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Jean-Philippe Faure
Educar sem punições
nem recompensas
Tradução de Stephania Matousek
EDITORA
VOZES
Petrópolis
Éditions Jouvence, 2005 Chemin du Guillon 20
Case 184
CH-1233 — Bernex
http://www.editions-jouvence.com
info@editions-jouvence.com
Título original francês: Éduquer sans punitions ni
récompenses
Direitos de publicação em língua portuguesa:
2008, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ
Internet: http://www.vozes.com.br
Brasil
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra
poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma
e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
banco de dados sem permissão escrita da Editora.
Diretor editorial Frei Antônio Moser
Editores
Ana Paula Santos Matos
José Maria da Silva
Lídio Peretti
Marilac Loraine Oleniki
Secretário executivo João Batista Kreuch
Editoração: Frei Leonardo A.R.T. dos Santos
Projeto gráfico: AG.SR Desenv. Gráfico
Capa: WM Design
ISBN 978-85-326-3683-6 (edição brasileira)
ISBN 2-88353-422-5 (edição suíça)
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.
Sumário
Preâmbulo................................................................................................5
1 Experiência pessoal e motivação..........................................................6
2 Os objetivos da educação.....................................................................9
3 Atenção ao sentido que você dá às suas mensagens.........................12
4 Vamos parar de achar que o erro é um problema .............................14
5 A crítica vista como uma oportunidade..............................................18
6 Uma boa acolhida ...............................................................................21
7 A empatia, um apoio à nossa capacidade de acolhida.......................23
8 Oferecer nossa presença ....................................................................26
9 Respeito por nossos sentimentos.......................................................29
10 Uma pedagogia da espontaneidade.................................................32
11 Aprender a não saber tudo, uma pedagogia não-diretiva ...............35
12 O problema dos limites.....................................................................38
13 O valor da palavra.............................................................................43
14 Observar ou imaginar o mundo........................................................46
15 O triângulo relacional .......................................................................49
16 A relação de confiança......................................................................52
17 Confrontar-se com as exigências......................................................54
18 Um dia de Ivan, estudante em 2020.................................................57
19 As características de uma escola não-diretiva..................................59
20 Abertura............................................................................................62
Bibliografia.............................................................................................63
Para saber mais......................................................................................64
Preâmbulo
Ao buscar a simplicidade e tendo pouco espaço disponível num livro
destinado a uma coleção de bolso, fui levado a exprimir algumas crenças como
verdades, e não do jeito que eu gostaria de vivê-las, ou seja, como hipóteses.
Apesar dos cortes que foram feitos, não desejo passar a idéia de que tenho a
pretensão de ter certeza (quero dizer, a cristalização de um esquema de
pensamentos imutável) do que quer que seja.
Eu ficaria aliviado se os leitores não quisessem aderir de imediato ao que
está escrito e experimentassem por completo o alegre movimento da crítica, que
coloca em questão todas as noções (tanto as nossas como as dos outros).
O conteúdo deste livro se baseia na, e é limitado pela, minha experiência de
formador em Comunicação Não-Violenta na Suíça e na França. Às pessoas que
desejam compreender melhor os fundamentos dessa prática, indico os livros de
seu criador, Marshall Rosenberg.
Optei por não abordar vários aspectos ligados a uma pedagogia cooperativa,
como por exemplo a tomada de decisão através de um consenso ou a gestão das
regras, por causa da amplitude desse tema, que será tratado em outro livro.
Foram muitas as pessoas que me apoiaram na redação deste livro, e, por
isso, é impossível citar todas elas. No entanto, gostaria de registrar um
agradecimento especial a Aline Bourrit, Christiane Goffard e Patrick Wouters,
cujas contribuições foram muito preciosas para me ajudar a esclarecer tanto a
minha iniciativa quanto estas páginas.
1
Experiência pessoal e motivação
Um dia, eu esperava a mim mesmo e me dizia: "Guillaume, já
é hora de aparecer", para que eu, enfim, conhecesse aquele
que eu sou.
Guillaume Apollinaire
Como bilhões de outras crianças, aprendi a deixar de lado a relação
comigo mesmo. Aprendi a renegar meus sentimentos e confiar nas crenças dos
adultos. Aprendi a negar voluntariamente as minhas emoções e varrer as
tensões para debaixo do tapete. Aprendi a conceder o essencial do meu tempo
aos meus pensamentos e alguns minutos de esmola ao meu corpo, fazendo-o
calar-se quando gritava de fome. Essa obra de destruição, de separação, de
recalque se chama "educação".
Dos seis aos dezoito anos, acumulei um saber que era completamente
exterior a mim. Inculcaram-me milhares de noções para as quais eu via pouca
utilidade, em detrimento de assuntos que despertavam minha curiosidade. Ao
terminar a escola, as conjugações dos verbos me eram mais familiares do que o
interior do meu corpo. Eu sabia os nomes da maioria dos países do mundo, mas
era incapaz de exprimir o sentimento que eu trazia no peito. Aliás, eu ignorava
sua presença: a escola tinha contribuído para me transformar num analfabeto
emocional.
Mas tive sorte, porque todos esses anos de escola não abafaram
completamente a minha curiosidade. Pouco a pouco, aprendi a rever o mundo
como uma matéria viva e redescobri a alegria de explorar algo quando a
pesquisa possui alguma ligação com o meu profundo ardor. A Comunicação Não-
Violenta (que a partir de agora chamarei de CNV) me permitiu mergulhar em
assuntos de estudo dos quais, que eu me lembre, nenhum professor tinha me
falado: reaproximar-me dos meus sentimentos e necessidades, expressar minha
autenticidade, encontrar meu lugar num grupo, administrar os conflitos com
confiança e benevolência...
Percebi a que ponto essa via que a CNV desenvolve me tinha feito falta
durante os anos de escola. Depois, pouco a pouco, uma pedagogia mais global,
que levava em consideração o pleno potencial do ser humano, revelou-se para
mim. Não bastava levar em conta o aspecto relacional na educação sem
modificar a estrutura do ensino, como alguns professores me perguntaram
durante meus seminários. Comunicar-se de outra forma implica mudar sua
maneira de ser consigo mesmo e sua relação com o mundo. Surgiu então uma
pedagogia desconcertante: da presença a si mesmo e não mais da ausência; do
encaminhamento e não mais do objetivo; do instante e não mais do programa.
Tratava-se de fazer uma revolução tão completa que se modificariam todos os
pontos de referência de nossa sociedade, uma vez que ela deveria arrancar as
profundas raízes da violência, ou seja, a cultura e as crenças.
Por ter colocado a minha vida focada no plano da imaginação, estou
ciente do perigo de uma existência virtual. Já constatei a que ponto minha
relação com a realidade pode ser frágil e o quão facilmente posso voltar a
mergulhar num universo de ficções quando o acontecimento que estou vivendo
me perturba emocionalmente. Isso me tornou sensível ao sofrimento que, em
longo prazo, essa ruptura com a realidade pode provocar nas crianças.
Por isso, não consigo me impedir de sonhar com a força de vida que
mudaria a nossa Terra se a educação pudesse ajudar os jovens, mesmo que
apenas cem mil, a realizar o seu pleno potencial; se o aprendizado contribuísse
para formar seres humanos autônomos, sensíveis ao seu meio ambiente e em
contato consigo mesmos.
Essas são algumas pistas que seguem a direção da visão pela qual
convido você a me acompanhar.
Na prática das escolas, a educação estagnou na acumulação de saberes e
na aquisição de modos de pensar, em detrimento de todas as outras formas de
inteligência. Essa focalização nas capacidades mentais restringe o poder de
adaptação do indivíduo. No meu trabalho de acompanhamento em CNV, conheci
várias pessoas que conhecem seus problemas, o que poderiam fazer para
melhorar... e que, é claro, não conseguem, apenas com a compreensão
intelectual, abandonar o esquema do qual gostariam de se libertar. Para operar a
transformação que desejam, elas devem desenvolver suas inteligências corporal
e emocional.
Quanto à família, cada vez menos os pais podem dedicar o melhor de
sua atenção aos seus filhos: as pressões do sistema econômico os levam a
voltarem para casa sobrecarregados e esgotados. Além disso, sejam quais forem
os méritos do que eles conseguem transmitir, os valores que podem encarnar se
opõem à poderosa inanidade daqueles que a cultura veicula. Assim, as crianças
são desorientadas por mensagens contraditórias.
E mais, um forte condicionamento faz com que os jovens não obtenham
o mesmo respeito intrínseco que os adultos. Sejam quais forem os lugares de
encontro, a atitude se modifica se a pessoa com que se fala for "menor" ou
"maior de idade". Durante minha infância, vivi dolorosamente essa diferença de
atenção e permaneci bastante sensível a essas variações de respeito. Ainda hoje,
quando escuto na rua um adulto gritar com um outro ser vivo, com freqüência
preciso me virar para ver se ele se dirige ao seu cachorro ou ao seu filho. O
mesmo tom, as mesmas entonações e as mesmas palavras são empregadas nos
dois casos.
Aspiro a viver num mundo liberto dos jogos de poder ligados à idade e
onde os antigos sistemas de crenças que os fundam desapareçam. Uma das
minhas amigas tem quatro anos. É claro que os assuntos de minhas conversas
com ela não são os mesmos que com outras pessoas conhecidas: o senso de
humor nessa idade não é igual àquele que se tem aos quarenta anos. E, no
entanto, não vejo diferença profunda entre essa amizade e as outras.
Paradoxalmente, ao lado dessa fundamental falta de consideração para
com os jovens, vejo-os com freqüência com uma liberdade de ação e de discurso
que me espanta! Assisto a cenas nas quais professores olham, impotentes,
jovens quebrarem o material que lhes foi oferecido; escuto pais que se deixam
insultar sem reação (não se trata de acreditar no insulto, mas de reagir à
angústia que está por trás dele); observo sem parar anúncios destinados às
crianças, alçadas ao patamar supremo de consumidores. Vejo acordarem uma
liberdade de comportamento que, porém, não é vivida a partir de um respeito
profundo. Esse desacordo cria uma confusão e uma violência germinal que me
aterrorizam.
Em matéria de educação, tenho a impressão de viver, assim como Alice
no país das maravilhas, do outro lado do espelho da lógica. As crianças não
podem contar com uma abertura para as suas necessidades nem com uma
clareza no plano das regras e valores. Os adultos lhes concedem uma recusa
quando elas desejam ser escutadas e uma permissividade quando a firmeza seria
um poderoso apoio para elas.
2
Os objetivos da educação
A educação correta cultiva o nosso ser inteiro, a totalidade da
nossa alma. Ela oferece, ao nosso espírito e ao nosso coração,
profundeza e compreensão da beleza.
Krishnamurti
Frente aos desafios do nosso tempo, onde a humanidade é responsável
não somente pela sua sobrevivência como também pela de milhões de outras
espécies, seria de se esperar que a educação fosse o alvo de todas as atenções,
permitindo aos jovens desenvolverem as capacidades de adaptação que esse
contexto requer. No entanto, constato com tristeza que a educação contem-
porânea é baseada em paradigmas que perpetuam antigos condicionamentos
destrutivos:
 A submissão às crenças dominantes e às autoridades exteriores.
São os pais, os professores, depois os chefes, os políticos, etc. que
sabem o que é bom para o jovem.
 A aquisição de saberes e técnicas que permitem exercer um papel
conforme às grandes normas sociais.
A educação consiste essencialmente na acumulação de um saber
reconhecido por um grupo ou pela sociedade. O tipo de matérias adquiridas dá
direito a um certo status social: admite-se que uma competência em literatura
ou medicina tem mais valor do que em eletricidade ou jardinagem.
 A assimilação de um sistema de comparação e competição pelos
estudantes.
Na maior parte das escolas, os alunos adquirem os esquemas da
comparação. Espera-se de cada indivíduo um desempenho definido globalmente
de antemão. Os objetivos são os mesmos para cada um e os membros de um
grupo são comparados entre si de acordo com seus resultados. O esquema da
comparação gera o da competição: os alunos não trabalham em função de si
mesmos, mas sim para ultrapassar os outros.
Através do meu trabalho de formador em CNV, pude constatar a que
ponto essas noções de comparação e competição provocam violência. Os
estudantes são condicionados a responder às exigências do sistema e, para
consegui-lo, criam para si mesmos exigências internas (ou, segundo a definição
que lhes é dada em CNV, a dolorosa pressão quanto a um objetivo, que nos isola
da necessidade do instante). Eles se acostumam a só obter um reconhecimento
positivo se conseguirem produzir resultados conformes às expectativas
projetadas sobre eles. Ao terminar a escola, eles terão acumulado crenças e
julgamentos destrutivos, particularmente sobre si mesmos.
 O estrangulamento da originalidade de cada indivíduo em proveito
de esquemas culturais gerais.
Na imensa maioria dos casos, a atenção é concentrada na obtenção de
resultados esperados pelo professor ou pelo sistema escolar. Sobra pouco
espaço para as pesquisas atípicas ou para os encaminhamentos pessoais dos
estudantes. Embora recentes reformas escolares valorizem mais a iniciativa do
que o resultado, parece que os professores não foram formados para deixar de
lado os tão preciosos elementos dos saberes que assimilaram ao longo de seus
estudos. Por isso, eles mantêm na cabeça os objetivos a serem atingidos. No
melhor dos casos, há uma tolerância quanto à originalidade, que, porém, é
raramente encorajada.
Então, o que poderia ser uma educação que permitisse aos estudantes
exercerem ao máximo sua imensa potencialidade natural, que os apoiaria para
se tornarem autônomos, sensíveis, criativos e benevolentes?
Uma educação a serviço da vida visa a que os jovens:
 sejam capazes de responder com confiança e criatividade aos
desafios da vida;
 aprendam a se conhecer intimamente e estejam prontos para se
questionar,
 sejam capazes de sentir e exprimir as emoções, tanto para si mesmos
como para os outros;
 desenvolvam os aprendizados que lhes permitam se inserir em suas
culturas com um espírito de cooperação e, ao mesmo tempo, adquiram
um verdadeiro senso crítico com relação a todas as formas de crenças
(em outras palavras: um amor pela verdade);
 possam assumir a responsabilidade de suas vidas e estejam
conscientes das conseqüências de seus atos para o meio ambiente;
 adquiram meios para gerir seus problemas e sofrimentos;
 desenvolvam uma sensibilidade quanto aos problemas e sofrimentos
dos outros;
 internalizem uma real capacidade de atenção e de presença no
instante.
3
Atenção ao sentido que você dá às suas
mensagens
Se um dia você constatar que os antigos métodos de punição
e recompensa são inúteis, seu espírito se tornará bem mais
ativo.
Krishnamurti
Na minha opinião, o maior problema causado pelas punições e
recompensas é o fato de elas enfraquecerem o sentido que a mensagem quer
passar. Quando você diz a uma criança: "Faça tal coisa, senão tal outra vai
acontecer! Se você não comer a salada, ficará sem sobremesa! Se você não
terminar esse dever de casa, não poderá assistir televisão! Se você fizer esse
dever, terá uma recompensa!", você está sempre sugerindo que a primeira parte
da mensagem não é suficientemente válida e que é preciso acrescentar algo para
lhe dar crédito.
O problema é a causalidade. Pouco a pouco, as crianças se sentem
divididas entre os dois componentes da mensagem situados de cada lado do
"senão". E, no final, a maioria delas vai se condicionar a dar mais importância à
segunda do que à primeira parte.
Tomei consciência disso, em particular, graças ao meu filho, depois de
uma situação que vi vemos. Naquele dia, tínhamos pego o bonde no último
segundo e, por isso, não tive tempo de comprar uma passagem.1
No final do
trajeto, fui comprar um bilhete no distribuidor automático. Então, meu filho me
olhou bastante surpreso e me disse:
"Mas, pai, por que você está comprando essa passagem? Agora não
corremos mais o risco do controlador nos pegar!"
Foi aí que percebi que ele já tinha começado a ser doutrinado pela
1 Na Europa, o sistema de transporte funciona assim: o passageiro compra um bilhete antes de embarcar no
meio de transporte, ao entrar neste valida-o num dispositivo automático que o carimba ou perfura, e, às vezes,
um agente controlador passa para verificar se todos pagaram o trajeto (N.T.).
educação da punição e da recompensa: por que pagamos por uma passagem no
bonde? Para escapar dos controladores, ou seja, para evitar a punição.
Comuniquei-lhe então a minha surpresa e tristeza pelo fato de ele ver as coisas
desse ângulo. Se estava quitando a minha dívida de um trajeto no transporte
público, era para demonstrar o meu apoio e reconhecimento por beneficiar de
tal serviço e porque queria contribuir para a permanência desse direito.
O que criamos quando condicionamos as crianças a agirem para ser
recompensadas ou evitar serem punidas? Um mundo de pessoas pouco livres.
Uma cultura do medo, com pessoas que pagam pelos artigos das lojas
simplesmente para evitar serem pegas se saírem com eles debaixo do braço, e
não por uma necessidade de eqüidade. Gente que não ultrapassa os limites de
velocidade por causa das multas, e não por respeito aos outros motoristas ou
por uma necessidade de segurança coletiva. Gente que frauda o fisco tanto
quanto possível, porque não foram ajudados no sentido de desenvolver uma real
pertença à sociedade da qual fazem parte.
Nas relações com os jovens, eu gostaria de desenvolver uma cultura do
sentido. Se realizamos uma ação, é porque ela responde a uma necessidade
construtiva. Se os pais pedem alguma coisa ao seu filho, é porque isso possui um
sentido, e o importante é fazer a criança entendê-lo.
Mas quero eliminar um risco de confusão: não estou pregando uma nova
forma de submissão às instituições. Ao contrário, acho que pessoas educadas
para assumir realmente as suas responsabilidades se conformam com mais
freqüência às obrigações sociais porque têm consciência da interdependência
fundamental entre os seres humanos, o que as leva a serem solidárias com seus
semelhantes. Porém, se decidem não cumprir as regras, suas ações são
poderosas, uma vez que são conduzidas a partir de uma motivação clara. Aí, não
se trata mais de maracutaia ou contrabando, mas sim de uma objeção com
consciência, baseada numa necessidade de integridade.
4
Vamos parar de achar que o erro é um
problema
O professor adota, desde o primeiro dia, o tom e os
procedimentos de um juiz, e, por isso, o aluno desenvolve
naturalmente a atitude de alguém prevenido... que, a todo
instante, talvez seja pego em flagrante delito de falta de
atenção ou de ignorância.
Henri Roorda
Uma crença que considero das mais destrutivas é aquela segundo a qual
o erro é um problema. Fomos condicionados a acreditar que há respostas certas,
as quais devemos buscar, e outras falsas, as quais temos de evitar. Além disso,
fomos condicionados a crer que autoridades exteriores a nós sabem o que é
certo e o que é errado.
Meu filho também me ajudou a perceber o perigo dessa fixação no erro.
Um dia, ele me mostrou uma prova de matemática cuja nota o tinha
desagradado. Olhei seu trabalho e me dei conta de que a sua dificuldade tinha
sido causada por um símbolo que ele não conhecia, que significava "multiplicar",
enquanto que ele tinha aprendido essa operação com um outro signo. Havia
uma seqüência inteira de cálculos nos quais ele se tinha enganado, porque tinha
interpretado que era preciso dividir ao invés de multiplicar. Então eu lhe disse:
"Legal, essa prova lhe foi bastante útil, porque ela permitiu que você
aprendesse um novo símbolo!", mas ele me respondeu: "É, pode ser, mas
essa nota vai baixar minha média!"
Pude constatar, ao longo de várias discussões com ele, que sua
focalização mais na nota do que no aprendizado o fazia perder o sentido das
provas.
Com muita freqüência, a atenção dos alunos não está concentrada no
valor intrínseco dos fatos, mas na interpretação do sistema de referências dos
professores.
Não basta, como sempre escuto por aí, falar do direito ao erro para
apaziguar a tensão que, para a maioria de nós, representou o medo permanente
de nos enganarmos, de não correspondermos às expectativas que eram criadas
quanto a nós e as quais tínhamos de adivinhar pouco a pouco. Para se livrar
desse paradigma é preciso adotar uma atitude globalmente diferente.
Para deixar para trás a oposição entre o certo e o errado, sugiro um
paradigma que nos deixa escolha entre duas oportunidades: o esperado e o
inesperado.
Quando um resultado é esperado, ele cria um consenso, sustenta fatos,
valida um processo de aprendizado ou representa uma aquisição comum. A
primeira oportunidade é a integração do processo que nos leva ao esperado. Não
o saber adquirido, mas a incorporação de uma iniciativa que aumenta nossa
sensibilidade com relação aos problemas da vida.
Quando um resultado é inesperado, ele suscita um processo de
interrogação sobre nossos hábitos a partir da surpresa inicial. No âmbito da
educação, há uma busca comum. O autor da iniciativa e a pessoa surpreendida
— não importa quem exerça o papel de professor e o de aluno —confrontam
suas impressões e avaliações, a fim de verificar se há uma chance de colocar em
questão um conhecimento ou validá-lo de outra maneira. Essa busca aberta do
sentido do inesperado é a segunda oportunidade.
Um professor de matemática me comunicou as dificuldades que
encontrava quando dizia aos seus alunos para prestarem atenção nos seus
processos de reflexão, e não nas notas que poderiam receber. Ele chegou
mesmo a suprimir as notas, mas certos alunos permaneciam focalizados nos
julgamentos que ele poderia fazer sobre eles.
Uma vez, corrigindo uma prova, ele se deparou com um resultado tão
surpreendente que ficou bastante perplexo. Ele se contentou de escrever na
margem: "Como você chegou a essa conclusão?" Após receber sua prova, a
aluna veio lhe perguntar: "Mas eu acertei ou errei?" E ele lhe respondeu: "Isso
não me interessa, o que eu quero é entender o seu pensamento. Você pode
reproduzi-lo agora?"
Ela acabou reconstituindo-o, porque imaginava que sua solução estava
de acordo com a norma esperada. Depois do acontecido, ela explicou que, caso
contrário, teria ficado constrangida demais para ousar mostrar-lhe um processo
enquanto o supusesse errado.
"Nesse caso em particular, eu tinha dificuldade em acreditar que seu
pensamento era válido", acrescentou o professor, "mas para mim era
importante permanecer aberto: eu não teria aprendido a maneira de lhe
ensinar se não tivéssemos refeito juntos o seu raciocínio".
Embora tanto o esperado quanto o inesperado representem
oportunidades, a surpresa causada pelo inesperado me parece ter um valor
pedagógico superior. O mais interessante é quando nos "enganamos", quando
estamos em busca de algo, quando questionamos nossos esquemas de
pensamento, que, de modo tão rápido, tomam a forma nociva de certezas. Esta
concepção é tão contrária aos ensinamentos contemporâneos, que enfatizam a
estranha crença no desempenho, que sinto dificuldade em dizer para o meu filho
que considero uma vantagem o fato de ele "falhar" numa prova. Ele não o
entenderia, porque seus professores já o mandaram buscar as respostas que
esperam para as suas perguntas e tentar não surpreendê-los. Acho isso uma
pena, pois essa mudança de perspectiva diante do erro é um dos fundamentos
de uma pedagogia baseada na atenção às necessidades efetivas do aluno
(empregarei também o termo "pedagogia não-diretiva" para designar a partir de
agora esta educação centrada na escuta das necessidades).
