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FÉ HOJE

N0 39 - Mar/2013 - R$10

pa r a

Comprometida com a Fé que foi entregue aos santos

Criação
Ø Queda
Redenção Ø
Consumação
Faç a a as s inat ura an ual da r e v ista
Fé para H o j e p or ap enas R $ 15,00*

Ligue 12 3919.9999 ou acesse www.editorafiel.com.br/feparahoje
* Assinatura anual inclui duas revistas por ano. Se você deseja receber a revista fora do Brasil,
entre em contato conosco pelo e-mail: feparahoje@editorafiel.com.br
Amado Leitor,
É nosso desejo que, através da leitura dessas páginas, você
possa ser desafiado e encorajado a perseverar em seu propósito
de crescer no conhecimento e amor do glorioso evangelho de
Jesus Cristo.
Conquanto as palavras e artigos desta revista tenham o
propósito de provocar sua mais séria reflexão e apreender
às coisas da mente, sem o amor a Deus, nosso zelo e labor
são vãos. É preciso aliar mente e coração na obra de Deus.
Primeiro, ame ao Senhor e depois, ame a noiva de Cristo, a
igreja.
Todos nós, no Ministério Fiel, reconhecemos com gratidão ao
Senhor o privilégio que temos em poder servi-lo.

J. Richard Denham III
Diretor, Editora Fiel

editor-chefe Tiago J. Santos Filho tradução Francisco Wellington Ferreira
revisão

Marilene Paschoal

presidente emérito

diagramação

Rubner Durais

diretor

James Richard Denham III

James Richard Denham Jr. realização Editora Fiel | Março de 2013 | no 39
Sumário
	 Editorial
Tiago Santos.......................................... 3

1.	 A Majestade de Deus na Criação
e a Ecologia (Sl 8.1-9)
Hermisten Maia Pereira da Costa........... 5

2.	 Deus, o Criador
Stephen L. Wellum. . .............................. 13

3.	 A Importância Teológica
da Historicidade de Adão
Bruce A. Ware....................................... 19

4.	 O Homem e o Pecado
John Piper............................................. 23

5.	 A Justificação Ainda É Importante?
Michael S. Horton................................ 31

6.	 Vivendo “Já” com Vistas
ao “Ainda Não”
Heber Carlos de Campos Júnior. . ........... 47

7.	 Milênio – Breves Considerações
Hermenêuticas
Gilson Santos....................................... 53
Editorial

Quatro Grandes
Realidades da Teologia
Tiago Santos

Nesta nova edição da revista Fé
para Hoje, lançada na esteira do Curso Fiel de Liderança do ano de 2013,
trabalharemos os quatro grande pilares da teologia sistemática: Criação,
Queda, Redenção e Consumação.
Esses temas sumariam o grande
esquema da teologia e têm o propósito de levar o estudioso a compreender
o plano e as ações de Deus na história
da humanidade, conforme revelado
nas Escrituras Sagradas.
Nesse esquema, vemos como
Deus condescendeu revelar-se ao
homem, dando-se a conhecer e descortinando seu projeto para a humanidade.
Na criação, vemos o Deus trino
todo-poderoso, transcendente, autoexistente, suficiente em si mesmo,

eterno, santo e perfeito em todos os
seus atributos, criando todas as coisas que existem, desde as mais remotas e distantes galáxias até a terra e
tudo o que nela há. Vemos a criação
do homem imago Dei, segundo a imagem do próprio Deus, em estado de
inocência e liberdade, debaixo do governo moral de Deus, ordenado a ser
responsável e obediente e a governar
sobre todas as coisas criadas, para a
glória do criador.
Na queda, vemos o homem transgredindo a lei de Deus e se afastando
dele, caindo de seu estado de inocência e felicidade e legando para a
humanidade esta condição de condenação, aprisionando sua liberdade
às inclinações do pecado, sendo tanto
responsável por ele como vítima de
sua poluição. Vemos o efeito da queda na criação, trazendo maldição para
este mundo e resultando na grande
tragédia da história do homem.
Na redenção, vemos ainda que
Deus resolveu oferecer salvação ao
homem – e o fez de modo que sua
justiça, ofendida pela transgressão da
lei causada pelo pecado do homem,
fosse satisfeita. Em amor, desde os
tempos eternos, Deus o Pai resolveu
salvar pecadores em seu Filho, Jesus
Cristo, o qual, sendo um com Deus
o Pai, entrou na história, assumiu a
natureza humana e viveu como homem, obedecendo toda a lei e cumprindo toda a justiça de Deus o Pai,
a ponto de oferecer-se a si mesmo
como sacrifício e propiciação a Deus
em favor dos homens, justificando os
pecadores que se achegam a ele, movidos pela ação do Espírito de Deus

que os regenera, em arrependimento
e fé, sendo reconciliados com Deus e
adotados em sua família.
Vemos finalmente a consumação
de todas as coisas – como o cristão é
preparado nesta vida para a vida porvir; sendo santificado e perseverando
em sua peregrinação. Vemos o que
acontece após a morte do homem,
seja do justo ou do injusto, sobre o
céu e o inferno, o julgamento final, a
ressurreição do corpo e a redenção final e definitiva da criação: novos céus
e nova terra – todas essas coisas operando segundo o propósito e decretos
de Deus e para glória dele.
Na seleção de artigos desta edição, somos instados a refletir esses
grandiosos temas e levados a considerar o grande amor e glória do Deus
trino. Que ele possa abençoar sua
leitura
A Majestade de Deus na
Criação e a Ecologia (Sl 8.1-9)
Hermisten Maia Pereira da Costa
A Criação de Deus
não tem poder em si mesma para
auto-existir; sem a sustentação
de Deus o universo inteiro, toda
criação deixaria de existir".

Introdução
Um dos conceitos predominantes
da filosofia grega clássica se referia ao
dualismo entre matéria e espírito. Dentro desta compreensão da superioridade do espiritual, a matéria é má. Este
dualismo influenciou até mesmo determinado grupo dentro da história do
Cristianismo, denominado de Gnóstico,
quanto à sua compreensão da Criação
divina e da encarnação de Jesus Cristo.
No entanto, a fé cristã sustenta que
tudo o que existe tem Deus como autor, que não somente cria algo externo
a si mesmo (ele não se confunde com a
matéria, nem é a matéria mera extensão sua), como também preserva por
meio do seu poder.
6 | Revista f é pa r a h o j e

A preservação é compreendida
como aquela contínua operação do
poder de Deus, pela qual ele sustenta
e mantém todas as coisas contingentes
– a Criação – a fim de que esta possa
cumprir ordenadamente o propósito
para a qual foi criada. Isto significa que
a Criação de Deus não tem poder em
si mesma para auto-existir; sem a sustentação de Deus o universo inteiro,
toda criação deixaria de existir. “Ele,
que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as
cousas pela palavra do seu poder....” (Hb
1.3). A ideia de “sustentação” no texto,
(
= “levar”, “carregar”), além de
preservação, é a de fazer com que as
coisas sigam o seu rumo, o seu propósito determinado por Deus.
Isto nos conduz à nossa responsabilidade como agentes de Deus no cuidado e preservação do que ele mesmo
nos confiou. A natureza tem o seu valor porque foi criada por Deus. Eu não
preciso idealizar a natureza, humanizá
-la ou divinizá-la; ela tem o seu próprio
valor: O Deus sábio, soberano e bondoso a criou. Isto, por si só nos basta.

1. O Mundo Físico
O pecado, que consiste na quebra
de relacionamento com Deus, trouxe
ao ser humano diversas consequências.
Entre elas a perda da sensibilidade espiritual. O ser humano perdeu a capacidade de reconhecer a Deus em seus
atos manifestos em toda a Criação,
na Palavra, e plenamente revelado em
Cristo Jesus. A quebra desta comunhão com Deus vai interferir diretamente em todas as demais relações, inclusive em nossa maneira de ver e atuar
no mundo.
O pecado alienou-nos de Deus,
do nosso semelhante e da natureza. Assim, o pecado, de certa forma,
desumanizou-nos. A Queda trouxe
consequências desastrosas à imagem
de Deus refletida no homem. Após a
queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e semelhança de Deus (aspecto metafísico):
Apesar de o pecado ter sido devastador
para o homem, Deus não apagou a sua
“imagem”, ainda que a tenha corrompido, alienando-o de Deus. O pecado
trouxe como implicação a perda do
aspecto ético da imagem de Deus. A

nossa vontade, como agente de nosso
intelecto, agora, é oposta à vontade de
Deus. A imagem que agora refletimos
estampa mais propriamente o caráter
de Satanás.
No Éden só havia um livro: o livro
da natureza; todavia, com o pecado
humano, a natureza também sofreu as
consequências, ficando obscurecida,
perdendo parte da sua eloquência primeva em apontar para o seu Criador
(Gn 3.17-19) e, como parte do castigo
pelo pecado, o homem perdeu o discernimento espiritual para poder ver
a glória de Deus manifesta na Criação
(Sl 19.1; Rm 1.18-23). A Revelação
Geral que fora adequada para as necessidades do homem no Éden – embora
saibamos que ali também se deu a Revelação Especial (Gn 2.15-17,19,22;
3.8ss) – tornou-se, agora, incompleta
e ineficiente para conduzir o homem a
um relacionamento pessoal e consciente com Deus.
Todavia, mesmo a Criação sendo
obscurecida pelo pecado humano, continua a revelar aspectos da natureza e
do caráter de Deus.
A fé cristã fundamenta-se, porque
foi por isso que ela se tornou possível,
na existência de um Deus transcendente e pessoal que se revela, se comunica conosco. Sem a comunicação divina não haveria teísmo nem ateísmo,
simplesmente jamais chegaríamos ao
conceito de Deus ou à sua negação.
O Salmo 8 exalta a majestade do
nome de Deus manifesta na Criação
(1). É um hino que por meio do homem dignifica a majestade de Deus.
Revista fé pa r a h oje | 7
É possível que Davi tenha composto este Salmo na juventude, quando era
apenas um pastor de ovelhas, quando
as suas lutas eram bastante complexas
na simplicidade de sua vida. Nesta fase
de sua vida, certamente passava muitas noites dormindo ao relento, contemplando as estrelas no firmamento e
refletindo sobre o poder de Deus. Esta
mesma fé amadurecida pelas experiências com o Senhor o acompanhará.
Outra ocasião provável é quando, um
pouco mais maduro, já ungido rei, é
foragido de Saul que queria matá-lo.
Neste período teve oportunidade,
ainda que com o coração angustiado,
de experimentar a mesma sensação de
ver e refletir sobre a imensidão do céu
diante dos seus olhos (Sl 8.1,3).
O salmista contemplando parte da
criação exulta demonstrando que em
toda a terra o nome de Deus é exaltado. Ele ultrapassa a visão apenas local
de Israel, para reconhecer que o testemunho de Deus na Criação se estende
a toda a terra (1).
O salmista percebe que este reconhecimento da majestade de Deus só
se tornou possível pela revelação de
Deus na Criação: “Pois expuseste nos
céus a tua majestade” (Sl 8.1).
No entanto, ele não se detém na
criação, antes, vai além, reconhecendo
a glória de Deus nela. No Salmo 19,
Davi faz uma referência semelhante,
de modo mais amplo (Sl 19.1-4).
Contudo, os homens, insensíveis
à majestade de Deus, corrompidos em
seus pecados, entregaram-se à idolatria
(Rm 1.20-25).
8 | Revista f é pa r a h o j e

A Criação, portanto, nos fala de
Deus, de sua majestade e poder. É necessário que tenhamos nossos olhos
abertos para contemplar a Deus por
intermédio de suas obras. A confiança
do salmista passava pela criação e repousava em Deus (Sl 121.1-3).

2. No Ser Humano
Argumentando de forma espacialmente dedutiva, faz uma pergunta retórica: “Que é o homem, que dele te lembres E o filho do homem, que o visites?”
(Sl 8.4).
A sensação é de pequenez diante do
vasto universo, do qual posso contemplar, ainda hoje, uma minúscula parte.
O sistema solar é apenas um pequeno
ponto no universo que conhecemos limitadamente.
Séculos depois, encontramos admiração semelhante entre os gregos.
Todavia, a admiração dos gregos ao
contemplar o universo, os conduziu
em outra direção. Eles diziam que a
admiração conduz o homem à filosofia. Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) estão acordes neste
ponto.1
Nestas reflexões surgem as explicações a respeito da origem da vida:
a)	 Tales de Mileto (c. 640-547 a.C.):
Por meio do estudo doxográfico,
1  Vejam-se:Platão, Teeteto, 155d: In: Teeteto-Crátilo, 2. ed. Belém: Universidade Federal
do Pará, 1988, p. 20; Aristóteles, Metafísica,
São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores,
Vol. IV ), 1973, I.2. p. 214.
sabemos que Tales, considerando a
Diferentemente, a admiração de
necessidade da água para a sobreviDavi o conduziu a glorificar a Deus e,
vência de tudo, afirmava ser a água
num ato subsequente, a indagar sobre o
a origem de
homem nesta vastodas as coisas
tidão da criação.
(por rarefação
A sua pergunta
Mesmo a Criação sendo
e condensaassume também
obscurecida pelo pecado humano, uma conotação
ção), e a Terra
flutuava como
metafísica, não
continua a revelar aspectos da
um navio sopodendo ser resnatureza e do caráter de Deus.
bre as águas2.
pondida apenas a
partir de um refeOs terremotos
rencial material.
são explicados
O salmista argumenta que na própelo movimento das águas (Dox.,
pria existência de uma criança sendo
1). Deus criou todas as coisas da
ainda amamentada, temos um testeágua (Dox., 9). Plutarco atribuiu
munho da majestade de Deus que a geesta concepção aos egípcios. No
rou e que produz no seio materno o leique talvez ele tenha razão.
te para que ela possa ser alimentada (Sl
8.2). O mesmo ocorre em sua sincera
(c.
b)	Anaximandro	 610-547 a.C.):
sensibilidade espiritual (Mt 21.15-16).
Foi o primeiro a usar a palavra
Davi entende que só isso seria suficien“princípio” (
/). (Dox., 1). O
te para calar os adversários ateus.
princípio (
) de todas as coiEle reverentemente se admira do
sas é o “Ápeiron” (
= “sem
fato de Deus se lembrar de nós (Sl 8.4).
fim”, “ilimitado”, “indeterminado”,
Tendo o sentido de “prestar atenção”,
“indefinido”). (Dox., 1,2,6).
sustentar, cuidar. Admira-se também
	
de Deus nos visitar. Que pode ter o
c)	Anaxímenes (c. 585-528/525 a.C.):
sentido de passar em revista, observar
O Ar é o princípio de todas as coi(Êx 3.16), vir ao encontro. O signifisas (Dox., 1-2); inclusive dos deuses
cado no texto é de uma visita abençoae das coisas divinas; sendo o ar um
dora e salvadora (Gn 21.1; 50.24-25/
deus (Dox., 3). O homem é ar, bem
Êx 13.19; Êx 4.31; Sl 17.3; 65.9; 80.15;
como a sua alma; esta nos sustenta e
106.4).
governa (Frag., 1; Dox., 5-6).
“
Fizeste-o, no entanto, por um poud) Heráclito de Éfeso (c. 540-480 a.C.):
co, menor do que Deus (
) e de glóTodas as coisas provêm do fogo –
ria e de honra o coroaste” (Sl 8.5). Mais
que é eterno – e para lá retornarão
do que a imensidão do universo, o que
(Frags., 30,31,90, Dox., 2).
realmente conta é o valor e a dignidade atribuída ao homem: Deus o criou
2  Doxografia, 1-4.
Revista fé pa r a h oje | 9
à sua imagem. Ele tem características
o Senhor; os anjos terão cumprido o seu
espirituais, intelectuais e morais sepapel (Hb 1.14). Todas as coisas estarão
melhantes às de Deus, apenas em grau
sujeitas ao Senhor (1Co 15.26-28).
adequado à criatura finita. No entanto,
O profeta Jeremias descreve a
isto se torna mais difícil de perceber
Criação como uma manifestação da
devido ao pecado que ainda que não
sabedoria e inteligência de Deus ( Jr
tenha aniquilado esta imagem, a defor10.12/ Jó 36.22/Sl 139.14).
mou gravemente.
Se por um lado o homem partilha
com os outros animais de uma identiO nome aplicado a Deus (
)
dade de criação (Ec 3.19,20), por oupode referir-se, conforme interpreta
tro, estabelece-se biblicamente uma
Hebreus, aos seres angelicais (Hb 2.6grande distância entre o homem e o
8). “Por um pouco” (5) parece significar
resto da criação porque fomos criados
“por pouco tempo”,3 ainda que não ne4
à imagem de Deus, por isso, somos secessariamente.
res pessoais como
A ideia básica,
Deus é, temos
então, é que o houma personalimem após a queda
Somente a partir de uma visão
dade que permite
foi colocado numa
correta de Deus podemos perceber
não nos limitarposição temporamos ao nosso corriamente abaixo
a beleza da Criação como uma
dos anjos. Contu- manifestação de sua bondade e poder. po, embora este
faça parte de nós
do, em Jesus Crise não lhe seja algo
to temos a verdamau, inferior ou
deira restauração
desprezível: a alma e o corpo são criade nossa humanidade. Na ressurreição
ções de Deus e, ele mesmo pelo seu poteremos novamente a imortalidade (Mt
der ressuscitará o nosso corpo na vin22.30); participaremos efetivamente do
da gloriosamente triunfante de Jesus
juízo final (Mt 12.41-42; 19.28; 1Co 6.2Cristo. A ressurreição do corpo, por si
3; Ap 20.4). Estaremos para sempre com
só, é um indicativo relevante acerca da
3  Cf. Derek Kidner, Salmos 1-72: introdução e
comentário, (Sl 8.5-6), p. 84. Do mesmo modo:
condição não desprezível da matéria.
Simon Kistemaker, Hebreus, São Paulo: CulO ser humano como criação secuntura Cristã, 2003, (Hb 2.7-8), p. 94-95; Henry
dária (em termos de ordem, não de imM. Morris, Amostra de Salmos, Miami: Editora
Vida, 1986, p. 22-23 e Betty Bacon, Estudos na
portância), foi formado com maestria
Bíblia Hebraica, São Paulo: Vida Nova, 1991,
e habilidade de matéria previamente
p. 105. Veja-se: W.S. Plumer, Psalms, Carlisle,
criada por Deus (Gn 3.19); entretanPennsylvania: The Banner of Truth Trust, ©
1867, 1975 (Reprinted), (Sl 8), p. 126-127.
to, ele recebeu diretamente de Deus o
4 Veja-se, entre outros: Victor P. Hamilton,
fôlego da vida (Gn 2.7), passando ao
Ma’at: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Diciomesmo tempo a ter uma origem terrenário Internacional de Teologia do Antigo Testana e celestial.
mento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 862-863.
10 | Revista f é pa r a h o je
Ao ser humano foi conferido o
poder de ir além da matéria, podendo
raciocinar, estabelecer conexão e visualizar o invisível.
Ao homem, portanto, foi concedido o privilégio responsabilizador de
raciocinar, escolher livremente o seu caminho de vida, verbalizar os seus pensamentos e emoções, podendo, assim,
dialogar com o seu próximo (Gn 3.6) e
com Deus (Gn 3.9-13), sendo entendido por ele e entendendo a sua vontade.
O ser humano tem autoconsciência: ele não se limita ao seu corpo; ele
tem um corpo, mas não é simplesmente o seu corpo, como os animais inferiores o são. Curiosamente, o homem
é o único ser que tem consciência da
sua nudez. Paralelamente a isso, encontramos o homem no momento do
nascimento, com certas desvantagens
em relação aos outros animais, os quais
já desde bem cedo aprendem a sobreviver sem a intervenção necessária de
suas mães... Entretanto, estes animais
não evoluem, não transformam, não
modificam as suas “culturas”.
Somente o ser humano tem a devida consciência da majestade de Deus
revelada na Criação.

3. No Compartilhar de Seu Poder
“Deste-lhe domínio sobre as obras da
tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste”
(Sl 8.6).
Deus compartilha com as suas criaturas o seu poder, ainda que não abrindo mão de sua soberania. O nosso domínio está sob o domínio de Deus.

Desde a criação o homem foi colocado numa posição acima das outras criaturas, cabendo-lhe o domínio
sobre os outros seres criados, sendo
abençoado por Deus com a capacidade
de procriar-se (Gn 1.22).
Como indicativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o
Criador compartilha com ele – abençoando e capacitando-o – do poder de
nomear os animais – envolvendo neste
processo inteligência e não arbitrariedade – e também de dar nome à sua
mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20).
E mais: Deus delega-lhe poderes
para cultivar ( ) (‘abãr) (lavrar, servir) e guardar ( ) (shamãr) (proteger,
vigiar) o jardim do Éden (Gn 2.15), demonstrando a sua relação de domínio,
não de exploração e destruição, antes,
um cuidado consciente, responsável e
preservador da natureza (Sl 8.6-8).
Todavia, todas estas atividades envolvem o trabalho compartilhado por
Deus com o ser humano. O nomear,
procriar, dominar, guardar e cultivar refletem a graça providente e capacitante
de Deus. É neste particular – domínio
– que o homem foi bastante aproximado
de Deus pelo poder que lhe foi conferido.
No entanto, ainda que isto seja demonstrado, especialmente pelo avanço
da ciência, novos e novos desafios surgem. A plenitude deste domínio temos
em Cristo Jesus, verdadeiro Deus e
verdadeiro homem.
Algo admirável neste salmo, é que
o salmista em seu hino começa com
Deus, glorificando o nome de Jeová
( ) e conclui tornando a ele, testeRevista fé pa r a h oje | 11
munhando com júbilo a magnificência
de seu nome em toda a terra (Sl 8.1,9).

Algumas aplicações
Somente partindo de Deus poderemos ter uma visão correta da natureza
e de nós mesmos. A visão significativa de nossa horizontalidade, depende
fundamentalmente de uma compreensão correta de nossa verticalidade. A
pergunta sobre o homem começa em
Deus e termina em Deus. Somente a
partir de uma visão correta de Deus
podemos perceber a beleza da Criação
como uma manifestação de sua bondade e poder. Deste modo, adquirimos
uma ótica correta para enxergar a vida
e o dinamismo necessário para agir de
modo coerente com a nossa fé.
Cultivemos a sensibilidade para
com Deus que nos permita enxergar
a sua glória nas pequenas e grandes
coisas criadas. Não nos detenhamos
na natureza; toda natureza é um testemunho sobrenatural da majestade de
Deus. Glorifiquemos a Deus tratando
com honra e dignidade aquilo que ele
nos confiou para guardar.
Temos de reconhecer a nossa intimidade e compromisso de obediência a
este Deus majestoso: ele é o nosso Senhor (Sl 8.1,9).
O modelo do que Deus tem para
nós encontra a sua perfeição em Cristo,
Aquele que por causa de nosso pecado,
motivado por sua graça inefável, se humilhou, assumindo a forma de servo,
inferior aos anjos, para que, vencendo
a morte, o pecado e satanás, pudesse
12 | Revista f é pa r a h o je

trazer à tona o verdadeiro sentido da
genuína humanidade (Hb 2.9).
A pergunta a respeito do que é o
homem, encontra a resposta plena em
Jesus Cristo, o verdadeiro e perfeito
modelo de nossa humanidade.
Quando usamos adequadamente
dos recursos que Deus nos confiou para
dominar a terra, estamos cumprindo o
papel da criação glorificando a Deus.
É necessário, portanto, que glorifiquemos a Deus em nosso trabalho pela
forma legítima como o executamos.
A natureza como a Criação em geral
não pode ser considerada separadamente de Deus, pois deste modo ou ela torna-se o centro de todas as coisas (idolatria) ou, é menosprezada, tornando-se
apenas um detalhe cósmico o qual o
homem pode usar a seu bel-prazer com
objetivos egoístas e, portanto, destruidores. Por isso, partilho do conceito de
que é impossível uma genuína ecologia
– “o estudo do equilíbrio das coisas vivas
na natureza”5 – divorciada da teologia
bíblica. A questão “ecológica” é, antes
de tudo, uma questão teológica.
A natureza tem valor não simplesmente por uma questão pragmática – a
nossa sobrevivência –, mas, porque foi
criada pelo mesmo Deus que nos criou
e nos incumbiu de amar e preservá-la.
Não ousemos menosprezar o que Deus
criou. A nossa humanidade é também
demonstrada na forma como lidamos
com a Criação. O valor de toda a realidade é-nos comunicado pelo Deus
Criador, o nosso majestoso Senhor
5  Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do
Homem, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 12.
Deus, o Criador
Stephen L. Wellum

Revista fé pa r a h oje | 13
A Escritura deixa claro que
o Deus eterno e transcendente não
será reduzido à sua ordem criada
e que a distinção entre a criatura e
o Criador, negada pelo panteísmo,
é fundamental para um ponto de
vista cristão sobre o mundo".

