucesso, em jogos de lotaria.
De repente, uma ideia. Ao princípio, recusou-a. Ele, que sempre quisera ter o
perfeito domínio da escrita, como poderia sequer ponderar a possibilidade de recorrer
a…
Aos poucos, a ideia tornou-se insidiosa. As leituras sobre escrita automática e o
seu carácter errático, aliadas ao seu gosto por números, probabilidades e acaso,
mostraram-lhe um caminho. Aliás, face ao seu estado de desespero literário, o caminho.
Iria deixar que as palavras, ao acaso, lhe espicaçassem a criatividade. Não seria uma
ideia completamente inovadora, calculava, mas tinha a vantagem de lhe apresentar uma
5. base para começar a sua construção literária. Como alguém alguma vez dissera, as
peças de escultura, mesmo as verdadeiras obras de arte, estão todas, à partida,
incrustadas na pedra onde serão talhadas. Compete ao escultor retirar desta os
pedaços que não interessam. Poderiam as criações literárias ser, também, vistas sob este
prisma, a priori escritas, esperando mais ou menos pacientemente que um qualquer,
sem desprimor, escritor escolhesse as palavras mais adequadas, afastando as
redundantes? Dum ponto de vista, digamos, filosófico, era uma perspectiva aliciante.
Para um escritor em busca do livro, era ainda mais do que isso. Saber que o melhor livro
alguma vez escrito já o estava, bastando, afinal, colocar as palavras que o comporiam
na ordem certa, era, convenhamos, terrivelmente apelativo. É claro que a probabilidade
de, por sorte, as palavras de um best seller saírem todas em carreirinha, a partir de uma
extracção aleatória dum qualquer dicionário, era igual à do Sporting ganhar cinco
campeonatos seguidos. Ou jogos. Teria sempre, obviamente, de haver alguma
intervenção artística. Qual escultor burilando, após desbaste despreocupado e quase
automático, os contornos e detalhes da sua Madona.
Quantas palavras tinha a Língua Portuguesa? Pesquisou e encontrou valores algo
díspares, mas que lhe davam uma noção da dimensão da coisa. Seriam 400, 500, ou
mesmo 600 mil, mais coisa menos coisa. Sem contar, esclareça-se, com as diversas
formas verbais, restringindo-se os verbos ao seu infinitivo. Escrever esse número
imenso de palavras, recortá-las e colocá-las numa tômbola, para as retirar uma a uma,
não lhe parecia lá muito exequível. Na era da informática, qualquer programador
informático, ainda que com pouca experiência, não teria, supunha, grande dificuldade
em criar um software apropriado. Aliás, certamente já haveria algo do género disponível
na internet, mas queria dar-lhe um toque particular. Recorrendo a funcionalidades
incompreensíveis para o comum dos mortais, bastaria clicar numa tecla predefinida do
computador para lá virem elas, ordeiramente, ao sabor e saber dos ventos da
aleatoriedade. Depois, seria uma questão de olhar com olhos de jogador de xadrez,
antecipando consequências de uma certa ordenação, calculando mentalmente as
possíveis combinações das palavras e imaginando todas as outras que iriam preencher
os espaços deixados vazios entre as sorteadas. Não tinha, ele próprio, conhecimentos
para fazer esse programa, mas conhecia alguém que os tinha. Dir-lhe-ia a sua ideia e,
além disso, já pensara no nome a dar a este software. Um nome misterioso, algures
entre o inglês e o latim, parecia poder resultar bem: Aleascript.