Essa valorização do erro, num contexto de não-julgamento, muda o
sentido que damos aos testes escolares. Eles voltam a exercer a sua função
primordial de apoio (a qual não me lembro de ter percebido durante os meus
anos de escola). Eles podem se tornar (de novo) instrumentos privilegiados para
revelar os terrenos que devem ser explorados e aqueles já maduros para serem
provisoriamente abandonados.
Para que as avaliações possam ter um sentido pleno é preciso que sejam
aplicadas com o espírito de iniciar um processo, e não de validá-lo. Portanto, elas
devem ser propostas no início ou no meio de um período de aprendizado, não
no final. Para não enfraquecer a importância do teste para a pessoa avaliada, eu
gostaria que não fossem dadas nem sanção nem recompensa. E, para que cada
aluno possa se concentrar no proveito que ele pode tirar, seria bom que, se uma
comparação acontecesse, que ela não fosse entre os alunos, mas sim entre os
diferentes resultados possíveis.
Essa não-comparação geral permite introduzir reais desafios para os
alunos. Numa pedagogia não-diretiva, interessamo-nos pelas necessidades de
cada um e buscamos com ele um desafio que lhe permita evoluir. Os testes da
educação tradicional, quase sempre formatados para um grande número de
alunos, não conseguem encontrar ligação com as necessidades individuais. Para
muitos, eles eliminam a parte de desafio, pois a avaliação não é adaptada às suas
competências: são simples ou complicados demais.
5
A crítica vista como uma oportunidade
No mundo atual, o único objetivo educacional que faz sentido
é a adaptabilidade, ou seja, a fé mais num processo do que
num saber imutável.
Carl Rogers
Para mim, uma das diferenças mais marcantes entre uma educação no
sentido da CNV e outras, mais tradicionais, encontra-se em relação à crítica. Em
muitos sistemas educativos que utilizam as normas habituais, a crítica é, para o
professor, o meio de apontar um erro, a fim de retificá-lo. Ele não somente sabe
o que é certo, como também a maneira pela qual os outros alunos devem atingir
esse imaginário.
No espírito da CNV, a crítica reflete uma necessidade não-satisfeita de
uma pessoa que vai comunicá-la a uma outra para tentar encontrar seu sentido
a partir dessa busca. A insatisfação não é vista como um problema, mesmo que,
é claro, ela possa ser vivida de maneira dolorosa, mas sim como uma
oportunidade de tomada de consciência. Essa visão e emprego da crítica se
integram no vasto campo do que a CNV chama de celebração. Quando trabalha
com esse espírito, o professor não repreende o aluno pelo resultado inesperado
que ele produziu, mas lhe agradece a sua tentativa e lhe propõe utilizá-la para
aprenderem juntos.
Se a crítica for empregada a partir desse ponto de vista durante um
tempo suficiente, tenho a esperança de que os jovens acabarão buscando-a
como uma oportunidade, ao invés de fugir dela como de uma prova. Porém,
antes de chegar lá, o professor tem de realmente amenizar a fragilidade que
seus alunos desenvolveram após terem sofrido as críticas costumeiras como se
fossem agressões. Talvez seja preciso dar o exemplo: encorajar os estudantes a
lhe dar avaliações e lhes mostrar todo o prazer de recebê-las através de sua
atitude. Até o dia em que a crítica poderá ser percebida assim como é: uma
forma particular de nossa gratidão pelo que a vida nos está ensinando.
A CNV propõe um procedimento para nos apoiar na expressão dessa
forma de crítica construtiva:
 Exprimir antes de tudo a nossa autenticidade:
 a observação mais rigorosa possível dos fatos;
 o sentimento que isso estimulou em nós;
 nossa necessidade não-satisfeita;
 e terminamos por uma demanda de conexão. Por exemplo:
"Quando vejo que não concordamos em sete das dez questões desse
teste de biologia, fico curioso para saber as razões dessa diferença e
gostaria de lhe pedir para me explicar as razões das suas escolhas."
 Escutar com empatia:
As concepções ultrapassadas que acumulamos com relação à crítica
fazem com que ainda seja raro encontrar pessoas essencialmente antenadas
quanto aos seus aspectos construtivos. Um reflexo saudável consiste, portanto,
em investir um momento na escuta empática do jovem para verificar se ele não
está brincando de "Quem está certo e quem está errado?"
Dessa forma, ele pode nos dizer:
"É verdade, não entendo nada de biologia!" Em vez de tentar convencê-
lo do valor do seu raciocínio, com freqüência é mais útil ajudá-lo primeiro
a se voltar para os seus medos. Pode ser propondo-lhe a seguinte
reformulação:
"Você ficaria desmotivado porque tem dificuldade em acreditar nas suas
capacidades nesse domínio?"
 Buscar a vantagem da nossa insatisfação:
Em que medida ela permitirá que o avaliado evolua e que o avaliador
repense sua visão de mundo. Se houver abertura, os dois movimentos realmente
se realizarão. É uma busca mútua, com um beneficio para os dois.
O critico poderia prosseguir assim:
"Estou surpreso ao perceber a quantidade de pontos sobre os
quais não temos a mesma opinião, porque eu achava que
tinha passado tempo suficiente explicando meu ponto de vista
e que você me tinha dito estar de acordo. É importante para
mim saber onde poderia ter sido mais claro.
Você pode me ajudar resumindo o que você tentou fazer?"
 Celebrar o sentido do que emergiu:
Certas vezes, o benefício se mostra mais efetivo para a pessoa que
recebe a avaliação, e, em outras, para aquela que a aplica.
Nos casos descritos anteriormente, uma vez que o aluno e o professor
estiverem de acordo sobre o ensinamento a ser tirado da diferença dos seus
pontos de vista, o primeiro poderá dizer:
"Sinto-me aliviado porque agora esta matéria me parece mais simples, o
que me dá um pouco mais de autoconfiança em biologia!"
E o segundo:
"Também me sinto aliviado de ter descoberto o que você não tinha
entendido do meu raciocínio. Agora, tenho uma idéia de como posso
explicar essa matéria de outra forma da próxima vez."
O que vai mudar a relação com a crítica não é tanto um procedimento
ou uma maneira de se expressar, mas uma atitude aberta do professor: sua
verdadeira curiosidade quanto à iniciativa do jovem; sua capacidade de deixar de
lado seus conhecimentos enquanto busca, junto com o aluno, o que os dois
podem aprender com essa situação.
6
Uma boa acolhida
Escutar quer dizer amar. Amar significa: estar disponível para
o que está aqui.
Éric Baret
Faço questão de desenvolver com as crianças uma relação fundada
numa qualidade de acolhida global. Essa atenção fundamental quase nunca lhes
é dada. Vou dar um exemplo, que escolhi entre vários outros, porque me
marcou:
Fui convidado, numa escola genebresa, para assistir a uma formação de
alunos mediadores. Eu e a formadora estávamos arrumando a sala, quando, por
falta de sorte, chegou um grupo de atores nos explicando que aquele lugar
estava reservado para o ensaio deles. Fomos obrigados então a mudar de sala. A
professora aparece com a turma, e começa uma grande discussão entre ela, a
animadora e dois outros adultos presentes. Durante cinco minutos, eles
resolveram tudo entre si.
Durante esse tempo, o grupo de crianças tinha sido largado no seu
canto. Ninguém lhes disse bom-dia nem explicou o que estava acontecendo. Por
quê? Porque eram jovens. Para aquelas pessoas não era normal dar a mesma
qualidade de atenção a um grupo de crianças e a adultos. Imagine a mesma
situação com um grupo de vinte adultos. O primeiro reflexo seria lhes dizer:
"Bom-dia, sentimos muito por fazê-los esperar. Tínhamos reservado essa
sala, mas houve um contratempo. Vocês podem, por favor, esperar um
pouco?"
Essa diferença de atitude em função da idade de nosso interlocutor é um
condicionamento ancorado tão profundamente que o vejo inculcado mesmo em
pessoas repletas de benevolência para com os jovens. Nas relações entre
maiores e menores de idade, com freqüência observo mudanças de tom, de
escolha das palavras, de posições corporais, as quais interpreto como os indícios
de um jogo de poder. Essas mudanças de relação se fazem de maneira tão
inconsciente que os envolvidos me dizem em seguida, quando lhes falo sobre
isso, não terem percebido. Só que, através dessas manifestações, as crianças
aprendem a se submeterem — ou a se revoltarem ou a fugirem, o que dá no
mesmo.
Esse é um ponto sobre o qual eu gostaria de insistir. Em geral pensamos
que é nas situações difíceis que as relações se fragilizam. Porém, é a partir da
repetição desses milhares de momentos, nos quais não damos aos jovens a mesma
boa acolhida que aos adultos, que a base da confiança se quebra. Não é tanto nas
situações de conflito que essa diferenciação se dá, pois as pessoas envolvidas
sabem perfeitamente que se trata de momentos delicados, onde cada um perde
um pouco da sua estabilidade e então dá o melhor de si. É sobretudo o acúmulo
dessas atitudes inconscientes, onde o menor é tratado com menos consideração
por causa da sua idade.
É por isso que com os professores eu não trabalho tanto o que acontece
do início ao final do seu curso, mas do fim deste último ao começo do seguinte.
Falo sobre todas as relações, todas as conexões que se criam nos corredores e
no pátio. Todas essas ocasiões condicionam os jovens ou no sentido de um
respeito mútuo ou no de um hábito de submissão ou revolta.
O que ainda prejudica a boa acolhida é a rigidez dos papéis nos quais
fomos condicionados a nos mantermos. Deixamo-nos permanecer fixos na
imagem do nosso papel porque nos desapegarmos dele nos deixa inseguros. A
capacidade de passar de um papel para outro, em função das necessidades da
situação, é justamente um elemento-chave de uma pedagogia não-diretiva.
7
A empatia, um apoio à nossa capacidade de
acolhida
Os pais só lançam um olhar incondicionalmente positivo sobre
a criança se fizerem o mesmo com relação a si mesmos.
Carl Rogers
A CNV determina dois poderes na comunicação: o de nos voltarmos para
a nossa vulnerabilidade e exprimi-la e o de nos abrirmos de maneira
incondicional à mensagem de nosso próximo e reformulá-la. Este segundo poder
se chama "empatia".
Ela poderia ser definida como a qualidade do que permanece na nossa
faculdade de escuta quando nos liberamos de nossos hábitos e defesas:
Quando paramos de acreditar saber para o outro o que é bom para ele
— e, portanto, abstemo-nos de dar conselhos quando eles não nos são pedidos.
Quando cessamos de querer fazer alguma coisa nas relações onde basta
que existamos.
Quando aceitamos não nos metermos no que diz respeito apenas ao
outro e, em momentos diferentes, não incluir o outro no que só interessa a nós
mesmos.
Quando tivermos feito esse trabalho de purificação, podemos nos
colocar à escuta do nosso interlocutor. Durante alguns segundos não buscamos
mais mudar o mundo e em especial a pessoa que estiver diante de nós, paramos
de impor aos indivíduos que nos cercam o peso de nossas exigências e de nosso
saber.
Uma ação profundamente ecológica pode então começar. Podemos nos
abrir à mensagem viva que o nosso interlocutor, com freqüência de modo
desajeitado, está tentando nos passar. Oferecemos-lhe o presente de uma
acolhida que não tenta reformar, nem mesmo entender, mas simplesmente criar
uma boa conexão com ele.
A força dessa benevolência em ação pode ser representada de duas
maneiras:
 Através de nossas propostas de reformulação, onde propomos ao
outro uma interpretação centrada nos sentimentos e necessidades
subjacentes da mensagem exprimida, seja ela qual for.
Pelo desapego que devemos ter quanto à forma literal do que é dito.
Conseguimos este recuo graças ao interesse que aquele que se exprime desperta
em nós. Para quem escuta, cada frase contém a manifestação de uma
necessidade fundamental. Se quem está sendo escutado sente que a nossa
atenção é aberta, ele poderá se deixar levar, sendo ele mesmo, já que não
precisa mais convencer, nem se defender ou se justificar.
Portanto, a acolhida empática não é insignificante. Quando a
oferecemos, ela presta um grande serviço à relação. Além do resultado que
podemos obter no instante, a prática da empatia alimenta nossas relações, e
principalmente as que são íntimas, que demandam muita confiança.
Vejo o alcance mais precioso disso na sua aplicação a longo termo. É a
repetição de situações em que a criança pôde se sentir acolhida exatamente
onde se encontrava que é a base de uma segurança fundamental nas suas
relações consigo mesmo e com seus pais. É um forte apoio para desenvolver sua
autoconfiança.
Essa acolhida não implica que devamos ficar uma hora, ou mesmo dez
minutos, escutando o que o nosso interlocutor está exprimindo. Com freqüência,
mesmo uma só reformulação vai mudar a energia emocional, contanto que
tenhamos criado previamente em nós um espaço suficiente de abertura.
Uma professora me contou a seguinte experiência ocorrida no seu
estabelecimento. Ela tinha dificuldades com um jovem que não suportava certas
obrigações da instituição. Uma noite, ele disse:
"Que saco ter que ir dormir agora!"
Ela entendeu o que ele devia estar sentindo e apenas lhe disse:
"Isso o deixa com raiva? Você gostaria tanto assim de poder escolher?"
Ao que ele apenas respondeu "Ahan" e subiu para o seu quarto, para
surpresa da escutante, que esperava ter que gerir sua resistência habitual.
Uma mãe me contou um episódio muito parecido que ela tinha vivido
com uma das suas filhas. Ela a rodeava na cozinha enquanto reclamava de sua
irmã, depois dos seus deveres de casa, da escola, e assim por diante. A mulher
interrompeu a sua tarefa durante alguns segundos, entrou em contato com a
irritação de sua filha, tomou-a um instante em seus braços e apenas lhe disse
essa frase:
"Hoje não é o seu dia, né?"
A criança pareceu subitamente calma. Sacudiu a cabeça e depois deixou
sua mãe para ir fazer os seus deveres.
8
Oferecer nossa presença
Tudo o que eu gostaria de realizar não é nada se comparado a
essa coisa mágica que é o fato de existir.
Éric Baret
A manifestação do respeito pelo outro, ou seja, a empatia, nem teria
valor se não fosse o reflexo de um respeito por si mesmo. É um grande presente
que podemos dar aos nossos filhos: oferecer-lhes a força da nossa presença.
Participarmos de suas vidas, estarmos conscientes do que está acontecendo, das
solicitações do nosso ambiente, das mensagens que as pessoas que nos cercam
nos enviam, do que vivenciamos.
Essa presença é realmente um presente, constitui por si só um contexto
de segurança para os jovens. Para eles, as referências fundamentais são dadas
pela clareza dos pais, dos professores. As regras que instauramos, os pedidos
que fazemos têm valor acima de tudo a partir dessa clareza. A verdadeira
autoridade não pode ser imposta, ela é concedida por um grupo. É o sentimento
de paz interior de uma pessoa que leva outras a terem confiança nela.
Essa qualidade de presença se manifesta de várias maneiras. Primeiro,
ela se baseia na nossa autenticidade no instante: quando nos voltamos para o
que está dentro de nós, tanto no plano corporal como no emocional e
intelectual, e simplesmente o exprimimos. Essa capacidade de manifestar a
nossa vulnerabilidade é vista pela CNV como o contrário de uma fraqueza. Ela
representa uma das forças de um ser humano.
Isso vai de encontro a muitos esquemas culturais contempo-râneos. Em
grande parte dos filmes destinados aos adolescentes, a característica dos heróis
é a sua impassibilidade diante dos acontecimentos. Mesmo nas profundezas da
floresta ou na frente de um revólver apontado para eles, nada parece atingi-los.
Essa indiferença com relação às circunstâncias é apresentada como um modelo
para o público. Temo que a referência então adquirida pelo espectador seja o
recalque de suas emoções, em detrimento do desenvolvimento de uma
verdadeira inteligência emocional: a capacidade de percebê-las, exprimi-las e
geri-las.
Não que a serenidade face às situações delicadas não me pareça um
objetivo a ser alcançado. Porém, essa tranqüilidade só me deixa seguro quando
é resultado de um processo de aceitação de nossa vulnerabilidade e de tomada
de consciência de nossos limites. Ao recalcarmos nossas emoções, obtemos um
certo controle do instante, cuja conseqüência, com a qual teremos de arcar mais
tarde, é uma tensão escondida. A presença não pode ser encarnada a partir de
uma força de vontade ou de reflexão. Ela nasce de um desapego e segue o curso
de nossos sentimentos.
Assumir a responsabilidade de nossas necessidades também me parece
essencial. Trata-se de permanecermos fiéis ao que sentimos, não nos
misturarmos com as reações dos outros, ao mesmo tempo em que respeitamos
nossas necessidades. Este equilíbrio entre uma atitude clara, firme para si e
aberta para o outro cria condições de segurança para as crianças, antes de
realizarmos qualquer ação.
Nossa autenticidade não será necessariamente algo fácil de entender
para o nosso interlocutor. A CNV não visa à gentileza (se esta consiste em
acreditar que é preferível evitar os conflitos), mas à benevolência, quer dizer, o
respeito pelo que está dentro de nós e a confiança no que sua expressão
honesta vai trazer. Às vezes, o estar presente de verdade pode tomar a forma da
expressão de nossa raiva, contanto que possamos demonstrá-la de maneira
construtiva.
Há tantas pessoas desajeitadas na manifestação de sua raiva que muitas
se protegem desse sentimento antecipadamente, não querendo exprimi-lo ou
recebê-lo. Para ajudar tais pessoas e entender este sentimento como uma forma
de vulnerabilidade, a CNV preconiza assumir a plena responsabilidade dele e
terminar nossas intervenções por pedidos concretos e positivos. Portanto,
perceber que não estou irritado com alguém, mas com raiva porque gostaria de
satisfazer tal necessidade, não gritar para o outro tudo o que nos desagrada
nele, mas lhe dizer o que nos fez falta e o que queremos.
Um amigo que pratica a CNV há alguns anos me comunicou algumas
mudanças que essa visão o levou a introduzir na sua comunicação com seus
filhos. Ele tinha adquirido dos seus pais o hábito de ameaçar para obter o que
desejava. Descontente com essa transmissão, ele concentrou sua atenção no ato
de conversar com seus filhos com autenticidade. Mesmo na expressão de sua
raiva, ele descobriu que, agindo dessa maneira, ele obtinha deles o que desejava
de modo mais fácil, e não mais pela força do medo. Por exemplo, quando seu
filho percebia que, se seu pai estava bravo, era em primeiro lugar em função do
seu cansaço e de sua necessidade de preservar seu tempo — e não sendo ele a
causa disso —, ele ficava comovido, mas sem culpa.
9
Respeito por nossos sentimentos
Quando você parar de achar que compreende o seu filho... lhe
restará a admiração, o sentimento, a brincadeira, o amor.
Éric Baret
Aprender a se conhecer, a desenvolver uma ligação benevolente consigo
mesmo me parece no mínimo tão importante quanto saber ler e escrever bem.
E, de fato, se tivéssemos os indicadores para poder calcular a taxa de
analfabetismo emocional e corporal no final do período escolar, acho que os
números seriam aterradores. Na Suíça, um nível de analfabetismo de 15% ou
20% preocupa. O que diríamos então de uma proporção de 80% a 90% de
analfabetos emocionais e corporais? Lançamos na vida "ativa" inúmeros
indivíduos que não aprenderam a se escutar, que tomaram o hábito de recalcar
suas tensões e que não sabem que palavras podem traduzir o seu mal-estar. A
isto vêm se juntar, no âmbito das estatísticas, as altas taxas de depressão,
obesidade, suicídios e divórcios. Espero que um dia essa matéria essencial por
definição (o seu próprio ser) seja ensinada nas escolas.
Vamos pensar na forma que essa parte fundamental da educação
poderia ter.
Imagino-a na forma de um único ateliê: o do conhecimento de si mesmo.
O ser humano seria estudado em sua globalidade, cada parte remetendo à
outra. O que importa é a aquisição de um reflexo de atenção às mensagens que
o nosso corpo nos envia quando estamos perturbados, em vez de recalcar esta
informação, como tantos de nós aprenderam a fazer. E assim desenvolver a
confiança em nossos sentimentos.
Vamos explorar as diferentes portas de acesso a nós mesmos, duas das
quais são privilegiadas e devem ser enfatizadas: os sentimentos corporais e as
emoções. É claro que a mensagem de uma porta está profundamente ligada à da
outra.
A visão de um professor dedicado à inteligência corporal seria no sentido
de que a criança redescobrisse a comodidade e o prazer de habitar o seu corpo
(segundo a expressão de Thérèse Bertherat2
). Para conseguir isso, em vez de um
método escolhido entre as dezenas que figuram no mercado do bem-estar, o
que conta, na minha opinião, é a permanência da consciência das necessidades
corporais ao longo dos estudos.
Devemos ajudar os jovens a estarem disponíveis para a escuta e a cuidar
das suas necessidades físicas: movimentar-se, alimentar-se, relaxar de maneira
saudável e respeitosa.
Temos de ensinar às crianças o ato de prestar atenção nos sinais do seu
corpo quando exprime tensões, indisposições, contrariedades e inquietudes.
Devemos lhes dar as chaves para aceitar e transformar esses mal-estares.
Por exemplo:
 Realizar jogos, espaços e rituais para favorecer as necessidades de
movimento nas turmas, como rodas de reflexão onde seria possível
cogitar um assunto ao mesmo tempo em que todos andam.
 Ritmar os tempos de estudos por momentos de concentração,
relaxamento ou liberação das tensões corporais.
 Prever momentos de expressão, de compartilhamento dos
sentimentos psíquicos e suas mensagens.
 Oferecer aos alunos assentos ergonômicos, bolas ou bancos.
 Ter uma abertura da parte dos professores às posições corporais
freqüentemente julgadas desrespeitosas, as quais eu associo mais ao
cansaço ou ao tédio.
 Propor ateliês para desenvolver o sentido do ritmo: rítmica,
eurritmia, dança, etc.