É difícil superestimar a importância da doutrina da criação. Nas Escrituras, Deus se identifica, primeiramente, como o soberano Criador e,
por isso, o Senhor do universo. Muitos cristãos são naturalmente interessados na doutrina da salvação, mas,
sem o Deus de criação e providência,
não há cristianismo como a Bíblia o
descreve. Na verdade, as bases teológicas para a doutrina da salvação estão
arraigadas no fato de que o Deus que
existe – o Senhor pessoal, soberano e
trino que existe desde toda a eternidade – em um momento, falou e trouxe
este universo à existência, a partir do
nada. E, como tal, tudo e todos são
completamente dependentes dele e
responsáveis a ele.
14 | Revista f é pa r a h o je

A doutrina da criação, juntamente
com a providência, deve ser vista como
o resultado e a execução do plano e do
decreto eterno de Deus. A Escritura mostra com clareza que o plano de
Deus é o seu plano eterno pelo qual,
antes da criação do mundo, ele preordenou fazer acontecer todas as coisas que
chegam a acontecer (ver, por exemplo,
Sl 139.16; Is 14.24-27; 37.26; 46.10-11;
At 2.23; 4.27-28; 17.26; Rm 8.28-29;
9.1-33; Gl 4.4-5; Ef 1.4, 11-12; 2.10).
A criação é a realização desse plano
eterno no que diz respeito à origem do
universo e de tudo que existe, incluindo
os seres angelicais e humanos. A providência, por outro lado, é a realização
do eterno plano de Deus, no tempo,
em relação ao mundo que ele criou, em
termos de sua preservação e governo de
todas as coisas para cumprirem os propósitos a que foram designadas, para a
sua própria glória (ver, por exemplo, Sl
103.19; 136.25; 145.15; Dn 4.34-35; At
17.28; Rm 11.36; Ef 1.11; Cl 1.17; Hb
1.3). Deus, ao identificar-se a si mesmo como o Deus soberano de criação
e providência, deixa bastante claro que
somente ele é Deus e que nenhum outro
é Deus, que ele não compartilhará sua
glória com nenhuma coisa criada e que
merece toda a nossa adoração, louvor e
obediência (ver, por exemplo, Is 40-48;
Jr 10.1-16; Jo 17.3; 1 Tm 1.17).
Além disso, quando afirmamos que
Deus é o Criador, estamos enfatizando,
pelo menos, três verdades. Primeira, estamos ressaltando o fato de que Deus
criou o universo a partir do nada (creatio
ex nihilo). As Escrituras começam com
a afirmação de que, “no princípio, criou
Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). Antes
de o universo ser criado, nada existia,
exceto o Deus trino. Entretanto, em um
momento, o Deus eterno falou e trouxe
este universo de espaço e tempo à existência, “a partir do nada”, ou seja, sem o
uso de quaisquer materiais previamente
existentes. É por causa deste fato que
a Escritura e a teologia cristã afirmam
que a matéria não é eterna, mas apenas
uma realidade criada. Em outras palavras, somente Deus é o Deus autoexistente, e tudo mais é dependente dele.
Segunda, estamos afirmando que Deus
criou o universo espontaneamente. A
Escritura não diz, em nenhuma de suas
passagens, que Deus teve necessidade
de criar todas as coisas motivado por al-

gum tipo de necessidade que havia fora
ou dentro dele mesmo. Em vez disso,
ele, como o Deus trino, que é autoexistente e autossuficiente, decidiu espontaneamente criar todas as coisas. Neste
sentido importante, Deus não teve de
criar o universo; pelo contrário, devido
à sua soberana e livre escolha e para seu
próprio prazer, Deus se propôs a criar.
Essa é a razão por que a Escritura afirma que Deus não precisa do mundo,
e sim que o mundo e tudo que há nele
são total e completamente dependentes
de Deus. Terceira, dizer que Deus é o
Criador significa que a criação é um ato
do Deus trino. A criação é não somente
a obra do Pai (Gn 1.1; Sl 19.1-2; 33.6,
9; Is 40.28; At 17.24-25; Ap 4.11), ela é
também a obra do Filho ( Jo 1.1-3; 1 Co
8.6: Cl 1.15-17; Hb 1.2) e a atividade
do Espírito Santo (Gn 1.2; Jó 33.4; Sl
104.30). E, como um ato do Deus trino,
a razão para a existência do universo é,
em última análise, a glória de Deus.
Assim como é importante afirmar o
que queremos dizer positivamente com a
doutrina da criação, também é necessário enfatizar o que não queremos dizer.
A definição bíblica da criação é contrária tanto às opiniões antigas quanto às
contemporâneas sobre as origens. Em
específico, a Bíblia rejeita os seguintes
pontos de vista falsos referentes à origem
do universo e dos seres humanos.
• Primeiramente, a Bíblia rejeita
todos os pontos de vista naturalistas e
evolucionistas quanto às origens. Em
seu âmago, o naturalismo tenta ver as
origens apenas à luz de processos naturalistas que envolvem a evolução da
Revista fé pa r a h oje | 15
matéria, por acaso, durante um período de tempo. É por meio desta ideia
que as pessoas tentam explicar toda a
complexidade e ordem do universo, incluindo os seres humanos. Neste ponto
de vista, a matéria é entendida como
eterna ou, pelo menos, geradora de
si mesma, independente da soberana
vontade de Deus. A Escritura rejeita
francamente esta ideia.
• Em segundo, a Escritura rejeita todos os pontos de vista panteístas
sobre a criação. Neste ponto de vista,
não há uma distinção crucial entre o
Criador e a criação; Deus e o mundo
são, essencialmente, um. Além disso,
o mundo é frequentemente explicado
como uma emanação ou efusão necessária de toda a realidade – o Único. A
Escritura deixa claro que o Deus eterno e transcendente não será reduzido à
sua ordem criada e que a distinção entre a criatura e o Criador, negada pelo
panteísmo, é fundamental para um
ponto de vista cristão sobre o mundo.
• Em terceiro, a Escritura rejeita todos os entendimentos dualistas quanto
ao universo. No dualismo, há duas
substâncias ou princípios distintos e
coeternos dos quais tudo mais é derivado e que são frequentemente vistos
como duas forças antagonistas – o bem
e o mal. Outra vez, a Escritura mostra
com clareza que somente Deus é Deus,
que ele não tem rivais e não compartilhará a sua glória com ninguém.
O que cada um destes três pontos
de vista falsos têm em comum é o fato
de que tentam negar o glorioso Deus
da criação. O apóstolo Paulo refletiu
16 | Revista f é pa r a h o je

sobre esta situação infeliz em Romanos
1.8-32, argumentando que a existência
do Deus da criação é manifestada claramente para todas as pessoas, mas, devido à rebeldia do coração humano, a verdade de Deus tem sido voluntariamente
suprimida e distorcida por nós. Em vez
de glorificarmos a Deus, que nos criou,
e dar-lhe graças, temos mudado a glória de Deus pelas realidades criadas. O
resultado final é, correta e tristemente,
a ira justa, santa e perfeita de Deus que
nos sobrevém devido ao nosso pecado e
depravação. Nesta situação, a única esperança para nós é a soberania de Deus
em graça e redenção.

A Importância Prática e Teológica
da D outrina da C riação
Qual é a importância prática e teológica da doutrina da criação? Há muitos pontos que poderiam ser desenvolvidos, mas pelo menos três reflexões
são apropriadas.
Primeira, a doutrina da criação
identifica para nós o nosso Deus glorioso. A criação nos lembra que o Deus
que criou não é uma deidade pequena
e insignificante. Não, ele é o Senhor
sobre tudo, a fonte de tudo que existe
e aquele que é o único soberano. Além
disso, a criação nos lembra que ele não
é uma deidade distante. Antes, Deus é
o “Senhor da aliança”, aquele que é o
Deus vivo e ativo, envolvido intimamente em e com a sua criação, sustentando, mantendo e governando constantemente a sua criação e entrando
num relacionamento de aliança com
uma redenção que somente Deus pode
seu povo. O nosso Deus é verdadeirarealizar e consumar soberanamente.
mente grande, cheio de majestade, glóTerceira, a doutrina da criação nos
ria, sabedoria, força e poder, devido ao
diz algo sobre o nosso mundo em pelo
fato de que ele é o Deus criador.
menos duas áreas importantes. A priSegunda, a doutrina da criação nos
meira área está relacionada a como dediz algo sobre nós mesmos, como criavemos ver este mundo em termos de vaturas de Deus. É precisamente porque
lores. Visto que Deus criou este mundo,
somos criaturas de Deus, feitos à sua
é importante enfatizar que ele tem valor.
imagem, que os seres humanos desfruIsto é evidenciado em Gênesis 1 pelo jultam de um papel singular na criação.
gamento de valor “era bom” (vv. 4, 10, 12,
Ironicamente, quando as pessoas ten18, 21, 25), da parte de Deus, e pela sua
tam viver à parte de Deus e negam seu
avaliação conclusiva “era muito bom” (v.
Criador tanto em sua vida como em seu
31). Neste contexto, “bom” indica que o
pensamento, elas descobrem que não
mundo era não somente o que Deus plapodem entender a si mesmas corretanejara e tencionara, mas também que ele
mente. Assim, acabam vendo a si mestinha grande valor.
mas como menos
Deus falou “Sim!”
do que são, ou
para o que havia
seja, como aniA teologia cristã rejeita
criado. Uma implimais ou máquinas
qualquer noção ou de um
cação importante
humanas, que têm
universo “aberto” ou de um
disto para a teolopouca ou nenhuuniverso “fechado”.
gia cristã é não elema importância e
varmos, em nosso
valor. Mas o ponpensamento e em
to de vista cristão
nossa prática, o “espiritual” acima do “físobre os seres humanos, vinculado à
sico”. Isto foi um problema no passado e
doutrina da criação, nos diz que Deus
produziu vários entendimentos errados
nos fez com dignidade e valor e que isto,
na igreja. Ao criar este mundo, Deus
em última análise, é a única base para
valoriza tanto a realidade física como a
um entendimento apropriado dos seespiritual. Infelizmente, como resultado
res humanos. Além disso, o fato de que
da Queda, ambas estão agora corromfomos criados por Deus também serve
pidas. Mas, na redenção, Deus fez uma
como fundamento para toda a ética,
obra em Cristo que salva não somente a
para a responsabilidade humana e para
nossa alma, mas também o nosso corpo.
um entendimento correto de nosso luPor isso, há nas Escrituras a ênfase sobre
gar, em sujeição a Deus, na sua criação.
a ressurreição de nosso corpo, para viverMas, outra vez, devido à nossa rejeição
mos em novos céus e uma nova terra, na
intencional de nosso Senhor e Criador,
presença de Deus, para sempre (ver 1 Co
temos nos posicionado contra ele e, as15; Ap 21-22).
sim, somos necessitados de redenção,
Revista fé pa r a h oje | 17
A segunda área está relacionada ao
entendimento cristão da relação e envolvimento contínuo de Deus com seu
universo e das implicações disto para um
ponto de vista cristão quanto à ciência.
É claro que muito poderia ser dito neste
assunto. Entretanto, basta dizer que, uma
vez que a ordem criada é o resultado da
decisão espontânea do Senhor soberano
e pessoal, ela é também planejada, ordenada, estruturada e governada por leis.
Mas, em sua estrutura, a criação nunca
deve ser vista meramente em termos mecânicos. A teologia cristã rejeita qualquer
noção ou de um universo “aberto” ou de
um universo “fechado”. Um universo
“aberto” é o ponto de vista representado
pelo animismo. O animismo não entende o universo como que estando sob o
controle soberano de Deus, mas, em vez
disso, ele é controlado por forças e espíritos caprichosos. Um ponto de vista de
universo “fechado” é aquele representado
pela ciência moderna. Neste ponto de
vista, o universo é concebido como que
estando unicamente sob o controle de leis
mecânicas, independentes da vontade e
do plano de Deus; e, por isso, este ponto
de vista concebe aquilo que é miraculoso
como impossível. As Escrituras, porém,
rejeitam esses dois pontos de vista. Em
vez disso, as Escrituras nos apresentam
um universo “controlado”. O ponto de
vista bíblico vê este mundo como ordeiro e previsível devido à sua relação com o
Deus de criação e providencia. Mas também afirma que este mundo não é independente de Deus e que, se Deus quiser,
pode agir neste mundo e realizar seus
planos e propósitos de maneiras miracu18 | Revista f é pa r a h o je

losas e extraordinárias. Por conseguinte,
o ponto de vista cristão sobre o mundo,
unido à nossa doutrina de criação, nos
permite ver o mundo em um padrão ordeiro e previsível, possibilitando assim a
ciência. Enquanto o problema de milagres não é realmente um problema devido ao fato de que o Deus de criação é
também o Deus de providência que sustenta o mundo continuamente e age nele.
Com base nesta breve consideração, não é difícil perceber que a doutrina da criação e a afirmação de que
Deus é o Criador têm importância crucial para a teologia cristã. Como já disse, sem o Deus de criação e providência não há cristianismo como a Bíblia
o descreve. Todas as outras doutrinas,
incluindo a doutrina da salvação, estão
arraigadas e alicerçadas no fato de que
Deus é o criador soberano e Senhor de
seu universo. Na verdade, a doutrina
da criação é também fundamental à
teologia cristã em outro sentido – ela é
o começo da história que leva à redenção. Ao insistir no fato de que a criação
original de Deus era boa, a Bíblia prepara o cenário para o que sai errado – o
pecado, a morte, a destruição – e para
o desenvolvimento da linha histórica
da Escritura que culmina na vinda de
um Redentor para corrigir as coisas.
Em última análise, todo o drama da
história de redenção prenuncia a restauração – a transformação numa glória ainda maior (Rm 8.1-27) – daquela
bondade do universo que se tornou
corrompido e chega por fim ao alvorecer de um novo céu e uma nova terra
(Ap 21-22), o lar da justiça (2 Pe 3.13)
A Importância Teológica da
Historicidade de Adão
Bruce A. Ware

Revista fé pa r a h oje | 19
Não somente a nossa
identidade biológica remonta
ao Adão histórico, mas também
o nosso estado como seres criados
à imagem de Deus remonta ao
primeiro homem".

A historicidade literal de Adão
como o primeiro ser humano, criado
por Deus, do pó da terra, é teologicamente importante? Ou seja, alguém
poderia negar a historicidade de Adão
como o primeiro ser humano criado e,
ainda assim, sustentar todos os ensinos
essenciais da teologia evangélica?
As respostas para estas perguntas centralizam-se em (1) se a Bíblia
apresenta Adão como o primeiro ser
humano histórico e literal, (2) se há
uma conexão bíblica entre o Adão
histórico, em sua criação e queda, e
certas doutrinas associadas normalmente com o Adão histórico, e, (3)
se isso é verdade, quais seriam estas
doutrinas e qual seria a natureza da
conexão. Quero sugerir duas linhas
20 | Revista f é pa r a h o je

de resposta que tencionam abordar
estas três perguntas.
Primeiramente, a historicidade de
Adão como o primeiro ser humano literal é ensinada e admitida em toda a
Bíblia. A linguagem e as descrições de
Adão em Gênesis 5.3-5 – número de
anos que ele viveu depois do nascimento de Sete, o fato de que ele teve outros
filhos e o número total de anos que ele
viveu – são idênticos à linguagem e as
descrições usadas a respeito de outros
personagens históricos em Gênesis e
em outras partes da Bíblia (cf. o resto
de Gn 5; Gn 11.10-26; Gn 25.7-11; 1
Cr 1-9). O cronista inicia a sua extensa genealogia de Israel com “Adão”,
que dá início a toda a raça humana. Jó
contrasta a sua fraqueza diante de Deus
e impossível de ser explicada sem essa
com Adão, que encobriu a suas transhistória. Ou seja, há claramente uma
gressões ( Jo 31.33). Oseias compara a
conexão bíblica entre o Adão histórico
desobediência de Israel com Adão, que
e a teologia associada com ele, e a conetransgrediu a aliança com Deus (Os
xão é tal que a teologia depende dessa
6.7). Lucas alicerça a genealogia de Jehistória e não existiria sem ela. Ou, disus no primeiro homem, Adão, o filho
zendo-o em outras palavras, essa hisde Deus (Lc 3.38). Jesus entendeu Adão
tória gera a teologia. Como você não
e Eva como pessoas humanas literais,
pode ter um filho sem uma mãe, tamcriadas por Deus e, depois, unidas no
bém não pode ter esta teologia sem a
primeiro casamento de um homem com
história que a traz à existência.
uma mulher (Mt 19.4-6; Mc 19.6-9).
Considere, por exemplo, algumas
As referências de Paulo a Adão como
áreas cruciais da teologia associadas
o primeiro ser humano em Romanos
com a historicidade verdadeira e literal
5.12-18, 1 Coríntios 11.7-9. 1 Corínde Adão. Primeira, a criação do homem
tios 15.21-22 e 2 Timóteo 2.13-14 são,
à imagem de
inconfundivelmenDeus envolve a
te, a respeito desta
criação literal do
pessoa
histórica
A teologia e a história
primeiro ser huque foi criada à
estão entretecidas de tal modo
mano à imagem
imagem de Deus
que a historicidade de Adão é
de Deus, o ser
(1 Co 11.7), antes
essencial à esta teologia
humano que se
da mulher, que protorna, por assim
cedeu dele (1 Co
dizer, a fonte de
11.8; 1 Tm 2.13), e
todos os outros seres humanos que são,
que pecou, trazendo o pecado e a morigualmente, à imagem de Deus. Gênete para todos os seus descendentes (Rm
sis 5.3 faz a notável observação de que
5.12-18; 1 Co 15.21-22). Por último,
Adão, aos 130 anos de idade, “gerou um
Judas 14 se refere à pessoa histórica de
filho à sua semelhança, conforme a sua
Enoque, o sétimo depois de Adão, que
imagem, e lhe chamou Sete” (Gn 5.3). A
também seria entendido como histólinguagem neste versículo é, inconfunrico. Uma leitura atenta destes textos
divelmente, a mesma de Gênesis 1.26.
apoia a conclusão de que a própria BíEmbora a ordem das palavras “imagem”
blia trata, repetidas vezes e sem exceção,
e “semelhança” esteja invertida, pareAdão como uma pessoa histórica literal,
ce que tudo que se diz antes a respeito
o primeiro humano criado por Deus.
de o homem ser criado à imagem e seEm segundo lugar, a historicidade
melhança de Deus é dito aqui, quando
de Adão é teologicamente importanSete é gerado à imagem e à semelhança
te? Sim, ela é importante pela simples
de Adão (Gn 5.3). O paralelismo desta
razão de que a teologia conectada com
linguagem nos leva a concluir que Sete
Adão é teologia arraigada na história
Revista fé pa r a h oje | 21
nasceu à imagem de Deus (o que ele
realmente era, cf. Gn 9.6) somente porque nasceu à imagem e à semelhança de
Adão. Sem a conexão histórica e literal,
de fato, biológica, entre Adão e Sete, o
status de imagem de Deus em relação a
Sete não existiria. E, se isso era verdade
quanto a Sete, é verdade também quanto a nós. Não somente a nossa identidade biológica remonta ao Adão histórico,
mas também o nosso estado como seres
criados à imagem de Deus remonta ao
primeiro homem, o primeiro ser humano histórico, Adão.
Segunda, a queda do homem no
pecado é um ensino teológico central
fundamentado precisamente no que
aconteceu na história. Paulo resumiu o
argumento nestes termos: “Visto que
a morte veio por um homem, também
por um homem veio a ressurreição dos
mortos. Porque, assim como em Adão
todos morrem, assim também todos
serão vivificados em Cristo” (1 Co
15.21-22). Considere quatro observações: (1) Adão trouxe a morte ao mundo (15.21a). (2) Todos os humanos que
procedem de Adão estão sujeitos à morte (15.22a). (3) A reversão do pecado e
da morte de Adão acontece na realidade
histórica do triunfo de Cristo por meio
de sua ressurreição dos mortos (15.21a).
(4) Todos os humanos unidos a Cristo
serão vivificados (15.22b). A realidade histórica da ressurreição de Cristo,
pela qual os que estão em Cristo são
ressuscitados para viverem para sempre,
é correspondente, nesta passagem, à
realidade histórica do pecado de Adão,
que trouxe pecado e morte para todos
22 | Revista f é pa r a h o je

em Adão. A linha histórica não pode ser
cortada sem eliminar a teologia correspondente. O pecado original em Adão
e a vida eterna em Cristo estão ligados
intrínseca e necessariamente à história.
Terceira, nossa teologia de gênero e
sexualidade está intrinsecamente ligada à criação do primeiro casal humano
e à natureza da união conjugal designada por Deus para eles. Quando Jesus
se referiu a Gênesis 2, e quando Paulo aludiu a aspectos de Gênesis 2 e 3,
ambos entenderam Adão e Eva como
pessoas históricas reais que exemplificavam a união vitalícia, em uma só carne, de macho e fêmea que Deus planejou e trouxe à existência. Por sua queda
histórica, Adão e Eva apartaram-se do
desígnio de Deus e produziram distorções pecaminosas tanto das relações de
gênero como da sexualidade humana.
Nossa teologia de gênero e sexualidade não é dissociada da história. Pelo
contrário, o desígnio criado por Deus
foi exemplificado, inicialmente, no primeiro homem e na primeira mulher
originais. E tanto Jesus como Paulo
se referiram a este desígnio trazido à
existência por Deus e vivenciado realmente no Éden. De modo semelhante,
as perversões do bom desígnio de Deus
estão arraigadas na rebelião histórica
contra Deus e contra seus caminhos
que aconteceu na história, registrada
para nós em Gênesis 3. Tanto neste
como em outros assuntos, a teologia e a
história estão entretecidas de tal modo
que a historicidade de Adão é essencial
à esta teologia. Esta teologia depende
dessa história e não existiria sem ela
O Homem e o Pecado

A desobediência fatal de Adão e a obediência
triunfante de Cristo
John Piper

Revista fé pa r a h oje | 23
A sublime superioridade
de Cristo é que ele não é
apenas bem-sucedido em obedecer
perfeitamente, mas o faz de tal
forma que milhões de pessoas são
consideradas justas pela
sua obediência".

"Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo
pecado, a morte, assim também a morte
passou a todos os homens, porque todos
pecaram. Porque até ao regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é
levado em conta quando não há lei. Entretanto, reinou a morte desde Adão até
Moisés, mesmo sobre aqueles que não
pecaram, à semelhança da transgressão
de Adão, o qual prefigurava aquele que
havia de vir. Todavia, não é assim o dom
gratuito como a ofensa, porque, se, pela
ofensa de um só, morreram muitos, muito
mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram
abundantes sobre muitos. O dom, entretanto, não é como no caso em que somente
um pecou; porque o julgamento derivou
24 | Revista f é pa r a h o je

de uma só ofensa, para a condenação; mas
a graça transcorre de muitas ofensas, para
a justificação. Se, pela ofensa de um e por
meio de um só, reinou a morte, muito mais
os que recebem a abundância da graça e o
dom da justiça reinarão em vida por meio
de um só, a saber, Jesus Cristo.  Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo
sobre todos os homens para condenação,
assim também, por um só ato de justiça,
veio a graça sobre todos os homens para
a justificação que dá vida. Porque, como,
pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também,
por meio da obediência de um só, muitos se
tornarão justos. Sobreveio a lei para que
avultasse a ofensa, mas, onde abundou o
pecado, superabundou a graça,  a fim de
que, como o pecado reinou pela morte, as-
sim também reinasse a graça pela justiça
para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor." (Romanos 5.12–21)

Jesus é supremo
Jesus Cristo é a pessoa mais importante no universo — não mais importante que Deus, o Pai, ou Deus, o
Espírito. Com eles, Cristo é igual em
dignidade, perfeição, sabedoria, justiça, amor e poder. Mas ele é mais importante que todas as outras pessoas
— sejam anjos ou demônios; reis ou
comandantes; cientistas ou artistas; filósofos ou atletas; músicos ou atores —
aqueles que vivem agora ou que sempre
viveram ou viverão continuamente. Jesus Cristo é supremo.

