1. Iremos tratar, de forma breve, sobre as conceituações clássicas de Direito
Natural e Direito positivo, e, da mesma forma, abordar aspecto histórico
destes e a forma como fora tratado como instrumento do modelo social
vigente à época, tudo à luz de lições do ilustre jurista Norberto Bobbio.
Por primeiro, como dissemos, trazemos a definição clássica do que seja
Direito Natural e Direito Positivo, e para tanto nos valemos, como dito, das
lições de Norberto Bobbio1:
"Dois são os critérios pelos quais Aristóteles distingue o direito natural e o
direito positivo:
a) O direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a mesma
eficácia (o filósofo grego emprega o exemplo do fogo que queima em
qualquer parte), enquanto que o direito positivo tem eficácia apenas nas
comunidades políticas singulares em que é posto.
b) O direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que
sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de
parecerem boas a alguns e má a outros. Prescreve, pois, ações, cuja
bondade é objetiva (ações que são boas em si mesmas, diriam os
escolásticos medievais). O direito positivo, ao contrário, é aquele que
estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas
indiferentemente de um modo ou de outro mas, uma vez reguladas pela lei,
importa (isto é: é correto e necessário), que sejam desempenhadas do modo
prescrito em lei. Aristóteles dá este exemplo: antes da existência de uma lei
ritual é indiferente sacrificar a uma divindade uma ovelha ou duas cabras;
mas uma vez existente uma lei que ordena sacrificar uma ovelha, isto se
torna obrigatório; é correto sacrificar uma ovelha, e não duas cabras, não por
que esta ação seja boa por sua natureza, mas porque é conforme a uma lei
que dispõe desta maneira.
(...)
Dois são os critérios no qual se baseia a distinção de Paulo entre direito
natural e direito civil:
a) o direito natural é universal e imutável (semper) enquanto o civil é particular
(no tempo e no espaço)
b) o direito natural estabelece aquilo que é bom (bonum et arquum), enquanto
o direito civil estabelece aquilo que é útil: o juízo correspondente ao primeiro
funda-se num critério moral, ao passo que o relativo ao segundo baseia-se
num critério econômico ou utilitário".
2. Ultrapassada a conceituação, seria natural imaginar que tanto o direito
natural quanto o direito positivo poderiam aplicar-se na solução das
necessidades do homem em forma de convivência, sem prevalência pré-
estabelecida, mas não parece ser o que a história nos ensina.
Nas diversas épocas e sociedades, já estivemos dos dois lados,
prevalecendo, ora o direito natural, ora o direito positivo como também
Bobbio1 nos ensina:
"O exame das diversas concepções sobre a diversidade de planos em que se
colocam o direito natural e o direito positivo nos levaria muito longe.
Limitando-nos a algumas indicações a respeito, diremos que na época
clássica o direito natural não era considerado superior ao positivo: de fato o
direito natural era concebido como "direito comum" (koinós nomos conforme o
designa Aristóteles) e o positivo como direito especial ou particular de uma
data civitas; assim, baseando-se no princípio pelo qual o direito particular
prevalece sobre o geral (lex specialis derogat generali), o direito positivo
prevalecia sobre o natural sempre que entre ambos ocorresse um conflito
(basta lembrar o caso da Antígona, em que o direito positivo – o decreto de
Creonte – prevalece sobre o direito natural – o "direito não escrito" posto
pelos próprios deuses, a quem a protagonista da tragédia apela).
Na idade média, ao contrário, a relação entre as duas espécies de direito se
inverte; o direito natural é considerado superior ao positivo, posto seja o
primeiro visto não mais como um simples direito comum, mas como norma
fundada na própria vontade de Deus e por este participada à razão humana,
ou como diz São Paulo, como a lei escrita por Deus no coração dos homens.
Esta concepção do direito natural encontra sua consagração oficial na
definição que lhe é dada no Decretum Gratiani (que é a primeira grande
recensão do direito canônico, o que constituirá posteriormentea primeira
parte do Corpus Juris Canonici).
Jus naturale est quod in lege et in evangelho continue tur
(isto é, o direito natural é aquele contido na lei mosaica do Velho Testamento
e no evangelho). Desta concepção do direito natural como direito de
inspiração cristã derivou a tendência permanente no pensamento
jusnaturalista de considerar tal direito superior ao positivo. Esta superioridade
é afirmada pelo próprio Decretum Gratiani, logo depois da passagem citada:
Dignitate vero jus naturale preaponi tur legiti bus ac constitutioni bus acconsuetudini
bus".
E, com o fim da idade media, temos que o retorno do juspositivismo, que só
então passa a ter esta nomenclatura, como explica o mesmo autor1:
3. "A sociedade medieval era uma sociedade pluralista, posto ser constituída
por uma pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos quais dispondo
de um ordenamento jurídico próprio: o direito aí se apresentava como um
fenômeno social, produzido não pelo Estado, mas pela sociedade civil. Com
a formação do Estado moderno, ao contrário, a sociedade assume uma
estrutura monista, no sentido de que o Estado concentra em si todos os
poderes, em primeiro lugar aquele de criar o direito: não se contenta em
concorrer para esta criação, mas quer ser o único, ou diretamente através da
lei, ou indiretamente, através do reconhecimento e controle das normas de
formação consuetudinária. Assiste-se, assim, àquilo que em outro curso
chamamos de processo de monopolização da produção jurídica por parte do
Estado.
A esta passagem no modo de formação do direito corresponde uma
mudança no modo de conceber as categorias do próprio direito. Estamos
atualmente tão habituados a considerar Direito e Estado como a mesma
coisa que temos certa dificuldade em conceber o direito posto não pelo
Estado, mas pela sociedade civil. E, contudo, originariamente e por um longo
tempo, o direito não era posto pelo Estado: bastava pensar nas normas
consuetudinárias, e em seu modo de formação, devido a um tipo de
consenso manifestado pelo povo através de um certo comportamento e
uniforme acompanhado da assim chamada "opinio juris acnecessitatis".
Diante do dogma da completude do ordenamento, poderá servir o Direito
Natural como fonte subsidiária à lei, por meio da chamada Heterointegração
da norma jurídica, como explica Bobbio2:
"O tradicional método de heterointegração mediante recurso a outros
ordenamentos consistia, no que se refere ao juiz, na obrigação de recorrer,
em caso de lacuna do Direito positivo, ao Direito natural".
Quanto à prevalência do Direito Positivo ou Direito Natural, qualquer
pensamento dogmático ou ortodoxo não nos leva senão à grave erro.
Isto por que, se o homem é ser social e natural, ora o direito imposto pela
sociedade será apto a resolver questões da vida, e ora o será o direito
natural. E a prevalência de cada qual dependerá de análise individualizada
do caso concreto.
Dizer de antemão o que irá prevalecer é um largo caminho à um dogmatismo
que fez do direito um instrumento de ideais muito distantes da justiça e
pacificação social, o que a sociedade moderna deve evitar.
O homem é natural e social, e assim são suas necessidades, e o direito deve
se prestar à atender estas de acordo com a natureza destas.
4. ___________
1 BOBBIO, Norberto. Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, compiladas por Nello
Morra; tradução e notas Márcio Puglesi, EsdonBini, Carlos E Rodrigues – São Paulo: ícone,
1995, p. 16 à 27.
2 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, trad. Maria Celeste C. J. Santos; ver.
téc. Cláudio De Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Júnior – Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 10ª edição, 1999, p. 147.
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* Mário Henrique da Luz do Prado é advogado do escritório JBM Advogados