Quanto à inteligência emocional, poderíamos propor às crianças uma
alfabetização. As mensagens veiculadas pelos sentimentos deveriam se tornar
para eles como que placas de trânsito. Cada um deve conhecer seu sentido: uma
placa de rua sem saída, um sentido proibido, uma ultrapassagem de limite de
velocidade... Mensagens que eles poderiam aprender a aceitar, sejam elas quais
2 Thérèse Bertherat criou e desenvolveu, em meados da década de 1970, em Paris, a antiginástica, técnica que
permite conhecer melhor o seu próprio corpo e realizar novos movimentos, diferentes dos praticados
cotidianamente. Segundo ela, devemos esquecer os lugares-comuns de que somos "moles ou fracos demais,
gordos ou magros demais", pois todos somos muito bem-feitos. Porém, nossa forma perfeita é mascarada por
crispações, dores, deformações, etc. Fonte: site oficial de Thérèse Bertherat, http://www.antigymnastique.com
(N.T.).
forem, em vez de se voltar vagamente para os "bons" sentimentos e tentar
sufocar a força de vida dos outros.
Por exemplo, o tédio ou a frustração, sentimentos "horríveis" aos quais
não damos consideração na nossa sociedade de lazeres, poderiam ser
apresentados como oportunidades de se conhecer melhor, convites para escutar
a si mesmo.
Ou então a raiva, potência constrangedora que revela nossa inabilidade
a exprimir nosso mal-estar. As crianças poderiam treinar "gritá-la" estando
conscientes do que querem, e não, como de costume, exprimindo algo de que
não gostam no outro.
E mesmo os medos, turbulências subterrâneas que se escondem tão
bem. Os alunos poderiam ensaiar ir buscá-los atrás dos discursos animadores,
dos sentimentos aparentes ou dos comportamentos provocadores.
Ou ainda a surpresa, chave de nossa relação com o mundo emocional. Se
os jovens percebessem que ela pode trazer mais alegria do que pânico, a simples
descoberta ajudaria a formar cidadãos abertos à diferença.
O aprendizado também consiste em realizar nossos movimentos de fuga
com relação a emoções que nos perturbam. É, em seguida, adquirir os meios de
administrá-las: a capacidade de se concentrar, de prestar atenção em si mesmo,
de se deixar surpreender pela energia que surge no coração, de acolher as ondas
dessa corrente, de colocar uma delas de lado quando nos submerge, etc.
Uma amiga minha me contou uma maneira inspiradora de iniciar um be-
a-bá emocional. No seu jardim-de-infância sempre perguntam de manhã a cada
recém-chegado como ele se sente. Quando se expressa, ele entra numa roda
onde todos os participantes cantam várias vezes o seu nome e a emoção que ele
está sentido:
"João está triste esta manhã, João está triste esta manhã."
Guardo a alegre lembrança de uma experiência que vivi numa colônia de
férias. Para iniciar as crianças à expressão de seus sentimentos, tínhamos
pintado um grande círculo no qual diferentes emoções correspondiam a uma
cor. Antes da reunião cotidiana, cada um pintava o seu rosto seguindo esse
código, as cores representando sua sensibilidade do momento.
10
Uma pedagogia da espontaneidade
Não fazemos questão de que a criança esteja interessada pelo
seu trabalho. Pedimos-lhe somente para obedecer. Se, na
turma, com freqüência ela parece tão pouco inteligente, é
porque não sacudimos seu espírito, não nos demos ao
trabalho de despertar sua curiosidade.
Henri Roorda
Várias vezes fiquei chocado, ao conversar com estudantes, de constatar
a que ponto o interesse que eles demonstravam por tal assunto era
condicionado e limitado pelas diretivas que lhes tinham sido dadas.
"Tá, mas isso não está no programa."
"Não é o que o professor quer."
"Não vale a pena estudar tal matéria, não vai cair na prova mesmo!"
Que tristeza: eles viam o mundo não a partir de sua curiosidade, mas de
acordo com a imposição de uma hierarquia.
Quando observo a incrível força de curiosidade presente na criança bem
novinha, a que ponto todo o seu ser é captado por cada novo tema de
descoberta, fico desesperado ao ver o contraste com o estudante-padrão. Que
impulso de vida se apagou e quanto o indivíduo aprendeu a se limitar! E não
somente a sua curiosidade. Estando essa qualidade restrita, uma parte da sua
inteligência e de sua capacidade de adaptação morre.
O que impediria, e mesmo suscitaria, o entusiasmo do jovem com
relação à descoberta do mundo? O que falta para ele confiar na plenitude do
movimento que o fez aprender, nos primeiros anos de sua vida, um ou mais
idiomas, sem programa preestabelecido? Por que não dar prioridade ao que
mobiliza a sua atenção neste instante?
Essa pedagogia, que enfatiza a espontaneidade, implica inverter a lógica
da iniciativa de aquisição no seio da escola pública. Não vamos mais partir do
objetivo de um Estado, mas da interação das necessidades individuais tanto dos
alunos como dos professores. Isso implica também desenvolver meios para
esclarecer essas necessidades em presença, possíveis estratégias no momento e
estabelecer processos de acompanhamento para permitir tirar o máximo
proveito das escolhas efetuadas.
Se desejamos incitar os jovens a ter prazer em aprender, é necessário
que os pedagogos comecem por se divertir. Em seguida, eles naturalmente
mostrarão aos seus alunos a alegria de explorar. O que o professor vai transmitir
é antes de tudo o seu entusiasmo por uma matéria.
Desse ponto de vista, a tarefa primordial do professor é conservar a sua
própria espontaneidade, manter a ligação com os sonhos que o levam a exercer
a sua profissão. Esse aspecto agradável do seu trabalho demanda que suas
motivações, que evidentemente evoluem com o tempo, permaneçam claras
para ele. Essa vigilância vai levá-lo a desenvolver um conhecimento de si mesmo
e uma conexão com suas necessidades. Essas capacidades lhe serão úteis nos
momentos agitados que surgem durante o ano letivo.
A fim de prevenir o esgotamento e o desestímulo dos professores, duas
ajudas me parecem preciosas: criar espaços de acolhida empática, para dar
conta de assuntos de escuta atrasados, facilmente acumulados numa profissão
em que se dá o melhor de si aos outros, e prever intervalos regulares de
revigoramento, um por ano por exemplo, onde os professores poderiam estar
certos de manterem os laços com suas aspirações profundas.
Além da ação empolgante do professor, outros fatores permitem que os
jovens se voltem para a aventura infinitamente apaixonante que é o
questionamento da vida. Um contexto rico, aberto e motivante, junto com vários
instrumentos e temas de exploração à disposição. A menor pressão possível
quanto a um objetivo enquanto o estudante não tiver escolhido uma direção
clara — visto que as obrigações provocam uma resistência proporcional à força
exercida, o que leva a uma queda da espontaneidade interior.
Isso não quer dizer que abandonamos a noção de objetivo. Quando um
aluno se foca num projeto, com o aval do seu professor, são definidos objetivos,
que no entanto evoluem. Avaliações conjuntas regulares permitem adaptá-los
para que permaneçam a serviço da iniciativa de aprendizado e não se tornem
obstáculos.
O essencial não está no projeto escolhido, mas na maneira como ele é
vivido pelo jovem e como seu encaminhamento é explorado pelo professor. A
construção de pipas não tem nem mais nem menos valor do que a
trigonometria, contanto que a matéria seja abordada com paixão e que o
contexto permita que o que foi aprendido dê frutos.
11
Aprender a não saber tudo
O questionamento, base de uma pedagogia
não-diretiva
Eu me pergunto se, quando uma tartaruga esconde a cabeça
na sua carapaça, lá dentro é tão escuro que ela tem medo de
ficar ali.
Eu me pergunto se uma pedra gosta de ser dura.
Eu me pergunto se o céu gosta de ser azul.
Ruth Bebermeyer
Recentemente, durante um curso que ministrei a adolescentes com a
minha colega Fabienne Rauch, pudemos experimentar a magnífica capacidade
de questionamento do mundo que acontece nessa idade graças a uma das
participantes, que exprimiu suas dúvidas quanto ao que propúnhamos. Nós lhe
tínhamos comunicado todo o prazer que sentimos ao descobrir sua faculdade de
questionamento do que dizíamos e a segurança que isso nos proporcionava, pois
dessa forma, sabendo que o nosso discurso passaria pelo crivo da crítica,
podíamos nos permitir sermos menos vigilantes.
No entanto, essa menina baseava suas observações em suas
representações do mundo, as quais temíamos serem imutáveis. De fato, ela nos
dizia: "Não vou mudar minhas idéias" ou "Tenho minha opinião". Ela já tinha
aprendido a saber tudo! Acho isso uma pena, pois, se o questiona-mento é
baseado num sistema de representações já adquiridas, ele pode não ser
suficientemente pleno para criticar certas crenças imutáveis. Para conseguir uma
avaliação realmente livre do que nos acontece é necessário partir do não-saber.
Esse questionamento, que não sabe nada ou, em todo caso, não sabe mais nada
durante um tempo suficiente, representa para mim a chave da criatividade.
A escola que repete normas e contribui para mantê-las conduz as
crianças a certa rigidez de pensamento. A adoção de hipóteses apresentadas
como evidências, a multiplicação de respostas já prontas e os saberes a
ingurgitar sem comentários nem críticas reduzem a maravilhosa plasticidade do
espírito infantil. Cada certeza adquirida (lembre-se de que chamo de "certeza"
uma crença cristalizada) mata uma parte de nós mesmos. Esses "pensamentos
imutáveis" são obstáculos para a nossa capacidade de nos voltarmos para o
instante. Um espírito profundamente angustiado se agarra a essas crenças. Já
um espírito seguro de si aprende a desenvolver uma confiança no que está por
vir e a simplesmente manter um espírito aberto.
A chama da inteligência (que a educação reduz a cinzas com tanta
freqüência) é a potência de Um questionamento permanente, de um olhar
sempre novo sobre as coisas, de um olhar que não considera nada como já dado.
É o presente do ato de colocar em questão certas convicções do professor e do
aluno, para que eles sigam juntos por caminhos nunca antes trilhados.
A chama da inteligência é o olhar extraordinário que a criança pequena,
eternamente surpresa, lança sobre o mundo. A magia revelada nos desenhos de
um pedaço de madeira, na forma de uma montanha, nas cores de um alimento.
E afloram as questões:
"Por que as chamas nunca descem? O que a grama sente quando é
cortada? De onde vem a água da fonte, já que não chove há uma
semana?"
Que mundo surgiria se as crianças fossem encorajadas a continuar esse
questionamento?
É um motivo a mais para a exploração pedagógica da espontaneidade
dos jovens, que permite ao tema explorado manter a sua atualidade e ser
trabalhado por inteiro.
Uma escola ao meu gosto enfatizaria tanto a desaprendizagem quanto a
aprendizagem. Trataríamos um assunto uma primeira vez, depois diríamos aos
jovens para esquecê-lo durante um tempo e, em seguida, o retomaríamos. O
que permaneceu? Como essa parte se integrou ao espírito deles? Revejamos os
elementos que a memória não guardou na consciência, como se eles nunca
tivessem sido tratados. Como olhá-los de outra forma, permitindo-lhes revelar
seus diferentes aspectos?
Vamos estimular os estudantes a ficarem com os seus questionamentos.
Acima de tudo, não se deve pressioná-los para que assimilem um tema — senão
rapidamente eles correm o risco de se contentarem com uma aquisição. Vamos
deixar as interrogações amadurecerem neles, ajudá-los depois a formulá-las,
construir pontes com outros elementos.
Vamos favorecer sua faculdade de duvidar, de colocar em questão seu
filtro de interpretação dos acontecimentos. Assim os ajudaremos a manter a
vivacidade natural de seus espíritos, a chama inata do questionamento.
Contribuímos para que eles se tornem membros ativos da sociedade, ou seja,
cidadãos perturbadores. Esse poder de suscitar e de ficar no desconforto
permitirá a evolução do seu meio ambiente.
É o peso de nossos saberes que representa o principal obstáculo para a
vida criativa e o conhecimento mais íntimo do mundo.
É a nossa relação com a surpresa que revela nossa capacidade de aceitar
o mundo tal como ele é, em vez de defender nossas crenças.
12
O problema dos limites
A cultura busca a norma, a adesão coletiva, e persegue o
anormal.
Jean Dubuffet
Um grande problema na educação são os limites. Regularmente escuto
pais me dizerem:
"Tudo bem, mas de qualquer forma é preciso impor limites aos nossos
filhos!"
Sempre tenho vontade de lhes responder (na verdade, começo
escutando-os, pois isso permite que nos entendamos mais rápido):
"Concordo perfeitamente, mas será que você pode me explicar o que
você entende por limite?" porque vejo que diferentes significados se
escondem por trás desse termo.
Para mim, quando uma pessoa fala de limites, a questão fundamental é
saber se ela está falando de uma necessidade ou de uma visão estratégica.*
No âmbito da necessidade, constato que as crianças (e, na verdade, os
adultos também) se sentem seguros num contexto claro. É possível criá-los
através de referências, que são meios a serviço da vida. Para delimitar o
contexto devemos utilizar limites precisos com um objetivo construtivo. Se as
referências não convêm mais, podemos substituí-las por outras, contanto que
elas permitam responder às necessidades de presença (mais freqüentemente a
segurança, o sentido ou a pertença).
Nessa perspectiva, o limite representa um apoio para a relação, em cuja
proteção a atenção é concentrada. Por exemplo, quando um professor propõe,
como regra de comunicação para a turma, que cada aluno fale de uma vez sem
ser interrompido. Se essa estratégia estiver explicitamente associada às
* Para deixar claro, gostaria de especificar que, quando emprego o termo "estratégia", não faço julgamentos
de valor sobre ele. Utilizo-o para designar a implantação de ações para satisfazer necessidades.
necessidades de compartilhamento e clareza das quais provém, há chance de ela
ser aceita como ajuda, e não como outra imposição vinda dos adultos.
No cotidiano, a complicação deriva muito da atração que as situações
exercem sobre nós. De tanto pensar, soluções acabam se impondo a nós. No
entanto, assim que acreditamos saber a maneira exata como a nossa
necessidade deve ser satisfeita, não estamos mais em contato com ela, mas com
o âmbito da estratégia.
É claro que uma hora empregaremos meios de ação, mas com
freqüência, quando as pessoas falam de limites, elas já têm idéias rígidas sobre
os que devem ser impostos. São regras, punições, palmadas, advertências. Eles
lhes passam um sentido de obrigação, e não de ajuda.
Uma dificuldade crucial nas relações entre pais e filhos vem do fato de
que, com muita freqüência, os primeiros têm claramente na cabeça as
estratégias que querem instaurar com relação à sua prole, mas não as
necessidades que alimentam através delas. Eles afirmam para mim:
"É necessário que nossa filha vá dormir antes das nove da noite." "Faço
questão de que meus filhos tenham uma alimentação variada." Etc.
Suas estratégias são claras. Contudo, quando lhes pergunto:
"Por que essa maneira de agir é importante para você e não para o seu
filho? Posso imaginar o sentido que você vê nessa regra para o seu filho,
mas, e para você?", fico espantado com o tempo necessário para
encontrar uma resposta.
Quando esses pais entram em contato com as necessidades que eles
buscam satisfazer através de suas exigências, com freqüência estas últimas
desaparecem ou se modificam. Por exemplo: uma vez que percebem que o
essencial para eles é se reservar um tempo de revigoramento à noite, o pedido à
sua filha se torna: "Não nos perturbe depois das nove da noite."
Se uma necessidade não estiver claramente expressa, isso
automaticamente estimula no interlocutor um reflexo de defesa ligado à sua
necessidade de autonomia. Tendo visto essa resistência na prática, numa
quantidade considerável de casos, tirei a conclusão de que um dos maiores
serviços que podemos prestar aos nossos filhos é sermos claros quanto às nossas
necessidades quando lhes pedimos alguma coisa. E, a partir daí, estarmos, quanto
possível, mais abertos às estratégias implantadas para satisfazer tal necessidade.
Gostaria de dissipar certas representações que escutei várias vezes sobre
a não-diretividade. Para explicar as causas delas, devo em primeiro lugar abordar
a noção de crença. Esta última faz parte de uma representação binária do
mundo. Cada fixação mental tem seu oposto, que não é um outro paradigma,
mas o outro lado da medalha. Se imaginarmos uma coisa certa, estaremos
prontos a considerá-la errada. Se projetarmos sobre alguém uma fantasia de
inteligência, aceitaremos de modo inconsciente a imagem de sua estupidez.
Na nossa cultura da eficácia, muitas pessoas estão acostumadas a se
focalizarem nas estratégias. Quando surgiu a moda de uma educação menos
diretiva, elas pensavam: "Antes, eu impunha limites. Pois bem, vou mudar minha
maneira de agir: vou eliminá-los!"
Na verdade, elas permaneceram completamente no mesmo sistema de
crenças, mas imaginaram aderir a um sistema não-diretivo enquanto que na
realidade tinham passado de uma atitude diretiva a uma negligência.
Portanto, as pessoas envolvidas pelas crenças sobre a não-diretividade
eliminaram várias obrigações que impunham anteriormente e se convenceram
de que tinham mudado de doutrina pedagógica. O que evidentemente provocou
situações pouco agradáveis. Seus filhos não tinham mais segurança em função
da falta de referências, e os professores se enrascaram na confusão que havia no
início. Como ninguém se entendeu, depois de um tempo os adultos afirmaram:
"A não-diretividade não funciona, vamos instaurar novamente os limites!"
Essa alternância, a partir de uma confusão, ainda poderia durar muito
tempo. Pelo menos enquanto não houver a compreensão de que diretividade e
permissividade são os dois pólos da mesma esfera de consciência.
Então, como impor limites a partir da consciência das necessidades?
Uma pedagogia não-diretiva não se apóia nas representações hierárquicas,
sanções e outros meios de obrigação. Para sustentar seu funcionamento, ela
utiliza outros elementos:
 a maior clareza possível na circulação da informação;
 a autonomização da maioria de seus atores;
 a confiança recíproca;
 o aumento da quantidade de referências.
Os limites não devem ser suprimidos, pelo contrário, devem ser
aumentados. Um sistema não-diretivo se caracteriza por um número de
referências maior.
Mais do que no âmbito do fazer, é no do ser que os limites adquirem
potência. A clareza sobre as nossas necessidades, a fidelidade a nós mesmos e a
nossa coerência são belos limites para os outros. Tenho a convicção de que, se
desenvolvermos essa arquitetura interna, teremos menos necessidade de impor
uma estrutura externa para atenuar a nossa confusão.
Em todo caso, para favorecer a vida social, as referências são grandes
apoios. Elas podem tomar as formas:
 de transmissão de informações:
"A lei estipula que é proibido fumar aos menores de dezoito anos."
"O costume neste prédio é de os moradores dizerem bom-dia quando se
cruzam."
 de opinião:
"A fumaça do cigarro me incomoda. Eu acharia respeitoso se
conviéssemos que nesta sala ninguém deve fumar."
 de expressão da nossa autenticidade:
"Fico preocupado quando você me diz que vai acampar com dois amigos
da mesma idade. Preciso me assegurar de que manteremos contato
durante esse período."
 de pedidos concretos e realizáveis:
"Você pode conversar agora? Há algo que o impediria de fazer o que eu
lhe pedi?"
 de negociação de regras de vida:
"Alguém gostaria que nossas sessões não fossem encabeçadas por um
animador? Se sim, pode dizer o porquê?
 de esclarecimento dos campos não-negociáveis:
"Se você quer fazer parte do nosso time de futebol, tem de vir a pelo
menos um treino por semana. Você está preparado para aceitar isso?"
 de indicação da causalidade ligada a uma ação:
"Se você colocar a mão nessa resistência elétrica, vai se queimar." Etc.
O importante não é tanto o limite escolhido dentre a multiplicidade
existente, mas sim a certeza de que:
 Nós o impomos corretamente para beneficiar a relação.
 Conseguimos que ele seja percebido assim.
 Há uma quantidade suficiente de limites para "alimentar" as
necessidades ativadas.
13
O valor da palavra
A palavra é a sua aliada, mas nunca a sua substituta!
Janusz Korczak
O instrumento privilegiado que utilizamos numa pedagogia não-diretiva
é a comunicação. Porém, para que a palavra se torne realmente uma ajuda, é
preciso que ela tenha adquirido uma consideração particular. Por isso, acho útil
apresentá-la às crianças como um elemento que a priori questionamos apenas
por uma razão salutar.
Ao darmos mais força à palavra, visamos a dar mais importância à
responsabilização. Para funcionar, a não-diretividade precisa de certo grau de
implicação dos seus membros. Ela se apóia numa tomada de responsabilidade
individual, proporcional aos meios de cada um e de cada uma.
Vejamos como proceder.
 Desenvolvendo uma atitude coerente. Em primeiro lugar, nós
mesmos devemos fazer o que dizemos e dizer o que fazemos. Quantas
vezes escutei pais ameaçarem seus filhos de ações que nunca
cometeriam?
"Se você não vier comigo, vou deixá-lo na loja!"
"Cuidado, se continuar, vamos pedir para esse policial prender você!"
Seus filhos acabam não levando a sério essas fantasias; dá para ver na
indiferença que manifestam diante dessas ameaças.
 Esforçando-nos para que as crianças respondam aos nossos pedidos.
Não se trata de forçá-las a satisfazê-los, mas de se engajar para obter
uma resposta autêntica. Essa qualidade de atenção não é inútil. Para
preservar a energia de todos, antes de fazer um pedido, vale a pena
pensar com carinho se ele faz realmente sentido.
Por exemplo, um pai pede ajuda numa tarefa ao seu filho, que,
recorrendo a uma estratégia corrente, aquiesce, mas não vai. O primeiro pode
parar um instante para verificar se o seu pedido faz sentido para si e depois
começar a tirar proveito desse pequeno conflito, dizendo:
"Fico chateado quando escuto você dizer sim e não vir me ajudar. Prefiro
que me diga logo não, pelo menos eu sei o que esperar. Você sabe que a
honestidade nas nossas relações é importante para mim. Por isso, pode
me dizer o que passou pela sua cabeça quando você me respondeu?"
Mostrando a importância que damos ao respeito dos compromissos.
Resignar-se com relação às quebras de compromisso não tem nada a ver com a
não-diretividade. Pelo contrário, ela nos conduz a não deixá-las passarem
despercebidas. Podemos permanecer abertos à mensagem que procura se
expressar por trás da ruptura. Esta abertura implica uma escuta daquilo que
busca se fazer ouvir por trás das ações inábeis. Ela não quer dizer que aceitemos
esses atos ou que estejamos dispostos a questionar nossa posição.
Entretanto, podemos abrir um espaço para verificar:
"Ok, é isso o que você quer me dizer."
Podemos correr o risco de nos comovermos. E eu convido a todos a
correrem esse risco, porque, quanto mais o fizermos, mais a relação pode
evoluir. Devemos permanecer fiéis à nossa necessidade, se ela continuar viva
dentro de nós. Porém, devemos estar abertos quanto à escolha da maneira de
satisfazê-la. É uma posição básica da CNV: estarmos atentos às nossas
necessidades e flexíveis com relação às estratégias a serem empregadas.