Todas as coisas são para Jesus — até
mesmo o mal

Tudo o que existe — incluindo o
mal — é ordenado por um Deus infinitamente santo e totalmente sábio para
fazer a glória de Cristo brilhar com
mais esplendor. O texto de Provérbios
16.4 diz: “O Senhor fez todas as coisas
para determinados fins, até o perverso
para o dia da calamidade”. Deus faz
isso a seu próprio modo misterioso que
preserva a responsabilidade do perverso e a impecabilidade de seu próprio
coração. As coisas foram feitas por
meio de Cristo e  para  Cristo (Colossenses 1.16). E isso inclui, Paulo afirma, os “tronos, soberanias, principados
e potestades”, que foram derrotados
por Cristo na cruz. Eles foram feitos

“para o dia da calamidade”. E, naquele
dia, o poder, a justiça, a ira e o amor de
Cristo foram manifestos. Mais cedo ou
mais tarde, toda rebelião contra Cristo
resulta em ruína.

O Deus que está presente
Tenho a convicção de que o cristianismo não é meramente um conjunto
de ideias, práticas e sentimentos designados para nosso bem-estar psicológico — seja ele designado por Deus ou
pelo homem. Isso não é Cristianismo.
Ele começa com a convicção de que
Deus é uma realidade objetiva fora de
nós mesmos. Não o tornamos o que ele
é por pensar de certa forma com respeito a ele. Conforme Francis Schaefer disse: “O Deus Presente”. Não o
criamos. Ele é quem nos cria. Não
decidimos como ele será. Ele decide
que seremos. Deus criou o universo e
o universo tem o propósito que Deus
concede a ele, não o propósito que nós
conferimos a ele. Se lhe dermos um
propósito diferente do divino, somos
insensatos. E nossas vidas serão trágicas no fim. Cristianismo não é um
jogo; não é uma terapia. Todas as suas
doutrinas fluem do que Deus é e do que
ele faz na história. Elas correspondem
aos fatos rigorosos. O cristianismo é
mais que fatos. Há a fé, a esperança e o
amor. Mas eles não flutuam no ar; crescem como grandes cedros na rocha da
verdade de Deus.
Estou profundamente convencido
pela Bíblia que nossa alegria, força e
santidade eternas dependem da soliRevista fé pa r a h oje | 25
dez dessa visão de mundo que é colocar
fibra forte na espinha dorsal de sua fé.
Tímidas visões de mundo produzem
cristãos tímidos. E cristãos tímidos não
sobreviverão aos dias à frente. Emocionalismo sem raiz que trata o cristianismo como uma opção terapêutica será
eliminado nos Últimos Dias. Aqueles
que permanecerão firmes serão os que
construíram suas casas sobre a rocha
da grande verdade objetiva com Jesus
Cristo como a origem, o centro, e o
propósito de tudo isso.

A glória de Jesus planejada no
pecado de A dão
Nosso foco é no pecado extraordinário do primeiro homem, Adão, e
como esse pecado preparou o cenário
mais extraordinário: a contrainserção
de Jesus Cristo. Vamos voltar para Romanos 5.12-21.
Quero focar na glória de Cristo
como o principal propósito que Deus
teve em mente quando planejou e permitiu o pecado de Adão e com ele a
queda de toda a humanidade no pecado.
A Palavra diz: “Seja o que Deus permitir, ele o faz por uma razão”. E suas
razões são sempre infinitamente sábias
e propositais. Ele não tinha obrigação
de permitir que a Queda ocorresse. Ele
poderia tê-la impedido, assim como teria evitado a queda de Satanás. O fato
de que Deus não a impediu significa que
ele tem uma razão, um propósito para
ela. E ele não faz seus planos enquanto
acontece alguma atividade. Ele sabe o
que é sábio, sempre sabe o que é sábio.
26 | Revista f é pa r a h o je

Portanto, o pecado de Adão e a queda
da raça humana com ele no pecado e
miséria não encontraram Deus desprevenido e é parte de seu plano abrangente para manifestar a plenitude da glória
de Jesus Cristo.
Uma das formas mais claras de demonstrar isso na Bíblia — e não vamos
entrar em detalhes sobre esse assunto
aqui — é examinar aquelas passagens
onde o sacrifício de Cristo que vence o pecado é exposto como estando
na mente de Deus antes da criação do
mundo. Por exemplo, em Apocalipse
13.8, João escreve sobre “aqueles cujos
nomes não foram escritos no Livro da
Vida do Cordeiro que foi morto desde a
fundação do mundo”. Assim, havia um
livro antes da fundação do mundo chamado  O Livro da Vida do Cordeiro que
foi morto. Antes que o mundo fosse criado, Deus já havia planejado que seu Filho seria morto como um cordeiro para
salvar todos aqueles que estão escritos
no livro. Poderíamos examinar muitos outros textos como estes (Ef 1.4-5;
2Tm 1.9; Tt 1.1-2; 1Pd 1.20) para perceber a visão bíblica de que os sofrimentos e a morte de Cristo pelo pecado
não são planejados depois do pecado
de Adão, mas antes. Portanto, quando
o pecado de Adão acontece, Deus não
é surpreendido por ele, mas já o tornou
parte de seu plano, o plano de manifestar sua paciência, graça, justiça e ira
maravilhosas na história da redenção,
e, então, em um clímax, revelar a magnificência de seu Filho como o segundo
Adão, superior por todos os modos ao
primeiro Adão.
O versículo 14 apresenta o modo
como Paulo reflete o restante da passagem. Adão é chamado um “tipo” daquele que viria, isto é, um tipo de Cristo.
Note o fato mais óbvio primeiramente:
Cristo “viria”. Desde o princípio, Cristo
era “aquele que viria”. Paulo mostra que
Cristo não é uma ideia tardia. Paulo não
diz que Cristo foi concebido como uma
cópia de Adão. Ele afirma que Adão foi
um tipo de Cristo. Deus tratou Adão de
uma maneira que faria dele um tipo da
forma que ele planejou para glorificar
seu Filho. Um tipo é uma prefiguração
de algo que viria mais tarde e seria semelhante ao tipo — somente superior. Por
Jesus, “aquele que vem”
conseguinte, Deus tratou com Adão
de uma maneira que o faria um tipo de
Assim, vamos examinar a forma
Cristo.
como Cristo é referido no versículo
Agora, observe com mais rigor,
14 e vamos ler os versículos 12 e 13
exatamente onde, na fluência de seu
para o contexto: “ 12  Portanto, assim
pensamento,
como por um
Paulo decide disó homem enzer que Adão é
trou o pecado no
Não o tornamos o que
um tipo de Crismundo, e pelo
ele é por pensar de certa forma
to. O versículo
pecado, a morte,
14: “Entretanto,
com respeito a ele.
assim também a
reinou a morte
morte passou a
desde Adão até
todos os homens,
Moisés, mesmo
porque todos pesobre aqueles que não pecaram, à secaram.  13 Porque até ao regime da lei
melhança da transgressão de Adão, o
havia pecado no mundo, mas o pecaqual prefigurava aquele que havia de
do não é levado em conta quando não
14
vir”. Ele decide nos dizer que Adão é
há lei.    Entretanto, reinou a morte
um tipo de Cristo no momento após
desde Adão até Moisés, mesmo soafirmar que as pessoas que não pecabre aqueles que não pecaram, à seram como Adão o fez ainda sofrem
melhança da transgressão de Adão, o
a punição que Adão sofreu. Por que
qual prefigurava aquele que havia de
Paulo, justamente nesse ponto, declavir”. Há a referência a Cristo: “Aquera que Adão foi um tipo de Cristo?
le que havia de vir”.
Assim, examinamos Romanos 5.1221 desta vez tendo em mente que o pecado extraordinário de Adão não frustrou os propósitos de Deus de exaltar a
Cristo, mas, pelo contrário, os serviu.
Aqui está o modo como examinaremos
esses versículos. Há cinco referências
explícitas a Cristo. Uma delas estabelece o modo como Paulo pensa no que se
refere a Cristo e Adão. E o restante mostra como Cristo é superior a Adão. Dois
desses versículos são tão similares que os
uniremos. Significa que examinaremos
três aspectos da superioridade de Cristo.

Revista fé pa r a h oje | 27
Jesus, nosso representante
O argumento de Paulo demonstra
a essência de como Cristo e Adão são
semelhantes e diferentes. Eis o paralelo: as pessoas cujas transgressões não
foram iguais as de Adão morreram
como Adão. Por quê? Porque estavam
ligados a Adão. Ele foi o representante
da humanidade e seu pecado é considerado deles devido à conexão deles
com Adão. Essa é a essência do porquê
Adão é chamado um tipo de Cristo
— pois nossa obediência não é igual à
obediência de Cristo e, contudo, temos
vida eterna com Cristo. Por quê? Porque somos unidos a Cristo pela fé. Ele
é o representante da nova humanidade
e sua justiça é considerada nossa justiça pela nossa união com ele (Confira
Romanos 6.5).
Há um paralelo inferido em chamar Adão de um tipo de Cristo:
Adão	 > pecado de Adão > humanidade condenada nele > morte
eterna
Cristo	> justiça de Cristo > nova humanidade justificada nele >
vida eterna
O restante da passagem revela o
quanto Cristo e sua obra redentora
são superiores a Adão e sua obra destrutiva. Tenha em mente o que disse
no princípio. O que vemos aqui é a
revelação das realidades que definem
o mundo onde toda pessoa neste planeta vive. Todos neste planeta estão
28 | Revista f é pa r a h o je

inclusos no texto porque Adão foi o
pai de todos. Portanto, toda pessoa
que você encontrar na América ou
em qualquer país de qualquer etnia
se defronta com o que esse texto fala.
Morte em Adão ou vida em Cristo.
É um texto universal. Não perca isso
de vista. Ele é a realidade definidora para cada pessoa que você sempre
encontrará. Tímidas visões de mundo
produzem cristãos tímidos. Essa não
é uma visão de mundo tímida. Ela se
estende por toda a história e por toda
a terra. Ela influencia cada pessoa no
mundo e a cada manchete na internet.

A celebração da superioridade
de J esus
Vamos agora examinar três modos
como Paulo celebra a superioridade de
Cristo e a obra dele sobre Adão e sua
obra. Eles podem ser resumidos sob três
frases: 1) a abundância da graça, 2) a perfeição da obediência, e 3) o reino da vida.
1) A abundância da graça
Primeiro, o versículo 15 e a abundância da graça. “Todavia, não é assim
o dom gratuito [a saber, o dom gratuito
da justiça v. 17] como a ofensa, porque,
se, pela ofensa de um só, morreram
muitos, muito mais a graça de Deus
e o dom pela graça de um só homem,
Jesus Cristo, foram abundantes sobre
muitos”. O ponto aqui é que a graça
de Deus é mais poderosa que a ofensa
de Adão. É isso que as palavras “muito
mais” significam: “muito mais a graça
de Deus… foram abundantes sobre
muitos”. Se a ofensa do homem trou-
xe morte, muito mais a graça de Deus
trará vida.
Mas Paulo é mais específico que
isso. A graça de Deus é especificamente “a graça de um só homem, Jesus
Cristo”. “Muito mais a graça de Deus e
o dom pela graça de um só homem, Jesus
Cristo, foram abundantes sobre muitos”. Essas graças não são duas graças
diferentes. “A graça de um só homem,
Jesus Cristo” é a encarnação da graça de
Deus. Essa é a forma com a qual Paulo fala sobre ela, por exemplo em Tito
2.11: “A graça de Deus se manifestou
[a saber em Jesus] salvadora...”. E em
2 Timóteo 1.9: “Sua própria... graça,
que nos foi dada em Cristo Jesus”. Por
conseguinte, a graça que está em Jesus
é a graça de Deus.
Essa graça é a soberana graça. Ela
conquista tudo em seu caminho. Veremos em um momento que ela tem
o poder do rei do universo. É a graça
imperial. Essa é a primeira celebração
da superioridade de Cristo sobre Adão.
Quando a ofensa de um só homem,
Adão, e a graça de um só homem, Jesus
Cristo, se encontram, Adão e a ofensa
perdem. Cristo e a graça vencem. São
as boas-novas para aqueles que pertencem a Cristo.
2) A perfeição da obediência
Segundo, Paulo celebra a forma
pela qual a graça de Cristo vence a
ofensa de Adão e a morte, a saber, a
perfeição da obediência de Cristo. O
versículo 19: “Porque, como, pela desobediência [a saber, de Adão] de um só
homem, muitos se tornaram pecadores,
assim também, por meio da obediência

[isto é, a de Cristo] de um só, muitos se
tornarão justos”. Assim, a graça de um
só homem, Jesus Cristo, o impede de
pecar — ela o mantém obediente até à
morte e morte de cruz (Fp 2.8) — de
modo que ele oferece uma obediência
perfeita e completa ao Pai em nome
daqueles que estão unidos com ele pela
fé. Adão fracassou em sua obediência.
Cristo procedeu perfeitamente. Adão
foi a fonte de pecado e morte. Cristo
foi a fonte de obediência e vida.
Cristo é como Adão, que foi um
tipo de Cristo — ambos são representantes de uma velha e uma nova
humanidade. Deus imputa o fracasso
de Adão à sua humanidade e o sucesso de Cristo à sua humanidade, devido
a como essas duas humanidades estão
unidas às suas respectivas cabeças. A
sublime superioridade de Cristo é que
ele não é apenas bem-sucedido em
obedecer perfeitamente, mas o faz de
tal forma que milhões de pessoas são
consideradas justas pela sua obediência. Você está unido somente a Adão?
Você está unido à parte da primeira
humanidade destinada à morte? Ou
você também está unido a Cristo e à
parte da nova humanidade destinada à
vida eterna?
3) O reino da vida
Terceiro, Paulo celebra não apenas
a graça abundante de Cristo e a obediência perfeita de Cristo, mas finalmente, o reino da vida. A graça conduz à obediência de Cristo rumo ao
triunfo da vida eterna. O versículo 21:
“A fim de que, como o pecado reinou
pela morte, assim também reinasse a
Revista fé pa r a h oje | 29
graça pela justiça para a vida eterna,
mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”.
A graça reina por meio da justiça (isto
é, mediante a justiça perfeita de Cristo) para o grande clímax da vida eterna
— e tudo isso é “mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”.
Ou, uma vez mais no versículo 17,
a mesma mensagem: “Se, pela ofensa
de um e por meio de um só, reinou a
morte, muito mais os que recebem a
abundância da graça e o dom da justiça
reinarão em vida por meio de um só, a
saber, Jesus Cristo”. O mesmo padrão:
graça por meio do dom gratuito de justiça conduz ao triunfo da vida e tudo
isso acontece mediante Jesus Cristo.
Mencionei anteriormente que a
graça de Deus em Cristo, a que Paulo
faz alusão nesses versículos, é a soberana graça. Eis o termo onde se percebe esse fato, a saber, na palavra reinar.
A morte tem um tipo de soberania sobre o homem e reina sobre tudo. Todos
morrem. Mas a graça vence o pecado e
a morte. Ela reina em vida mesmo sobre aqueles que outrora estavam mortos. É graça soberana.

A obediência extraordinária de Jesus
Esta é a grande glória de Cristo — ele ultrapassa imensamente em
excelência o primeiro Adão. O pecado extraordinário de Adão não é tão

30 | Revista f é pa r a h o je

maior quanto a graça e a obediência
extraordinárias de Cristo e o dom da
vida eterna. De fato, o plano de Deus,
desde o princípio, em sua justiça perfeita, foi que Adão, como o representante da humanidade, seria um tipo de
Cristo como o representante de uma
nova humanidade. Seu plano foi por
comparação e contraste que a glória de
Cristo brilharia com mais esplendor.
O versículo 17 expressa o assunto
para você de uma forma muito pessoal e muito urgente. Onde você se
situa? “Se, pela ofensa de um e por
meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância
da graça e o dom da justiça reinarão em
vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”. Note as palavras muito
cuidadosamente e pessoalmente: “Os
que recebem a abundância da graça e
o dom da justiça”.

Palavras preciosas para pecadores
Estas são palavras preciosas para
pecadores: a graça é gratuita, o dom é
gratuito, a justiça de Cristo é gratuita.
Vocês receberão tudo isso como a esperança e o tesouro de suas vidas? Se
receberem, vocês “reinarão em vida
por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”. Recebam isso agora. Testemunhem isso no batismo. E tornem-se
uma parte viva do povo de Cristo
A Justificação Ainda
É Importante?
Michael S. Horton

Revista fé pa r a h oje | 31
A doutrina da
justificação foi definida como
o 'artigo pelo qual a igreja
se mantém de pé ou cai'”.

Há muito tempo, o nome evangélico identificava aqueles que eram comprometidos não somente com o cristianismo histórico, mas também com a
doutrina da justificação somente pela
graça por meio da fé somente em Cristo. Em nossos dias, porém, isso pode
não ser verdade. Cada vez mais, a erudição evangélica é desafiada por tendências nos estudos bíblicos (em especial, a Nova Perspectiva sobre Paulo)
para abandonarem o entendimento
da justificação sustentado pela Reforma. Reconciliações recentes (como a
Declaração Conjunta de Luteranos e
Católicos Romanos e “Evangélicos e
Católicos Juntos”) têm revisado e relativizado esta doutrina fundamental.1
1  Ver Michael Horton, “What’s All the Fuss
32 | Revista f é pa r a h o je

Admiravelmente, em um novo
livro que contém ensaios sobre a justificação escritos por protestantes de
igrejas históricas (luteranos e reformados) e por católicos romanos, os
protestantes rejeitam a doutrina da
Reforma (por apelarem à Nova Perspectiva sobre Paulo), ao passo que Joseph Fitzmeyer, proeminente erudito
católico romano de Novo Testamento,
demonstra a exatidão técnica da exegese da Reforma quanto às passagens
importantes. Mark Noll, o grande
erudito evangélico, em seu livro Is The
Reformation Over? (A Reforma Acabou?) parece falar em nome de muitos
About?: The Status of the Justification Debate”, Modern Reformation 11, no. 2 (March/
April 2002), pp. 17-21.
protestantes conservadores quando
responde sim.
O criticismo franco da doutrina
da justificação conforme definida em
nossas confissões e catecismos reformados se tornou comum até em igrejas
conservadoras. Embora as cortes eclesiásticas destas denominações irmãs
tenham exibido solidariedade estimulante em sustentar a posição confessional e instaurar processo contra os
ministros que se opõem a ela, é trágico
que controvérsias sobre esta doutrina
cardeal surjam em nossos círculos.
A maioria das pessoas nas igrejas
não estão familiarizadas com a doutrina da justificação. Frequentemente, ela
não é uma parte da dieta de pregação e
da vida da igreja, nem um tema predominante na subcultura cristã. Ou com
rigor austero, ou com boas sugestões
para o viver melhor, “fundamentalistas”
e “progressistas” sufocam, igualmente,
o evangelho em moralismo, por meio
de exortações constantes à transformação social e/ou pessoal que mantém as
ovelhas olhando para si mesmas e não
para fora de si mesmas, para Cristo.
Mesmo em muitas igrejas formalmente comprometidas com o ensino da Reforma, pessoas podem achar a doutrina
da justificação na parte de trás de seu
hinário (na seção de confissões), mas
ela é levada realmente a sério no ensino, na pregação, na adoração e na vida
da congregação? Em média, o artigo de
destaque mais publicado em revistas
ou em best-sellers cristãos diz respeito
a “boas obras” – tendências em espiritualidade, ativismo social, crescimento

de igreja e discipulado. No entanto,
é muitíssimo claro que a justificação
permanece fora de cogitação. Quando
a justificação não é abertamente rejeitada, ela é frequentemente ignorada.
Talvez o perdão de pecados e a justificação são apropriados para “ser salvo”,
mas depois vem a essência do negócio
– o viver cristão, como se pudesse haver qualquer santidade de vida genuína
que não resulte de uma confiança perpétua em que “agora... nenhuma condenação há para os que estão em Cristo
Jesus” (Rm 8.1).
É impossível especificarmos todas
as razões para tal atitude em relação a
esta doutrina que constitui o âmago do
próprio evangelho. No entanto, neste
artigo comentarei duas das principais
fontes.

Cultura Cristã como Moralismo de
Autoajuda
Embora os reformadores tenham
dito isso de maneiras diferentes, foi o
teólogo reformado J. H. Alsted que,
no início do século XVII, identificou a
doutrina da justificação como o “artigo
pelo qual a igreja se mantém de pé ou
cai”. Contudo, no século seguinte, denominações protestantes que haviam
selado esta confissão com o sangue de
mártires foram sujeitando-a, gradualmente, a várias formas de moralismo
que predominavam na época do Iluminismo – e, em muitos casos, piores
do que as distorções que haviam provocado a Reforma. Até nos círculos
pietistas, onde a fé vital em Cristo era
Revista fé pa r a h oje | 33
preservada, a balança se inclinou cada
vez mais em favor de obediência e piedade subjetivas, e, assim, a justificação
foi subordinada à santificação.
Quando o arminianismo ganhou
forças, um novo legalismo (identificado
pelos círculos reformados como “neonomianismo”) entrou nas igrejas comprometido formalmente com a doutrina
evangélica e produziu uma suspeita da
pregação de eleição e justificação como
motivações para o “antinomianismo”.
Depois de ler a obra A Serious Call to a
Devout and Holy Life (Uma Chamada
Solene a uma Vida Piedosa e Santa), de
William Law, John Wesley se convenceu de que o calvinismo remanescente
na Igreja da Inglaterra impedia um avivamento genuíno da piedade interior e
o discipulado comprometido. Embora
Wesley viesse, por fim, a abraçar a doutrina da justificação, ele ficou preocupado com que a justificação levaria à licenciosidade, se não fosse subordinada
à santificação.
Nas colônias americanas, o Grande Despertamento, sob a liderança de
Jonathan Edwards e George Whitefield, proclamaram as boas novas da
graça justificadora de Deus em Cristo. Entretanto, na época do Segundo
Grande Despertamento, uma teologia
contrária se tornou a teologia operante de muitos grupos protestantes na
nova república. A igreja é uma sociedade de reformadores morais, disse
o seu principal evangelista, Charles
Finney. Se o calvinismo era verdade,
como poderia haver qualquer transformação genuína da sociedade?
34 | Revista f é pa r a h o je

Os críticos de Finney o acusaram
de pelagianismo – a antiga heresia que
ensinava, em essência, que não nascemos inerentemente pecaminosos e
que somos salvos por seguir o exemplo
moral de Cristo. Indo além dos erros
da Igreja de Roma, a Teologia Sistemática de Finney negava explicitamente
o pecado original e insistia em que o
poder da regeneração está nas mãos
do próprio pecador, rejeitava qualquer
noção de uma expiação vicária, em favor da influência moral e de teorias de
governo morais, e considerava a doutrina da justificação pela justiça imputada como “impossível e absurda”.2
No que diz respeito ao complexo de
doutrinas que ele associava com o calvinismo (incluindo o pecado original, a
expiação vicária, a justificação e o caráter sobrenatural do novo nascimento),
Finney concluiu: “Nenhuma doutrina é mais perigosa do que esta para a
prosperidade da igreja, e nada é mais
absurdo”. “Um avivamento não é um
milagre”, ele declarou. De fato, “Não
há nada na religião que esteja além dos
poderes comuns da natureza”.3 Ache os
métodos mais proveitosos (“estímulos”,
ele os chamou), e haverá conversão.
“Um avivamento declinará e cessará”,
Finney alertou, “se os cristãos não forem
frequentemente reconvertidos”.4 No final
de seu ministério, quando Finney considerou a situação de muitos que ha2  Charles G. Finney, Systematic Theology
(Minneapolis: Bethany, 1976), p. 320.
3  Charles G. Finney, Revivals of Religion
(Old Tappan, NJ: Revell, n. d.), pp. 4-5.
4  Finney, Revivals of Religion, p. 321. Ênfase
no original.
viam experimentado seus avivamentos,
ele temia que a fome interminável por
experiências cada vez maiores pudesse
levar à exaustão espiritual.5 De fato,
suas preocupações eram justificáveis.
A região em que predominaram os
avivamentos de Finney é agora referida pelo historiadores como o “distrito
queimado”, um canteiro tanto de desilusão como de proliferação de várias
seitas.6 Desde então, o evangelicalismo
tem se caracterizado por uma sucessão
de movimentos entusiastas aclamados
como “avivamentos”, que se extinguem
tão rapidamente quanto se espalham.
Paulo poderia dizer hoje sobre o protestantismo americano o que ele disse
sobre os seus irmãos segundo a carne:
Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram
à que vem de Deus. Porque o fim
da lei é Cristo, para justiça de todo
aquele que crê (Rm 10.3-4).
Há duas religiões, disse Paulo: “a
justiça decorrente das obras” e “a justiça
decorrente da fé”. Enquanto a primeira
segue fervorosamente seus esquemas
de autossalvação, como que tentando
trazer Cristo para baixo ou levantando
-o dentre os mortos, a segunda apenas
5  Ver Keith J. Hardman, Charles Grandison
Finney: Revivalist and Reformer (Grand Rapids: baker, 1990) pp. 380, 394.
6  Ver, por exemplo, Whitney R. Cross, The
Burned Over District: The Social and Intellectual History of Enthusiastic Religion in Western
New York, 1800-1850 (Ithaca, N.Y.: Cornell
University Press, 1982).