O valor conferido ao compromisso e à tomada de responsabilidade
poderia parecer em contradição com a importância da acolhida do instante. No
entanto, não os vejo como dois fatores que se opõem, mas, ao contrário, que se
equilibram. A visão de longo prazo sustenta a escuta do instante.
É preciso levar em consideração a fluidez da emoção. Esta é realmente a
mensagem mais segura na comunicação, contanto que não seja escutada como
um objeto isolado, mas como elemento de uma dinâmica em curso. Várias vezes
assisti a essa necessidade de acolhê-la com uma distância.
Dessa forma, digamos que uma pessoa enxergue o seu esgotamento e a
necessidade de respeitar seu ritmo de vida. Perceba a que ponto não o escutou
nos últimos tempos. Esta tomada de consciência a conduz a parar tal atividade,
cansativa demais para ela. Voltando-se para tal possibilidade, ela é invadida por
um imenso alívio. Para ela, tudo parece estar no seu lugar... e está. No entanto,
se continuar sua escuta, ela será levada a prestar atenção numa necessidade de
segurança material e a lhe dar prioridade. Escolherá manter seu emprego, mas
este lhe demandará menos energia porque as razões de sua escolha se tornarão
claras para ela. Se essa pessoa tivesse acreditado em sua emoção rápido demais
ou se lhe tivesse dado apenas uma acolhida fragmentária, poderia ter tomado
uma decisão que na realidade seria precipitada demais para ela. O que não quer
dizer que ela não pedirá demissão em seis meses, quando esse impulso tiver
amadurecido o suficiente.
Podemos levar uma vida fundada unicamente na prioridade dada ao que
acontece instante após instante. Posso admirar tal escolha; só que, para mim,
ela não é conciliável com a não-diretividade. Viver a cooperação nesse sistema
pedagógico implica nutrir relações que levem em consideração o respeito pelas
necessidades do grupo e, portanto, visão de longo prazo.
14
Observar ou imaginar o mundo
A criança, que vê os mínimos e reais detalhes do mundo, deve
ter sobre nós, que vemos imagens de nossas sínteses mentais
— inacessíveis para ela —, uma idéia de inferioridade; ela
deve nos considerar como incapazes, como pessoas que não
sabem enxergar.
Maria Montessori
O primeiro convite da CNV é o de desenvolvermos uma sensibilidade
quanto às coisas que existem e de estarmos conscientes dos comentários que
acrescentamos a elas. Quanto mais potente é o movimento de observação,
menos se julgará. E, mesmo que nos percamos num "cinema interior" a partir
dos fatos que gravamos na mente, a todo instante é possível voltar ao rigor da
observação constatando sem comentários as imagens com as quais brincamos.
A atenção ao que acontece é o movimento natural da criança bem
novinha. A intensidade de sua relação com o mundo é tal que não há — ou há
pouca — distância entre ela e o objeto que a atrai. Todo o seu ser é mobilizado
pela relação presente: a dança da vassoura sobre o chão, os jogos de luz na
concavidade de uma colher ou os fascinantes relevos do purê de batatas no seu
prato.
Contudo, na nossa sociedade, onde os intermediários eletrônicos estão
em todo lugar, essa ligação privilegiada com o instante se fragiliza. A
multiplicação dos meios virtuais de comunicação aumenta a nossa propensão a
nos protegermos da realidade imaginando-a. Além da diminuição dos contatos
reais, a insistência desses meios na distração estimula nossos sistemas de
proteção. Em vez de nos voltarmos para as emoções originadas pela
confrontação, rejeitamo-las comentando os acontecimentos. O risco que se
corre é o de dar, pouco a pouco, uma prioridade interior aos comentários sobre
os fatos objetivos, o que em longo prazo provoca sofrimento.
Regularmente acompanho grupos de jovens em programas na natureza
e fico espantado com a dificuldade deles em se conectar ao seu meio ambiente.
Nas saídas para observação de animais, escuto-os falarem durante horas, dias,
sobre a sua convivência na turma ou seus lazeres, às vezes mesmo quando os
bichos que eles foram ver estão na sua frente. Essa distância com o presente não
revela uma falta de interesse pela natureza, não é o que eles me dizem quando
os questiono, mas um hábito de inatenção já bastante consolidado.
Fui levado a comparar minha capacidade de atenção no mundo e a que
consigo dar a mim mesmo. Pude perceber que, quando aprendia nem que fosse
só um pouco a olhar para mim, essa aptidão se transformava numa abertura
maior para os outros. Para mim, é doloroso sentir então essa deserção de si
mesmo nos jovens, que, há alguns anos, educavam-me para que eu avivasse
meu olhar sobre as coisas.
Por isso, aspiro a que o ato de observar se torne outra prioridade da
educação. Que a criança possa conservar a profundidade de sua relação
sensorial com o mundo. Que ela desaprenda a pensar suas relações, se já estiver
contaminada por esse hábito, e se instrua para vivê-las com a mesma
intensidade de quando ela toca, escuta, vê, experimenta e cheira.
Uma educação da observação enfatizaria dois eixos que se completam
mutuamente:
 Desenvolver uma relação rigorosa com a realidade.
Tomar consciência da nossa dificuldade em não julgar o que nos cerca.
Desenvolver a capacidade de distinguir os fatos objetivos dos julgamentos, bem
como assumir a responsabilidade da nossa subjetividade.
Essa compreensão poderia ser criada através de brincadeiras como
"Kim" (na qual se deve citar o máximo de objetos escondidos sob um pano, que
só foi retirado durante alguns segundos); a descrição de cenas representadas,
quadros, paisagens, como se o narrador quisesse ajudar um cego a pintá-los; a
visita de um laboratório de física para descobrir os meios que a ciência possui
para observar o mundo; etc. As possibilidades são limitadas apenas pela
criatividade do pedagogo.
Esse aprendizado faz com que o amor pela verdade cresça.
Sensibilizar-se quanto à potência de nossos sentimentos.
Desenvolver uma pedagogia multissensorial, que compensaria a atual
tirania da visão em detrimento dos outros sentidos. Essa atenção a todos os
sentidos é o ponto de partida da pedagogia aplicada nas escolas Steiner.3
As brincadeiras que estimulam a nossa capacidade de espanto e de
maravilhamento contribuem para o aumento dessas capacidades. Alguns
exemplos: passeios sensoriais com os olhos tapados, a pintura de vistas que nos
surpreendem, a criação de um mapa sonoro ou olfativo do nosso meio
ambiente, etc.
Esse aprendizado ajuda a aumentar o amor pela beleza.
3 "Introduzida por Rudolf Steiner em 1919, em Stuttgart, Alemanha, uma das principais características esta
pedagogia é o embasamento na concepção de desenvolvimento do ser humano, criada pelo próprio Rudolf
Steiner, que leva em conta as diferentes características das crianças e jovens, segundo sua idade aproximada.
Um mesmo assunto é abordado várias vezes durante o ciclo escolar, mas nunca da mesma maneira, e sempre
respeitando a capacidade de compreensão da criança. Para atingir a formação do ser humano, a pedagogia
atua no desenvolvimento físico, anímico e espiritual do aluno, incentivando o querer (agir) por meio da
atividade corpórea das crianças em quase todas as aulas. O sentir é estimulado na constante abordagem
artística e nas atividades artesanais específicas para cada idade. O pensar é cultivado paulatinamente, desde a
imaginação incentivada por meio de contos, lendas e mitos — no início da escolaridade —, até o pensar
abstrato rigorosamente científico do Ensino Médio (colegial)." Fonte: http://www.ewrs.com.br/pedagogia.htm
(N.T.).
15
O triângulo relacional
Podemos contribuir para o aprendizado de uma criança, mas
não ensinar.
Marshall Rosenberg
Uma representação do ser humano me ajuda muito a apreender a
complexidade de suas motivações. Pais e professores já me confessaram se
apoiar nela para decodificar os comportamentos de crianças que lhes pareciam
contraditórias demais.
Nas relações humanas, uma freqüente complicação é a crença segundo
a qual um indivíduo é inteiriço, uma personalidade monolítica, que às vezes
tende para uma direção e às vezes para outras. O trabalho que pude realizar
sobre os jogos das relações me convenceu do contrário: vejo os indivíduos
como seres eternamente divididos em partes interiores que, por sua vez, com
freqüência se opõem. É por isso que um adolescente pode mandar seus pais se
catarem num instante e, no momento seguinte, repreendê-los por não lhe
darem atenção. Aqui não há paradoxo ou espírito de perversidade, mas a
expressão de um conflito interno. Ele está vivendo um dilema entre uma fração
íntima que aspira a mais liberdade e outra que sente grande necessidade de
segurança.
A multiplicidade de conflitos internos se desdobram em três grandes
partes:
 Chamo a primeira de "animadora" ou "exploradora". É ela que leva o
indivíduo a correr riscos, enfrentar desafios ou pedir demissão do
trabalho sem a segurança de ter encontrado outro. Também é ela que
incita a criança a se levantar e dar seus primeiros passos, etc. A
necessidade que ela encarna é a autonomia. Esta tendência nos faz
seguir em frente.
 Denomino a segunda de "protetora". Sua função é manter em
segurança todas as partes que compõem o ser humano. O que quer que
façamos, ela sempre procura segurança. O que não nos impede de saltar
de pára-quedas ou fazer escalada: ela simplesmente quer ser convencida
de que podemos viver tais situações com alguma forma de segurança,
pois esta é a necessidade que ela personifica acima de tudo. Esta
tendência nos faz dar um passo atrás.
 Batizei a terceira de "educadora". Ela representa a inclinação a tirar
partido de tudo o que nos acontece sob a forma de tomadas de
consciência. Se não virmos nenhum sentido numa ação, não a
realizamos, esta é a necessidade que esta parte encarna. Tal tendência
nos leva para cima.
Vejo essas três partes como guias que estão a nosso serviço e sempre
ativas, nunca páram de tomar conta de nós. Elas formam as três pontas de um
triângulo e cada uma puxa a brasa para a sua própria sardinha. A personalidade
de um ser humano se situa no interior dos três lados desse triângulo e tende
para uma ou outra direção em função da parte escutada no instante. No
entanto, seria uma ilusão acreditar que é possível ignorar uma dessas partes por
longo tempo. Quando uma delas não é escutada, acumula frustração e pouco a
pouco começa a gritar mais alto, até o momento em que nos força a levá-la em
consideração.
Quando tenho dificuldade em me ligar à força de vida por trás da
mensagem de um jovem, eu me pergunto:
"Qual dessas três partes ele está escutando agora?"
 Quando um aluno diz durante a aula: "Ah, estou perdendo meu
tempo, não serve para nada aprender essas datas!", é visível que a sua
parte educadora pede para entender melhor o sentido do que lhe é
proposto.
 Quando meu filho me confessa, com um tom desiludido: "De qualquer
forma, na audição não vou conseguir tocar essa música sem errar",
escuto sua parte protetora que tenta poupá-lo de uma decepção.
 E quando um jovem afirma: "estou com vontade de passar a noite
acordado com meus amigos", imagino que seja a sua parte animadora
que o leva a querer esse tipo de experiência.
É claro que o adulto também está exposto às mesmas leis da divisão
interna. Ele também enfrenta um dilema entre suas partes íntimas. Uma
educação mútua implica o mesmo respeito pela complexidade do triângulo dos
pais e professores que pelo do jovem.
O triângulo relacional também me ajuda a compreender as referências
que sustentam uma pedagogia não-diretiva. Se almejarmos um equilíbrio entre
as tendências contraditórias das três partes interiores, então os limites que
vamos impor, tanto para os nossos filhos como para nós mesmos, apresentarão
naturalmente certas características.
Para levar em conta a necessidade de segurança da "protetora", vamos
oferecer informações:
 numerosas,
 claras,
 confiáveis.
Para satisfazer à necessidade de sentido da "educadora", vamos dar
informações que serão ao mesmo tempo:
 associadas às nossas necessidades,
 bem explicadas,
 avaliáveis.
Por fim, para responder à necessidade de autonomia da "animadora",
nosso discurso será: flexível,
 questionável.
A prática desses oito critérios contribui para instaurar a condição básica
de um funcionamento não-diretivo: a riqueza dos recursos.
16
A relação de confiança
O que é essa metade da humanidade que, vivendo ao lado dos
e com os adultos, encontra-se ao mesmo tempo tão
dramaticamente separada deles? Nós a fazemos carregar o
fardo dos seus deveres de sujeitos de amanhã sem lhe
conceder os seus direitos de sujeitos de hoje.
Janusz Korczak
O que permite um equilíbrio entre nossas partes internas é a qualidade
da aceitação de cada uma. Esta atenção cria aos poucos uma relação de
confiança entre as três tendências. Quando não há tal benevolência, muitos
chegam a acreditar que têm adversários no interior de si mesmos. Isso porque,
de tanto não serem escutadas, as partes interiores começam a gritar
desajeitadamente e acabam sendo percebidas como inimigas! A "animadora" é
imaginada como um tirano; a "protetora", como um policial; a "educadora",
como um censor. Um dos objetivos da relação de ajuda na CNV é ajudar a pessoa
a perceber que, na verdade, as partes internas são amigas que sofrem com um
déficit de empatia.
Em seguida, nossos conflitos íntimos se revelam nas relações exteriores.
A falta de harmonia interior induz uma desconfiança com relação aos outros:
acreditamos termos algo a defender ou justificar. Ao contrário, a confiança que
podemos ter em outras pessoas desenvolve a confiança entre nossas partes
internas. Por isso, uma ajuda essencial que permite às crianças desenvolverem
uma amizade consigo mesmas (de acordo com o título de um livro de Pedma
Chödrön que eu adoro)4
, consiste em construir confiança em suas relações com
os outros, principalmente com as pessoas que representam modelos para elas.
Para mim, esse laço de confiança é a base de um trabalho educativo
profundo. É a primeira coisa que busco quando entro em contato com jovens. É
o ponto que quase sempre privilegio em caso de dilema.
A importância da relação de confiança reforça o sentido do investimento
4 Entrer en amitié avec soi-même. Paris: Pocket, 2000 (N.T.).
na faculdade de presença e de acolhida. A autenticidade e a empatia de pais e
professores representam exemplos inspiradores para as crianças. Qualidades
que são o que cada um deve dar a si mesmo se quiser alcançar o bem-estar em
sua vida.
17
Confrontar-se com as exigências
É evidente que a sociedade deva exercer um controle benéfico
sobre o indivíduo humano e é verdade também que a
educação deve ser considerada como uma ajuda para a vida,
mas esse controle nunca deve ser constrangedor nem
opressivo, mas sim um ajuda física e psíquica.
Maria Montessori
Freqüentemente os pais me dizem estarem descontentes com as
exigências que se vêem obrigados a fazer aos filhos. Eles gostariam de aplicar
melhor o processo da CNV, que implica pedidos negociáveis. Vejo que a tensão
para manter essa aspiração à não-exigência lhes custa muita energia e que eles
acabam oscilando entre este ideal sedutor e rupturas culpabilizantes com
relação a ele. Por fim, a idéia de funcionar sem exigência se torna para eles uma
nova forma de exigência.
Acho mais econômico primeiro exercermos uma benevolência quanto à
nossa natureza humana e aceitarmos o fato de esbarrarmos regularmente em
nossos limites internos, o que nos impede de dialogar o tempo todo. A partir
dessa indulgência, é com relação aos nossos limites que podemos aplicar a CNV.
A exigência surge então como a compensação desajeitada de necessidades
recalcadas.
Se criamos essa violência interna, é porque gostaríamos muito de ser
pais mais amáveis, mais disponíveis, mais alguma coisa. Isso porque, entre a
nossa situação atual e o que desejamos viver, conhecemos bem a diferença, que
nos é insuportável, e assim temos tendência a mascará-la, recalcá-la, o que cria
uma saturação emocional... até o dia em que as nossas barreiras se quebram. E
acabamos impondo às pessoas que nos cercam um comportamento que
detestamos. Portanto, é a beleza de nossos valores e ideais que
automaticamente suscita o peso de nossas exigências.
Daí a vantagem de não dirigirmos nossa atenção para os charmes do
futuro, mas sim acolhermos o que está presente no instante. Sermos brandos
com a nossa frustração, se for o caso, ou seja, concedermo-nos empatia. E, se o
nosso nervosismo persistir, aceitar viver com ele. Certamente, para os nossos
filhos, pareceremos muito mais coerentes na situação dada e pacíficos em longo
prazo. É ao aceitar nossa violência que começamos a mudá-la.
Parece-me útil lembrar que a cada exigência no interior de mim mesmo
corresponde uma outra que eu projeto sobre o mundo. Portanto, aprender a
administrar tanto a nossa violência interior como aquela que impomos às
pessoas que nos cercam dá no mesmo.
Dito isso, vejamos um processo mais detalhado para nos ajudar a fazer
exigências e, ao mesmo tempo, salvaguardar o máximo de benevolência mútua.
Partamos do exemplo de uma mãe furiosa com a sua filha, que acaba de se
recusar a lhe fazer um favor.
 Primeiro, concedo a mim mesma um tempo de acolhida.
Quais são os sinais de alarme? Meus pensamentos:
"Acho que minha filha está exagerando! Como ela é mimada! E ainda por
cima acha que eu sou a empregada dela!"
O que esses pensamentos me revelam dos sentimentos e necessidades
que estão dentro de mim?
"Eu me sinto exasperada, ressentida e decepcionada! Preciso de
reconhecimento pela dificuldade do papel de mãe, de empatia pelo
acúmulo da minha frustração (é claro que essa não é a primeira vez que
isso acontece!) e de apoio para as tarefas do cotidiano."
 Segundo, que escolha surge a partir da escuta de mim mesma?
Qual é a direção que a energia segue no instante? Será que a minha
veemência é tal que é melhor administrar interiormente o meu conflito ou será
que tenho clareza suficiente para me exprimir?
 Terceiro, será que consigo assumir a responsabilidade da minha
exigência?
Será que consigo me concentrar mais no que quero proteger para mim e
para a nossa relação do que na vontade de castigar a minha filha?
Será que percebo os limites em que cheguei? Será que sinto
suficientemente as necessidades frustradas em mim, conseguindo separar esta
consciência do que acho da minha filha?
 Quarto, como posso formulá-la?
Expresso uma ordem, mas associo-a à minha vulnerabilidade e tento
comunicar o seu sentido. Por exemplo:
"Não estou mais afim de discutir porque estou esgotada e quero
preservar o meu tempo. Agora, vá limpar a cozinha! Dessa forma vou me
assegurar de que cada um faz a sua parte para a organização da casa."
Atenção! Uma freqüente complicação nesses momentos é deixar
ressurgir nossos antigos condicionamentos e acrescentar uma ameaça. Assim
enfraqueceríamos a exigência ao deixar subentendido que ela não basta por si
só. Se estamos dando uma ordem, que ao menos ela possua o mérito de ser
clara.
 Quinto, qual será o acompanhamento que virá em seguida?
A partir da minha experiência, a exigência não é tão problemática. São
mais as nossas dificuldades de acompanhá-la que podem estimular reações e
defesas — parto do pressuposto de que não estamos nos confrontando com
uma filha que está acostumada a se submeter ou a se revoltar diante de ordens,
mas sim a um modo de relação baseado num respeito mútuo. Se estivermos
dispostos, podemos tentar nem que seja um pouco permanecer à escuta da
reação do outro:
"Você pode apenas me dizer como encara isso?"
Nessas horas, quase nunca temos vontade de ou meios para investir na
empatia, mas acho preferível lembrar de explorar esse tipo de conflito num
momento mais favorável. Portanto, perguntar no dia seguinte:
"Você entendeu, afinal, por que eu estava tão zangada ontem à noite?"
A idéia é tentar ir ao centro do conflito, dessa vez, para evitar a
repetição dessas situações insatisfatórias.
18
Um dia de Ivan, estudante em 2020
Quero que ensinemos a amar e a compreender o maravilhoso
"eu-não-sei" da ciência moderna quando aplicada à criança.
Janusz Korczak
Naquela manhã, Ivan estava se sentindo tão estranho que até hesitou
em ir à escola, mas decidiu ir porque tinha vários projetos em andamento e adiar
o avanço deles lhe era penoso.
Só que, tendo chegado ao estabelecimento, nenhum dos anúncios da
sala de repartição o interessou. Nem o curso que uma das suas colegas ia dar
sobre a história das histórias, nem o ateliê sobre o conhecimento do corpo
humano, ao qual ele tinha planejado ir naquela manhã e que, no entanto, o
tinha fascinado nas últimas semanas. Ele informou sua não-participação num dos
computadores do hall de entrada. Quando contou sua decisão aos seus amigos
Sérgio e Rômulo, ambos ficaram emburrados durante um tempo, pois contavam
com ele para bater o recorde da escola na montagem de esqueleto, já que a
"barreira dos dez minutos" tinha sido quebrada na semana precedente. Ele usou
de empatia para com eles, que se acalmaram rapidamente, deixando-o para
recrutar um novo manipulador de ossos.
Ivan foi olhar os anúncios na bolsa individual, mas decididamente nada
lhe chamava a atenção naquele dia. Nem a colaboração para uma crônica
esportiva, nem um passeio entre as plantas comestíveis, nem um ateliê de
cerâmica. Por isso, ele se dirigiu para o lugar que ele e seus colegas chamavam
de "estação de triagem".
No espaço aberto, três dos quatro escutantes já estavam ocupados. Só
tinha sobrado Isabela, o que lhe era bem conveniente. Ele a achava muito
simpática, e mesmo sedutora, embora ela já devesse ter ultrapassado a idade
canônica de trinta anos. A regra para esse tempo de ajuste da manhã era não
passar mais de meia hora com cada pessoa para que qualquer um que quisesse
consultá-los tivesse uma vaga. No entanto, Isabela lhe dedicou o dobro disso. Ele
ficou agradecido, pois realmente precisou desse tempo todo para ter mais
clareza. Ele se deu conta do tédio em suas atividades habituais e da sua
necessidade de explorar um terreno radicalmente novo. Sua escutante lhe
apresentou os atuais ateliês de conhecimento de si e lhe propôs se perguntar se
tinha chegado o momento de procurar um deles.
Seguindo sua sugestão, ele foi caminhar no parque durante um bom
tempo. Até então, a descoberta de si não tinha sido um aspecto da educação
que o atraísse. O professor que o orientava já lhe tinha feito proposições nesse
sentido várias vezes, mas ele tinha ficado ocupado demais, ano após ano,
realizando muitas vontades, e todo o tempo que ele se reservou, distante da
escola, foi dedicado ao lazer. Na beira dos seus quatorze anos, talvez realmente
fosse hora de parar e fazer um balanço.
Depois da pausa do meio-dia, um pouco aliviado, ele se juntou ao seu
time para o ateliê de "análise de desempenho do jogador de futebol". Seu
entusiasmo por essa disciplina vinha do fato de que, no ano anterior, o time dos
"Carvões Ardentes" tinha ganho o torneio da escola graças a um curso de "lógica
e futebol". Com a ajuda de um professor, seus membros tinham analisado as
estratégias de todos os seus adversários e elaborado combinações vitoriosas
para cada jogo. Para o ano letivo de 2020, o seu próprio time, bem como todos
os outros, matricularam-se nesta disciplina. Para se assegurarem da vitória, eles
tinham definido esse novo curso com uma professora. Naquela tarde, passaram
cerca de duas horas tentando otimizar seus movimentos de corrida com o
recurso de um vídeo.
Antes de ir para casa, ele foi perambular pela Ágora. A maioria das
pessoas presentes era constituída de estudantes mais jovens. A Ágora era um
lugar muito enriquecedor para eles, que esperavam poder captar ali a atenção
dos veteranos de quinze anos. Ivan fazia parte de um grupo influente, eficaz no
meio dos alunos porque nenhum adulto tinha aceitado participar dele. Seu
objetivo era manter os torneios da escola que ainda eram competitivos. A
intenção dos seus membros era votar este assunto no conselho seguinte da
escola, o que implicava em obter previamente uma decisão por consenso. Para
isso, era necessário juntar pelo menos uma minoridade decisória: 30%.
Ele passou de uma roda a outra, sem se sentar, escutando o jargão dos
lobistas. Depois, afastou-se com as orelhas vibrantes pela magia dos argumentos
e, fato estranho, com o coração resserenado pela ambiência febril.
Decididamente, era difícil se entediar na escola.
19
As características de uma escola não-diretiva
Pode ser que a maior descoberta que tenhamos feito em
Summerhill5
é que uma criança nasce sincera. Decidimos não
incomodá-la para descobrir sua verdadeira natureza.
A.S. Neill
A atração que a competição exercia sobre os estudantes entrevistos no
capítulo anterior talvez choque aqueles e aquelas que sonham com uma
educação cooperativa. Por isso, quero me explicar: se eu os descrevi assim, foi
porque queria dar realismo à história. A competição é um modo de pensamento
tão presente nas nossas sociedades que temo ser preciso algumas décadas para
limitar o seu poder nocivo. Suponho que durante muitos anos os professores
tenham de levar em consideração a presença desse fator nos jovens dos quais
cuidam... bem como em si mesmos.
A relação do cotidiano de Ivan visa a ilustrar, entre múltiplas
possibilidades, o funcionamento de uma escola que aplica globalmente a CNV. O
fato de que sua estrutura pudesse ter diferentes formas representa justamente
algumas características dessa pedagogia. No entanto, seja qual for a
representação que façamos de um estabelecimento escolar desse tipo,
existiriam algumas especificidades. Nestas escolas sempre haveria:
 Uma ênfase sobre os impulsos e as necessidades mútuas, tanto de
professores como de alunos.
 Um ambiente rico e uma ação dos professores focada mais na
5 "Summerhill é uma escola inglesa, fundada em 1921 por Alexander Sutherland Neill (Escócia, 1883-1973). É
uma das pioneiras dentro do movimento das escolas democráticas. Atende crianças do equivalente ao Ensino
Fundamental e ao Ensino Médio. Uma escola democrática é caracterizada por dois princípios básicos: a
possibilidade de os alunos escolherem se querem ou não assistir às aulas e a dinâmica de assembléias, onde
todos participam para decidir as normas da escola. Summerhill se destaca por defender que as crianças
aprendem melhor se livres dos instrumentos de coerção e repressão usados pela grande maioria das escolas.
Todas as aulas são opcionais, os alunos podem escolher as que desejam freqüentar e as que não desejam. Neill
fundou a escola acreditando que 'uma criança deve viver sua própria vida — não uma vida que seus pais
acreditem que ela deva viver, não uma vida decidida por um educador que supõe saber o que é melhor para a
criança'". Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Summerhill (N.T.).
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Uma pedagogia da espontaneidade e do respeito

  • 1.
  • 2. Jean-Philippe Faure Educar sem punições nem recompensas Tradução de Stephania Matousek EDITORA VOZES Petrópolis
  • 3. Éditions Jouvence, 2005 Chemin du Guillon 20 Case 184 CH-1233 — Bernex http://www.editions-jouvence.com info@editions-jouvence.com Título original francês: Éduquer sans punitions ni récompenses Direitos de publicação em língua portuguesa: 2008, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Diretor editorial Frei Antônio Moser Editores Ana Paula Santos Matos José Maria da Silva Lídio Peretti Marilac Loraine Oleniki Secretário executivo João Batista Kreuch Editoração: Frei Leonardo A.R.T. dos Santos Projeto gráfico: AG.SR Desenv. Gráfico Capa: WM Design ISBN 978-85-326-3683-6 (edição brasileira) ISBN 2-88353-422-5 (edição suíça) Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.
  • 4. Sumário Preâmbulo................................................................................................5 1 Experiência pessoal e motivação..........................................................6 2 Os objetivos da educação.....................................................................9 3 Atenção ao sentido que você dá às suas mensagens.........................12 4 Vamos parar de achar que o erro é um problema .............................14 5 A crítica vista como uma oportunidade..............................................18 6 Uma boa acolhida ...............................................................................21 7 A empatia, um apoio à nossa capacidade de acolhida.......................23 8 Oferecer nossa presença ....................................................................26 9 Respeito por nossos sentimentos.......................................................29 10 Uma pedagogia da espontaneidade.................................................32 11 Aprender a não saber tudo, uma pedagogia não-diretiva ...............35 12 O problema dos limites.....................................................................38 13 O valor da palavra.............................................................................43 14 Observar ou imaginar o mundo........................................................46 15 O triângulo relacional .......................................................................49 16 A relação de confiança......................................................................52 17 Confrontar-se com as exigências......................................................54 18 Um dia de Ivan, estudante em 2020.................................................57 19 As características de uma escola não-diretiva..................................59 20 Abertura............................................................................................62 Bibliografia.............................................................................................63 Para saber mais......................................................................................64
  • 5. Preâmbulo Ao buscar a simplicidade e tendo pouco espaço disponível num livro destinado a uma coleção de bolso, fui levado a exprimir algumas crenças como verdades, e não do jeito que eu gostaria de vivê-las, ou seja, como hipóteses. Apesar dos cortes que foram feitos, não desejo passar a idéia de que tenho a pretensão de ter certeza (quero dizer, a cristalização de um esquema de pensamentos imutável) do que quer que seja. Eu ficaria aliviado se os leitores não quisessem aderir de imediato ao que está escrito e experimentassem por completo o alegre movimento da crítica, que coloca em questão todas as noções (tanto as nossas como as dos outros). O conteúdo deste livro se baseia na, e é limitado pela, minha experiência de formador em Comunicação Não-Violenta na Suíça e na França. Às pessoas que desejam compreender melhor os fundamentos dessa prática, indico os livros de seu criador, Marshall Rosenberg. Optei por não abordar vários aspectos ligados a uma pedagogia cooperativa, como por exemplo a tomada de decisão através de um consenso ou a gestão das regras, por causa da amplitude desse tema, que será tratado em outro livro. Foram muitas as pessoas que me apoiaram na redação deste livro, e, por isso, é impossível citar todas elas. No entanto, gostaria de registrar um agradecimento especial a Aline Bourrit, Christiane Goffard e Patrick Wouters, cujas contribuições foram muito preciosas para me ajudar a esclarecer tanto a minha iniciativa quanto estas páginas.
  • 6. 1 Experiência pessoal e motivação Um dia, eu esperava a mim mesmo e me dizia: "Guillaume, já é hora de aparecer", para que eu, enfim, conhecesse aquele que eu sou. Guillaume Apollinaire Como bilhões de outras crianças, aprendi a deixar de lado a relação comigo mesmo. Aprendi a renegar meus sentimentos e confiar nas crenças dos adultos. Aprendi a negar voluntariamente as minhas emoções e varrer as tensões para debaixo do tapete. Aprendi a conceder o essencial do meu tempo aos meus pensamentos e alguns minutos de esmola ao meu corpo, fazendo-o calar-se quando gritava de fome. Essa obra de destruição, de separação, de recalque se chama "educação". Dos seis aos dezoito anos, acumulei um saber que era completamente exterior a mim. Inculcaram-me milhares de noções para as quais eu via pouca utilidade, em detrimento de assuntos que despertavam minha curiosidade. Ao terminar a escola, as conjugações dos verbos me eram mais familiares do que o interior do meu corpo. Eu sabia os nomes da maioria dos países do mundo, mas era incapaz de exprimir o sentimento que eu trazia no peito. Aliás, eu ignorava sua presença: a escola tinha contribuído para me transformar num analfabeto emocional. Mas tive sorte, porque todos esses anos de escola não abafaram completamente a minha curiosidade. Pouco a pouco, aprendi a rever o mundo como uma matéria viva e redescobri a alegria de explorar algo quando a pesquisa possui alguma ligação com o meu profundo ardor. A Comunicação Não- Violenta (que a partir de agora chamarei de CNV) me permitiu mergulhar em assuntos de estudo dos quais, que eu me lembre, nenhum professor tinha me falado: reaproximar-me dos meus sentimentos e necessidades, expressar minha autenticidade, encontrar meu lugar num grupo, administrar os conflitos com confiança e benevolência... Percebi a que ponto essa via que a CNV desenvolve me tinha feito falta durante os anos de escola. Depois, pouco a pouco, uma pedagogia mais global,
  • 7. que levava em consideração o pleno potencial do ser humano, revelou-se para mim. Não bastava levar em conta o aspecto relacional na educação sem modificar a estrutura do ensino, como alguns professores me perguntaram durante meus seminários. Comunicar-se de outra forma implica mudar sua maneira de ser consigo mesmo e sua relação com o mundo. Surgiu então uma pedagogia desconcertante: da presença a si mesmo e não mais da ausência; do encaminhamento e não mais do objetivo; do instante e não mais do programa. Tratava-se de fazer uma revolução tão completa que se modificariam todos os pontos de referência de nossa sociedade, uma vez que ela deveria arrancar as profundas raízes da violência, ou seja, a cultura e as crenças. Por ter colocado a minha vida focada no plano da imaginação, estou ciente do perigo de uma existência virtual. Já constatei a que ponto minha relação com a realidade pode ser frágil e o quão facilmente posso voltar a mergulhar num universo de ficções quando o acontecimento que estou vivendo me perturba emocionalmente. Isso me tornou sensível ao sofrimento que, em longo prazo, essa ruptura com a realidade pode provocar nas crianças. Por isso, não consigo me impedir de sonhar com a força de vida que mudaria a nossa Terra se a educação pudesse ajudar os jovens, mesmo que apenas cem mil, a realizar o seu pleno potencial; se o aprendizado contribuísse para formar seres humanos autônomos, sensíveis ao seu meio ambiente e em contato consigo mesmos. Essas são algumas pistas que seguem a direção da visão pela qual convido você a me acompanhar. Na prática das escolas, a educação estagnou na acumulação de saberes e na aquisição de modos de pensar, em detrimento de todas as outras formas de inteligência. Essa focalização nas capacidades mentais restringe o poder de adaptação do indivíduo. No meu trabalho de acompanhamento em CNV, conheci várias pessoas que conhecem seus problemas, o que poderiam fazer para melhorar... e que, é claro, não conseguem, apenas com a compreensão intelectual, abandonar o esquema do qual gostariam de se libertar. Para operar a transformação que desejam, elas devem desenvolver suas inteligências corporal e emocional. Quanto à família, cada vez menos os pais podem dedicar o melhor de sua atenção aos seus filhos: as pressões do sistema econômico os levam a voltarem para casa sobrecarregados e esgotados. Além disso, sejam quais forem os méritos do que eles conseguem transmitir, os valores que podem encarnar se
  • 8. opõem à poderosa inanidade daqueles que a cultura veicula. Assim, as crianças são desorientadas por mensagens contraditórias. E mais, um forte condicionamento faz com que os jovens não obtenham o mesmo respeito intrínseco que os adultos. Sejam quais forem os lugares de encontro, a atitude se modifica se a pessoa com que se fala for "menor" ou "maior de idade". Durante minha infância, vivi dolorosamente essa diferença de atenção e permaneci bastante sensível a essas variações de respeito. Ainda hoje, quando escuto na rua um adulto gritar com um outro ser vivo, com freqüência preciso me virar para ver se ele se dirige ao seu cachorro ou ao seu filho. O mesmo tom, as mesmas entonações e as mesmas palavras são empregadas nos dois casos. Aspiro a viver num mundo liberto dos jogos de poder ligados à idade e onde os antigos sistemas de crenças que os fundam desapareçam. Uma das minhas amigas tem quatro anos. É claro que os assuntos de minhas conversas com ela não são os mesmos que com outras pessoas conhecidas: o senso de humor nessa idade não é igual àquele que se tem aos quarenta anos. E, no entanto, não vejo diferença profunda entre essa amizade e as outras. Paradoxalmente, ao lado dessa fundamental falta de consideração para com os jovens, vejo-os com freqüência com uma liberdade de ação e de discurso que me espanta! Assisto a cenas nas quais professores olham, impotentes, jovens quebrarem o material que lhes foi oferecido; escuto pais que se deixam insultar sem reação (não se trata de acreditar no insulto, mas de reagir à angústia que está por trás dele); observo sem parar anúncios destinados às crianças, alçadas ao patamar supremo de consumidores. Vejo acordarem uma liberdade de comportamento que, porém, não é vivida a partir de um respeito profundo. Esse desacordo cria uma confusão e uma violência germinal que me aterrorizam. Em matéria de educação, tenho a impressão de viver, assim como Alice no país das maravilhas, do outro lado do espelho da lógica. As crianças não podem contar com uma abertura para as suas necessidades nem com uma clareza no plano das regras e valores. Os adultos lhes concedem uma recusa quando elas desejam ser escutadas e uma permissividade quando a firmeza seria um poderoso apoio para elas.
  • 9. 2 Os objetivos da educação A educação correta cultiva o nosso ser inteiro, a totalidade da nossa alma. Ela oferece, ao nosso espírito e ao nosso coração, profundeza e compreensão da beleza. Krishnamurti Frente aos desafios do nosso tempo, onde a humanidade é responsável não somente pela sua sobrevivência como também pela de milhões de outras espécies, seria de se esperar que a educação fosse o alvo de todas as atenções, permitindo aos jovens desenvolverem as capacidades de adaptação que esse contexto requer. No entanto, constato com tristeza que a educação contem- porânea é baseada em paradigmas que perpetuam antigos condicionamentos destrutivos:  A submissão às crenças dominantes e às autoridades exteriores. São os pais, os professores, depois os chefes, os políticos, etc. que sabem o que é bom para o jovem.  A aquisição de saberes e técnicas que permitem exercer um papel conforme às grandes normas sociais. A educação consiste essencialmente na acumulação de um saber reconhecido por um grupo ou pela sociedade. O tipo de matérias adquiridas dá direito a um certo status social: admite-se que uma competência em literatura ou medicina tem mais valor do que em eletricidade ou jardinagem.  A assimilação de um sistema de comparação e competição pelos estudantes. Na maior parte das escolas, os alunos adquirem os esquemas da comparação. Espera-se de cada indivíduo um desempenho definido globalmente de antemão. Os objetivos são os mesmos para cada um e os membros de um grupo são comparados entre si de acordo com seus resultados. O esquema da comparação gera o da competição: os alunos não trabalham em função de si
  • 10. mesmos, mas sim para ultrapassar os outros. Através do meu trabalho de formador em CNV, pude constatar a que ponto essas noções de comparação e competição provocam violência. Os estudantes são condicionados a responder às exigências do sistema e, para consegui-lo, criam para si mesmos exigências internas (ou, segundo a definição que lhes é dada em CNV, a dolorosa pressão quanto a um objetivo, que nos isola da necessidade do instante). Eles se acostumam a só obter um reconhecimento positivo se conseguirem produzir resultados conformes às expectativas projetadas sobre eles. Ao terminar a escola, eles terão acumulado crenças e julgamentos destrutivos, particularmente sobre si mesmos.  O estrangulamento da originalidade de cada indivíduo em proveito de esquemas culturais gerais. Na imensa maioria dos casos, a atenção é concentrada na obtenção de resultados esperados pelo professor ou pelo sistema escolar. Sobra pouco espaço para as pesquisas atípicas ou para os encaminhamentos pessoais dos estudantes. Embora recentes reformas escolares valorizem mais a iniciativa do que o resultado, parece que os professores não foram formados para deixar de lado os tão preciosos elementos dos saberes que assimilaram ao longo de seus estudos. Por isso, eles mantêm na cabeça os objetivos a serem atingidos. No melhor dos casos, há uma tolerância quanto à originalidade, que, porém, é raramente encorajada. Então, o que poderia ser uma educação que permitisse aos estudantes exercerem ao máximo sua imensa potencialidade natural, que os apoiaria para se tornarem autônomos, sensíveis, criativos e benevolentes? Uma educação a serviço da vida visa a que os jovens:  sejam capazes de responder com confiança e criatividade aos desafios da vida;  aprendam a se conhecer intimamente e estejam prontos para se questionar,  sejam capazes de sentir e exprimir as emoções, tanto para si mesmos como para os outros;  desenvolvam os aprendizados que lhes permitam se inserir em suas
  • 11. culturas com um espírito de cooperação e, ao mesmo tempo, adquiram um verdadeiro senso crítico com relação a todas as formas de crenças (em outras palavras: um amor pela verdade);  possam assumir a responsabilidade de suas vidas e estejam conscientes das conseqüências de seus atos para o meio ambiente;  adquiram meios para gerir seus problemas e sofrimentos;  desenvolvam uma sensibilidade quanto aos problemas e sofrimentos dos outros;  internalizem uma real capacidade de atenção e de presença no instante.
  • 12. 3 Atenção ao sentido que você dá às suas mensagens Se um dia você constatar que os antigos métodos de punição e recompensa são inúteis, seu espírito se tornará bem mais ativo. Krishnamurti Na minha opinião, o maior problema causado pelas punições e recompensas é o fato de elas enfraquecerem o sentido que a mensagem quer passar. Quando você diz a uma criança: "Faça tal coisa, senão tal outra vai acontecer! Se você não comer a salada, ficará sem sobremesa! Se você não terminar esse dever de casa, não poderá assistir televisão! Se você fizer esse dever, terá uma recompensa!", você está sempre sugerindo que a primeira parte da mensagem não é suficientemente válida e que é preciso acrescentar algo para lhe dar crédito. O problema é a causalidade. Pouco a pouco, as crianças se sentem divididas entre os dois componentes da mensagem situados de cada lado do "senão". E, no final, a maioria delas vai se condicionar a dar mais importância à segunda do que à primeira parte. Tomei consciência disso, em particular, graças ao meu filho, depois de uma situação que vi vemos. Naquele dia, tínhamos pego o bonde no último segundo e, por isso, não tive tempo de comprar uma passagem.1 No final do trajeto, fui comprar um bilhete no distribuidor automático. Então, meu filho me olhou bastante surpreso e me disse: "Mas, pai, por que você está comprando essa passagem? Agora não corremos mais o risco do controlador nos pegar!" Foi aí que percebi que ele já tinha começado a ser doutrinado pela 1 Na Europa, o sistema de transporte funciona assim: o passageiro compra um bilhete antes de embarcar no meio de transporte, ao entrar neste valida-o num dispositivo automático que o carimba ou perfura, e, às vezes, um agente controlador passa para verificar se todos pagaram o trajeto (N.T.).
  • 13. educação da punição e da recompensa: por que pagamos por uma passagem no bonde? Para escapar dos controladores, ou seja, para evitar a punição. Comuniquei-lhe então a minha surpresa e tristeza pelo fato de ele ver as coisas desse ângulo. Se estava quitando a minha dívida de um trajeto no transporte público, era para demonstrar o meu apoio e reconhecimento por beneficiar de tal serviço e porque queria contribuir para a permanência desse direito. O que criamos quando condicionamos as crianças a agirem para ser recompensadas ou evitar serem punidas? Um mundo de pessoas pouco livres. Uma cultura do medo, com pessoas que pagam pelos artigos das lojas simplesmente para evitar serem pegas se saírem com eles debaixo do braço, e não por uma necessidade de eqüidade. Gente que não ultrapassa os limites de velocidade por causa das multas, e não por respeito aos outros motoristas ou por uma necessidade de segurança coletiva. Gente que frauda o fisco tanto quanto possível, porque não foram ajudados no sentido de desenvolver uma real pertença à sociedade da qual fazem parte. Nas relações com os jovens, eu gostaria de desenvolver uma cultura do sentido. Se realizamos uma ação, é porque ela responde a uma necessidade construtiva. Se os pais pedem alguma coisa ao seu filho, é porque isso possui um sentido, e o importante é fazer a criança entendê-lo. Mas quero eliminar um risco de confusão: não estou pregando uma nova forma de submissão às instituições. Ao contrário, acho que pessoas educadas para assumir realmente as suas responsabilidades se conformam com mais freqüência às obrigações sociais porque têm consciência da interdependência fundamental entre os seres humanos, o que as leva a serem solidárias com seus semelhantes. Porém, se decidem não cumprir as regras, suas ações são poderosas, uma vez que são conduzidas a partir de uma motivação clara. Aí, não se trata mais de maracutaia ou contrabando, mas sim de uma objeção com consciência, baseada numa necessidade de integridade.
  • 14. 4 Vamos parar de achar que o erro é um problema O professor adota, desde o primeiro dia, o tom e os procedimentos de um juiz, e, por isso, o aluno desenvolve naturalmente a atitude de alguém prevenido... que, a todo instante, talvez seja pego em flagrante delito de falta de atenção ou de ignorância. Henri Roorda Uma crença que considero das mais destrutivas é aquela segundo a qual o erro é um problema. Fomos condicionados a acreditar que há respostas certas, as quais devemos buscar, e outras falsas, as quais temos de evitar. Além disso, fomos condicionados a crer que autoridades exteriores a nós sabem o que é certo e o que é errado. Meu filho também me ajudou a perceber o perigo dessa fixação no erro. Um dia, ele me mostrou uma prova de matemática cuja nota o tinha desagradado. Olhei seu trabalho e me dei conta de que a sua dificuldade tinha sido causada por um símbolo que ele não conhecia, que significava "multiplicar", enquanto que ele tinha aprendido essa operação com um outro signo. Havia uma seqüência inteira de cálculos nos quais ele se tinha enganado, porque tinha interpretado que era preciso dividir ao invés de multiplicar. Então eu lhe disse: "Legal, essa prova lhe foi bastante útil, porque ela permitiu que você aprendesse um novo símbolo!", mas ele me respondeu: "É, pode ser, mas essa nota vai baixar minha média!" Pude constatar, ao longo de várias discussões com ele, que sua focalização mais na nota do que no aprendizado o fazia perder o sentido das provas. Com muita freqüência, a atenção dos alunos não está concentrada no valor intrínseco dos fatos, mas na interpretação do sistema de referências dos professores.