recebe a palavra de Cristo e descansa
somente nela (vv. 5-8). “Como, porém,
invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem
nada ouviram? E como ouvirão, se não
há quem pregue?... E, assim, a fé vem
pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (vv. 14, 17).
Não parece incorreto considerar as
alegações teológicas de Finney como
pelagianas. E sua influência permanece conosco hoje, tanto no protestantismo ecumênico como no evangélico. Dietrich Bonhoeffer viu isto
claramente em sua visita aos Estados
Unidos, ao descrever o cristianismo
americano como “protestantismo sem
a Reforma”.7 Em vez da influência
de um testemunho verdadeiramente
evangélico, foi a propagação rápida do
avivalismo arminiano, especialmente no próspero Oeste, que se mostrou
mais eficaz em produzir “resultados”.
A doutrina em geral, e o calvinismo
em específico, impediu o surgimento
de uma América cristã. “Obras e não
credos” têm uma linhagem extensa na
história do movimento.
Em geral, os americanos são o tipo
de pessoas “prospere por seus próprios
esforços”. Isto é o que, em parte, justifica a enorme validade dos negócios e
da indústria americana. Mas também
se tornou uma religião. Aqueles que
saíram da miséria para a riqueza difi7  Dietrich Bonhoeffer, “Protestantism without the Reformation, em No Rusty Swords:
Letters, Lectures and Notes, 1928-1936, ed. Edwin H. Robertson, trans. Edwin H. Robertson e John Bowden (London: Collins, 1965),
pp. 92-118.
Revista fé pa r a h oje | 35
cilmente aceitarão o fato de que, pelo
menos diante de Deus, eram pecadores desamparados que precisavam ser
resgatados.
No contexto contemporâneo, o
protestantismo americano, da esquerda ou da direita, está comprometido
com o legado de Finney, quer saiba,
quer não. Isso pode ser reconhecido no
“evangelho social” da esquerda e nas
lamentações moralistas da direita; no
pragmatismo de “como” do movimento de crescimento de igreja e na vasta
literatura e pregação de autoajuda que
se tornou a dieta da subcultura cristã; e
na obsessão terapêutica por espiritualidade interior e ativismo social que
pode ser vista no movimento Igreja
Emergente. Mesmo quando o evangelho é formalmente afirmado, ele se
torna um instrumento para motivar
a vida pessoal e pública (salvação por
obras), e não um anúncio de que a ira
justa de Deus foi satisfeita e de que seu
favor imerecido foi dado gratuitamente em Jesus Cristo.
Digo tudo isto com profunda tristeza por ter de dizê-lo, porque é a pior
coisa que pode ser dita sobre uma igreja. Paulo falou severamente com os
coríntios por causa de sua imoralidade, mas nunca questionou se eles eram
realmente uma igreja. Mas, quando a
igreja da Galácia estava confundindo
o evangelho da justificação gratuita de
Deus por meio da fé, Paulo os advertiu
de que estavam em risco de serem excluídos – excomungados, “anátemas”.
E a preocupação que expressei não
se limita a alguns poucos calvinistas e
36 | Revista f é pa r a h o je

luteranos petulantes. De acordo com
o bispo William Willimon, da Igreja
Metodista Unida, “a autossalvação é
o alvo de muito da nossa pregação”.8
Willimon percebe que muito da pregação contemporânea presume que a
conversão é algo que nós produzimos
por meio de nossas próprias palavras
e ordenanças. “Neste respeito, somos
herdeiros de Charles G. Finney”, o
qual pensávamos que a conversão não é
um milagre, e sim um “resultado puramente filosófico [ou seja, científico] do
uso correto dos meios constituídos”.
Esquecemos que houve um tempo
em que os evangelistas eram obrigados a defender suas “novas medidas” de avivamentos, que houve um
tempo em que os pregadores tinham
de defender sua preocupação com a
reação dos ouvintes aos seus detratores calvinistas, os quais pensavam
que o evangelho era mais importante do que seus ouvintes. Estou aqui
argumentando que avivamentos são
miraculosos, que o evangelho é tão
estranho, tão contrário às nossas inclinações naturais e às enfatuações
de nossa cultura, que nada menos
do que um milagre é exigido a fim
de que haja um verdadeiro ouvir.
Minha posição é, portanto, mais
próxima da posição do calvinista Jonathan Edwards do que da posição
de Finney.9
8  William H. Willimon, The Intrusive Word:
Preaching to the Unbaptized (Eugene, Ore.:
Wipf & Stock, 2002), p. 53.
9  Willimon, p. 20.
Apesar disso, “o futuro homilético,
infelizmente, está com Finney e não
com Edwards”, levando ao guru de
marketing evangélico George Barna,
que escreve:

lística que conheço é um esforço para
aprofundar pessoas cada vez mais em
sua subjetividade, e não uma tentativa
de resgatá-las de tal subjetividade”.11
Nossa verdadeira necessidade, sintamos ou não, é que distorcemos sisteJesus Cristo era um especialista
maticamente e ignoramos a verdade.
em comunicação. Ele comunicou
Esta é a razão por que precisamos de
sua mensagem em diversas ma“uma palavra externa”.12 “Portanto,
neiras e com resultados que seria
em um sentido, não descobrimos o
um crédito para as agências moevangelho; ele nos descobre. ‘Não fosdernas de marketing e propagantes vós que me escolhestes a mim; pelo
da. Ele promoveu seu produto da
contrário, eu vos escolhi a vós outros’
maneira mais eficiente possível:
( Jo 15.16).”13 “A história é euangelion,
por comunicá-lo com as “melhores
boas novas, porque ela é a respeito da
perspectivas”... Ele entendia comgraça. Mas é também novas porque
pletamente o
não é conheciseu produto,
mento comum,
desenvolveu
não é o que nove
A fé e a prática evangélica
um incompaentre dez ameriproclamadas nas Escrituras é
rável sistema
canos já sabem.
de distribuiO evangelho não
sempre não natural para nós.
ção, fomentou
vem naturalmenum método de
te. Ele vem como
promoção que
Jesus.”14
penetrou cada continente e ofeA fé e a prática evangélica proclareceu seu produto a um preço que
madas nas Escrituras é sempre não
está ao alcance de todo consumidor
natural para nós. Nascidos em pe(sem tornar o produto tão acessível
cado, corrompidos em nós mesmos,
10
a ponto de perder seu valor).
supomos instintivamente que somos
pessoas boas que poderiam ser melhores, se tivéssemos um bom plano,
A pergunta que surge naturalmenambiente e exemplos. Quando visite diante de tais observações é esta:
tamos pessoas em seu leito de morte,
É possível dizer que Jesus fez alguma
ficamos desconcertados quando encoisa nova? “Infelizmente”, diz Willicontramos velhos membros de igrejas
mon, “a maioria da pregação evange10  Willimon, p. 21, citando George Barna,
Marketing the Church: What They Never Taught
You about Church Growth (Colorado Springs,
NavPress, 1988), p. 50.

11 
12 
13 
14 

Willimon, p. 38.
Willimon, p. 38.
Willimon, p. 43.
Willimon, p. 52.
Revista fé pa r a h oje | 37
de confissão reformada expressando
sua esperança de terem sido suficientemente bons para que Deus os aceite.
Nascemos pelagianos, confiando em
nós mesmos e não em Deus; e esta é
a nossa condição padrão mesmo como
cristãos. Essa é a razão por que nunca admitimos o evangelho; ele tem
de ser a dieta principal não somente
para o começo da peregrinação cristã,
mas também para o meio e para o fim.
Quando as coisas se deterioram em
nossa fé pessoal ou coletiva, a direção
é sempre a mesma: caímos de novo na
justiça de obras.
Períodos de vitalidade e saúde genuínas são sempre a consequência de
redescobrirmos o evangelho da graça;
épocas de declínio estão sempre associados com o eclipse do evangelho de
um resgate totalmente divino, na pessoa e obra de Jesus Cristo. Visto que
Satanás perdeu a guerra no Gólgota
e no sepulcro, ele tem voltado os seus
ataques para a fé dos crentes no evangelho e para o progresso do evangelho
até aos confins da terra. Ele conhece o
nosso ponto fraco e o explora. Se não
pode destruir a igreja por perseguição,
Satanás a enfraquecerá por meio de
heresia. E o “pelagianismo” – a autossalvação em todas as suas formas – é
seu melhor best-seller.
Depois de realizar, com sua equipe, inúmeros estudos nos últimos
anos, o sociólogo Christian Smith, da
Universidade da Carolina do Norte,
concluiu que a religião da juventude americana pode ser caracterizada
como “deísmo moralista e terapêuti38 | Revista f é pa r a h o je

co”. Quando o entrevistamos recentemente para o ministério White Horse
Inn e para a revista Modern Reformation, ele disse que não há nenhuma diferença entre os que não frequentam
a igreja e os jovens criados em igrejas
evangélicas hoje.

Quem Precisa da Justificação?
Deus justifica o ímpio. Isso é muito radical. É mais radical do que a afirmação de que Deus cura o moralmente
enfermo e dá graça àqueles que estão
dispostos a cooperar para isso ou que
ele recompensa aqueles que tentam
fazer o seu melhor. Nem precisamos
negar abertamente a justificação. Ela
é relevante apenas quando paramos
de fazer a pergunta mais importante.
Você tem problemas no casamento e
com os filhos? Com certeza. Não vive
de acordo com suas expectativas? Todos não vivem assim também? Não
está conseguindo o máximo da vida e
precisa de algum conselho legal? Sou
todo ouvidos. Mas não nos importamos com o fato de que somos “pecadores nas mãos de um Deus irado”, se
nunca nos deparamos com um Deus
santo. E, se não sentimos uma grande
necessidade, não clamamos por um
grande Salvador.
Os católicos romanos e os protestantes costumavam debater sobre
como os nascidos em pecado original
são salvos pela graça. No entanto, essas categorias teológicas estão sendo
substituídas, entre os divisores católico/protestante e liberal/evangélico,
por categorias terapêuticas, pragmáticas e consumistas que parecem tornar
irrelevante o próprio discurso sobre o
evangelho. A pergunta “Como posso ser aceito por um Deus santo?” é
substituída por uma busca por autorrealização, autorrespeito, autoestima
e esforço próprio. E há abundância de
pregadores que fomentarão o nosso
narcisismo, tratando de nossa ferida
como se não fosse tão grave e dizendonos como podemos ter nossa melhor
vida agora mesmo.
A justificação se torna um símbolo vazio quando Deus não é mais um
problema para a humanidade, e sim
um ícone controlável ou de uma transcendência irrelevante ou de uma fonte
imanente e proveitosa de bem-estar
terapêutico e causas morais. Não sendo mais perdidos, agora somos mais
semelhantes a vítimas disfuncionais,
mas bem intencionadas, que apenas
precisam de “capacitação” e melhores
instruções. Nossa experiência é remota daquela dos israelitas reunidos ao
pé do monte Sinai, quando ouviram a
terrível voz de Deus e imploraram por
um mediador.
Quando a santidade de Deus é obscurecida, a condição pecaminosa do
homem é ajustada, primeiramente, ao
nível de pecados – ou seja, a atos ou hábitos específicos que exigem repreensão e melhora. Cansados de intimidações que realmente trivializam a condição pecaminosa, a próxima geração
adota uma abordagem mais positiva,
oferecendo “dicas para viver” que tornarão a vida mais feliz, mais saudável e

mais realizadora. Por fim, a dimensão
vertical é quase perdida. O que torna o
pecado pecaminoso é o fato de que ele é,
antes de tudo, uma ofensa contra Deus
(Sl 51.3-5). Todavia, o resultado dessa
mentalidade que obscurece a santidade
de Deus, é que não é mais concebível
que Deus tenha se tornado carne para
sofrer a sua própria ira. O propósito
da cruz é levar-nos ao arrependimento por mostrar-nos quanto Deus nos
ama (a teoria de influência moral da
expiação), para demonstrar a justiça
de Deus (a teoria de governo moral)
ou para libertar os oprimidos de estruturas sociais injustas (Christus Victor).
Mas uma coisa que a cruz não pode ser
é o meio pelo qual somos “justificados
por seu [de Cristo] sangue”, “somos
por ele salvos da ira” (Rm 5.9).
De fato, o teólogo luterano George Lindbeck explorou recentemente a
relação inseparável entre a justificação
e a expiação, concluindo que, mesmo
onde aquela é formalmente afirmada,
a ampla falta de interesse em nossa rejeição franca da linguagem tradicional
da expiação deixa-a sem especificidade
suficiente. Pelo menos na prática, a visão de salvação de Abelardo, a salvação por seguir o exemplo de Cristo (e
a cruz como a demonstração do amor
de Deus que motiva o arrependimento) agora parece ter uma distinção
clara em relação à teoria de satisfação
de Anselmo sobre a expiação. “A expiação não está no topo das agendas
contemporâneas de católicos ou de
protestantes”, Lindbeck conjectura.
“Mais especificamente, as versões peRevista fé pa r a h oje | 39
nal e vicária da teoria de satisfação de
religiosa e, por conseguinte, era mais
Anselmo que predominaram entre o
ofensiva, seus críticos pensavam, do que
povo durante centenas de anos estão
a justiça própria basicamente moral dos
desaparecendo.15 Isso é tão verdadeiliberais abelardianos. Avançando em
nossa história: os liberais cessaram proro para os protestantes evangélicos
16
gressivamente de ser abelardianos.17
quanto para os protestantes liberais.
Aqueles que continuaram a usar
“Nossa cultura terapêutica de sena linguagem sola fide presumiam estar
tir-nos cada vez melhor é contrária à
em concordância com os reformadores,
pregação da cruz” e nossa “sociedade
não importando quanto; mas, sob a
consumista” fez da doutrina um pária.18
influência do pietismo e do avivalismo
“Uma característica mais desconcernorteado por conversões, eles transfortante deste desenvolvimento, que tem
maram a fé que salva em uma boa obra
afetado igrejas professamente confesmeritória do livre-arbítrio, uma decisionais, é o silêncio a seu respeito. Tem
são voluntária de crer que Cristo sofreu
havido poucos protestos audíveis.”19
a punição do pecado na cruz em meu
Até teologias mais contemporâneas a
favor, em favor de cada pessoa indivirespeito da cruz promovem o padrão
dualmente. Embora pareça muito imde Jesus como Modelo, mas a própria
provável, devido
justificação é raraà metáfora usada
mente
descrita
na Bíblia (e à pasem harmonia com
sagem joanina da
o padrão da ReDeus justifica o ímpio.
qual ela vem), toforma,
mesmo
Isso é muito radical.
dos são, portanto,
por evangélicos
capazes de “nasconser vadores,
cer de novo”, se
Lindbeck sugere.
apenas tentarem
A maioria deles,
o máximo que puderem. Assim, com
como já indicamos, são conversionistas
a perda do entendimento da Reforma
apegados a versões arminianas da ordo
quanto à fé que justifica como um dom
salutis, que estão muito mais distantes
do próprio Deus, a teoria de expiação
da teologia da Reforma do que esteve
sustentada por Anselmo se tornou culo Concílio de Trento.20 “Onde a cruz
turalmente associada com uma justiça
estava, agora há um vácuo.”21 Hoje, o
própria que era tanto moral quanto
evangelicalismo parece mais com Erasmo do que com Lutero.
15  George Lindbeck. “Justification and
Atonement: An Ecumenical Trajectory”, em
Joseph A. Burgess e Marc Kolden, eds., By
Faith Alone: Essays on Justification in Honor of
Gerhard O. Forde (Grand Rapids: Eerdmans,
2004), p. 205.
16  Lindbeck, pp. 205, 206.
40 | Revista f é pa r a h o je

17 
18 
19 
20 
21 

Lindbeck, pp. 207.
Lindbeck, pp. 207.
Lindbeck, pp. 208.
Lindbeck, pp. 209.
Lindbeck, pp. 211.
A Justificação Promove a Paixão pela
Renovação Genuína

santificação, bem como o vínculo
entre a fé e a santificação.22

Hoje, um número cada vez maior
de teólogos e líderes evangélicos repetem a acusação de Pelágio contra
Agostinho, de Roma contra os reformadores e do liberalismo protestante
contra o evangelicalismo, ou seja, nas
palavras de Albert Schweitzer: “Não
há lugar para ética na doutrina da justificação sustentada pela Reforma”.
Seguindo teólogos evangélicos como
Stanley Grenz, Brian McLaren e outros líderes da “Igreja Emergente” desafiam explicitamente sola fide como
um obstáculo ao principal ponto do
cristianismo: seguir o exemplo de Jesus. Embora o viver autêntico traga
valor ao evangelho, o seguir o exemplo
de Jesus está se tornando cada vez mais
o evangelho.
A observação de G. C. Berkouwer
ainda é relevante em nossos próprios
dias, quando ele escreveu que “o problema da renovação de vida é atrair a
atenção dos moralistas”.

Paulo relaciona tudo, inclusive a
santificação, os problemas de ética e
harmonia eclesiástica, à cruz e à ressurreição de Cristo.
Outro dia, um pastor me contou
que alguns de seus colegas expressaram
a preocupação de que pregar muito a
graça, especialmente a justificação, era
perigoso – se não fosse logo acompanhada por advertências à obediência.
Conhecendo bem este pastor, fiquei
surpreso com o fato de que estivessem
apontando para ele esta preocupação.
Afinal de contas, ele é correto em sua
teologia. Afirma e prega o terceiro uso
da lei (como um guia para a obediência
cristã). Às vezes, esquecemos que Paulo foi acusado de ser antinomiano – ou
seja, de convidar as pessoas a pecar para
que a graça fosse mais abundante. Mas,
em vez de evitar a doutrina da justificação (Rm 3-5) que ele sabia haveria
de provocar essa questão de novo, o
apóstolo explicou como o evangelho
é a resposta para a tirania do pecado,
bem como da sua condenação (Rm 6).
O evangelho da justificação gratuita é a
fonte de santificação genuína e não seu
inimigo. No entanto, isso é contrário
ao que o nosso senso comum sugeriria.
É a lógica do evangelho e não a lógica
de justiça de obras.
Como uma cultura nativa, o evangelicalismo americano é ativista. Somos acostumados a ser produtores e

Entre inúmeras forças caóticas e
desmoralizantes, está ressoando,
como pela última vez, o clamor
por ajuda e ensino, pela reorganização de um mundo desordenado.
A terapia prescrita talvez varie, a
chamada por rearmamento moral
e espiritual é uniformemente insistente... Estas são as questões que
temos de responder. Pois, implícita
nelas, está a intenção de destruir
a conexão entre a justificação e a

22  G. C. Berkouwer, Studies in Dogmatics:
Faith and Sanctification (Grand Rapids: Eerdmans, 1952), pp. 11-12.

Revista fé pa r a h oje | 41
consumidores, mas não recebedores –
pelo menos, pecadores desamparados
e ímpios que têm de reconhecer que
sua salvação é um dom gratuito, independente de sua decisão e esforço (Rm
9.16). Obcecados com o que acontece
conosco, a espiritualidade evangélica
tem por muito tempo – pelo menos
na prática – obscurecido as boas novas
daquilo que aconteceu de uma vez por
todas fora de nós. A justificação pode
ser relevante para evitar a ira de Deus
(pelo menos onde ela ainda é afirmada), mas ela é realmente tão importante para a vida cristã? Não seria mais
proveitoso e prático aprender passos
que conduzem à vitória sobre o pecado
em nossa vida e nossa cultura?
No livro Revisioning Evangelical
Theology (Revisando a Teologia Evangélica), Stanley Grenz argumenta que
o evangelicalismo é mais uma “espiritualidade” do que uma “teologia”, mais
interessado na piedade individual do
que em credos, confissões e liturgias.23
A experiência dá origem a – na verdade, ele diz, “determina” – doutrina, e
não vice-versa.24 O principal ponto da
Bíblia é como as histórias podem ser
usadas no viver diário – por isso, a ênfase em devoções diárias. “Embora alguns evangélicos pertençam a tradições
eclesiásticas que entendem, em algum
sentido, a igreja como um despenseiro
de graça, em geral vemos nossas con23  Stanley Grenz, Revisioning Evangelical
Theology: A Fresh Agenda for the 21st Century (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press,
1993), pp. 17, 31 e em todo o volume.
24  Grenz, pp. 30, 34.
42 | Revista f é pa r a h o je

gregações principalmente como uma
comunhão crentes.”25 Compartilhamos
nossas jornadas (nosso “testemunho”)
de transformação pessoal.26 Portanto,
“uma mudança fundamental de autoconsciência pode estar em andamento”
no evangelicalismo, “uma mudança
de identidade baseada em credo para
uma identidade baseada em espiritualidade” que é mais semelhante ao misticismo medieval do que à ortodoxia
protestante.27 Consequentemente, a
espiritualidade é interior e quietista”,28
preocupada com combater “a natureza inferior e o mundo”,29 por meio de
“um compromisso pessoal que se torna
o foco crucial das afeições do crente”.30
Portanto, a origem da fé não é atribuída
a um evangelho externo, mas surge de
uma experiência interior. “Visto que a
espiritualidade é gerada a partir do interior do indivíduo, motivação interior
é crucial” – mais importante, de fato, do
que “grandes afirmações teológicas”.31
A vida espiritual é, antes de tudo, a
imitação de Cristo... Em geral, evitamos rituais religiosos. Rejeitamos a aderência servil a ritos, mas
o fazer o que Jesus faria é o nosso
conceito de verdadeiro discipulado. Consequentemente, a maioria dos evangélicos não aceitam o
sacramentalismo de muitas igre25 
26 
27 
28 
29 
30 
31 

Grenz, p. 32.
Grenz, p. 33.
Grenz, pp. 38, 41.
Grenz, pp. 41-42.
Grenz, p. 44.
Grenz, p. 45.
Grenz, p. 46.
jas tradicionais, nem se unem aos
quacres que eliminam completamente os sacramentos. Praticamos
o batismo e a Ceia do Senhor, mas
entendemos o significado destes
ritos de maneira prudente.32
Ele diz que estes ritos são praticados como estímulos para a experiência
pessoal e não por obediência à ordem
divina.33
Prossiga no dever; coloque sua vida
em ordem, para que, pela uso dos
meios de ajuda, você cresça e veja
se não amadurece espiritualmente”, nós exortamos. De fato, se um
crente chega ao ponto em que sente que a estagnação se estabeleceu,
o conselho evangélico é redobrar
os seus esforços no dever de praticar as disciplinas. “Examine a si
mesmo”, o conselheiro espiritual
evangélico admoesta.34
Vamos à igreja, ele diz, mas não
para recebermos “os meios de graça”,
e sim para que tenhamos comunhão,
recebamos “instrução e encorajamento”.35 A ênfase no crente individual é
evidente, ele diz, na expectativa de
“achar um ministério” na comunhão
local.36 Tudo isso é contrário a uma ênfase em doutrina e, Grenz acrescenta,
uma ênfase em “um princípio material
32 
33 
34 
35 
36 

Grenz, p. 48.
Grenz, p. 48.
Grenz, p. 52.
Grenz, p. 54.
Grenz, p. 55.

e formal” – em outras palavras, solo
Christo e solo Scriptura.37
Quando a transformação pessoal e
social se torna o principal ponto de fé
e prática, não devemos admirar que a
linha distintiva entre catolicismo romano e evangelicalismo se obscurece. Para
Roma, é claro, a justificação é simplesmente santificação: a transformação
moral do crente. A graça é oferecida,
mas temos de cooperar com ela, se temos finalmente de ser aceitos e renovados. De fato, com sua história mais longa e mais sofisticada de influência cultural, a superioridade de Roma na arena
de transformação do mundo é aparente.
De fato, uma vez que nosso interesse
em melhorarmos a nós mesmos e ao
mundo tenha tornado irrelevante (ou
mesmo problemática) a justificação somente pela fé, por que os mórmons e
os evangélicos devem continuar divididos? Não mais divididos por doutrina, a
“cultura de protestantismo” da América
ameaça submergir totalmente o evangelicalismo, como o fez nas principais
denominações ecumênicas. As únicas
denominações que ficarão com alguma
identidade serão, talvez, os partidos Republicano e Democrata.
De acordo com o que já consideramos, a justificação não é o primeiro
estágio da vida cristã, e sim a fonte permanente de santificação e boas obras.
Lutero resume: “‘Porque você crê em
mim’, diz Deus, ‘e sua fé se apropria de
Cristo, que eu lhe dei gratuitamente
como Justificador e Salvador, portanto,
seja justo’. Assim, Deus aceita você e o
37  Grenz, p. 62.

Revista fé pa r a h oje | 43
considera justo tão somente por causa
de Cristo, em quem você crê”.38 Não
importando qualquer outra boa nova
(concernente ao novo nascimento, à vitória de Cristo sobre a tirania do pecado e à promessa de nos renovar durante toda a nossa vida, à ressurreição de
nosso corpo e ao livramento da presença do pecado) ou quaisquer exortações
úteis que possamos oferecer, o anúncio
que Lutero resume nestas palavras cria
sozinho e sustenta a fé que não somente justifica, mas também santifica.
As boas obras podem ser realizadas
agora livremente para Deus e o nosso
próximo sem qualquer temor de punição ou de agonia quanto aos motivos
confusos de cada ato. Por causa da justificação em Cristo, até as nossas boas
obras podem ser “salvas”, para aprimorar não a parte de Deus, nem mesmo a nossa, e sim a do nosso próximo.
Como Calvino explica,
Mas se, libertos desta exigência
severa da lei ou, melhor, de todo o
rigor da lei, eles ouvem a si mesmos
sendo chamados com cordialidade
paternal por Deus, eles responderão com alegria e grande ardor e seguirão esta orientação. Resumindo:
aqueles que estão presos ao jugo da
lei são, igualmente, servos que recebem certas tarefas de seus senhores,
cada dia. Estes servos pensam que
não fizeram nada e não ousam comparecer diante de seus senhores, se
38  Martin Luther, Lectures on Galatians
1535, vol. 26, Luther’s Works, eds. Jaroslav Pelikan e Walter A. Hansen (St. Louis: Concordia Publishing House, 1963), p. 132.
44 | Revista f é pa r a h o je

não cumprirem a medida exata de
seus deveres. Mas filhos, que são
tratados mais generosa e brandamente por seus pais, não hesitam
em oferecer-lhes obras incompletas, feitas pela metade e até deficientes, crendo que sua obediência
e prontidão de mente será aceita
por seus pais, embora não tenham
realizado o que seus pais tencionavam. Devemos ser esse tipo de filho,
crendo firmemente que nossos serviços serão aprovados por nosso Pai
muitíssimo misericordioso, ainda
que esses serviços sejam insignificantes, rudes e imperfeitos... E precisamos desta segurança em grau
profundo, pois, sem ela, tentaremos
fazer tudo em vão.39
“Por causa da justificação”, acrescenta Ames, “a corrupção das boas
obras não impede que elas sejam aceitas e recompensadas por Deus”.40
Este ponto de vista não somente
fundamenta as boas obras na fé, mas
também liberta os crentes para amarem e servirem seu próximo sem o
motivo de obterem alguma coisa ou
o temor de perderem o favor divino.
Ele nos libera para um ativismo que
abrange o mundo e é profundamente
consciente de que, embora nosso amor
e serviço nada contribuam para Deus e
sua avaliação de nossa pessoa, eles são,
apesar de realizados com fragilidade,
39  John Calvin, Institutes of Christian Religion, 3.19.5.
40  William Ames, Marrow of Theology (Grand
Rapids: Baker Academic, 1997), p. 171.
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Catecismo maior de Lutero
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Majestade da Criação