  • 15. Não basta, como sempre escuto por aí, falar do direito ao erro para apaziguar a tensão que, para a maioria de nós, representou o medo permanente de nos enganarmos, de não correspondermos às expectativas que eram criadas quanto a nós e as quais tínhamos de adivinhar pouco a pouco. Para se livrar desse paradigma é preciso adotar uma atitude globalmente diferente. Para deixar para trás a oposição entre o certo e o errado, sugiro um paradigma que nos deixa escolha entre duas oportunidades: o esperado e o inesperado. Quando um resultado é esperado, ele cria um consenso, sustenta fatos, valida um processo de aprendizado ou representa uma aquisição comum. A primeira oportunidade é a integração do processo que nos leva ao esperado. Não o saber adquirido, mas a incorporação de uma iniciativa que aumenta nossa sensibilidade com relação aos problemas da vida. Quando um resultado é inesperado, ele suscita um processo de interrogação sobre nossos hábitos a partir da surpresa inicial. No âmbito da educação, há uma busca comum. O autor da iniciativa e a pessoa surpreendida — não importa quem exerça o papel de professor e o de aluno —confrontam suas impressões e avaliações, a fim de verificar se há uma chance de colocar em questão um conhecimento ou validá-lo de outra maneira. Essa busca aberta do sentido do inesperado é a segunda oportunidade. Um professor de matemática me comunicou as dificuldades que encontrava quando dizia aos seus alunos para prestarem atenção nos seus processos de reflexão, e não nas notas que poderiam receber. Ele chegou mesmo a suprimir as notas, mas certos alunos permaneciam focalizados nos julgamentos que ele poderia fazer sobre eles. Uma vez, corrigindo uma prova, ele se deparou com um resultado tão surpreendente que ficou bastante perplexo. Ele se contentou de escrever na margem: "Como você chegou a essa conclusão?" Após receber sua prova, a aluna veio lhe perguntar: "Mas eu acertei ou errei?" E ele lhe respondeu: "Isso não me interessa, o que eu quero é entender o seu pensamento. Você pode reproduzi-lo agora?" Ela acabou reconstituindo-o, porque imaginava que sua solução estava de acordo com a norma esperada. Depois do acontecido, ela explicou que, caso contrário, teria ficado constrangida demais para ousar mostrar-lhe um processo enquanto o supusesse errado.
  • 16. "Nesse caso em particular, eu tinha dificuldade em acreditar que seu pensamento era válido", acrescentou o professor, "mas para mim era importante permanecer aberto: eu não teria aprendido a maneira de lhe ensinar se não tivéssemos refeito juntos o seu raciocínio". Embora tanto o esperado quanto o inesperado representem oportunidades, a surpresa causada pelo inesperado me parece ter um valor pedagógico superior. O mais interessante é quando nos "enganamos", quando estamos em busca de algo, quando questionamos nossos esquemas de pensamento, que, de modo tão rápido, tomam a forma nociva de certezas. Esta concepção é tão contrária aos ensinamentos contemporâneos, que enfatizam a estranha crença no desempenho, que sinto dificuldade em dizer para o meu filho que considero uma vantagem o fato de ele "falhar" numa prova. Ele não o entenderia, porque seus professores já o mandaram buscar as respostas que esperam para as suas perguntas e tentar não surpreendê-los. Acho isso uma pena, pois essa mudança de perspectiva diante do erro é um dos fundamentos de uma pedagogia baseada na atenção às necessidades efetivas do aluno (empregarei também o termo "pedagogia não-diretiva" para designar a partir de agora esta educação centrada na escuta das necessidades). Essa valorização do erro, num contexto de não-julgamento, muda o sentido que damos aos testes escolares. Eles voltam a exercer a sua função primordial de apoio (a qual não me lembro de ter percebido durante os meus anos de escola). Eles podem se tornar (de novo) instrumentos privilegiados para revelar os terrenos que devem ser explorados e aqueles já maduros para serem provisoriamente abandonados. Para que as avaliações possam ter um sentido pleno é preciso que sejam aplicadas com o espírito de iniciar um processo, e não de validá-lo. Portanto, elas devem ser propostas no início ou no meio de um período de aprendizado, não no final. Para não enfraquecer a importância do teste para a pessoa avaliada, eu gostaria que não fossem dadas nem sanção nem recompensa. E, para que cada aluno possa se concentrar no proveito que ele pode tirar, seria bom que, se uma comparação acontecesse, que ela não fosse entre os alunos, mas sim entre os diferentes resultados possíveis. Essa não-comparação geral permite introduzir reais desafios para os alunos. Numa pedagogia não-diretiva, interessamo-nos pelas necessidades de cada um e buscamos com ele um desafio que lhe permita evoluir. Os testes da educação tradicional, quase sempre formatados para um grande número de
  • 17. alunos, não conseguem encontrar ligação com as necessidades individuais. Para muitos, eles eliminam a parte de desafio, pois a avaliação não é adaptada às suas competências: são simples ou complicados demais.
  • 18. 5 A crítica vista como uma oportunidade No mundo atual, o único objetivo educacional que faz sentido é a adaptabilidade, ou seja, a fé mais num processo do que num saber imutável. Carl Rogers Para mim, uma das diferenças mais marcantes entre uma educação no sentido da CNV e outras, mais tradicionais, encontra-se em relação à crítica. Em muitos sistemas educativos que utilizam as normas habituais, a crítica é, para o professor, o meio de apontar um erro, a fim de retificá-lo. Ele não somente sabe o que é certo, como também a maneira pela qual os outros alunos devem atingir esse imaginário. No espírito da CNV, a crítica reflete uma necessidade não-satisfeita de uma pessoa que vai comunicá-la a uma outra para tentar encontrar seu sentido a partir dessa busca. A insatisfação não é vista como um problema, mesmo que, é claro, ela possa ser vivida de maneira dolorosa, mas sim como uma oportunidade de tomada de consciência. Essa visão e emprego da crítica se integram no vasto campo do que a CNV chama de celebração. Quando trabalha com esse espírito, o professor não repreende o aluno pelo resultado inesperado que ele produziu, mas lhe agradece a sua tentativa e lhe propõe utilizá-la para aprenderem juntos. Se a crítica for empregada a partir desse ponto de vista durante um tempo suficiente, tenho a esperança de que os jovens acabarão buscando-a como uma oportunidade, ao invés de fugir dela como de uma prova. Porém, antes de chegar lá, o professor tem de realmente amenizar a fragilidade que seus alunos desenvolveram após terem sofrido as críticas costumeiras como se fossem agressões. Talvez seja preciso dar o exemplo: encorajar os estudantes a lhe dar avaliações e lhes mostrar todo o prazer de recebê-las através de sua atitude. Até o dia em que a crítica poderá ser percebida assim como é: uma forma particular de nossa gratidão pelo que a vida nos está ensinando. A CNV propõe um procedimento para nos apoiar na expressão dessa forma de crítica construtiva:
  • 19.  Exprimir antes de tudo a nossa autenticidade:  a observação mais rigorosa possível dos fatos;  o sentimento que isso estimulou em nós;  nossa necessidade não-satisfeita;  e terminamos por uma demanda de conexão. Por exemplo: "Quando vejo que não concordamos em sete das dez questões desse teste de biologia, fico curioso para saber as razões dessa diferença e gostaria de lhe pedir para me explicar as razões das suas escolhas."  Escutar com empatia: As concepções ultrapassadas que acumulamos com relação à crítica fazem com que ainda seja raro encontrar pessoas essencialmente antenadas quanto aos seus aspectos construtivos. Um reflexo saudável consiste, portanto, em investir um momento na escuta empática do jovem para verificar se ele não está brincando de "Quem está certo e quem está errado?" Dessa forma, ele pode nos dizer: "É verdade, não entendo nada de biologia!" Em vez de tentar convencê- lo do valor do seu raciocínio, com freqüência é mais útil ajudá-lo primeiro a se voltar para os seus medos. Pode ser propondo-lhe a seguinte reformulação: "Você ficaria desmotivado porque tem dificuldade em acreditar nas suas capacidades nesse domínio?"  Buscar a vantagem da nossa insatisfação: Em que medida ela permitirá que o avaliado evolua e que o avaliador repense sua visão de mundo. Se houver abertura, os dois movimentos realmente se realizarão. É uma busca mútua, com um beneficio para os dois. O critico poderia prosseguir assim: "Estou surpreso ao perceber a quantidade de pontos sobre os quais não temos a mesma opinião, porque eu achava que tinha passado tempo suficiente explicando meu ponto de vista e que você me tinha dito estar de acordo. É importante para
  • 20. mim saber onde poderia ter sido mais claro. Você pode me ajudar resumindo o que você tentou fazer?"  Celebrar o sentido do que emergiu: Certas vezes, o benefício se mostra mais efetivo para a pessoa que recebe a avaliação, e, em outras, para aquela que a aplica. Nos casos descritos anteriormente, uma vez que o aluno e o professor estiverem de acordo sobre o ensinamento a ser tirado da diferença dos seus pontos de vista, o primeiro poderá dizer: "Sinto-me aliviado porque agora esta matéria me parece mais simples, o que me dá um pouco mais de autoconfiança em biologia!" E o segundo: "Também me sinto aliviado de ter descoberto o que você não tinha entendido do meu raciocínio. Agora, tenho uma idéia de como posso explicar essa matéria de outra forma da próxima vez." O que vai mudar a relação com a crítica não é tanto um procedimento ou uma maneira de se expressar, mas uma atitude aberta do professor: sua verdadeira curiosidade quanto à iniciativa do jovem; sua capacidade de deixar de lado seus conhecimentos enquanto busca, junto com o aluno, o que os dois podem aprender com essa situação.
  • 21. 6 Uma boa acolhida Escutar quer dizer amar. Amar significa: estar disponível para o que está aqui. Éric Baret Faço questão de desenvolver com as crianças uma relação fundada numa qualidade de acolhida global. Essa atenção fundamental quase nunca lhes é dada. Vou dar um exemplo, que escolhi entre vários outros, porque me marcou: Fui convidado, numa escola genebresa, para assistir a uma formação de alunos mediadores. Eu e a formadora estávamos arrumando a sala, quando, por falta de sorte, chegou um grupo de atores nos explicando que aquele lugar estava reservado para o ensaio deles. Fomos obrigados então a mudar de sala. A professora aparece com a turma, e começa uma grande discussão entre ela, a animadora e dois outros adultos presentes. Durante cinco minutos, eles resolveram tudo entre si. Durante esse tempo, o grupo de crianças tinha sido largado no seu canto. Ninguém lhes disse bom-dia nem explicou o que estava acontecendo. Por quê? Porque eram jovens. Para aquelas pessoas não era normal dar a mesma qualidade de atenção a um grupo de crianças e a adultos. Imagine a mesma situação com um grupo de vinte adultos. O primeiro reflexo seria lhes dizer: "Bom-dia, sentimos muito por fazê-los esperar. Tínhamos reservado essa sala, mas houve um contratempo. Vocês podem, por favor, esperar um pouco?" Essa diferença de atitude em função da idade de nosso interlocutor é um condicionamento ancorado tão profundamente que o vejo inculcado mesmo em pessoas repletas de benevolência para com os jovens. Nas relações entre maiores e menores de idade, com freqüência observo mudanças de tom, de escolha das palavras, de posições corporais, as quais interpreto como os indícios de um jogo de poder. Essas mudanças de relação se fazem de maneira tão inconsciente que os envolvidos me dizem em seguida, quando lhes falo sobre
  • 22. isso, não terem percebido. Só que, através dessas manifestações, as crianças aprendem a se submeterem — ou a se revoltarem ou a fugirem, o que dá no mesmo. Esse é um ponto sobre o qual eu gostaria de insistir. Em geral pensamos que é nas situações difíceis que as relações se fragilizam. Porém, é a partir da repetição desses milhares de momentos, nos quais não damos aos jovens a mesma boa acolhida que aos adultos, que a base da confiança se quebra. Não é tanto nas situações de conflito que essa diferenciação se dá, pois as pessoas envolvidas sabem perfeitamente que se trata de momentos delicados, onde cada um perde um pouco da sua estabilidade e então dá o melhor de si. É sobretudo o acúmulo dessas atitudes inconscientes, onde o menor é tratado com menos consideração por causa da sua idade. É por isso que com os professores eu não trabalho tanto o que acontece do início ao final do seu curso, mas do fim deste último ao começo do seguinte. Falo sobre todas as relações, todas as conexões que se criam nos corredores e no pátio. Todas essas ocasiões condicionam os jovens ou no sentido de um respeito mútuo ou no de um hábito de submissão ou revolta. O que ainda prejudica a boa acolhida é a rigidez dos papéis nos quais fomos condicionados a nos mantermos. Deixamo-nos permanecer fixos na imagem do nosso papel porque nos desapegarmos dele nos deixa inseguros. A capacidade de passar de um papel para outro, em função das necessidades da situação, é justamente um elemento-chave de uma pedagogia não-diretiva.
  • 23. 7 A empatia, um apoio à nossa capacidade de acolhida Os pais só lançam um olhar incondicionalmente positivo sobre a criança se fizerem o mesmo com relação a si mesmos. Carl Rogers A CNV determina dois poderes na comunicação: o de nos voltarmos para a nossa vulnerabilidade e exprimi-la e o de nos abrirmos de maneira incondicional à mensagem de nosso próximo e reformulá-la. Este segundo poder se chama "empatia". Ela poderia ser definida como a qualidade do que permanece na nossa faculdade de escuta quando nos liberamos de nossos hábitos e defesas: Quando paramos de acreditar saber para o outro o que é bom para ele — e, portanto, abstemo-nos de dar conselhos quando eles não nos são pedidos. Quando cessamos de querer fazer alguma coisa nas relações onde basta que existamos. Quando aceitamos não nos metermos no que diz respeito apenas ao outro e, em momentos diferentes, não incluir o outro no que só interessa a nós mesmos. Quando tivermos feito esse trabalho de purificação, podemos nos colocar à escuta do nosso interlocutor. Durante alguns segundos não buscamos mais mudar o mundo e em especial a pessoa que estiver diante de nós, paramos de impor aos indivíduos que nos cercam o peso de nossas exigências e de nosso saber. Uma ação profundamente ecológica pode então começar. Podemos nos abrir à mensagem viva que o nosso interlocutor, com freqüência de modo desajeitado, está tentando nos passar. Oferecemos-lhe o presente de uma acolhida que não tenta reformar, nem mesmo entender, mas simplesmente criar uma boa conexão com ele.
  • 24. A força dessa benevolência em ação pode ser representada de duas maneiras:  Através de nossas propostas de reformulação, onde propomos ao outro uma interpretação centrada nos sentimentos e necessidades subjacentes da mensagem exprimida, seja ela qual for. Pelo desapego que devemos ter quanto à forma literal do que é dito. Conseguimos este recuo graças ao interesse que aquele que se exprime desperta em nós. Para quem escuta, cada frase contém a manifestação de uma necessidade fundamental. Se quem está sendo escutado sente que a nossa atenção é aberta, ele poderá se deixar levar, sendo ele mesmo, já que não precisa mais convencer, nem se defender ou se justificar. Portanto, a acolhida empática não é insignificante. Quando a oferecemos, ela presta um grande serviço à relação. Além do resultado que podemos obter no instante, a prática da empatia alimenta nossas relações, e principalmente as que são íntimas, que demandam muita confiança. Vejo o alcance mais precioso disso na sua aplicação a longo termo. É a repetição de situações em que a criança pôde se sentir acolhida exatamente onde se encontrava que é a base de uma segurança fundamental nas suas relações consigo mesmo e com seus pais. É um forte apoio para desenvolver sua autoconfiança. Essa acolhida não implica que devamos ficar uma hora, ou mesmo dez minutos, escutando o que o nosso interlocutor está exprimindo. Com freqüência, mesmo uma só reformulação vai mudar a energia emocional, contanto que tenhamos criado previamente em nós um espaço suficiente de abertura. Uma professora me contou a seguinte experiência ocorrida no seu estabelecimento. Ela tinha dificuldades com um jovem que não suportava certas obrigações da instituição. Uma noite, ele disse: "Que saco ter que ir dormir agora!" Ela entendeu o que ele devia estar sentindo e apenas lhe disse: "Isso o deixa com raiva? Você gostaria tanto assim de poder escolher?" Ao que ele apenas respondeu "Ahan" e subiu para o seu quarto, para
  • 25. surpresa da escutante, que esperava ter que gerir sua resistência habitual. Uma mãe me contou um episódio muito parecido que ela tinha vivido com uma das suas filhas. Ela a rodeava na cozinha enquanto reclamava de sua irmã, depois dos seus deveres de casa, da escola, e assim por diante. A mulher interrompeu a sua tarefa durante alguns segundos, entrou em contato com a irritação de sua filha, tomou-a um instante em seus braços e apenas lhe disse essa frase: "Hoje não é o seu dia, né?" A criança pareceu subitamente calma. Sacudiu a cabeça e depois deixou sua mãe para ir fazer os seus deveres.
  • 26. 8 Oferecer nossa presença Tudo o que eu gostaria de realizar não é nada se comparado a essa coisa mágica que é o fato de existir. Éric Baret A manifestação do respeito pelo outro, ou seja, a empatia, nem teria valor se não fosse o reflexo de um respeito por si mesmo. É um grande presente que podemos dar aos nossos filhos: oferecer-lhes a força da nossa presença. Participarmos de suas vidas, estarmos conscientes do que está acontecendo, das solicitações do nosso ambiente, das mensagens que as pessoas que nos cercam nos enviam, do que vivenciamos. Essa presença é realmente um presente, constitui por si só um contexto de segurança para os jovens. Para eles, as referências fundamentais são dadas pela clareza dos pais, dos professores. As regras que instauramos, os pedidos que fazemos têm valor acima de tudo a partir dessa clareza. A verdadeira autoridade não pode ser imposta, ela é concedida por um grupo. É o sentimento de paz interior de uma pessoa que leva outras a terem confiança nela. Essa qualidade de presença se manifesta de várias maneiras. Primeiro, ela se baseia na nossa autenticidade no instante: quando nos voltamos para o que está dentro de nós, tanto no plano corporal como no emocional e intelectual, e simplesmente o exprimimos. Essa capacidade de manifestar a nossa vulnerabilidade é vista pela CNV como o contrário de uma fraqueza. Ela representa uma das forças de um ser humano. Isso vai de encontro a muitos esquemas culturais contempo-râneos. Em grande parte dos filmes destinados aos adolescentes, a característica dos heróis é a sua impassibilidade diante dos acontecimentos. Mesmo nas profundezas da floresta ou na frente de um revólver apontado para eles, nada parece atingi-los. Essa indiferença com relação às circunstâncias é apresentada como um modelo para o público. Temo que a referência então adquirida pelo espectador seja o recalque de suas emoções, em detrimento do desenvolvimento de uma verdadeira inteligência emocional: a capacidade de percebê-las, exprimi-las e geri-las.
  • 27. Não que a serenidade face às situações delicadas não me pareça um objetivo a ser alcançado. Porém, essa tranqüilidade só me deixa seguro quando é resultado de um processo de aceitação de nossa vulnerabilidade e de tomada de consciência de nossos limites. Ao recalcarmos nossas emoções, obtemos um certo controle do instante, cuja conseqüência, com a qual teremos de arcar mais tarde, é uma tensão escondida. A presença não pode ser encarnada a partir de uma força de vontade ou de reflexão. Ela nasce de um desapego e segue o curso de nossos sentimentos. Assumir a responsabilidade de nossas necessidades também me parece essencial. Trata-se de permanecermos fiéis ao que sentimos, não nos misturarmos com as reações dos outros, ao mesmo tempo em que respeitamos nossas necessidades. Este equilíbrio entre uma atitude clara, firme para si e aberta para o outro cria condições de segurança para as crianças, antes de realizarmos qualquer ação. Nossa autenticidade não será necessariamente algo fácil de entender para o nosso interlocutor. A CNV não visa à gentileza (se esta consiste em acreditar que é preferível evitar os conflitos), mas à benevolência, quer dizer, o respeito pelo que está dentro de nós e a confiança no que sua expressão honesta vai trazer. Às vezes, o estar presente de verdade pode tomar a forma da expressão de nossa raiva, contanto que possamos demonstrá-la de maneira construtiva. Há tantas pessoas desajeitadas na manifestação de sua raiva que muitas se protegem desse sentimento antecipadamente, não querendo exprimi-lo ou recebê-lo. Para ajudar tais pessoas e entender este sentimento como uma forma de vulnerabilidade, a CNV preconiza assumir a plena responsabilidade dele e terminar nossas intervenções por pedidos concretos e positivos. Portanto, perceber que não estou irritado com alguém, mas com raiva porque gostaria de satisfazer tal necessidade, não gritar para o outro tudo o que nos desagrada nele, mas lhe dizer o que nos fez falta e o que queremos. Um amigo que pratica a CNV há alguns anos me comunicou algumas mudanças que essa visão o levou a introduzir na sua comunicação com seus filhos. Ele tinha adquirido dos seus pais o hábito de ameaçar para obter o que desejava. Descontente com essa transmissão, ele concentrou sua atenção no ato de conversar com seus filhos com autenticidade. Mesmo na expressão de sua raiva, ele descobriu que, agindo dessa maneira, ele obtinha deles o que desejava de modo mais fácil, e não mais pela força do medo. Por exemplo, quando seu
  • 28. filho percebia que, se seu pai estava bravo, era em primeiro lugar em função do seu cansaço e de sua necessidade de preservar seu tempo — e não sendo ele a causa disso —, ele ficava comovido, mas sem culpa.