  • 1. FÉ HOJE N0 39 - Mar/2013 - R$10 pa r a Comprometida com a Fé que foi entregue aos santos Criação Ø Queda Redenção Ø Consumação
  • 2. Faç a a as s inat ura an ual da r e v ista Fé para H o j e p or ap enas R $ 15,00* Ligue 12 3919.9999 ou acesse www.editorafiel.com.br/feparahoje * Assinatura anual inclui duas revistas por ano. Se você deseja receber a revista fora do Brasil, entre em contato conosco pelo e-mail: feparahoje@editorafiel.com.br
  • 3. Amado Leitor, É nosso desejo que, através da leitura dessas páginas, você possa ser desafiado e encorajado a perseverar em seu propósito de crescer no conhecimento e amor do glorioso evangelho de Jesus Cristo. Conquanto as palavras e artigos desta revista tenham o propósito de provocar sua mais séria reflexão e apreender às coisas da mente, sem o amor a Deus, nosso zelo e labor são vãos. É preciso aliar mente e coração na obra de Deus. Primeiro, ame ao Senhor e depois, ame a noiva de Cristo, a igreja. Todos nós, no Ministério Fiel, reconhecemos com gratidão ao Senhor o privilégio que temos em poder servi-lo. J. Richard Denham III Diretor, Editora Fiel editor-chefe Tiago J. Santos Filho tradução Francisco Wellington Ferreira revisão Marilene Paschoal presidente emérito diagramação Rubner Durais diretor James Richard Denham III James Richard Denham Jr. realização Editora Fiel | Março de 2013 | no 39
  • 4. Sumário Editorial Tiago Santos.......................................... 3 1. A Majestade de Deus na Criação e a Ecologia (Sl 8.1-9) Hermisten Maia Pereira da Costa........... 5 2. Deus, o Criador Stephen L. Wellum. . .............................. 13 3. A Importância Teológica da Historicidade de Adão Bruce A. Ware....................................... 19 4. O Homem e o Pecado John Piper............................................. 23 5. A Justificação Ainda É Importante? Michael S. Horton................................ 31 6. Vivendo “Já” com Vistas ao “Ainda Não” Heber Carlos de Campos Júnior. . ........... 47 7. Milênio – Breves Considerações Hermenêuticas Gilson Santos....................................... 53
  • 5. Editorial Quatro Grandes Realidades da Teologia Tiago Santos Nesta nova edição da revista Fé para Hoje, lançada na esteira do Curso Fiel de Liderança do ano de 2013, trabalharemos os quatro grande pilares da teologia sistemática: Criação, Queda, Redenção e Consumação. Esses temas sumariam o grande esquema da teologia e têm o propósito de levar o estudioso a compreender o plano e as ações de Deus na história da humanidade, conforme revelado nas Escrituras Sagradas. Nesse esquema, vemos como Deus condescendeu revelar-se ao homem, dando-se a conhecer e descortinando seu projeto para a humanidade. Na criação, vemos o Deus trino todo-poderoso, transcendente, autoexistente, suficiente em si mesmo, eterno, santo e perfeito em todos os seus atributos, criando todas as coisas que existem, desde as mais remotas e distantes galáxias até a terra e tudo o que nela há. Vemos a criação do homem imago Dei, segundo a imagem do próprio Deus, em estado de inocência e liberdade, debaixo do governo moral de Deus, ordenado a ser responsável e obediente e a governar sobre todas as coisas criadas, para a glória do criador. Na queda, vemos o homem transgredindo a lei de Deus e se afastando dele, caindo de seu estado de inocência e felicidade e legando para a humanidade esta condição de condenação, aprisionando sua liberdade às inclinações do pecado, sendo tanto responsável por ele como vítima de
  • 6. sua poluição. Vemos o efeito da queda na criação, trazendo maldição para este mundo e resultando na grande tragédia da história do homem. Na redenção, vemos ainda que Deus resolveu oferecer salvação ao homem – e o fez de modo que sua justiça, ofendida pela transgressão da lei causada pelo pecado do homem, fosse satisfeita. Em amor, desde os tempos eternos, Deus o Pai resolveu salvar pecadores em seu Filho, Jesus Cristo, o qual, sendo um com Deus o Pai, entrou na história, assumiu a natureza humana e viveu como homem, obedecendo toda a lei e cumprindo toda a justiça de Deus o Pai, a ponto de oferecer-se a si mesmo como sacrifício e propiciação a Deus em favor dos homens, justificando os pecadores que se achegam a ele, movidos pela ação do Espírito de Deus que os regenera, em arrependimento e fé, sendo reconciliados com Deus e adotados em sua família. Vemos finalmente a consumação de todas as coisas – como o cristão é preparado nesta vida para a vida porvir; sendo santificado e perseverando em sua peregrinação. Vemos o que acontece após a morte do homem, seja do justo ou do injusto, sobre o céu e o inferno, o julgamento final, a ressurreição do corpo e a redenção final e definitiva da criação: novos céus e nova terra – todas essas coisas operando segundo o propósito e decretos de Deus e para glória dele. Na seleção de artigos desta edição, somos instados a refletir esses grandiosos temas e levados a considerar o grande amor e glória do Deus trino. Que ele possa abençoar sua leitura
  • 7. A Majestade de Deus na Criação e a Ecologia (Sl 8.1-9) Hermisten Maia Pereira da Costa
  • 8. A Criação de Deus não tem poder em si mesma para auto-existir; sem a sustentação de Deus o universo inteiro, toda criação deixaria de existir". Introdução Um dos conceitos predominantes da filosofia grega clássica se referia ao dualismo entre matéria e espírito. Dentro desta compreensão da superioridade do espiritual, a matéria é má. Este dualismo influenciou até mesmo determinado grupo dentro da história do Cristianismo, denominado de Gnóstico, quanto à sua compreensão da Criação divina e da encarnação de Jesus Cristo. No entanto, a fé cristã sustenta que tudo o que existe tem Deus como autor, que não somente cria algo externo a si mesmo (ele não se confunde com a matéria, nem é a matéria mera extensão sua), como também preserva por meio do seu poder. 6 | Revista f é pa r a h o j e A preservação é compreendida como aquela contínua operação do poder de Deus, pela qual ele sustenta e mantém todas as coisas contingentes – a Criação – a fim de que esta possa cumprir ordenadamente o propósito para a qual foi criada. Isto significa que a Criação de Deus não tem poder em si mesma para auto-existir; sem a sustentação de Deus o universo inteiro, toda criação deixaria de existir. “Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as cousas pela palavra do seu poder....” (Hb 1.3). A ideia de “sustentação” no texto, ( = “levar”, “carregar”), além de preservação, é a de fazer com que as coisas sigam o seu rumo, o seu propósito determinado por Deus.
  • 9. Isto nos conduz à nossa responsabilidade como agentes de Deus no cuidado e preservação do que ele mesmo nos confiou. A natureza tem o seu valor porque foi criada por Deus. Eu não preciso idealizar a natureza, humanizá -la ou divinizá-la; ela tem o seu próprio valor: O Deus sábio, soberano e bondoso a criou. Isto, por si só nos basta. 1. O Mundo Físico O pecado, que consiste na quebra de relacionamento com Deus, trouxe ao ser humano diversas consequências. Entre elas a perda da sensibilidade espiritual. O ser humano perdeu a capacidade de reconhecer a Deus em seus atos manifestos em toda a Criação, na Palavra, e plenamente revelado em Cristo Jesus. A quebra desta comunhão com Deus vai interferir diretamente em todas as demais relações, inclusive em nossa maneira de ver e atuar no mundo. O pecado alienou-nos de Deus, do nosso semelhante e da natureza. Assim, o pecado, de certa forma, desumanizou-nos. A Queda trouxe consequências desastrosas à imagem de Deus refletida no homem. Após a queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e semelhança de Deus (aspecto metafísico): Apesar de o pecado ter sido devastador para o homem, Deus não apagou a sua “imagem”, ainda que a tenha corrompido, alienando-o de Deus. O pecado trouxe como implicação a perda do aspecto ético da imagem de Deus. A nossa vontade, como agente de nosso intelecto, agora, é oposta à vontade de Deus. A imagem que agora refletimos estampa mais propriamente o caráter de Satanás. No Éden só havia um livro: o livro da natureza; todavia, com o pecado humano, a natureza também sofreu as consequências, ficando obscurecida, perdendo parte da sua eloquência primeva em apontar para o seu Criador (Gn 3.17-19) e, como parte do castigo pelo pecado, o homem perdeu o discernimento espiritual para poder ver a glória de Deus manifesta na Criação (Sl 19.1; Rm 1.18-23). A Revelação Geral que fora adequada para as necessidades do homem no Éden – embora saibamos que ali também se deu a Revelação Especial (Gn 2.15-17,19,22; 3.8ss) – tornou-se, agora, incompleta e ineficiente para conduzir o homem a um relacionamento pessoal e consciente com Deus. Todavia, mesmo a Criação sendo obscurecida pelo pecado humano, continua a revelar aspectos da natureza e do caráter de Deus. A fé cristã fundamenta-se, porque foi por isso que ela se tornou possível, na existência de um Deus transcendente e pessoal que se revela, se comunica conosco. Sem a comunicação divina não haveria teísmo nem ateísmo, simplesmente jamais chegaríamos ao conceito de Deus ou à sua negação. O Salmo 8 exalta a majestade do nome de Deus manifesta na Criação (1). É um hino que por meio do homem dignifica a majestade de Deus. Revista fé pa r a h oje | 7
  • 10. É possível que Davi tenha composto este Salmo na juventude, quando era apenas um pastor de ovelhas, quando as suas lutas eram bastante complexas na simplicidade de sua vida. Nesta fase de sua vida, certamente passava muitas noites dormindo ao relento, contemplando as estrelas no firmamento e refletindo sobre o poder de Deus. Esta mesma fé amadurecida pelas experiências com o Senhor o acompanhará. Outra ocasião provável é quando, um pouco mais maduro, já ungido rei, é foragido de Saul que queria matá-lo. Neste período teve oportunidade, ainda que com o coração angustiado, de experimentar a mesma sensação de ver e refletir sobre a imensidão do céu diante dos seus olhos (Sl 8.1,3). O salmista contemplando parte da criação exulta demonstrando que em toda a terra o nome de Deus é exaltado. Ele ultrapassa a visão apenas local de Israel, para reconhecer que o testemunho de Deus na Criação se estende a toda a terra (1). O salmista percebe que este reconhecimento da majestade de Deus só se tornou possível pela revelação de Deus na Criação: “Pois expuseste nos céus a tua majestade” (Sl 8.1). No entanto, ele não se detém na criação, antes, vai além, reconhecendo a glória de Deus nela. No Salmo 19, Davi faz uma referência semelhante, de modo mais amplo (Sl 19.1-4). Contudo, os homens, insensíveis à majestade de Deus, corrompidos em seus pecados, entregaram-se à idolatria (Rm 1.20-25). 8 | Revista f é pa r a h o j e A Criação, portanto, nos fala de Deus, de sua majestade e poder. É necessário que tenhamos nossos olhos abertos para contemplar a Deus por intermédio de suas obras. A confiança do salmista passava pela criação e repousava em Deus (Sl 121.1-3). 2. No Ser Humano Argumentando de forma espacialmente dedutiva, faz uma pergunta retórica: “Que é o homem, que dele te lembres E o filho do homem, que o visites?” (Sl 8.4). A sensação é de pequenez diante do vasto universo, do qual posso contemplar, ainda hoje, uma minúscula parte. O sistema solar é apenas um pequeno ponto no universo que conhecemos limitadamente. Séculos depois, encontramos admiração semelhante entre os gregos. Todavia, a admiração dos gregos ao contemplar o universo, os conduziu em outra direção. Eles diziam que a admiração conduz o homem à filosofia. Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) estão acordes neste ponto.1 Nestas reflexões surgem as explicações a respeito da origem da vida: a) Tales de Mileto (c. 640-547 a.C.): Por meio do estudo doxográfico, 1  Vejam-se:Platão, Teeteto, 155d: In: Teeteto-Crátilo, 2. ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, p. 20; Aristóteles, Metafísica, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. IV ), 1973, I.2. p. 214.
  • 11. sabemos que Tales, considerando a Diferentemente, a admiração de necessidade da água para a sobreviDavi o conduziu a glorificar a Deus e, vência de tudo, afirmava ser a água num ato subsequente, a indagar sobre o a origem de homem nesta vastodas as coisas tidão da criação. (por rarefação A sua pergunta Mesmo a Criação sendo e condensaassume também obscurecida pelo pecado humano, uma conotação ção), e a Terra flutuava como metafísica, não continua a revelar aspectos da um navio sopodendo ser resnatureza e do caráter de Deus. bre as águas2. pondida apenas a partir de um refeOs terremotos rencial material. são explicados O salmista argumenta que na própelo movimento das águas (Dox., pria existência de uma criança sendo 1). Deus criou todas as coisas da ainda amamentada, temos um testeágua (Dox., 9). Plutarco atribuiu munho da majestade de Deus que a geesta concepção aos egípcios. No rou e que produz no seio materno o leique talvez ele tenha razão. te para que ela possa ser alimentada (Sl 8.2). O mesmo ocorre em sua sincera (c. b) Anaximandro 610-547 a.C.): sensibilidade espiritual (Mt 21.15-16). Foi o primeiro a usar a palavra Davi entende que só isso seria suficien“princípio” ( /). (Dox., 1). O te para calar os adversários ateus. princípio ( ) de todas as coiEle reverentemente se admira do sas é o “Ápeiron” ( = “sem fato de Deus se lembrar de nós (Sl 8.4). fim”, “ilimitado”, “indeterminado”, Tendo o sentido de “prestar atenção”, “indefinido”). (Dox., 1,2,6). sustentar, cuidar. Admira-se também de Deus nos visitar. Que pode ter o c) Anaxímenes (c. 585-528/525 a.C.): sentido de passar em revista, observar O Ar é o princípio de todas as coi(Êx 3.16), vir ao encontro. O signifisas (Dox., 1-2); inclusive dos deuses cado no texto é de uma visita abençoae das coisas divinas; sendo o ar um dora e salvadora (Gn 21.1; 50.24-25/ deus (Dox., 3). O homem é ar, bem Êx 13.19; Êx 4.31; Sl 17.3; 65.9; 80.15; como a sua alma; esta nos sustenta e 106.4). governa (Frag., 1; Dox., 5-6). “ Fizeste-o, no entanto, por um poud) Heráclito de Éfeso (c. 540-480 a.C.): co, menor do que Deus ( ) e de glóTodas as coisas provêm do fogo – ria e de honra o coroaste” (Sl 8.5). Mais que é eterno – e para lá retornarão do que a imensidão do universo, o que (Frags., 30,31,90, Dox., 2). realmente conta é o valor e a dignidade atribuída ao homem: Deus o criou 2  Doxografia, 1-4. Revista fé pa r a h oje | 9
  • 12. à sua imagem. Ele tem características o Senhor; os anjos terão cumprido o seu espirituais, intelectuais e morais sepapel (Hb 1.14). Todas as coisas estarão melhantes às de Deus, apenas em grau sujeitas ao Senhor (1Co 15.26-28). adequado à criatura finita. No entanto, O profeta Jeremias descreve a isto se torna mais difícil de perceber Criação como uma manifestação da devido ao pecado que ainda que não sabedoria e inteligência de Deus ( Jr tenha aniquilado esta imagem, a defor10.12/ Jó 36.22/Sl 139.14). mou gravemente. Se por um lado o homem partilha com os outros animais de uma identiO nome aplicado a Deus ( ) dade de criação (Ec 3.19,20), por oupode referir-se, conforme interpreta tro, estabelece-se biblicamente uma Hebreus, aos seres angelicais (Hb 2.6grande distância entre o homem e o 8). “Por um pouco” (5) parece significar resto da criação porque fomos criados “por pouco tempo”,3 ainda que não ne4 à imagem de Deus, por isso, somos secessariamente. res pessoais como A ideia básica, Deus é, temos então, é que o houma personalimem após a queda Somente a partir de uma visão dade que permite foi colocado numa correta de Deus podemos perceber não nos limitarposição temporamos ao nosso corriamente abaixo a beleza da Criação como uma dos anjos. Contu- manifestação de sua bondade e poder. po, embora este faça parte de nós do, em Jesus Crise não lhe seja algo to temos a verdamau, inferior ou deira restauração desprezível: a alma e o corpo são criade nossa humanidade. Na ressurreição ções de Deus e, ele mesmo pelo seu poteremos novamente a imortalidade (Mt der ressuscitará o nosso corpo na vin22.30); participaremos efetivamente do da gloriosamente triunfante de Jesus juízo final (Mt 12.41-42; 19.28; 1Co 6.2Cristo. A ressurreição do corpo, por si 3; Ap 20.4). Estaremos para sempre com só, é um indicativo relevante acerca da 3  Cf. Derek Kidner, Salmos 1-72: introdução e comentário, (Sl 8.5-6), p. 84. Do mesmo modo: condição não desprezível da matéria. Simon Kistemaker, Hebreus, São Paulo: CulO ser humano como criação secuntura Cristã, 2003, (Hb 2.7-8), p. 94-95; Henry dária (em termos de ordem, não de imM. Morris, Amostra de Salmos, Miami: Editora Vida, 1986, p. 22-23 e Betty Bacon, Estudos na portância), foi formado com maestria Bíblia Hebraica, São Paulo: Vida Nova, 1991, e habilidade de matéria previamente p. 105. Veja-se: W.S. Plumer, Psalms, Carlisle, criada por Deus (Gn 3.19); entretanPennsylvania: The Banner of Truth Trust, © 1867, 1975 (Reprinted), (Sl 8), p. 126-127. to, ele recebeu diretamente de Deus o 4 Veja-se, entre outros: Victor P. Hamilton, fôlego da vida (Gn 2.7), passando ao Ma’at: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Diciomesmo tempo a ter uma origem terrenário Internacional de Teologia do Antigo Testana e celestial. mento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 862-863. 10 | Revista f é pa r a h o je
  • 13. Ao ser humano foi conferido o poder de ir além da matéria, podendo raciocinar, estabelecer conexão e visualizar o invisível. Ao homem, portanto, foi concedido o privilégio responsabilizador de raciocinar, escolher livremente o seu caminho de vida, verbalizar os seus pensamentos e emoções, podendo, assim, dialogar com o seu próximo (Gn 3.6) e com Deus (Gn 3.9-13), sendo entendido por ele e entendendo a sua vontade. O ser humano tem autoconsciência: ele não se limita ao seu corpo; ele tem um corpo, mas não é simplesmente o seu corpo, como os animais inferiores o são. Curiosamente, o homem é o único ser que tem consciência da sua nudez. Paralelamente a isso, encontramos o homem no momento do nascimento, com certas desvantagens em relação aos outros animais, os quais já desde bem cedo aprendem a sobreviver sem a intervenção necessária de suas mães... Entretanto, estes animais não evoluem, não transformam, não modificam as suas “culturas”. Somente o ser humano tem a devida consciência da majestade de Deus revelada na Criação. 3. No Compartilhar de Seu Poder “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste” (Sl 8.6). Deus compartilha com as suas criaturas o seu poder, ainda que não abrindo mão de sua soberania. O nosso domínio está sob o domínio de Deus. Desde a criação o homem foi colocado numa posição acima das outras criaturas, cabendo-lhe o domínio sobre os outros seres criados, sendo abençoado por Deus com a capacidade de procriar-se (Gn 1.22). Como indicativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o Criador compartilha com ele – abençoando e capacitando-o – do poder de nomear os animais – envolvendo neste processo inteligência e não arbitrariedade – e também de dar nome à sua mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20). E mais: Deus delega-lhe poderes para cultivar ( ) (‘abãr) (lavrar, servir) e guardar ( ) (shamãr) (proteger, vigiar) o jardim do Éden (Gn 2.15), demonstrando a sua relação de domínio, não de exploração e destruição, antes, um cuidado consciente, responsável e preservador da natureza (Sl 8.6-8). Todavia, todas estas atividades envolvem o trabalho compartilhado por Deus com o ser humano. O nomear, procriar, dominar, guardar e cultivar refletem a graça providente e capacitante de Deus. É neste particular – domínio – que o homem foi bastante aproximado de Deus pelo poder que lhe foi conferido. No entanto, ainda que isto seja demonstrado, especialmente pelo avanço da ciência, novos e novos desafios surgem. A plenitude deste domínio temos em Cristo Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Algo admirável neste salmo, é que o salmista em seu hino começa com Deus, glorificando o nome de Jeová ( ) e conclui tornando a ele, testeRevista fé pa r a h oje | 11
  • 14. munhando com júbilo a magnificência de seu nome em toda a terra (Sl 8.1,9). Algumas aplicações Somente partindo de Deus poderemos ter uma visão correta da natureza e de nós mesmos. A visão significativa de nossa horizontalidade, depende fundamentalmente de uma compreensão correta de nossa verticalidade. A pergunta sobre o homem começa em Deus e termina em Deus. Somente a partir de uma visão correta de Deus podemos perceber a beleza da Criação como uma manifestação de sua bondade e poder. Deste modo, adquirimos uma ótica correta para enxergar a vida e o dinamismo necessário para agir de modo coerente com a nossa fé. Cultivemos a sensibilidade para com Deus que nos permita enxergar a sua glória nas pequenas e grandes coisas criadas. Não nos detenhamos na natureza; toda natureza é um testemunho sobrenatural da majestade de Deus. Glorifiquemos a Deus tratando com honra e dignidade aquilo que ele nos confiou para guardar. Temos de reconhecer a nossa intimidade e compromisso de obediência a este Deus majestoso: ele é o nosso Senhor (Sl 8.1,9). O modelo do que Deus tem para nós encontra a sua perfeição em Cristo, Aquele que por causa de nosso pecado, motivado por sua graça inefável, se humilhou, assumindo a forma de servo, inferior aos anjos, para que, vencendo a morte, o pecado e satanás, pudesse 12 | Revista f é pa r a h o je trazer à tona o verdadeiro sentido da genuína humanidade (Hb 2.9). A pergunta a respeito do que é o homem, encontra a resposta plena em Jesus Cristo, o verdadeiro e perfeito modelo de nossa humanidade. Quando usamos adequadamente dos recursos que Deus nos confiou para dominar a terra, estamos cumprindo o papel da criação glorificando a Deus. É necessário, portanto, que glorifiquemos a Deus em nosso trabalho pela forma legítima como o executamos. A natureza como a Criação em geral não pode ser considerada separadamente de Deus, pois deste modo ou ela torna-se o centro de todas as coisas (idolatria) ou, é menosprezada, tornando-se apenas um detalhe cósmico o qual o homem pode usar a seu bel-prazer com objetivos egoístas e, portanto, destruidores. Por isso, partilho do conceito de que é impossível uma genuína ecologia – “o estudo do equilíbrio das coisas vivas na natureza”5 – divorciada da teologia bíblica. A questão “ecológica” é, antes de tudo, uma questão teológica. A natureza tem valor não simplesmente por uma questão pragmática – a nossa sobrevivência –, mas, porque foi criada pelo mesmo Deus que nos criou e nos incumbiu de amar e preservá-la. Não ousemos menosprezar o que Deus criou. A nossa humanidade é também demonstrada na forma como lidamos com a Criação. O valor de toda a realidade é-nos comunicado pelo Deus Criador, o nosso majestoso Senhor 5  Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 12.
  • 15. Deus, o Criador Stephen L. Wellum Revista fé pa r a h oje | 13
  • 16. A Escritura deixa claro que o Deus eterno e transcendente não será reduzido à sua ordem criada e que a distinção entre a criatura e o Criador, negada pelo panteísmo, é fundamental para um ponto de vista cristão sobre o mundo". É difícil superestimar a importância da doutrina da criação. Nas Escrituras, Deus se identifica, primeiramente, como o soberano Criador e, por isso, o Senhor do universo. Muitos cristãos são naturalmente interessados na doutrina da salvação, mas, sem o Deus de criação e providência, não há cristianismo como a Bíblia o descreve. Na verdade, as bases teológicas para a doutrina da salvação estão arraigadas no fato de que o Deus que existe – o Senhor pessoal, soberano e trino que existe desde toda a eternidade – em um momento, falou e trouxe este universo à existência, a partir do nada. E, como tal, tudo e todos são completamente dependentes dele e responsáveis a ele. 14 | Revista f é pa r a h o je A doutrina da criação, juntamente com a providência, deve ser vista como o resultado e a execução do plano e do decreto eterno de Deus. A Escritura mostra com clareza que o plano de Deus é o seu plano eterno pelo qual, antes da criação do mundo, ele preordenou fazer acontecer todas as coisas que chegam a acontecer (ver, por exemplo, Sl 139.16; Is 14.24-27; 37.26; 46.10-11; At 2.23; 4.27-28; 17.26; Rm 8.28-29; 9.1-33; Gl 4.4-5; Ef 1.4, 11-12; 2.10). A criação é a realização desse plano eterno no que diz respeito à origem do universo e de tudo que existe, incluindo os seres angelicais e humanos. A providência, por outro lado, é a realização do eterno plano de Deus, no tempo, em relação ao mundo que ele criou, em
  • 17. termos de sua preservação e governo de todas as coisas para cumprirem os propósitos a que foram designadas, para a sua própria glória (ver, por exemplo, Sl 103.19; 136.25; 145.15; Dn 4.34-35; At 17.28; Rm 11.36; Ef 1.11; Cl 1.17; Hb 1.3). Deus, ao identificar-se a si mesmo como o Deus soberano de criação e providência, deixa bastante claro que somente ele é Deus e que nenhum outro é Deus, que ele não compartilhará sua glória com nenhuma coisa criada e que merece toda a nossa adoração, louvor e obediência (ver, por exemplo, Is 40-48; Jr 10.1-16; Jo 17.3; 1 Tm 1.17). Além disso, quando afirmamos que Deus é o Criador, estamos enfatizando, pelo menos, três verdades. Primeira, estamos ressaltando o fato de que Deus criou o universo a partir do nada (creatio ex nihilo). As Escrituras começam com a afirmação de que, “no princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). Antes de o universo ser criado, nada existia, exceto o Deus trino. Entretanto, em um momento, o Deus eterno falou e trouxe este universo de espaço e tempo à existência, “a partir do nada”, ou seja, sem o uso de quaisquer materiais previamente existentes. É por causa deste fato que a Escritura e a teologia cristã afirmam que a matéria não é eterna, mas apenas uma realidade criada. Em outras palavras, somente Deus é o Deus autoexistente, e tudo mais é dependente dele. Segunda, estamos afirmando que Deus criou o universo espontaneamente. A Escritura não diz, em nenhuma de suas passagens, que Deus teve necessidade de criar todas as coisas motivado por al- gum tipo de necessidade que havia fora ou dentro dele mesmo. Em vez disso, ele, como o Deus trino, que é autoexistente e autossuficiente, decidiu espontaneamente criar todas as coisas. Neste sentido importante, Deus não teve de criar o universo; pelo contrário, devido à sua soberana e livre escolha e para seu próprio prazer, Deus se propôs a criar. Essa é a razão por que a Escritura afirma que Deus não precisa do mundo, e sim que o mundo e tudo que há nele são total e completamente dependentes de Deus. Terceira, dizer que Deus é o Criador significa que a criação é um ato do Deus trino. A criação é não somente a obra do Pai (Gn 1.1; Sl 19.1-2; 33.6, 9; Is 40.28; At 17.24-25; Ap 4.11), ela é também a obra do Filho ( Jo 1.1-3; 1 Co 8.6: Cl 1.15-17; Hb 1.2) e a atividade do Espírito Santo (Gn 1.2; Jó 33.4; Sl 104.30). E, como um ato do Deus trino, a razão para a existência do universo é, em última análise, a glória de Deus. Assim como é importante afirmar o que queremos dizer positivamente com a doutrina da criação, também é necessário enfatizar o que não queremos dizer. A definição bíblica da criação é contrária tanto às opiniões antigas quanto às contemporâneas sobre as origens. Em específico, a Bíblia rejeita os seguintes pontos de vista falsos referentes à origem do universo e dos seres humanos. • Primeiramente, a Bíblia rejeita todos os pontos de vista naturalistas e evolucionistas quanto às origens. Em seu âmago, o naturalismo tenta ver as origens apenas à luz de processos naturalistas que envolvem a evolução da Revista fé pa r a h oje | 15
  • 18. matéria, por acaso, durante um período de tempo. É por meio desta ideia que as pessoas tentam explicar toda a complexidade e ordem do universo, incluindo os seres humanos. Neste ponto de vista, a matéria é entendida como eterna ou, pelo menos, geradora de si mesma, independente da soberana vontade de Deus. A Escritura rejeita francamente esta ideia. • Em segundo, a Escritura rejeita todos os pontos de vista panteístas sobre a criação. Neste ponto de vista, não há uma distinção crucial entre o Criador e a criação; Deus e o mundo são, essencialmente, um. Além disso, o mundo é frequentemente explicado como uma emanação ou efusão necessária de toda a realidade – o Único. A Escritura deixa claro que o Deus eterno e transcendente não será reduzido à sua ordem criada e que a distinção entre a criatura e o Criador, negada pelo panteísmo, é fundamental para um ponto de vista cristão sobre o mundo. • Em terceiro, a Escritura rejeita todos os entendimentos dualistas quanto ao universo. No dualismo, há duas substâncias ou princípios distintos e coeternos dos quais tudo mais é derivado e que são frequentemente vistos como duas forças antagonistas – o bem e o mal. Outra vez, a Escritura mostra com clareza que somente Deus é Deus, que ele não tem rivais e não compartilhará a sua glória com ninguém. O que cada um destes três pontos de vista falsos têm em comum é o fato de que tentam negar o glorioso Deus da criação. O apóstolo Paulo refletiu 16 | Revista f é pa r a h o je sobre esta situação infeliz em Romanos 1.8-32, argumentando que a existência do Deus da criação é manifestada claramente para todas as pessoas, mas, devido à rebeldia do coração humano, a verdade de Deus tem sido voluntariamente suprimida e distorcida por nós. Em vez de glorificarmos a Deus, que nos criou, e dar-lhe graças, temos mudado a glória de Deus pelas realidades criadas. O resultado final é, correta e tristemente, a ira justa, santa e perfeita de Deus que nos sobrevém devido ao nosso pecado e depravação. Nesta situação, a única esperança para nós é a soberania de Deus em graça e redenção. A Importância Prática e Teológica da D outrina da C riação Qual é a importância prática e teológica da doutrina da criação? Há muitos pontos que poderiam ser desenvolvidos, mas pelo menos três reflexões são apropriadas. Primeira, a doutrina da criação identifica para nós o nosso Deus glorioso. A criação nos lembra que o Deus que criou não é uma deidade pequena e insignificante. Não, ele é o Senhor sobre tudo, a fonte de tudo que existe e aquele que é o único soberano. Além disso, a criação nos lembra que ele não é uma deidade distante. Antes, Deus é o “Senhor da aliança”, aquele que é o Deus vivo e ativo, envolvido intimamente em e com a sua criação, sustentando, mantendo e governando constantemente a sua criação e entrando num relacionamento de aliança com
  • 19. uma redenção que somente Deus pode seu povo. O nosso Deus é verdadeirarealizar e consumar soberanamente. mente grande, cheio de majestade, glóTerceira, a doutrina da criação nos ria, sabedoria, força e poder, devido ao diz algo sobre o nosso mundo em pelo fato de que ele é o Deus criador. menos duas áreas importantes. A priSegunda, a doutrina da criação nos meira área está relacionada a como dediz algo sobre nós mesmos, como criavemos ver este mundo em termos de vaturas de Deus. É precisamente porque lores. Visto que Deus criou este mundo, somos criaturas de Deus, feitos à sua é importante enfatizar que ele tem valor. imagem, que os seres humanos desfruIsto é evidenciado em Gênesis 1 pelo jultam de um papel singular na criação. gamento de valor “era bom” (vv. 4, 10, 12, Ironicamente, quando as pessoas ten18, 21, 25), da parte de Deus, e pela sua tam viver à parte de Deus e negam seu avaliação conclusiva “era muito bom” (v. Criador tanto em sua vida como em seu 31). Neste contexto, “bom” indica que o pensamento, elas descobrem que não mundo era não somente o que Deus plapodem entender a si mesmas corretanejara e tencionara, mas também que ele mente. Assim, acabam vendo a si mestinha grande valor. mas como menos Deus falou “Sim!” do que são, ou para o que havia seja, como aniA teologia cristã rejeita criado. Uma implimais ou máquinas qualquer noção ou de um cação importante humanas, que têm universo “aberto” ou de um disto para a teolopouca ou nenhuuniverso “fechado”. gia cristã é não elema importância e varmos, em nosso valor. Mas o ponpensamento e em to de vista cristão nossa prática, o “espiritual” acima do “físobre os seres humanos, vinculado à sico”. Isto foi um problema no passado e doutrina da criação, nos diz que Deus produziu vários entendimentos errados nos fez com dignidade e valor e que isto, na igreja. Ao criar este mundo, Deus em última análise, é a única base para valoriza tanto a realidade física como a um entendimento apropriado dos seespiritual. Infelizmente, como resultado res humanos. Além disso, o fato de que da Queda, ambas estão agora corromfomos criados por Deus também serve pidas. Mas, na redenção, Deus fez uma como fundamento para toda a ética, obra em Cristo que salva não somente a para a responsabilidade humana e para nossa alma, mas também o nosso corpo. um entendimento correto de nosso luPor isso, há nas Escrituras a ênfase sobre gar, em sujeição a Deus, na sua criação. a ressurreição de nosso corpo, para viverMas, outra vez, devido à nossa rejeição mos em novos céus e uma nova terra, na intencional de nosso Senhor e Criador, presença de Deus, para sempre (ver 1 Co temos nos posicionado contra ele e, as15; Ap 21-22). sim, somos necessitados de redenção, Revista fé pa r a h oje | 17
  • 20. A segunda área está relacionada ao entendimento cristão da relação e envolvimento contínuo de Deus com seu universo e das implicações disto para um ponto de vista cristão quanto à ciência. É claro que muito poderia ser dito neste assunto. Entretanto, basta dizer que, uma vez que a ordem criada é o resultado da decisão espontânea do Senhor soberano e pessoal, ela é também planejada, ordenada, estruturada e governada por leis. Mas, em sua estrutura, a criação nunca deve ser vista meramente em termos mecânicos. A teologia cristã rejeita qualquer noção ou de um universo “aberto” ou de um universo “fechado”. Um universo “aberto” é o ponto de vista representado pelo animismo. O animismo não entende o universo como que estando sob o controle soberano de Deus, mas, em vez disso, ele é controlado por forças e espíritos caprichosos. Um ponto de vista de universo “fechado” é aquele representado pela ciência moderna. Neste ponto de vista, o universo é concebido como que estando unicamente sob o controle de leis mecânicas, independentes da vontade e do plano de Deus; e, por isso, este ponto de vista concebe aquilo que é miraculoso como impossível. As Escrituras, porém, rejeitam esses dois pontos de vista. Em vez disso, as Escrituras nos apresentam um universo “controlado”. O ponto de vista bíblico vê este mundo como ordeiro e previsível devido à sua relação com o Deus de criação e providencia. Mas também afirma que este mundo não é independente de Deus e que, se Deus quiser, pode agir neste mundo e realizar seus planos e propósitos de maneiras miracu18 | Revista f é pa r a h o je losas e extraordinárias. Por conseguinte, o ponto de vista cristão sobre o mundo, unido à nossa doutrina de criação, nos permite ver o mundo em um padrão ordeiro e previsível, possibilitando assim a ciência. Enquanto o problema de milagres não é realmente um problema devido ao fato de que o Deus de criação é também o Deus de providência que sustenta o mundo continuamente e age nele. Com base nesta breve consideração, não é difícil perceber que a doutrina da criação e a afirmação de que Deus é o Criador têm importância crucial para a teologia cristã. Como já disse, sem o Deus de criação e providência não há cristianismo como a Bíblia o descreve. Todas as outras doutrinas, incluindo a doutrina da salvação, estão arraigadas e alicerçadas no fato de que Deus é o criador soberano e Senhor de seu universo. Na verdade, a doutrina da criação é também fundamental à teologia cristã em outro sentido – ela é o começo da história que leva à redenção. Ao insistir no fato de que a criação original de Deus era boa, a Bíblia prepara o cenário para o que sai errado – o pecado, a morte, a destruição – e para o desenvolvimento da linha histórica da Escritura que culmina na vinda de um Redentor para corrigir as coisas. Em última análise, todo o drama da história de redenção prenuncia a restauração – a transformação numa glória ainda maior (Rm 8.1-27) – daquela bondade do universo que se tornou corrompido e chega por fim ao alvorecer de um novo céu e uma nova terra (Ap 21-22), o lar da justiça (2 Pe 3.13)
  • 21. A Importância Teológica da Historicidade de Adão Bruce A. Ware Revista fé pa r a h oje | 19
  • 22. Não somente a nossa identidade biológica remonta ao Adão histórico, mas também o nosso estado como seres criados à imagem de Deus remonta ao primeiro homem". A historicidade literal de Adão como o primeiro ser humano, criado por Deus, do pó da terra, é teologicamente importante? Ou seja, alguém poderia negar a historicidade de Adão como o primeiro ser humano criado e, ainda assim, sustentar todos os ensinos essenciais da teologia evangélica? As respostas para estas perguntas centralizam-se em (1) se a Bíblia apresenta Adão como o primeiro ser humano histórico e literal, (2) se há uma conexão bíblica entre o Adão histórico, em sua criação e queda, e certas doutrinas associadas normalmente com o Adão histórico, e, (3) se isso é verdade, quais seriam estas doutrinas e qual seria a natureza da conexão. Quero sugerir duas linhas 20 | Revista f é pa r a h o je de resposta que tencionam abordar estas três perguntas. Primeiramente, a historicidade de Adão como o primeiro ser humano literal é ensinada e admitida em toda a Bíblia. A linguagem e as descrições de Adão em Gênesis 5.3-5 – número de anos que ele viveu depois do nascimento de Sete, o fato de que ele teve outros filhos e o número total de anos que ele viveu – são idênticos à linguagem e as descrições usadas a respeito de outros personagens históricos em Gênesis e em outras partes da Bíblia (cf. o resto de Gn 5; Gn 11.10-26; Gn 25.7-11; 1 Cr 1-9). O cronista inicia a sua extensa genealogia de Israel com “Adão”, que dá início a toda a raça humana. Jó contrasta a sua fraqueza diante de Deus
  • 23. e impossível de ser explicada sem essa com Adão, que encobriu a suas transhistória. Ou seja, há claramente uma gressões ( Jo 31.33). Oseias compara a conexão bíblica entre o Adão histórico desobediência de Israel com Adão, que e a teologia associada com ele, e a conetransgrediu a aliança com Deus (Os xão é tal que a teologia depende dessa 6.7). Lucas alicerça a genealogia de Jehistória e não existiria sem ela. Ou, disus no primeiro homem, Adão, o filho zendo-o em outras palavras, essa hisde Deus (Lc 3.38). Jesus entendeu Adão tória gera a teologia. Como você não e Eva como pessoas humanas literais, pode ter um filho sem uma mãe, tamcriadas por Deus e, depois, unidas no bém não pode ter esta teologia sem a primeiro casamento de um homem com história que a traz à existência. uma mulher (Mt 19.4-6; Mc 19.6-9). Considere, por exemplo, algumas As referências de Paulo a Adão como áreas cruciais da teologia associadas o primeiro ser humano em Romanos com a historicidade verdadeira e literal 5.12-18, 1 Coríntios 11.7-9. 1 Corínde Adão. Primeira, a criação do homem tios 15.21-22 e 2 Timóteo 2.13-14 são, à imagem de inconfundivelmenDeus envolve a te, a respeito desta criação literal do pessoa histórica A teologia e a história primeiro ser huque foi criada à estão entretecidas de tal modo mano à imagem imagem de Deus que a historicidade de Adão é de Deus, o ser (1 Co 11.7), antes essencial à esta teologia humano que se da mulher, que protorna, por assim cedeu dele (1 Co dizer, a fonte de 11.8; 1 Tm 2.13), e todos os outros seres humanos que são, que pecou, trazendo o pecado e a morigualmente, à imagem de Deus. Gênete para todos os seus descendentes (Rm sis 5.3 faz a notável observação de que 5.12-18; 1 Co 15.21-22). Por último, Adão, aos 130 anos de idade, “gerou um Judas 14 se refere à pessoa histórica de filho à sua semelhança, conforme a sua Enoque, o sétimo depois de Adão, que imagem, e lhe chamou Sete” (Gn 5.3). A também seria entendido como histólinguagem neste versículo é, inconfunrico. Uma leitura atenta destes textos divelmente, a mesma de Gênesis 1.26. apoia a conclusão de que a própria BíEmbora a ordem das palavras “imagem” blia trata, repetidas vezes e sem exceção, e “semelhança” esteja invertida, pareAdão como uma pessoa histórica literal, ce que tudo que se diz antes a respeito o primeiro humano criado por Deus. de o homem ser criado à imagem e seEm segundo lugar, a historicidade melhança de Deus é dito aqui, quando de Adão é teologicamente importanSete é gerado à imagem e à semelhança te? Sim, ela é importante pela simples de Adão (Gn 5.3). O paralelismo desta razão de que a teologia conectada com linguagem nos leva a concluir que Sete Adão é teologia arraigada na história Revista fé pa r a h oje | 21
  • 24. nasceu à imagem de Deus (o que ele realmente era, cf. Gn 9.6) somente porque nasceu à imagem e à semelhança de Adão. Sem a conexão histórica e literal, de fato, biológica, entre Adão e Sete, o status de imagem de Deus em relação a Sete não existiria. E, se isso era verdade quanto a Sete, é verdade também quanto a nós. Não somente a nossa identidade biológica remonta ao Adão histórico, mas também o nosso estado como seres criados à imagem de Deus remonta ao primeiro homem, o primeiro ser humano histórico, Adão. Segunda, a queda do homem no pecado é um ensino teológico central fundamentado precisamente no que aconteceu na história. Paulo resumiu o argumento nestes termos: “Visto que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como em Adão todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo” (1 Co 15.21-22). Considere quatro observações: (1) Adão trouxe a morte ao mundo (15.21a). (2) Todos os humanos que procedem de Adão estão sujeitos à morte (15.22a). (3) A reversão do pecado e da morte de Adão acontece na realidade histórica do triunfo de Cristo por meio de sua ressurreição dos mortos (15.21a). (4) Todos os humanos unidos a Cristo serão vivificados (15.22b). A realidade histórica da ressurreição de Cristo, pela qual os que estão em Cristo são ressuscitados para viverem para sempre, é correspondente, nesta passagem, à realidade histórica do pecado de Adão, que trouxe pecado e morte para todos 22 | Revista f é pa r a h o je em Adão. A linha histórica não pode ser cortada sem eliminar a teologia correspondente. O pecado original em Adão e a vida eterna em Cristo estão ligados intrínseca e necessariamente à história. Terceira, nossa teologia de gênero e sexualidade está intrinsecamente ligada à criação do primeiro casal humano e à natureza da união conjugal designada por Deus para eles. Quando Jesus se referiu a Gênesis 2, e quando Paulo aludiu a aspectos de Gênesis 2 e 3, ambos entenderam Adão e Eva como pessoas históricas reais que exemplificavam a união vitalícia, em uma só carne, de macho e fêmea que Deus planejou e trouxe à existência. Por sua queda histórica, Adão e Eva apartaram-se do desígnio de Deus e produziram distorções pecaminosas tanto das relações de gênero como da sexualidade humana. Nossa teologia de gênero e sexualidade não é dissociada da história. Pelo contrário, o desígnio criado por Deus foi exemplificado, inicialmente, no primeiro homem e na primeira mulher originais. E tanto Jesus como Paulo se referiram a este desígnio trazido à existência por Deus e vivenciado realmente no Éden. De modo semelhante, as perversões do bom desígnio de Deus estão arraigadas na rebelião histórica contra Deus e contra seus caminhos que aconteceu na história, registrada para nós em Gênesis 3. Tanto neste como em outros assuntos, a teologia e a história estão entretecidas de tal modo que a historicidade de Adão é essencial à esta teologia. Esta teologia depende dessa história e não existiria sem ela
  • 25. O Homem e o Pecado A desobediência fatal de Adão e a obediência triunfante de Cristo John Piper Revista fé pa r a h oje | 23
  • 26. A sublime superioridade de Cristo é que ele não é apenas bem-sucedido em obedecer perfeitamente, mas o faz de tal forma que milhões de pessoas são consideradas justas pela sua obediência". "Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. Porque até ao regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há lei. Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram, à semelhança da transgressão de Adão, o qual prefigurava aquele que havia de vir. Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa, porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos. O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um pecou; porque o julgamento derivou 24 | Revista f é pa r a h o je de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça transcorre de muitas ofensas, para a justificação. Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo.  Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida. Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos. Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa, mas, onde abundou o pecado, superabundou a graça,  a fim de que, como o pecado reinou pela morte, as-
  • 27. sim também reinasse a graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor." (Romanos 5.12–21) Jesus é supremo Jesus Cristo é a pessoa mais importante no universo — não mais importante que Deus, o Pai, ou Deus, o Espírito. Com eles, Cristo é igual em dignidade, perfeição, sabedoria, justiça, amor e poder. Mas ele é mais importante que todas as outras pessoas — sejam anjos ou demônios; reis ou comandantes; cientistas ou artistas; filósofos ou atletas; músicos ou atores — aqueles que vivem agora ou que sempre viveram ou viverão continuamente. Jesus Cristo é supremo. Todas as coisas são para Jesus — até mesmo o mal Tudo o que existe — incluindo o mal — é ordenado por um Deus infinitamente santo e totalmente sábio para fazer a glória de Cristo brilhar com mais esplendor. O texto de Provérbios 16.4 diz: “O Senhor fez todas as coisas para determinados fins, até o perverso para o dia da calamidade”. Deus faz isso a seu próprio modo misterioso que preserva a responsabilidade do perverso e a impecabilidade de seu próprio coração. As coisas foram feitas por meio de Cristo e  para  Cristo (Colossenses 1.16). E isso inclui, Paulo afirma, os “tronos, soberanias, principados e potestades”, que foram derrotados por Cristo na cruz. Eles foram feitos “para o dia da calamidade”. E, naquele dia, o poder, a justiça, a ira e o amor de Cristo foram manifestos. Mais cedo ou mais tarde, toda rebelião contra Cristo resulta em ruína. O Deus que está presente Tenho a convicção de que o cristianismo não é meramente um conjunto de ideias, práticas e sentimentos designados para nosso bem-estar psicológico — seja ele designado por Deus ou pelo homem. Isso não é Cristianismo. Ele começa com a convicção de que Deus é uma realidade objetiva fora de nós mesmos. Não o tornamos o que ele é por pensar de certa forma com respeito a ele. Conforme Francis Schaefer disse: “O Deus Presente”. Não o criamos. Ele é quem nos cria. Não decidimos como ele será. Ele decide que seremos. Deus criou o universo e o universo tem o propósito que Deus concede a ele, não o propósito que nós conferimos a ele. Se lhe dermos um propósito diferente do divino, somos insensatos. E nossas vidas serão trágicas no fim. Cristianismo não é um jogo; não é uma terapia. Todas as suas doutrinas fluem do que Deus é e do que ele faz na história. Elas correspondem aos fatos rigorosos. O cristianismo é mais que fatos. Há a fé, a esperança e o amor. Mas eles não flutuam no ar; crescem como grandes cedros na rocha da verdade de Deus. Estou profundamente convencido pela Bíblia que nossa alegria, força e santidade eternas dependem da soliRevista fé pa r a h oje | 25
  • 28. dez dessa visão de mundo que é colocar fibra forte na espinha dorsal de sua fé. Tímidas visões de mundo produzem cristãos tímidos. E cristãos tímidos não sobreviverão aos dias à frente. Emocionalismo sem raiz que trata o cristianismo como uma opção terapêutica será eliminado nos Últimos Dias. Aqueles que permanecerão firmes serão os que construíram suas casas sobre a rocha da grande verdade objetiva com Jesus Cristo como a origem, o centro, e o propósito de tudo isso. A glória de Jesus planejada no pecado de A dão Nosso foco é no pecado extraordinário do primeiro homem, Adão, e como esse pecado preparou o cenário mais extraordinário: a contrainserção de Jesus Cristo. Vamos voltar para Romanos 5.12-21. Quero focar na glória de Cristo como o principal propósito que Deus teve em mente quando planejou e permitiu o pecado de Adão e com ele a queda de toda a humanidade no pecado. A Palavra diz: “Seja o que Deus permitir, ele o faz por uma razão”. E suas razões são sempre infinitamente sábias e propositais. Ele não tinha obrigação de permitir que a Queda ocorresse. Ele poderia tê-la impedido, assim como teria evitado a queda de Satanás. O fato de que Deus não a impediu significa que ele tem uma razão, um propósito para ela. E ele não faz seus planos enquanto acontece alguma atividade. Ele sabe o que é sábio, sempre sabe o que é sábio. 26 | Revista f é pa r a h o je Portanto, o pecado de Adão e a queda da raça humana com ele no pecado e miséria não encontraram Deus desprevenido e é parte de seu plano abrangente para manifestar a plenitude da glória de Jesus Cristo. Uma das formas mais claras de demonstrar isso na Bíblia — e não vamos entrar em detalhes sobre esse assunto aqui — é examinar aquelas passagens onde o sacrifício de Cristo que vence o pecado é exposto como estando na mente de Deus antes da criação do mundo. Por exemplo, em Apocalipse 13.8, João escreve sobre “aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo”. Assim, havia um livro antes da fundação do mundo chamado  O Livro da Vida do Cordeiro que foi morto. Antes que o mundo fosse criado, Deus já havia planejado que seu Filho seria morto como um cordeiro para salvar todos aqueles que estão escritos no livro. Poderíamos examinar muitos outros textos como estes (Ef 1.4-5; 2Tm 1.9; Tt 1.1-2; 1Pd 1.20) para perceber a visão bíblica de que os sofrimentos e a morte de Cristo pelo pecado não são planejados depois do pecado de Adão, mas antes. Portanto, quando o pecado de Adão acontece, Deus não é surpreendido por ele, mas já o tornou parte de seu plano, o plano de manifestar sua paciência, graça, justiça e ira maravilhosas na história da redenção, e, então, em um clímax, revelar a magnificência de seu Filho como o segundo Adão, superior por todos os modos ao primeiro Adão.
  • 29. O versículo 14 apresenta o modo como Paulo reflete o restante da passagem. Adão é chamado um “tipo” daquele que viria, isto é, um tipo de Cristo. Note o fato mais óbvio primeiramente: Cristo “viria”. Desde o princípio, Cristo era “aquele que viria”. Paulo mostra que Cristo não é uma ideia tardia. Paulo não diz que Cristo foi concebido como uma cópia de Adão. Ele afirma que Adão foi um tipo de Cristo. Deus tratou Adão de uma maneira que faria dele um tipo da forma que ele planejou para glorificar seu Filho. Um tipo é uma prefiguração de algo que viria mais tarde e seria semelhante ao tipo — somente superior. Por Jesus, “aquele que vem” conseguinte, Deus tratou com Adão de uma maneira que o faria um tipo de Assim, vamos examinar a forma Cristo. como Cristo é referido no versículo Agora, observe com mais rigor, 14 e vamos ler os versículos 12 e 13 exatamente onde, na fluência de seu para o contexto: “ 12  Portanto, assim pensamento, como por um Paulo decide disó homem enzer que Adão é trou o pecado no Não o tornamos o que um tipo de Crismundo, e pelo ele é por pensar de certa forma to. O versículo pecado, a morte, 14: “Entretanto, com respeito a ele. assim também a reinou a morte morte passou a desde Adão até todos os homens, Moisés, mesmo porque todos pesobre aqueles que não pecaram, à secaram.  13 Porque até ao regime da lei melhança da transgressão de Adão, o havia pecado no mundo, mas o pecaqual prefigurava aquele que havia de do não é levado em conta quando não 14 vir”. Ele decide nos dizer que Adão é há lei.    Entretanto, reinou a morte um tipo de Cristo no momento após desde Adão até Moisés, mesmo soafirmar que as pessoas que não pecabre aqueles que não pecaram, à seram como Adão o fez ainda sofrem melhança da transgressão de Adão, o a punição que Adão sofreu. Por que qual prefigurava aquele que havia de Paulo, justamente nesse ponto, declavir”. Há a referência a Cristo: “Aquera que Adão foi um tipo de Cristo? le que havia de vir”. Assim, examinamos Romanos 5.1221 desta vez tendo em mente que o pecado extraordinário de Adão não frustrou os propósitos de Deus de exaltar a Cristo, mas, pelo contrário, os serviu. Aqui está o modo como examinaremos esses versículos. Há cinco referências explícitas a Cristo. Uma delas estabelece o modo como Paulo pensa no que se refere a Cristo e Adão. E o restante mostra como Cristo é superior a Adão. Dois desses versículos são tão similares que os uniremos. Significa que examinaremos três aspectos da superioridade de Cristo. Revista fé pa r a h oje | 27
  • 30. Jesus, nosso representante O argumento de Paulo demonstra a essência de como Cristo e Adão são semelhantes e diferentes. Eis o paralelo: as pessoas cujas transgressões não foram iguais as de Adão morreram como Adão. Por quê? Porque estavam ligados a Adão. Ele foi o representante da humanidade e seu pecado é considerado deles devido à conexão deles com Adão. Essa é a essência do porquê Adão é chamado um tipo de Cristo — pois nossa obediência não é igual à obediência de Cristo e, contudo, temos vida eterna com Cristo. Por quê? Porque somos unidos a Cristo pela fé. Ele é o representante da nova humanidade e sua justiça é considerada nossa justiça pela nossa união com ele (Confira Romanos 6.5). Há um paralelo inferido em chamar Adão de um tipo de Cristo: Adão > pecado de Adão > humanidade condenada nele > morte eterna Cristo > justiça de Cristo > nova humanidade justificada nele > vida eterna O restante da passagem revela o quanto Cristo e sua obra redentora são superiores a Adão e sua obra destrutiva. Tenha em mente o que disse no princípio. O que vemos aqui é a revelação das realidades que definem o mundo onde toda pessoa neste planeta vive. Todos neste planeta estão 28 | Revista f é pa r a h o je inclusos no texto porque Adão foi o pai de todos. Portanto, toda pessoa que você encontrar na América ou em qualquer país de qualquer etnia se defronta com o que esse texto fala. Morte em Adão ou vida em Cristo. É um texto universal. Não perca isso de vista. Ele é a realidade definidora para cada pessoa que você sempre encontrará. Tímidas visões de mundo produzem cristãos tímidos. Essa não é uma visão de mundo tímida. Ela se estende por toda a história e por toda a terra. Ela influencia cada pessoa no mundo e a cada manchete na internet. A celebração da superioridade de J esus Vamos agora examinar três modos como Paulo celebra a superioridade de Cristo e a obra dele sobre Adão e sua obra. Eles podem ser resumidos sob três frases: 1) a abundância da graça, 2) a perfeição da obediência, e 3) o reino da vida. 1) A abundância da graça Primeiro, o versículo 15 e a abundância da graça. “Todavia, não é assim o dom gratuito [a saber, o dom gratuito da justiça v. 17] como a ofensa, porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos”. O ponto aqui é que a graça de Deus é mais poderosa que a ofensa de Adão. É isso que as palavras “muito mais” significam: “muito mais a graça de Deus… foram abundantes sobre muitos”. Se a ofensa do homem trou-
  • 31. xe morte, muito mais a graça de Deus trará vida. Mas Paulo é mais específico que isso. A graça de Deus é especificamente “a graça de um só homem, Jesus Cristo”. “Muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos”. Essas graças não são duas graças diferentes. “A graça de um só homem, Jesus Cristo” é a encarnação da graça de Deus. Essa é a forma com a qual Paulo fala sobre ela, por exemplo em Tito 2.11: “A graça de Deus se manifestou [a saber em Jesus] salvadora...”. E em 2 Timóteo 1.9: “Sua própria... graça, que nos foi dada em Cristo Jesus”. Por conseguinte, a graça que está em Jesus é a graça de Deus. Essa graça é a soberana graça. Ela conquista tudo em seu caminho. Veremos em um momento que ela tem o poder do rei do universo. É a graça imperial. Essa é a primeira celebração da superioridade de Cristo sobre Adão. Quando a ofensa de um só homem, Adão, e a graça de um só homem, Jesus Cristo, se encontram, Adão e a ofensa perdem. Cristo e a graça vencem. São as boas-novas para aqueles que pertencem a Cristo. 2) A perfeição da obediência Segundo, Paulo celebra a forma pela qual a graça de Cristo vence a ofensa de Adão e a morte, a saber, a perfeição da obediência de Cristo. O versículo 19: “Porque, como, pela desobediência [a saber, de Adão] de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência [isto é, a de Cristo] de um só, muitos se tornarão justos”. Assim, a graça de um só homem, Jesus Cristo, o impede de pecar — ela o mantém obediente até à morte e morte de cruz (Fp 2.8) — de modo que ele oferece uma obediência perfeita e completa ao Pai em nome daqueles que estão unidos com ele pela fé. Adão fracassou em sua obediência. Cristo procedeu perfeitamente. Adão foi a fonte de pecado e morte. Cristo foi a fonte de obediência e vida. Cristo é como Adão, que foi um tipo de Cristo — ambos são representantes de uma velha e uma nova humanidade. Deus imputa o fracasso de Adão à sua humanidade e o sucesso de Cristo à sua humanidade, devido a como essas duas humanidades estão unidas às suas respectivas cabeças. A sublime superioridade de Cristo é que ele não é apenas bem-sucedido em obedecer perfeitamente, mas o faz de tal forma que milhões de pessoas são consideradas justas pela sua obediência. Você está unido somente a Adão? Você está unido à parte da primeira humanidade destinada à morte? Ou você também está unido a Cristo e à parte da nova humanidade destinada à vida eterna? 3) O reino da vida Terceiro, Paulo celebra não apenas a graça abundante de Cristo e a obediência perfeita de Cristo, mas finalmente, o reino da vida. A graça conduz à obediência de Cristo rumo ao triunfo da vida eterna. O versículo 21: “A fim de que, como o pecado reinou pela morte, assim também reinasse a Revista fé pa r a h oje | 29
  • 32. graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”. A graça reina por meio da justiça (isto é, mediante a justiça perfeita de Cristo) para o grande clímax da vida eterna — e tudo isso é “mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”. Ou, uma vez mais no versículo 17, a mesma mensagem: “Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”. O mesmo padrão: graça por meio do dom gratuito de justiça conduz ao triunfo da vida e tudo isso acontece mediante Jesus Cristo. Mencionei anteriormente que a graça de Deus em Cristo, a que Paulo faz alusão nesses versículos, é a soberana graça. Eis o termo onde se percebe esse fato, a saber, na palavra reinar. A morte tem um tipo de soberania sobre o homem e reina sobre tudo. Todos morrem. Mas a graça vence o pecado e a morte. Ela reina em vida mesmo sobre aqueles que outrora estavam mortos. É graça soberana. A obediência extraordinária de Jesus Esta é a grande glória de Cristo — ele ultrapassa imensamente em excelência o primeiro Adão. O pecado extraordinário de Adão não é tão 30 | Revista f é pa r a h o je maior quanto a graça e a obediência extraordinárias de Cristo e o dom da vida eterna. De fato, o plano de Deus, desde o princípio, em sua justiça perfeita, foi que Adão, como o representante da humanidade, seria um tipo de Cristo como o representante de uma nova humanidade. Seu plano foi por comparação e contraste que a glória de Cristo brilharia com mais esplendor. O versículo 17 expressa o assunto para você de uma forma muito pessoal e muito urgente. Onde você se situa? “Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”. Note as palavras muito cuidadosamente e pessoalmente: “Os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça”. Palavras preciosas para pecadores Estas são palavras preciosas para pecadores: a graça é gratuita, o dom é gratuito, a justiça de Cristo é gratuita. Vocês receberão tudo isso como a esperança e o tesouro de suas vidas? Se receberem, vocês “reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”. Recebam isso agora. Testemunhem isso no batismo. E tornem-se uma parte viva do povo de Cristo
  • 33. A Justificação Ainda É Importante? Michael S. Horton Revista fé pa r a h oje | 31
  • 34. A doutrina da justificação foi definida como o 'artigo pelo qual a igreja se mantém de pé ou cai'”. Há muito tempo, o nome evangélico identificava aqueles que eram comprometidos não somente com o cristianismo histórico, mas também com a doutrina da justificação somente pela graça por meio da fé somente em Cristo. Em nossos dias, porém, isso pode não ser verdade. Cada vez mais, a erudição evangélica é desafiada por tendências nos estudos bíblicos (em especial, a Nova Perspectiva sobre Paulo) para abandonarem o entendimento da justificação sustentado pela Reforma. Reconciliações recentes (como a Declaração Conjunta de Luteranos e Católicos Romanos e “Evangélicos e Católicos Juntos”) têm revisado e relativizado esta doutrina fundamental.1 1  Ver Michael Horton, “What’s All the Fuss 32 | Revista f é pa r a h o je Admiravelmente, em um novo livro que contém ensaios sobre a justificação escritos por protestantes de igrejas históricas (luteranos e reformados) e por católicos romanos, os protestantes rejeitam a doutrina da Reforma (por apelarem à Nova Perspectiva sobre Paulo), ao passo que Joseph Fitzmeyer, proeminente erudito católico romano de Novo Testamento, demonstra a exatidão técnica da exegese da Reforma quanto às passagens importantes. Mark Noll, o grande erudito evangélico, em seu livro Is The Reformation Over? (A Reforma Acabou?) parece falar em nome de muitos About?: The Status of the Justification Debate”, Modern Reformation 11, no. 2 (March/ April 2002), pp. 17-21.
  • 35. protestantes conservadores quando responde sim. O criticismo franco da doutrina da justificação conforme definida em nossas confissões e catecismos reformados se tornou comum até em igrejas conservadoras. Embora as cortes eclesiásticas destas denominações irmãs tenham exibido solidariedade estimulante em sustentar a posição confessional e instaurar processo contra os ministros que se opõem a ela, é trágico que controvérsias sobre esta doutrina cardeal surjam em nossos círculos. A maioria das pessoas nas igrejas não estão familiarizadas com a doutrina da justificação. Frequentemente, ela não é uma parte da dieta de pregação e da vida da igreja, nem um tema predominante na subcultura cristã. Ou com rigor austero, ou com boas sugestões para o viver melhor, “fundamentalistas” e “progressistas” sufocam, igualmente, o evangelho em moralismo, por meio de exortações constantes à transformação social e/ou pessoal que mantém as ovelhas olhando para si mesmas e não para fora de si mesmas, para Cristo. Mesmo em muitas igrejas formalmente comprometidas com o ensino da Reforma, pessoas podem achar a doutrina da justificação na parte de trás de seu hinário (na seção de confissões), mas ela é levada realmente a sério no ensino, na pregação, na adoração e na vida da congregação? Em média, o artigo de destaque mais publicado em revistas ou em best-sellers cristãos diz respeito a “boas obras” – tendências em espiritualidade, ativismo social, crescimento de igreja e discipulado. No entanto, é muitíssimo claro que a justificação permanece fora de cogitação. Quando a justificação não é abertamente rejeitada, ela é frequentemente ignorada. Talvez o perdão de pecados e a justificação são apropriados para “ser salvo”, mas depois vem a essência do negócio – o viver cristão, como se pudesse haver qualquer santidade de vida genuína que não resulte de uma confiança perpétua em que “agora... nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). É impossível especificarmos todas as razões para tal atitude em relação a esta doutrina que constitui o âmago do próprio evangelho. No entanto, neste artigo comentarei duas das principais fontes. Cultura Cristã como Moralismo de Autoajuda Embora os reformadores tenham dito isso de maneiras diferentes, foi o teólogo reformado J. H. Alsted que, no início do século XVII, identificou a doutrina da justificação como o “artigo pelo qual a igreja se mantém de pé ou cai”. Contudo, no século seguinte, denominações protestantes que haviam selado esta confissão com o sangue de mártires foram sujeitando-a, gradualmente, a várias formas de moralismo que predominavam na época do Iluminismo – e, em muitos casos, piores do que as distorções que haviam provocado a Reforma. Até nos círculos pietistas, onde a fé vital em Cristo era Revista fé pa r a h oje | 33