  • 29. 9 Respeito por nossos sentimentos Quando você parar de achar que compreende o seu filho... lhe restará a admiração, o sentimento, a brincadeira, o amor. Éric Baret Aprender a se conhecer, a desenvolver uma ligação benevolente consigo mesmo me parece no mínimo tão importante quanto saber ler e escrever bem. E, de fato, se tivéssemos os indicadores para poder calcular a taxa de analfabetismo emocional e corporal no final do período escolar, acho que os números seriam aterradores. Na Suíça, um nível de analfabetismo de 15% ou 20% preocupa. O que diríamos então de uma proporção de 80% a 90% de analfabetos emocionais e corporais? Lançamos na vida "ativa" inúmeros indivíduos que não aprenderam a se escutar, que tomaram o hábito de recalcar suas tensões e que não sabem que palavras podem traduzir o seu mal-estar. A isto vêm se juntar, no âmbito das estatísticas, as altas taxas de depressão, obesidade, suicídios e divórcios. Espero que um dia essa matéria essencial por definição (o seu próprio ser) seja ensinada nas escolas. Vamos pensar na forma que essa parte fundamental da educação poderia ter. Imagino-a na forma de um único ateliê: o do conhecimento de si mesmo. O ser humano seria estudado em sua globalidade, cada parte remetendo à outra. O que importa é a aquisição de um reflexo de atenção às mensagens que o nosso corpo nos envia quando estamos perturbados, em vez de recalcar esta informação, como tantos de nós aprenderam a fazer. E assim desenvolver a confiança em nossos sentimentos. Vamos explorar as diferentes portas de acesso a nós mesmos, duas das quais são privilegiadas e devem ser enfatizadas: os sentimentos corporais e as emoções. É claro que a mensagem de uma porta está profundamente ligada à da outra. A visão de um professor dedicado à inteligência corporal seria no sentido de que a criança redescobrisse a comodidade e o prazer de habitar o seu corpo
  • 30. (segundo a expressão de Thérèse Bertherat2 ). Para conseguir isso, em vez de um método escolhido entre as dezenas que figuram no mercado do bem-estar, o que conta, na minha opinião, é a permanência da consciência das necessidades corporais ao longo dos estudos. Devemos ajudar os jovens a estarem disponíveis para a escuta e a cuidar das suas necessidades físicas: movimentar-se, alimentar-se, relaxar de maneira saudável e respeitosa. Temos de ensinar às crianças o ato de prestar atenção nos sinais do seu corpo quando exprime tensões, indisposições, contrariedades e inquietudes. Devemos lhes dar as chaves para aceitar e transformar esses mal-estares. Por exemplo:  Realizar jogos, espaços e rituais para favorecer as necessidades de movimento nas turmas, como rodas de reflexão onde seria possível cogitar um assunto ao mesmo tempo em que todos andam.  Ritmar os tempos de estudos por momentos de concentração, relaxamento ou liberação das tensões corporais.  Prever momentos de expressão, de compartilhamento dos sentimentos psíquicos e suas mensagens.  Oferecer aos alunos assentos ergonômicos, bolas ou bancos.  Ter uma abertura da parte dos professores às posições corporais freqüentemente julgadas desrespeitosas, as quais eu associo mais ao cansaço ou ao tédio.  Propor ateliês para desenvolver o sentido do ritmo: rítmica, eurritmia, dança, etc. Quanto à inteligência emocional, poderíamos propor às crianças uma alfabetização. As mensagens veiculadas pelos sentimentos deveriam se tornar para eles como que placas de trânsito. Cada um deve conhecer seu sentido: uma placa de rua sem saída, um sentido proibido, uma ultrapassagem de limite de velocidade... Mensagens que eles poderiam aprender a aceitar, sejam elas quais 2 Thérèse Bertherat criou e desenvolveu, em meados da década de 1970, em Paris, a antiginástica, técnica que permite conhecer melhor o seu próprio corpo e realizar novos movimentos, diferentes dos praticados cotidianamente. Segundo ela, devemos esquecer os lugares-comuns de que somos "moles ou fracos demais, gordos ou magros demais", pois todos somos muito bem-feitos. Porém, nossa forma perfeita é mascarada por crispações, dores, deformações, etc. Fonte: site oficial de Thérèse Bertherat, http://www.antigymnastique.com (N.T.).
  • 31. forem, em vez de se voltar vagamente para os "bons" sentimentos e tentar sufocar a força de vida dos outros. Por exemplo, o tédio ou a frustração, sentimentos "horríveis" aos quais não damos consideração na nossa sociedade de lazeres, poderiam ser apresentados como oportunidades de se conhecer melhor, convites para escutar a si mesmo. Ou então a raiva, potência constrangedora que revela nossa inabilidade a exprimir nosso mal-estar. As crianças poderiam treinar "gritá-la" estando conscientes do que querem, e não, como de costume, exprimindo algo de que não gostam no outro. E mesmo os medos, turbulências subterrâneas que se escondem tão bem. Os alunos poderiam ensaiar ir buscá-los atrás dos discursos animadores, dos sentimentos aparentes ou dos comportamentos provocadores. Ou ainda a surpresa, chave de nossa relação com o mundo emocional. Se os jovens percebessem que ela pode trazer mais alegria do que pânico, a simples descoberta ajudaria a formar cidadãos abertos à diferença. O aprendizado também consiste em realizar nossos movimentos de fuga com relação a emoções que nos perturbam. É, em seguida, adquirir os meios de administrá-las: a capacidade de se concentrar, de prestar atenção em si mesmo, de se deixar surpreender pela energia que surge no coração, de acolher as ondas dessa corrente, de colocar uma delas de lado quando nos submerge, etc. Uma amiga minha me contou uma maneira inspiradora de iniciar um be- a-bá emocional. No seu jardim-de-infância sempre perguntam de manhã a cada recém-chegado como ele se sente. Quando se expressa, ele entra numa roda onde todos os participantes cantam várias vezes o seu nome e a emoção que ele está sentido: "João está triste esta manhã, João está triste esta manhã." Guardo a alegre lembrança de uma experiência que vivi numa colônia de férias. Para iniciar as crianças à expressão de seus sentimentos, tínhamos pintado um grande círculo no qual diferentes emoções correspondiam a uma cor. Antes da reunião cotidiana, cada um pintava o seu rosto seguindo esse código, as cores representando sua sensibilidade do momento.
  • 32. 10 Uma pedagogia da espontaneidade Não fazemos questão de que a criança esteja interessada pelo seu trabalho. Pedimos-lhe somente para obedecer. Se, na turma, com freqüência ela parece tão pouco inteligente, é porque não sacudimos seu espírito, não nos demos ao trabalho de despertar sua curiosidade. Henri Roorda Várias vezes fiquei chocado, ao conversar com estudantes, de constatar a que ponto o interesse que eles demonstravam por tal assunto era condicionado e limitado pelas diretivas que lhes tinham sido dadas. "Tá, mas isso não está no programa." "Não é o que o professor quer." "Não vale a pena estudar tal matéria, não vai cair na prova mesmo!" Que tristeza: eles viam o mundo não a partir de sua curiosidade, mas de acordo com a imposição de uma hierarquia. Quando observo a incrível força de curiosidade presente na criança bem novinha, a que ponto todo o seu ser é captado por cada novo tema de descoberta, fico desesperado ao ver o contraste com o estudante-padrão. Que impulso de vida se apagou e quanto o indivíduo aprendeu a se limitar! E não somente a sua curiosidade. Estando essa qualidade restrita, uma parte da sua inteligência e de sua capacidade de adaptação morre. O que impediria, e mesmo suscitaria, o entusiasmo do jovem com relação à descoberta do mundo? O que falta para ele confiar na plenitude do movimento que o fez aprender, nos primeiros anos de sua vida, um ou mais idiomas, sem programa preestabelecido? Por que não dar prioridade ao que mobiliza a sua atenção neste instante? Essa pedagogia, que enfatiza a espontaneidade, implica inverter a lógica da iniciativa de aquisição no seio da escola pública. Não vamos mais partir do objetivo de um Estado, mas da interação das necessidades individuais tanto dos
  • 33. alunos como dos professores. Isso implica também desenvolver meios para esclarecer essas necessidades em presença, possíveis estratégias no momento e estabelecer processos de acompanhamento para permitir tirar o máximo proveito das escolhas efetuadas. Se desejamos incitar os jovens a ter prazer em aprender, é necessário que os pedagogos comecem por se divertir. Em seguida, eles naturalmente mostrarão aos seus alunos a alegria de explorar. O que o professor vai transmitir é antes de tudo o seu entusiasmo por uma matéria. Desse ponto de vista, a tarefa primordial do professor é conservar a sua própria espontaneidade, manter a ligação com os sonhos que o levam a exercer a sua profissão. Esse aspecto agradável do seu trabalho demanda que suas motivações, que evidentemente evoluem com o tempo, permaneçam claras para ele. Essa vigilância vai levá-lo a desenvolver um conhecimento de si mesmo e uma conexão com suas necessidades. Essas capacidades lhe serão úteis nos momentos agitados que surgem durante o ano letivo. A fim de prevenir o esgotamento e o desestímulo dos professores, duas ajudas me parecem preciosas: criar espaços de acolhida empática, para dar conta de assuntos de escuta atrasados, facilmente acumulados numa profissão em que se dá o melhor de si aos outros, e prever intervalos regulares de revigoramento, um por ano por exemplo, onde os professores poderiam estar certos de manterem os laços com suas aspirações profundas. Além da ação empolgante do professor, outros fatores permitem que os jovens se voltem para a aventura infinitamente apaixonante que é o questionamento da vida. Um contexto rico, aberto e motivante, junto com vários instrumentos e temas de exploração à disposição. A menor pressão possível quanto a um objetivo enquanto o estudante não tiver escolhido uma direção clara — visto que as obrigações provocam uma resistência proporcional à força exercida, o que leva a uma queda da espontaneidade interior. Isso não quer dizer que abandonamos a noção de objetivo. Quando um aluno se foca num projeto, com o aval do seu professor, são definidos objetivos, que no entanto evoluem. Avaliações conjuntas regulares permitem adaptá-los para que permaneçam a serviço da iniciativa de aprendizado e não se tornem obstáculos. O essencial não está no projeto escolhido, mas na maneira como ele é vivido pelo jovem e como seu encaminhamento é explorado pelo professor. A
  • 34. construção de pipas não tem nem mais nem menos valor do que a trigonometria, contanto que a matéria seja abordada com paixão e que o contexto permita que o que foi aprendido dê frutos.
  • 35. 11 Aprender a não saber tudo O questionamento, base de uma pedagogia não-diretiva Eu me pergunto se, quando uma tartaruga esconde a cabeça na sua carapaça, lá dentro é tão escuro que ela tem medo de ficar ali. Eu me pergunto se uma pedra gosta de ser dura. Eu me pergunto se o céu gosta de ser azul. Ruth Bebermeyer Recentemente, durante um curso que ministrei a adolescentes com a minha colega Fabienne Rauch, pudemos experimentar a magnífica capacidade de questionamento do mundo que acontece nessa idade graças a uma das participantes, que exprimiu suas dúvidas quanto ao que propúnhamos. Nós lhe tínhamos comunicado todo o prazer que sentimos ao descobrir sua faculdade de questionamento do que dizíamos e a segurança que isso nos proporcionava, pois dessa forma, sabendo que o nosso discurso passaria pelo crivo da crítica, podíamos nos permitir sermos menos vigilantes. No entanto, essa menina baseava suas observações em suas representações do mundo, as quais temíamos serem imutáveis. De fato, ela nos dizia: "Não vou mudar minhas idéias" ou "Tenho minha opinião". Ela já tinha aprendido a saber tudo! Acho isso uma pena, pois, se o questiona-mento é baseado num sistema de representações já adquiridas, ele pode não ser suficientemente pleno para criticar certas crenças imutáveis. Para conseguir uma avaliação realmente livre do que nos acontece é necessário partir do não-saber. Esse questionamento, que não sabe nada ou, em todo caso, não sabe mais nada durante um tempo suficiente, representa para mim a chave da criatividade. A escola que repete normas e contribui para mantê-las conduz as crianças a certa rigidez de pensamento. A adoção de hipóteses apresentadas como evidências, a multiplicação de respostas já prontas e os saberes a ingurgitar sem comentários nem críticas reduzem a maravilhosa plasticidade do espírito infantil. Cada certeza adquirida (lembre-se de que chamo de "certeza"
  • 36. uma crença cristalizada) mata uma parte de nós mesmos. Esses "pensamentos imutáveis" são obstáculos para a nossa capacidade de nos voltarmos para o instante. Um espírito profundamente angustiado se agarra a essas crenças. Já um espírito seguro de si aprende a desenvolver uma confiança no que está por vir e a simplesmente manter um espírito aberto. A chama da inteligência (que a educação reduz a cinzas com tanta freqüência) é a potência de Um questionamento permanente, de um olhar sempre novo sobre as coisas, de um olhar que não considera nada como já dado. É o presente do ato de colocar em questão certas convicções do professor e do aluno, para que eles sigam juntos por caminhos nunca antes trilhados. A chama da inteligência é o olhar extraordinário que a criança pequena, eternamente surpresa, lança sobre o mundo. A magia revelada nos desenhos de um pedaço de madeira, na forma de uma montanha, nas cores de um alimento. E afloram as questões: "Por que as chamas nunca descem? O que a grama sente quando é cortada? De onde vem a água da fonte, já que não chove há uma semana?" Que mundo surgiria se as crianças fossem encorajadas a continuar esse questionamento? É um motivo a mais para a exploração pedagógica da espontaneidade dos jovens, que permite ao tema explorado manter a sua atualidade e ser trabalhado por inteiro. Uma escola ao meu gosto enfatizaria tanto a desaprendizagem quanto a aprendizagem. Trataríamos um assunto uma primeira vez, depois diríamos aos jovens para esquecê-lo durante um tempo e, em seguida, o retomaríamos. O que permaneceu? Como essa parte se integrou ao espírito deles? Revejamos os elementos que a memória não guardou na consciência, como se eles nunca tivessem sido tratados. Como olhá-los de outra forma, permitindo-lhes revelar seus diferentes aspectos? Vamos estimular os estudantes a ficarem com os seus questionamentos. Acima de tudo, não se deve pressioná-los para que assimilem um tema — senão rapidamente eles correm o risco de se contentarem com uma aquisição. Vamos deixar as interrogações amadurecerem neles, ajudá-los depois a formulá-las, construir pontes com outros elementos.
  • 37. Vamos favorecer sua faculdade de duvidar, de colocar em questão seu filtro de interpretação dos acontecimentos. Assim os ajudaremos a manter a vivacidade natural de seus espíritos, a chama inata do questionamento. Contribuímos para que eles se tornem membros ativos da sociedade, ou seja, cidadãos perturbadores. Esse poder de suscitar e de ficar no desconforto permitirá a evolução do seu meio ambiente. É o peso de nossos saberes que representa o principal obstáculo para a vida criativa e o conhecimento mais íntimo do mundo. É a nossa relação com a surpresa que revela nossa capacidade de aceitar o mundo tal como ele é, em vez de defender nossas crenças.
  • 38. 12 O problema dos limites A cultura busca a norma, a adesão coletiva, e persegue o anormal. Jean Dubuffet Um grande problema na educação são os limites. Regularmente escuto pais me dizerem: "Tudo bem, mas de qualquer forma é preciso impor limites aos nossos filhos!" Sempre tenho vontade de lhes responder (na verdade, começo escutando-os, pois isso permite que nos entendamos mais rápido): "Concordo perfeitamente, mas será que você pode me explicar o que você entende por limite?" porque vejo que diferentes significados se escondem por trás desse termo. Para mim, quando uma pessoa fala de limites, a questão fundamental é saber se ela está falando de uma necessidade ou de uma visão estratégica.* No âmbito da necessidade, constato que as crianças (e, na verdade, os adultos também) se sentem seguros num contexto claro. É possível criá-los através de referências, que são meios a serviço da vida. Para delimitar o contexto devemos utilizar limites precisos com um objetivo construtivo. Se as referências não convêm mais, podemos substituí-las por outras, contanto que elas permitam responder às necessidades de presença (mais freqüentemente a segurança, o sentido ou a pertença). Nessa perspectiva, o limite representa um apoio para a relação, em cuja proteção a atenção é concentrada. Por exemplo, quando um professor propõe, como regra de comunicação para a turma, que cada aluno fale de uma vez sem ser interrompido. Se essa estratégia estiver explicitamente associada às * Para deixar claro, gostaria de especificar que, quando emprego o termo "estratégia", não faço julgamentos de valor sobre ele. Utilizo-o para designar a implantação de ações para satisfazer necessidades.
  • 39. necessidades de compartilhamento e clareza das quais provém, há chance de ela ser aceita como ajuda, e não como outra imposição vinda dos adultos. No cotidiano, a complicação deriva muito da atração que as situações exercem sobre nós. De tanto pensar, soluções acabam se impondo a nós. No entanto, assim que acreditamos saber a maneira exata como a nossa necessidade deve ser satisfeita, não estamos mais em contato com ela, mas com o âmbito da estratégia. É claro que uma hora empregaremos meios de ação, mas com freqüência, quando as pessoas falam de limites, elas já têm idéias rígidas sobre os que devem ser impostos. São regras, punições, palmadas, advertências. Eles lhes passam um sentido de obrigação, e não de ajuda. Uma dificuldade crucial nas relações entre pais e filhos vem do fato de que, com muita freqüência, os primeiros têm claramente na cabeça as estratégias que querem instaurar com relação à sua prole, mas não as necessidades que alimentam através delas. Eles afirmam para mim: "É necessário que nossa filha vá dormir antes das nove da noite." "Faço questão de que meus filhos tenham uma alimentação variada." Etc. Suas estratégias são claras. Contudo, quando lhes pergunto: "Por que essa maneira de agir é importante para você e não para o seu filho? Posso imaginar o sentido que você vê nessa regra para o seu filho, mas, e para você?", fico espantado com o tempo necessário para encontrar uma resposta. Quando esses pais entram em contato com as necessidades que eles buscam satisfazer através de suas exigências, com freqüência estas últimas desaparecem ou se modificam. Por exemplo: uma vez que percebem que o essencial para eles é se reservar um tempo de revigoramento à noite, o pedido à sua filha se torna: "Não nos perturbe depois das nove da noite." Se uma necessidade não estiver claramente expressa, isso automaticamente estimula no interlocutor um reflexo de defesa ligado à sua necessidade de autonomia. Tendo visto essa resistência na prática, numa quantidade considerável de casos, tirei a conclusão de que um dos maiores serviços que podemos prestar aos nossos filhos é sermos claros quanto às nossas necessidades quando lhes pedimos alguma coisa. E, a partir daí, estarmos, quanto
  • 40. possível, mais abertos às estratégias implantadas para satisfazer tal necessidade. Gostaria de dissipar certas representações que escutei várias vezes sobre a não-diretividade. Para explicar as causas delas, devo em primeiro lugar abordar a noção de crença. Esta última faz parte de uma representação binária do mundo. Cada fixação mental tem seu oposto, que não é um outro paradigma, mas o outro lado da medalha. Se imaginarmos uma coisa certa, estaremos prontos a considerá-la errada. Se projetarmos sobre alguém uma fantasia de inteligência, aceitaremos de modo inconsciente a imagem de sua estupidez. Na nossa cultura da eficácia, muitas pessoas estão acostumadas a se focalizarem nas estratégias. Quando surgiu a moda de uma educação menos diretiva, elas pensavam: "Antes, eu impunha limites. Pois bem, vou mudar minha maneira de agir: vou eliminá-los!" Na verdade, elas permaneceram completamente no mesmo sistema de crenças, mas imaginaram aderir a um sistema não-diretivo enquanto que na realidade tinham passado de uma atitude diretiva a uma negligência. Portanto, as pessoas envolvidas pelas crenças sobre a não-diretividade eliminaram várias obrigações que impunham anteriormente e se convenceram de que tinham mudado de doutrina pedagógica. O que evidentemente provocou situações pouco agradáveis. Seus filhos não tinham mais segurança em função da falta de referências, e os professores se enrascaram na confusão que havia no início. Como ninguém se entendeu, depois de um tempo os adultos afirmaram: "A não-diretividade não funciona, vamos instaurar novamente os limites!" Essa alternância, a partir de uma confusão, ainda poderia durar muito tempo. Pelo menos enquanto não houver a compreensão de que diretividade e permissividade são os dois pólos da mesma esfera de consciência. Então, como impor limites a partir da consciência das necessidades? Uma pedagogia não-diretiva não se apóia nas representações hierárquicas, sanções e outros meios de obrigação. Para sustentar seu funcionamento, ela utiliza outros elementos:  a maior clareza possível na circulação da informação;  a autonomização da maioria de seus atores;  a confiança recíproca;
  • 41.  o aumento da quantidade de referências. Os limites não devem ser suprimidos, pelo contrário, devem ser aumentados. Um sistema não-diretivo se caracteriza por um número de referências maior. Mais do que no âmbito do fazer, é no do ser que os limites adquirem potência. A clareza sobre as nossas necessidades, a fidelidade a nós mesmos e a nossa coerência são belos limites para os outros. Tenho a convicção de que, se desenvolvermos essa arquitetura interna, teremos menos necessidade de impor uma estrutura externa para atenuar a nossa confusão. Em todo caso, para favorecer a vida social, as referências são grandes apoios. Elas podem tomar as formas:  de transmissão de informações: "A lei estipula que é proibido fumar aos menores de dezoito anos." "O costume neste prédio é de os moradores dizerem bom-dia quando se cruzam."  de opinião: "A fumaça do cigarro me incomoda. Eu acharia respeitoso se conviéssemos que nesta sala ninguém deve fumar."  de expressão da nossa autenticidade: "Fico preocupado quando você me diz que vai acampar com dois amigos da mesma idade. Preciso me assegurar de que manteremos contato durante esse período."  de pedidos concretos e realizáveis: "Você pode conversar agora? Há algo que o impediria de fazer o que eu lhe pedi?"  de negociação de regras de vida: "Alguém gostaria que nossas sessões não fossem encabeçadas por um animador? Se sim, pode dizer o porquê?
  • 42.  de esclarecimento dos campos não-negociáveis: "Se você quer fazer parte do nosso time de futebol, tem de vir a pelo menos um treino por semana. Você está preparado para aceitar isso?"  de indicação da causalidade ligada a uma ação: "Se você colocar a mão nessa resistência elétrica, vai se queimar." Etc. O importante não é tanto o limite escolhido dentre a multiplicidade existente, mas sim a certeza de que:  Nós o impomos corretamente para beneficiar a relação.  Conseguimos que ele seja percebido assim.  Há uma quantidade suficiente de limites para "alimentar" as necessidades ativadas.