  • 36. preservada, a balança se inclinou cada vez mais em favor de obediência e piedade subjetivas, e, assim, a justificação foi subordinada à santificação. Quando o arminianismo ganhou forças, um novo legalismo (identificado pelos círculos reformados como “neonomianismo”) entrou nas igrejas comprometido formalmente com a doutrina evangélica e produziu uma suspeita da pregação de eleição e justificação como motivações para o “antinomianismo”. Depois de ler a obra A Serious Call to a Devout and Holy Life (Uma Chamada Solene a uma Vida Piedosa e Santa), de William Law, John Wesley se convenceu de que o calvinismo remanescente na Igreja da Inglaterra impedia um avivamento genuíno da piedade interior e o discipulado comprometido. Embora Wesley viesse, por fim, a abraçar a doutrina da justificação, ele ficou preocupado com que a justificação levaria à licenciosidade, se não fosse subordinada à santificação. Nas colônias americanas, o Grande Despertamento, sob a liderança de Jonathan Edwards e George Whitefield, proclamaram as boas novas da graça justificadora de Deus em Cristo. Entretanto, na época do Segundo Grande Despertamento, uma teologia contrária se tornou a teologia operante de muitos grupos protestantes na nova república. A igreja é uma sociedade de reformadores morais, disse o seu principal evangelista, Charles Finney. Se o calvinismo era verdade, como poderia haver qualquer transformação genuína da sociedade? 34 | Revista f é pa r a h o je Os críticos de Finney o acusaram de pelagianismo – a antiga heresia que ensinava, em essência, que não nascemos inerentemente pecaminosos e que somos salvos por seguir o exemplo moral de Cristo. Indo além dos erros da Igreja de Roma, a Teologia Sistemática de Finney negava explicitamente o pecado original e insistia em que o poder da regeneração está nas mãos do próprio pecador, rejeitava qualquer noção de uma expiação vicária, em favor da influência moral e de teorias de governo morais, e considerava a doutrina da justificação pela justiça imputada como “impossível e absurda”.2 No que diz respeito ao complexo de doutrinas que ele associava com o calvinismo (incluindo o pecado original, a expiação vicária, a justificação e o caráter sobrenatural do novo nascimento), Finney concluiu: “Nenhuma doutrina é mais perigosa do que esta para a prosperidade da igreja, e nada é mais absurdo”. “Um avivamento não é um milagre”, ele declarou. De fato, “Não há nada na religião que esteja além dos poderes comuns da natureza”.3 Ache os métodos mais proveitosos (“estímulos”, ele os chamou), e haverá conversão. “Um avivamento declinará e cessará”, Finney alertou, “se os cristãos não forem frequentemente reconvertidos”.4 No final de seu ministério, quando Finney considerou a situação de muitos que ha2  Charles G. Finney, Systematic Theology (Minneapolis: Bethany, 1976), p. 320. 3  Charles G. Finney, Revivals of Religion (Old Tappan, NJ: Revell, n. d.), pp. 4-5. 4  Finney, Revivals of Religion, p. 321. Ênfase no original.
  • 37. viam experimentado seus avivamentos, ele temia que a fome interminável por experiências cada vez maiores pudesse levar à exaustão espiritual.5 De fato, suas preocupações eram justificáveis. A região em que predominaram os avivamentos de Finney é agora referida pelo historiadores como o “distrito queimado”, um canteiro tanto de desilusão como de proliferação de várias seitas.6 Desde então, o evangelicalismo tem se caracterizado por uma sucessão de movimentos entusiastas aclamados como “avivamentos”, que se extinguem tão rapidamente quanto se espalham. Paulo poderia dizer hoje sobre o protestantismo americano o que ele disse sobre os seus irmãos segundo a carne: Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê (Rm 10.3-4). Há duas religiões, disse Paulo: “a justiça decorrente das obras” e “a justiça decorrente da fé”. Enquanto a primeira segue fervorosamente seus esquemas de autossalvação, como que tentando trazer Cristo para baixo ou levantando -o dentre os mortos, a segunda apenas 5  Ver Keith J. Hardman, Charles Grandison Finney: Revivalist and Reformer (Grand Rapids: baker, 1990) pp. 380, 394. 6  Ver, por exemplo, Whitney R. Cross, The Burned Over District: The Social and Intellectual History of Enthusiastic Religion in Western New York, 1800-1850 (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1982). recebe a palavra de Cristo e descansa somente nela (vv. 5-8). “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?... E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (vv. 14, 17). Não parece incorreto considerar as alegações teológicas de Finney como pelagianas. E sua influência permanece conosco hoje, tanto no protestantismo ecumênico como no evangélico. Dietrich Bonhoeffer viu isto claramente em sua visita aos Estados Unidos, ao descrever o cristianismo americano como “protestantismo sem a Reforma”.7 Em vez da influência de um testemunho verdadeiramente evangélico, foi a propagação rápida do avivalismo arminiano, especialmente no próspero Oeste, que se mostrou mais eficaz em produzir “resultados”. A doutrina em geral, e o calvinismo em específico, impediu o surgimento de uma América cristã. “Obras e não credos” têm uma linhagem extensa na história do movimento. Em geral, os americanos são o tipo de pessoas “prospere por seus próprios esforços”. Isto é o que, em parte, justifica a enorme validade dos negócios e da indústria americana. Mas também se tornou uma religião. Aqueles que saíram da miséria para a riqueza difi7  Dietrich Bonhoeffer, “Protestantism without the Reformation, em No Rusty Swords: Letters, Lectures and Notes, 1928-1936, ed. Edwin H. Robertson, trans. Edwin H. Robertson e John Bowden (London: Collins, 1965), pp. 92-118. Revista fé pa r a h oje | 35
  • 38. cilmente aceitarão o fato de que, pelo menos diante de Deus, eram pecadores desamparados que precisavam ser resgatados. No contexto contemporâneo, o protestantismo americano, da esquerda ou da direita, está comprometido com o legado de Finney, quer saiba, quer não. Isso pode ser reconhecido no “evangelho social” da esquerda e nas lamentações moralistas da direita; no pragmatismo de “como” do movimento de crescimento de igreja e na vasta literatura e pregação de autoajuda que se tornou a dieta da subcultura cristã; e na obsessão terapêutica por espiritualidade interior e ativismo social que pode ser vista no movimento Igreja Emergente. Mesmo quando o evangelho é formalmente afirmado, ele se torna um instrumento para motivar a vida pessoal e pública (salvação por obras), e não um anúncio de que a ira justa de Deus foi satisfeita e de que seu favor imerecido foi dado gratuitamente em Jesus Cristo. Digo tudo isto com profunda tristeza por ter de dizê-lo, porque é a pior coisa que pode ser dita sobre uma igreja. Paulo falou severamente com os coríntios por causa de sua imoralidade, mas nunca questionou se eles eram realmente uma igreja. Mas, quando a igreja da Galácia estava confundindo o evangelho da justificação gratuita de Deus por meio da fé, Paulo os advertiu de que estavam em risco de serem excluídos – excomungados, “anátemas”. E a preocupação que expressei não se limita a alguns poucos calvinistas e 36 | Revista f é pa r a h o je luteranos petulantes. De acordo com o bispo William Willimon, da Igreja Metodista Unida, “a autossalvação é o alvo de muito da nossa pregação”.8 Willimon percebe que muito da pregação contemporânea presume que a conversão é algo que nós produzimos por meio de nossas próprias palavras e ordenanças. “Neste respeito, somos herdeiros de Charles G. Finney”, o qual pensávamos que a conversão não é um milagre, e sim um “resultado puramente filosófico [ou seja, científico] do uso correto dos meios constituídos”. Esquecemos que houve um tempo em que os evangelistas eram obrigados a defender suas “novas medidas” de avivamentos, que houve um tempo em que os pregadores tinham de defender sua preocupação com a reação dos ouvintes aos seus detratores calvinistas, os quais pensavam que o evangelho era mais importante do que seus ouvintes. Estou aqui argumentando que avivamentos são miraculosos, que o evangelho é tão estranho, tão contrário às nossas inclinações naturais e às enfatuações de nossa cultura, que nada menos do que um milagre é exigido a fim de que haja um verdadeiro ouvir. Minha posição é, portanto, mais próxima da posição do calvinista Jonathan Edwards do que da posição de Finney.9 8  William H. Willimon, The Intrusive Word: Preaching to the Unbaptized (Eugene, Ore.: Wipf & Stock, 2002), p. 53. 9  Willimon, p. 20.
  • 39. Apesar disso, “o futuro homilético, infelizmente, está com Finney e não com Edwards”, levando ao guru de marketing evangélico George Barna, que escreve: lística que conheço é um esforço para aprofundar pessoas cada vez mais em sua subjetividade, e não uma tentativa de resgatá-las de tal subjetividade”.11 Nossa verdadeira necessidade, sintamos ou não, é que distorcemos sisteJesus Cristo era um especialista maticamente e ignoramos a verdade. em comunicação. Ele comunicou Esta é a razão por que precisamos de sua mensagem em diversas ma“uma palavra externa”.12 “Portanto, neiras e com resultados que seria em um sentido, não descobrimos o um crédito para as agências moevangelho; ele nos descobre. ‘Não fosdernas de marketing e propagantes vós que me escolhestes a mim; pelo da. Ele promoveu seu produto da contrário, eu vos escolhi a vós outros’ maneira mais eficiente possível: ( Jo 15.16).”13 “A história é euangelion, por comunicá-lo com as “melhores boas novas, porque ela é a respeito da perspectivas”... Ele entendia comgraça. Mas é também novas porque pletamente o não é conheciseu produto, mento comum, desenvolveu não é o que nove A fé e a prática evangélica um incompaentre dez ameriproclamadas nas Escrituras é rável sistema canos já sabem. de distribuiO evangelho não sempre não natural para nós. ção, fomentou vem naturalmenum método de te. Ele vem como promoção que Jesus.”14 penetrou cada continente e ofeA fé e a prática evangélica proclareceu seu produto a um preço que madas nas Escrituras é sempre não está ao alcance de todo consumidor natural para nós. Nascidos em pe(sem tornar o produto tão acessível cado, corrompidos em nós mesmos, 10 a ponto de perder seu valor). supomos instintivamente que somos pessoas boas que poderiam ser melhores, se tivéssemos um bom plano, A pergunta que surge naturalmenambiente e exemplos. Quando visite diante de tais observações é esta: tamos pessoas em seu leito de morte, É possível dizer que Jesus fez alguma ficamos desconcertados quando encoisa nova? “Infelizmente”, diz Willicontramos velhos membros de igrejas mon, “a maioria da pregação evange10  Willimon, p. 21, citando George Barna, Marketing the Church: What They Never Taught You about Church Growth (Colorado Springs, NavPress, 1988), p. 50. 11  12  13  14  Willimon, p. 38. Willimon, p. 38. Willimon, p. 43. Willimon, p. 52. Revista fé pa r a h oje | 37
  • 40. de confissão reformada expressando sua esperança de terem sido suficientemente bons para que Deus os aceite. Nascemos pelagianos, confiando em nós mesmos e não em Deus; e esta é a nossa condição padrão mesmo como cristãos. Essa é a razão por que nunca admitimos o evangelho; ele tem de ser a dieta principal não somente para o começo da peregrinação cristã, mas também para o meio e para o fim. Quando as coisas se deterioram em nossa fé pessoal ou coletiva, a direção é sempre a mesma: caímos de novo na justiça de obras. Períodos de vitalidade e saúde genuínas são sempre a consequência de redescobrirmos o evangelho da graça; épocas de declínio estão sempre associados com o eclipse do evangelho de um resgate totalmente divino, na pessoa e obra de Jesus Cristo. Visto que Satanás perdeu a guerra no Gólgota e no sepulcro, ele tem voltado os seus ataques para a fé dos crentes no evangelho e para o progresso do evangelho até aos confins da terra. Ele conhece o nosso ponto fraco e o explora. Se não pode destruir a igreja por perseguição, Satanás a enfraquecerá por meio de heresia. E o “pelagianismo” – a autossalvação em todas as suas formas – é seu melhor best-seller. Depois de realizar, com sua equipe, inúmeros estudos nos últimos anos, o sociólogo Christian Smith, da Universidade da Carolina do Norte, concluiu que a religião da juventude americana pode ser caracterizada como “deísmo moralista e terapêuti38 | Revista f é pa r a h o je co”. Quando o entrevistamos recentemente para o ministério White Horse Inn e para a revista Modern Reformation, ele disse que não há nenhuma diferença entre os que não frequentam a igreja e os jovens criados em igrejas evangélicas hoje. Quem Precisa da Justificação? Deus justifica o ímpio. Isso é muito radical. É mais radical do que a afirmação de que Deus cura o moralmente enfermo e dá graça àqueles que estão dispostos a cooperar para isso ou que ele recompensa aqueles que tentam fazer o seu melhor. Nem precisamos negar abertamente a justificação. Ela é relevante apenas quando paramos de fazer a pergunta mais importante. Você tem problemas no casamento e com os filhos? Com certeza. Não vive de acordo com suas expectativas? Todos não vivem assim também? Não está conseguindo o máximo da vida e precisa de algum conselho legal? Sou todo ouvidos. Mas não nos importamos com o fato de que somos “pecadores nas mãos de um Deus irado”, se nunca nos deparamos com um Deus santo. E, se não sentimos uma grande necessidade, não clamamos por um grande Salvador. Os católicos romanos e os protestantes costumavam debater sobre como os nascidos em pecado original são salvos pela graça. No entanto, essas categorias teológicas estão sendo substituídas, entre os divisores católico/protestante e liberal/evangélico,
  • 41. por categorias terapêuticas, pragmáticas e consumistas que parecem tornar irrelevante o próprio discurso sobre o evangelho. A pergunta “Como posso ser aceito por um Deus santo?” é substituída por uma busca por autorrealização, autorrespeito, autoestima e esforço próprio. E há abundância de pregadores que fomentarão o nosso narcisismo, tratando de nossa ferida como se não fosse tão grave e dizendonos como podemos ter nossa melhor vida agora mesmo. A justificação se torna um símbolo vazio quando Deus não é mais um problema para a humanidade, e sim um ícone controlável ou de uma transcendência irrelevante ou de uma fonte imanente e proveitosa de bem-estar terapêutico e causas morais. Não sendo mais perdidos, agora somos mais semelhantes a vítimas disfuncionais, mas bem intencionadas, que apenas precisam de “capacitação” e melhores instruções. Nossa experiência é remota daquela dos israelitas reunidos ao pé do monte Sinai, quando ouviram a terrível voz de Deus e imploraram por um mediador. Quando a santidade de Deus é obscurecida, a condição pecaminosa do homem é ajustada, primeiramente, ao nível de pecados – ou seja, a atos ou hábitos específicos que exigem repreensão e melhora. Cansados de intimidações que realmente trivializam a condição pecaminosa, a próxima geração adota uma abordagem mais positiva, oferecendo “dicas para viver” que tornarão a vida mais feliz, mais saudável e mais realizadora. Por fim, a dimensão vertical é quase perdida. O que torna o pecado pecaminoso é o fato de que ele é, antes de tudo, uma ofensa contra Deus (Sl 51.3-5). Todavia, o resultado dessa mentalidade que obscurece a santidade de Deus, é que não é mais concebível que Deus tenha se tornado carne para sofrer a sua própria ira. O propósito da cruz é levar-nos ao arrependimento por mostrar-nos quanto Deus nos ama (a teoria de influência moral da expiação), para demonstrar a justiça de Deus (a teoria de governo moral) ou para libertar os oprimidos de estruturas sociais injustas (Christus Victor). Mas uma coisa que a cruz não pode ser é o meio pelo qual somos “justificados por seu [de Cristo] sangue”, “somos por ele salvos da ira” (Rm 5.9). De fato, o teólogo luterano George Lindbeck explorou recentemente a relação inseparável entre a justificação e a expiação, concluindo que, mesmo onde aquela é formalmente afirmada, a ampla falta de interesse em nossa rejeição franca da linguagem tradicional da expiação deixa-a sem especificidade suficiente. Pelo menos na prática, a visão de salvação de Abelardo, a salvação por seguir o exemplo de Cristo (e a cruz como a demonstração do amor de Deus que motiva o arrependimento) agora parece ter uma distinção clara em relação à teoria de satisfação de Anselmo sobre a expiação. “A expiação não está no topo das agendas contemporâneas de católicos ou de protestantes”, Lindbeck conjectura. “Mais especificamente, as versões peRevista fé pa r a h oje | 39
  • 42. nal e vicária da teoria de satisfação de religiosa e, por conseguinte, era mais Anselmo que predominaram entre o ofensiva, seus críticos pensavam, do que povo durante centenas de anos estão a justiça própria basicamente moral dos desaparecendo.15 Isso é tão verdadeiliberais abelardianos. Avançando em nossa história: os liberais cessaram proro para os protestantes evangélicos 16 gressivamente de ser abelardianos.17 quanto para os protestantes liberais. Aqueles que continuaram a usar “Nossa cultura terapêutica de sena linguagem sola fide presumiam estar tir-nos cada vez melhor é contrária à em concordância com os reformadores, pregação da cruz” e nossa “sociedade não importando quanto; mas, sob a consumista” fez da doutrina um pária.18 influência do pietismo e do avivalismo “Uma característica mais desconcernorteado por conversões, eles transfortante deste desenvolvimento, que tem maram a fé que salva em uma boa obra afetado igrejas professamente confesmeritória do livre-arbítrio, uma decisionais, é o silêncio a seu respeito. Tem são voluntária de crer que Cristo sofreu havido poucos protestos audíveis.”19 a punição do pecado na cruz em meu Até teologias mais contemporâneas a favor, em favor de cada pessoa indivirespeito da cruz promovem o padrão dualmente. Embora pareça muito imde Jesus como Modelo, mas a própria provável, devido justificação é raraà metáfora usada mente descrita na Bíblia (e à pasem harmonia com sagem joanina da o padrão da ReDeus justifica o ímpio. qual ela vem), toforma, mesmo Isso é muito radical. dos são, portanto, por evangélicos capazes de “nasconser vadores, cer de novo”, se Lindbeck sugere. apenas tentarem A maioria deles, o máximo que puderem. Assim, com como já indicamos, são conversionistas a perda do entendimento da Reforma apegados a versões arminianas da ordo quanto à fé que justifica como um dom salutis, que estão muito mais distantes do próprio Deus, a teoria de expiação da teologia da Reforma do que esteve sustentada por Anselmo se tornou culo Concílio de Trento.20 “Onde a cruz turalmente associada com uma justiça estava, agora há um vácuo.”21 Hoje, o própria que era tanto moral quanto evangelicalismo parece mais com Erasmo do que com Lutero. 15  George Lindbeck. “Justification and Atonement: An Ecumenical Trajectory”, em Joseph A. Burgess e Marc Kolden, eds., By Faith Alone: Essays on Justification in Honor of Gerhard O. Forde (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), p. 205. 16  Lindbeck, pp. 205, 206. 40 | Revista f é pa r a h o je 17  18  19  20  21  Lindbeck, pp. 207. Lindbeck, pp. 207. Lindbeck, pp. 208. Lindbeck, pp. 209. Lindbeck, pp. 211.
  • 43. A Justificação Promove a Paixão pela Renovação Genuína santificação, bem como o vínculo entre a fé e a santificação.22 Hoje, um número cada vez maior de teólogos e líderes evangélicos repetem a acusação de Pelágio contra Agostinho, de Roma contra os reformadores e do liberalismo protestante contra o evangelicalismo, ou seja, nas palavras de Albert Schweitzer: “Não há lugar para ética na doutrina da justificação sustentada pela Reforma”. Seguindo teólogos evangélicos como Stanley Grenz, Brian McLaren e outros líderes da “Igreja Emergente” desafiam explicitamente sola fide como um obstáculo ao principal ponto do cristianismo: seguir o exemplo de Jesus. Embora o viver autêntico traga valor ao evangelho, o seguir o exemplo de Jesus está se tornando cada vez mais o evangelho. A observação de G. C. Berkouwer ainda é relevante em nossos próprios dias, quando ele escreveu que “o problema da renovação de vida é atrair a atenção dos moralistas”. Paulo relaciona tudo, inclusive a santificação, os problemas de ética e harmonia eclesiástica, à cruz e à ressurreição de Cristo. Outro dia, um pastor me contou que alguns de seus colegas expressaram a preocupação de que pregar muito a graça, especialmente a justificação, era perigoso – se não fosse logo acompanhada por advertências à obediência. Conhecendo bem este pastor, fiquei surpreso com o fato de que estivessem apontando para ele esta preocupação. Afinal de contas, ele é correto em sua teologia. Afirma e prega o terceiro uso da lei (como um guia para a obediência cristã). Às vezes, esquecemos que Paulo foi acusado de ser antinomiano – ou seja, de convidar as pessoas a pecar para que a graça fosse mais abundante. Mas, em vez de evitar a doutrina da justificação (Rm 3-5) que ele sabia haveria de provocar essa questão de novo, o apóstolo explicou como o evangelho é a resposta para a tirania do pecado, bem como da sua condenação (Rm 6). O evangelho da justificação gratuita é a fonte de santificação genuína e não seu inimigo. No entanto, isso é contrário ao que o nosso senso comum sugeriria. É a lógica do evangelho e não a lógica de justiça de obras. Como uma cultura nativa, o evangelicalismo americano é ativista. Somos acostumados a ser produtores e Entre inúmeras forças caóticas e desmoralizantes, está ressoando, como pela última vez, o clamor por ajuda e ensino, pela reorganização de um mundo desordenado. A terapia prescrita talvez varie, a chamada por rearmamento moral e espiritual é uniformemente insistente... Estas são as questões que temos de responder. Pois, implícita nelas, está a intenção de destruir a conexão entre a justificação e a 22  G. C. Berkouwer, Studies in Dogmatics: Faith and Sanctification (Grand Rapids: Eerdmans, 1952), pp. 11-12. Revista fé pa r a h oje | 41
  • 44. consumidores, mas não recebedores – pelo menos, pecadores desamparados e ímpios que têm de reconhecer que sua salvação é um dom gratuito, independente de sua decisão e esforço (Rm 9.16). Obcecados com o que acontece conosco, a espiritualidade evangélica tem por muito tempo – pelo menos na prática – obscurecido as boas novas daquilo que aconteceu de uma vez por todas fora de nós. A justificação pode ser relevante para evitar a ira de Deus (pelo menos onde ela ainda é afirmada), mas ela é realmente tão importante para a vida cristã? Não seria mais proveitoso e prático aprender passos que conduzem à vitória sobre o pecado em nossa vida e nossa cultura? No livro Revisioning Evangelical Theology (Revisando a Teologia Evangélica), Stanley Grenz argumenta que o evangelicalismo é mais uma “espiritualidade” do que uma “teologia”, mais interessado na piedade individual do que em credos, confissões e liturgias.23 A experiência dá origem a – na verdade, ele diz, “determina” – doutrina, e não vice-versa.24 O principal ponto da Bíblia é como as histórias podem ser usadas no viver diário – por isso, a ênfase em devoções diárias. “Embora alguns evangélicos pertençam a tradições eclesiásticas que entendem, em algum sentido, a igreja como um despenseiro de graça, em geral vemos nossas con23  Stanley Grenz, Revisioning Evangelical Theology: A Fresh Agenda for the 21st Century (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 1993), pp. 17, 31 e em todo o volume. 24  Grenz, pp. 30, 34. 42 | Revista f é pa r a h o je gregações principalmente como uma comunhão crentes.”25 Compartilhamos nossas jornadas (nosso “testemunho”) de transformação pessoal.26 Portanto, “uma mudança fundamental de autoconsciência pode estar em andamento” no evangelicalismo, “uma mudança de identidade baseada em credo para uma identidade baseada em espiritualidade” que é mais semelhante ao misticismo medieval do que à ortodoxia protestante.27 Consequentemente, a espiritualidade é interior e quietista”,28 preocupada com combater “a natureza inferior e o mundo”,29 por meio de “um compromisso pessoal que se torna o foco crucial das afeições do crente”.30 Portanto, a origem da fé não é atribuída a um evangelho externo, mas surge de uma experiência interior. “Visto que a espiritualidade é gerada a partir do interior do indivíduo, motivação interior é crucial” – mais importante, de fato, do que “grandes afirmações teológicas”.31 A vida espiritual é, antes de tudo, a imitação de Cristo... Em geral, evitamos rituais religiosos. Rejeitamos a aderência servil a ritos, mas o fazer o que Jesus faria é o nosso conceito de verdadeiro discipulado. Consequentemente, a maioria dos evangélicos não aceitam o sacramentalismo de muitas igre25  26  27  28  29  30  31  Grenz, p. 32. Grenz, p. 33. Grenz, pp. 38, 41. Grenz, pp. 41-42. Grenz, p. 44. Grenz, p. 45. Grenz, p. 46.
  • 45. jas tradicionais, nem se unem aos quacres que eliminam completamente os sacramentos. Praticamos o batismo e a Ceia do Senhor, mas entendemos o significado destes ritos de maneira prudente.32 Ele diz que estes ritos são praticados como estímulos para a experiência pessoal e não por obediência à ordem divina.33 Prossiga no dever; coloque sua vida em ordem, para que, pela uso dos meios de ajuda, você cresça e veja se não amadurece espiritualmente”, nós exortamos. De fato, se um crente chega ao ponto em que sente que a estagnação se estabeleceu, o conselho evangélico é redobrar os seus esforços no dever de praticar as disciplinas. “Examine a si mesmo”, o conselheiro espiritual evangélico admoesta.34 Vamos à igreja, ele diz, mas não para recebermos “os meios de graça”, e sim para que tenhamos comunhão, recebamos “instrução e encorajamento”.35 A ênfase no crente individual é evidente, ele diz, na expectativa de “achar um ministério” na comunhão local.36 Tudo isso é contrário a uma ênfase em doutrina e, Grenz acrescenta, uma ênfase em “um princípio material 32  33  34  35  36  Grenz, p. 48. Grenz, p. 48. Grenz, p. 52. Grenz, p. 54. Grenz, p. 55. e formal” – em outras palavras, solo Christo e solo Scriptura.37 Quando a transformação pessoal e social se torna o principal ponto de fé e prática, não devemos admirar que a linha distintiva entre catolicismo romano e evangelicalismo se obscurece. Para Roma, é claro, a justificação é simplesmente santificação: a transformação moral do crente. A graça é oferecida, mas temos de cooperar com ela, se temos finalmente de ser aceitos e renovados. De fato, com sua história mais longa e mais sofisticada de influência cultural, a superioridade de Roma na arena de transformação do mundo é aparente. De fato, uma vez que nosso interesse em melhorarmos a nós mesmos e ao mundo tenha tornado irrelevante (ou mesmo problemática) a justificação somente pela fé, por que os mórmons e os evangélicos devem continuar divididos? Não mais divididos por doutrina, a “cultura de protestantismo” da América ameaça submergir totalmente o evangelicalismo, como o fez nas principais denominações ecumênicas. As únicas denominações que ficarão com alguma identidade serão, talvez, os partidos Republicano e Democrata. De acordo com o que já consideramos, a justificação não é o primeiro estágio da vida cristã, e sim a fonte permanente de santificação e boas obras. Lutero resume: “‘Porque você crê em mim’, diz Deus, ‘e sua fé se apropria de Cristo, que eu lhe dei gratuitamente como Justificador e Salvador, portanto, seja justo’. Assim, Deus aceita você e o 37  Grenz, p. 62. Revista fé pa r a h oje | 43
  • 46. considera justo tão somente por causa de Cristo, em quem você crê”.38 Não importando qualquer outra boa nova (concernente ao novo nascimento, à vitória de Cristo sobre a tirania do pecado e à promessa de nos renovar durante toda a nossa vida, à ressurreição de nosso corpo e ao livramento da presença do pecado) ou quaisquer exortações úteis que possamos oferecer, o anúncio que Lutero resume nestas palavras cria sozinho e sustenta a fé que não somente justifica, mas também santifica. As boas obras podem ser realizadas agora livremente para Deus e o nosso próximo sem qualquer temor de punição ou de agonia quanto aos motivos confusos de cada ato. Por causa da justificação em Cristo, até as nossas boas obras podem ser “salvas”, para aprimorar não a parte de Deus, nem mesmo a nossa, e sim a do nosso próximo. Como Calvino explica, Mas se, libertos desta exigência severa da lei ou, melhor, de todo o rigor da lei, eles ouvem a si mesmos sendo chamados com cordialidade paternal por Deus, eles responderão com alegria e grande ardor e seguirão esta orientação. Resumindo: aqueles que estão presos ao jugo da lei são, igualmente, servos que recebem certas tarefas de seus senhores, cada dia. Estes servos pensam que não fizeram nada e não ousam comparecer diante de seus senhores, se 38  Martin Luther, Lectures on Galatians 1535, vol. 26, Luther’s Works, eds. Jaroslav Pelikan e Walter A. Hansen (St. Louis: Concordia Publishing House, 1963), p. 132. 44 | Revista f é pa r a h o je não cumprirem a medida exata de seus deveres. Mas filhos, que são tratados mais generosa e brandamente por seus pais, não hesitam em oferecer-lhes obras incompletas, feitas pela metade e até deficientes, crendo que sua obediência e prontidão de mente será aceita por seus pais, embora não tenham realizado o que seus pais tencionavam. Devemos ser esse tipo de filho, crendo firmemente que nossos serviços serão aprovados por nosso Pai muitíssimo misericordioso, ainda que esses serviços sejam insignificantes, rudes e imperfeitos... E precisamos desta segurança em grau profundo, pois, sem ela, tentaremos fazer tudo em vão.39 “Por causa da justificação”, acrescenta Ames, “a corrupção das boas obras não impede que elas sejam aceitas e recompensadas por Deus”.40 Este ponto de vista não somente fundamenta as boas obras na fé, mas também liberta os crentes para amarem e servirem seu próximo sem o motivo de obterem alguma coisa ou o temor de perderem o favor divino. Ele nos libera para um ativismo que abrange o mundo e é profundamente consciente de que, embora nosso amor e serviço nada contribuam para Deus e sua avaliação de nossa pessoa, eles são, apesar de realizados com fragilidade, 39  John Calvin, Institutes of Christian Religion, 3.19.5. 40  William Ames, Marrow of Theology (Grand Rapids: Baker Academic, 1997), p. 171.