  • 43. 13 O valor da palavra A palavra é a sua aliada, mas nunca a sua substituta! Janusz Korczak O instrumento privilegiado que utilizamos numa pedagogia não-diretiva é a comunicação. Porém, para que a palavra se torne realmente uma ajuda, é preciso que ela tenha adquirido uma consideração particular. Por isso, acho útil apresentá-la às crianças como um elemento que a priori questionamos apenas por uma razão salutar. Ao darmos mais força à palavra, visamos a dar mais importância à responsabilização. Para funcionar, a não-diretividade precisa de certo grau de implicação dos seus membros. Ela se apóia numa tomada de responsabilidade individual, proporcional aos meios de cada um e de cada uma. Vejamos como proceder.  Desenvolvendo uma atitude coerente. Em primeiro lugar, nós mesmos devemos fazer o que dizemos e dizer o que fazemos. Quantas vezes escutei pais ameaçarem seus filhos de ações que nunca cometeriam? "Se você não vier comigo, vou deixá-lo na loja!" "Cuidado, se continuar, vamos pedir para esse policial prender você!" Seus filhos acabam não levando a sério essas fantasias; dá para ver na indiferença que manifestam diante dessas ameaças.  Esforçando-nos para que as crianças respondam aos nossos pedidos. Não se trata de forçá-las a satisfazê-los, mas de se engajar para obter uma resposta autêntica. Essa qualidade de atenção não é inútil. Para preservar a energia de todos, antes de fazer um pedido, vale a pena pensar com carinho se ele faz realmente sentido. Por exemplo, um pai pede ajuda numa tarefa ao seu filho, que,
  • 44. recorrendo a uma estratégia corrente, aquiesce, mas não vai. O primeiro pode parar um instante para verificar se o seu pedido faz sentido para si e depois começar a tirar proveito desse pequeno conflito, dizendo: "Fico chateado quando escuto você dizer sim e não vir me ajudar. Prefiro que me diga logo não, pelo menos eu sei o que esperar. Você sabe que a honestidade nas nossas relações é importante para mim. Por isso, pode me dizer o que passou pela sua cabeça quando você me respondeu?" Mostrando a importância que damos ao respeito dos compromissos. Resignar-se com relação às quebras de compromisso não tem nada a ver com a não-diretividade. Pelo contrário, ela nos conduz a não deixá-las passarem despercebidas. Podemos permanecer abertos à mensagem que procura se expressar por trás da ruptura. Esta abertura implica uma escuta daquilo que busca se fazer ouvir por trás das ações inábeis. Ela não quer dizer que aceitemos esses atos ou que estejamos dispostos a questionar nossa posição. Entretanto, podemos abrir um espaço para verificar: "Ok, é isso o que você quer me dizer." Podemos correr o risco de nos comovermos. E eu convido a todos a correrem esse risco, porque, quanto mais o fizermos, mais a relação pode evoluir. Devemos permanecer fiéis à nossa necessidade, se ela continuar viva dentro de nós. Porém, devemos estar abertos quanto à escolha da maneira de satisfazê-la. É uma posição básica da CNV: estarmos atentos às nossas necessidades e flexíveis com relação às estratégias a serem empregadas. O valor conferido ao compromisso e à tomada de responsabilidade poderia parecer em contradição com a importância da acolhida do instante. No entanto, não os vejo como dois fatores que se opõem, mas, ao contrário, que se equilibram. A visão de longo prazo sustenta a escuta do instante. É preciso levar em consideração a fluidez da emoção. Esta é realmente a mensagem mais segura na comunicação, contanto que não seja escutada como um objeto isolado, mas como elemento de uma dinâmica em curso. Várias vezes assisti a essa necessidade de acolhê-la com uma distância. Dessa forma, digamos que uma pessoa enxergue o seu esgotamento e a necessidade de respeitar seu ritmo de vida. Perceba a que ponto não o escutou nos últimos tempos. Esta tomada de consciência a conduz a parar tal atividade,
  • 45. cansativa demais para ela. Voltando-se para tal possibilidade, ela é invadida por um imenso alívio. Para ela, tudo parece estar no seu lugar... e está. No entanto, se continuar sua escuta, ela será levada a prestar atenção numa necessidade de segurança material e a lhe dar prioridade. Escolherá manter seu emprego, mas este lhe demandará menos energia porque as razões de sua escolha se tornarão claras para ela. Se essa pessoa tivesse acreditado em sua emoção rápido demais ou se lhe tivesse dado apenas uma acolhida fragmentária, poderia ter tomado uma decisão que na realidade seria precipitada demais para ela. O que não quer dizer que ela não pedirá demissão em seis meses, quando esse impulso tiver amadurecido o suficiente. Podemos levar uma vida fundada unicamente na prioridade dada ao que acontece instante após instante. Posso admirar tal escolha; só que, para mim, ela não é conciliável com a não-diretividade. Viver a cooperação nesse sistema pedagógico implica nutrir relações que levem em consideração o respeito pelas necessidades do grupo e, portanto, visão de longo prazo.
  • 46. 14 Observar ou imaginar o mundo A criança, que vê os mínimos e reais detalhes do mundo, deve ter sobre nós, que vemos imagens de nossas sínteses mentais — inacessíveis para ela —, uma idéia de inferioridade; ela deve nos considerar como incapazes, como pessoas que não sabem enxergar. Maria Montessori O primeiro convite da CNV é o de desenvolvermos uma sensibilidade quanto às coisas que existem e de estarmos conscientes dos comentários que acrescentamos a elas. Quanto mais potente é o movimento de observação, menos se julgará. E, mesmo que nos percamos num "cinema interior" a partir dos fatos que gravamos na mente, a todo instante é possível voltar ao rigor da observação constatando sem comentários as imagens com as quais brincamos. A atenção ao que acontece é o movimento natural da criança bem novinha. A intensidade de sua relação com o mundo é tal que não há — ou há pouca — distância entre ela e o objeto que a atrai. Todo o seu ser é mobilizado pela relação presente: a dança da vassoura sobre o chão, os jogos de luz na concavidade de uma colher ou os fascinantes relevos do purê de batatas no seu prato. Contudo, na nossa sociedade, onde os intermediários eletrônicos estão em todo lugar, essa ligação privilegiada com o instante se fragiliza. A multiplicação dos meios virtuais de comunicação aumenta a nossa propensão a nos protegermos da realidade imaginando-a. Além da diminuição dos contatos reais, a insistência desses meios na distração estimula nossos sistemas de proteção. Em vez de nos voltarmos para as emoções originadas pela confrontação, rejeitamo-las comentando os acontecimentos. O risco que se corre é o de dar, pouco a pouco, uma prioridade interior aos comentários sobre os fatos objetivos, o que em longo prazo provoca sofrimento. Regularmente acompanho grupos de jovens em programas na natureza e fico espantado com a dificuldade deles em se conectar ao seu meio ambiente. Nas saídas para observação de animais, escuto-os falarem durante horas, dias,
  • 47. sobre a sua convivência na turma ou seus lazeres, às vezes mesmo quando os bichos que eles foram ver estão na sua frente. Essa distância com o presente não revela uma falta de interesse pela natureza, não é o que eles me dizem quando os questiono, mas um hábito de inatenção já bastante consolidado. Fui levado a comparar minha capacidade de atenção no mundo e a que consigo dar a mim mesmo. Pude perceber que, quando aprendia nem que fosse só um pouco a olhar para mim, essa aptidão se transformava numa abertura maior para os outros. Para mim, é doloroso sentir então essa deserção de si mesmo nos jovens, que, há alguns anos, educavam-me para que eu avivasse meu olhar sobre as coisas. Por isso, aspiro a que o ato de observar se torne outra prioridade da educação. Que a criança possa conservar a profundidade de sua relação sensorial com o mundo. Que ela desaprenda a pensar suas relações, se já estiver contaminada por esse hábito, e se instrua para vivê-las com a mesma intensidade de quando ela toca, escuta, vê, experimenta e cheira. Uma educação da observação enfatizaria dois eixos que se completam mutuamente:  Desenvolver uma relação rigorosa com a realidade. Tomar consciência da nossa dificuldade em não julgar o que nos cerca. Desenvolver a capacidade de distinguir os fatos objetivos dos julgamentos, bem como assumir a responsabilidade da nossa subjetividade. Essa compreensão poderia ser criada através de brincadeiras como "Kim" (na qual se deve citar o máximo de objetos escondidos sob um pano, que só foi retirado durante alguns segundos); a descrição de cenas representadas, quadros, paisagens, como se o narrador quisesse ajudar um cego a pintá-los; a visita de um laboratório de física para descobrir os meios que a ciência possui para observar o mundo; etc. As possibilidades são limitadas apenas pela criatividade do pedagogo. Esse aprendizado faz com que o amor pela verdade cresça. Sensibilizar-se quanto à potência de nossos sentimentos. Desenvolver uma pedagogia multissensorial, que compensaria a atual tirania da visão em detrimento dos outros sentidos. Essa atenção a todos os
  • 48. sentidos é o ponto de partida da pedagogia aplicada nas escolas Steiner.3 As brincadeiras que estimulam a nossa capacidade de espanto e de maravilhamento contribuem para o aumento dessas capacidades. Alguns exemplos: passeios sensoriais com os olhos tapados, a pintura de vistas que nos surpreendem, a criação de um mapa sonoro ou olfativo do nosso meio ambiente, etc. Esse aprendizado ajuda a aumentar o amor pela beleza. 3 "Introduzida por Rudolf Steiner em 1919, em Stuttgart, Alemanha, uma das principais características esta pedagogia é o embasamento na concepção de desenvolvimento do ser humano, criada pelo próprio Rudolf Steiner, que leva em conta as diferentes características das crianças e jovens, segundo sua idade aproximada. Um mesmo assunto é abordado várias vezes durante o ciclo escolar, mas nunca da mesma maneira, e sempre respeitando a capacidade de compreensão da criança. Para atingir a formação do ser humano, a pedagogia atua no desenvolvimento físico, anímico e espiritual do aluno, incentivando o querer (agir) por meio da atividade corpórea das crianças em quase todas as aulas. O sentir é estimulado na constante abordagem artística e nas atividades artesanais específicas para cada idade. O pensar é cultivado paulatinamente, desde a imaginação incentivada por meio de contos, lendas e mitos — no início da escolaridade —, até o pensar abstrato rigorosamente científico do Ensino Médio (colegial)." Fonte: http://www.ewrs.com.br/pedagogia.htm (N.T.).
  • 49. 15 O triângulo relacional Podemos contribuir para o aprendizado de uma criança, mas não ensinar. Marshall Rosenberg Uma representação do ser humano me ajuda muito a apreender a complexidade de suas motivações. Pais e professores já me confessaram se apoiar nela para decodificar os comportamentos de crianças que lhes pareciam contraditórias demais. Nas relações humanas, uma freqüente complicação é a crença segundo a qual um indivíduo é inteiriço, uma personalidade monolítica, que às vezes tende para uma direção e às vezes para outras. O trabalho que pude realizar sobre os jogos das relações me convenceu do contrário: vejo os indivíduos como seres eternamente divididos em partes interiores que, por sua vez, com freqüência se opõem. É por isso que um adolescente pode mandar seus pais se catarem num instante e, no momento seguinte, repreendê-los por não lhe darem atenção. Aqui não há paradoxo ou espírito de perversidade, mas a expressão de um conflito interno. Ele está vivendo um dilema entre uma fração íntima que aspira a mais liberdade e outra que sente grande necessidade de segurança. A multiplicidade de conflitos internos se desdobram em três grandes partes:  Chamo a primeira de "animadora" ou "exploradora". É ela que leva o indivíduo a correr riscos, enfrentar desafios ou pedir demissão do trabalho sem a segurança de ter encontrado outro. Também é ela que incita a criança a se levantar e dar seus primeiros passos, etc. A necessidade que ela encarna é a autonomia. Esta tendência nos faz seguir em frente.  Denomino a segunda de "protetora". Sua função é manter em segurança todas as partes que compõem o ser humano. O que quer que façamos, ela sempre procura segurança. O que não nos impede de saltar
  • 50. de pára-quedas ou fazer escalada: ela simplesmente quer ser convencida de que podemos viver tais situações com alguma forma de segurança, pois esta é a necessidade que ela personifica acima de tudo. Esta tendência nos faz dar um passo atrás.  Batizei a terceira de "educadora". Ela representa a inclinação a tirar partido de tudo o que nos acontece sob a forma de tomadas de consciência. Se não virmos nenhum sentido numa ação, não a realizamos, esta é a necessidade que esta parte encarna. Tal tendência nos leva para cima. Vejo essas três partes como guias que estão a nosso serviço e sempre ativas, nunca páram de tomar conta de nós. Elas formam as três pontas de um triângulo e cada uma puxa a brasa para a sua própria sardinha. A personalidade de um ser humano se situa no interior dos três lados desse triângulo e tende para uma ou outra direção em função da parte escutada no instante. No entanto, seria uma ilusão acreditar que é possível ignorar uma dessas partes por longo tempo. Quando uma delas não é escutada, acumula frustração e pouco a pouco começa a gritar mais alto, até o momento em que nos força a levá-la em consideração. Quando tenho dificuldade em me ligar à força de vida por trás da mensagem de um jovem, eu me pergunto: "Qual dessas três partes ele está escutando agora?"  Quando um aluno diz durante a aula: "Ah, estou perdendo meu tempo, não serve para nada aprender essas datas!", é visível que a sua parte educadora pede para entender melhor o sentido do que lhe é proposto.  Quando meu filho me confessa, com um tom desiludido: "De qualquer forma, na audição não vou conseguir tocar essa música sem errar", escuto sua parte protetora que tenta poupá-lo de uma decepção.  E quando um jovem afirma: "estou com vontade de passar a noite acordado com meus amigos", imagino que seja a sua parte animadora que o leva a querer esse tipo de experiência. É claro que o adulto também está exposto às mesmas leis da divisão interna. Ele também enfrenta um dilema entre suas partes íntimas. Uma
  • 51. educação mútua implica o mesmo respeito pela complexidade do triângulo dos pais e professores que pelo do jovem. O triângulo relacional também me ajuda a compreender as referências que sustentam uma pedagogia não-diretiva. Se almejarmos um equilíbrio entre as tendências contraditórias das três partes interiores, então os limites que vamos impor, tanto para os nossos filhos como para nós mesmos, apresentarão naturalmente certas características. Para levar em conta a necessidade de segurança da "protetora", vamos oferecer informações:  numerosas,  claras,  confiáveis. Para satisfazer à necessidade de sentido da "educadora", vamos dar informações que serão ao mesmo tempo:  associadas às nossas necessidades,  bem explicadas,  avaliáveis. Por fim, para responder à necessidade de autonomia da "animadora", nosso discurso será: flexível,  questionável. A prática desses oito critérios contribui para instaurar a condição básica de um funcionamento não-diretivo: a riqueza dos recursos.
  • 52. 16 A relação de confiança O que é essa metade da humanidade que, vivendo ao lado dos e com os adultos, encontra-se ao mesmo tempo tão dramaticamente separada deles? Nós a fazemos carregar o fardo dos seus deveres de sujeitos de amanhã sem lhe conceder os seus direitos de sujeitos de hoje. Janusz Korczak O que permite um equilíbrio entre nossas partes internas é a qualidade da aceitação de cada uma. Esta atenção cria aos poucos uma relação de confiança entre as três tendências. Quando não há tal benevolência, muitos chegam a acreditar que têm adversários no interior de si mesmos. Isso porque, de tanto não serem escutadas, as partes interiores começam a gritar desajeitadamente e acabam sendo percebidas como inimigas! A "animadora" é imaginada como um tirano; a "protetora", como um policial; a "educadora", como um censor. Um dos objetivos da relação de ajuda na CNV é ajudar a pessoa a perceber que, na verdade, as partes internas são amigas que sofrem com um déficit de empatia. Em seguida, nossos conflitos íntimos se revelam nas relações exteriores. A falta de harmonia interior induz uma desconfiança com relação aos outros: acreditamos termos algo a defender ou justificar. Ao contrário, a confiança que podemos ter em outras pessoas desenvolve a confiança entre nossas partes internas. Por isso, uma ajuda essencial que permite às crianças desenvolverem uma amizade consigo mesmas (de acordo com o título de um livro de Pedma Chödrön que eu adoro)4 , consiste em construir confiança em suas relações com os outros, principalmente com as pessoas que representam modelos para elas. Para mim, esse laço de confiança é a base de um trabalho educativo profundo. É a primeira coisa que busco quando entro em contato com jovens. É o ponto que quase sempre privilegio em caso de dilema. A importância da relação de confiança reforça o sentido do investimento 4 Entrer en amitié avec soi-même. Paris: Pocket, 2000 (N.T.).
  • 53. na faculdade de presença e de acolhida. A autenticidade e a empatia de pais e professores representam exemplos inspiradores para as crianças. Qualidades que são o que cada um deve dar a si mesmo se quiser alcançar o bem-estar em sua vida.
  • 54. 17 Confrontar-se com as exigências É evidente que a sociedade deva exercer um controle benéfico sobre o indivíduo humano e é verdade também que a educação deve ser considerada como uma ajuda para a vida, mas esse controle nunca deve ser constrangedor nem opressivo, mas sim um ajuda física e psíquica. Maria Montessori Freqüentemente os pais me dizem estarem descontentes com as exigências que se vêem obrigados a fazer aos filhos. Eles gostariam de aplicar melhor o processo da CNV, que implica pedidos negociáveis. Vejo que a tensão para manter essa aspiração à não-exigência lhes custa muita energia e que eles acabam oscilando entre este ideal sedutor e rupturas culpabilizantes com relação a ele. Por fim, a idéia de funcionar sem exigência se torna para eles uma nova forma de exigência. Acho mais econômico primeiro exercermos uma benevolência quanto à nossa natureza humana e aceitarmos o fato de esbarrarmos regularmente em nossos limites internos, o que nos impede de dialogar o tempo todo. A partir dessa indulgência, é com relação aos nossos limites que podemos aplicar a CNV. A exigência surge então como a compensação desajeitada de necessidades recalcadas. Se criamos essa violência interna, é porque gostaríamos muito de ser pais mais amáveis, mais disponíveis, mais alguma coisa. Isso porque, entre a nossa situação atual e o que desejamos viver, conhecemos bem a diferença, que nos é insuportável, e assim temos tendência a mascará-la, recalcá-la, o que cria uma saturação emocional... até o dia em que as nossas barreiras se quebram. E acabamos impondo às pessoas que nos cercam um comportamento que detestamos. Portanto, é a beleza de nossos valores e ideais que automaticamente suscita o peso de nossas exigências. Daí a vantagem de não dirigirmos nossa atenção para os charmes do futuro, mas sim acolhermos o que está presente no instante. Sermos brandos com a nossa frustração, se for o caso, ou seja, concedermo-nos empatia. E, se o
  • 55. nosso nervosismo persistir, aceitar viver com ele. Certamente, para os nossos filhos, pareceremos muito mais coerentes na situação dada e pacíficos em longo prazo. É ao aceitar nossa violência que começamos a mudá-la. Parece-me útil lembrar que a cada exigência no interior de mim mesmo corresponde uma outra que eu projeto sobre o mundo. Portanto, aprender a administrar tanto a nossa violência interior como aquela que impomos às pessoas que nos cercam dá no mesmo. Dito isso, vejamos um processo mais detalhado para nos ajudar a fazer exigências e, ao mesmo tempo, salvaguardar o máximo de benevolência mútua. Partamos do exemplo de uma mãe furiosa com a sua filha, que acaba de se recusar a lhe fazer um favor.  Primeiro, concedo a mim mesma um tempo de acolhida. Quais são os sinais de alarme? Meus pensamentos: "Acho que minha filha está exagerando! Como ela é mimada! E ainda por cima acha que eu sou a empregada dela!" O que esses pensamentos me revelam dos sentimentos e necessidades que estão dentro de mim? "Eu me sinto exasperada, ressentida e decepcionada! Preciso de reconhecimento pela dificuldade do papel de mãe, de empatia pelo acúmulo da minha frustração (é claro que essa não é a primeira vez que isso acontece!) e de apoio para as tarefas do cotidiano."  Segundo, que escolha surge a partir da escuta de mim mesma? Qual é a direção que a energia segue no instante? Será que a minha veemência é tal que é melhor administrar interiormente o meu conflito ou será que tenho clareza suficiente para me exprimir?  Terceiro, será que consigo assumir a responsabilidade da minha exigência? Será que consigo me concentrar mais no que quero proteger para mim e para a nossa relação do que na vontade de castigar a minha filha? Será que percebo os limites em que cheguei? Será que sinto
  • 56. suficientemente as necessidades frustradas em mim, conseguindo separar esta consciência do que acho da minha filha?  Quarto, como posso formulá-la? Expresso uma ordem, mas associo-a à minha vulnerabilidade e tento comunicar o seu sentido. Por exemplo: "Não estou mais afim de discutir porque estou esgotada e quero preservar o meu tempo. Agora, vá limpar a cozinha! Dessa forma vou me assegurar de que cada um faz a sua parte para a organização da casa." Atenção! Uma freqüente complicação nesses momentos é deixar ressurgir nossos antigos condicionamentos e acrescentar uma ameaça. Assim enfraqueceríamos a exigência ao deixar subentendido que ela não basta por si só. Se estamos dando uma ordem, que ao menos ela possua o mérito de ser clara.  Quinto, qual será o acompanhamento que virá em seguida? A partir da minha experiência, a exigência não é tão problemática. São mais as nossas dificuldades de acompanhá-la que podem estimular reações e defesas — parto do pressuposto de que não estamos nos confrontando com uma filha que está acostumada a se submeter ou a se revoltar diante de ordens, mas sim a um modo de relação baseado num respeito mútuo. Se estivermos dispostos, podemos tentar nem que seja um pouco permanecer à escuta da reação do outro: "Você pode apenas me dizer como encara isso?" Nessas horas, quase nunca temos vontade de ou meios para investir na empatia, mas acho preferível lembrar de explorar esse tipo de conflito num momento mais favorável. Portanto, perguntar no dia seguinte: "Você entendeu, afinal, por que eu estava tão zangada ontem à noite?" A idéia é tentar ir ao centro do conflito, dessa vez, para evitar a repetição dessas situações insatisfatórias.
  • 57. 18 Um dia de Ivan, estudante em 2020 Quero que ensinemos a amar e a compreender o maravilhoso "eu-não-sei" da ciência moderna quando aplicada à criança. Janusz Korczak Naquela manhã, Ivan estava se sentindo tão estranho que até hesitou em ir à escola, mas decidiu ir porque tinha vários projetos em andamento e adiar o avanço deles lhe era penoso. Só que, tendo chegado ao estabelecimento, nenhum dos anúncios da sala de repartição o interessou. Nem o curso que uma das suas colegas ia dar sobre a história das histórias, nem o ateliê sobre o conhecimento do corpo humano, ao qual ele tinha planejado ir naquela manhã e que, no entanto, o tinha fascinado nas últimas semanas. Ele informou sua não-participação num dos computadores do hall de entrada. Quando contou sua decisão aos seus amigos Sérgio e Rômulo, ambos ficaram emburrados durante um tempo, pois contavam com ele para bater o recorde da escola na montagem de esqueleto, já que a "barreira dos dez minutos" tinha sido quebrada na semana precedente. Ele usou de empatia para com eles, que se acalmaram rapidamente, deixando-o para recrutar um novo manipulador de ossos. Ivan foi olhar os anúncios na bolsa individual, mas decididamente nada lhe chamava a atenção naquele dia. Nem a colaboração para uma crônica esportiva, nem um passeio entre as plantas comestíveis, nem um ateliê de cerâmica. Por isso, ele se dirigiu para o lugar que ele e seus colegas chamavam de "estação de triagem". No espaço aberto, três dos quatro escutantes já estavam ocupados. Só tinha sobrado Isabela, o que lhe era bem conveniente. Ele a achava muito simpática, e mesmo sedutora, embora ela já devesse ter ultrapassado a idade canônica de trinta anos. A regra para esse tempo de ajuste da manhã era não passar mais de meia hora com cada pessoa para que qualquer um que quisesse consultá-los tivesse uma vaga. No entanto, Isabela lhe dedicou o dobro disso. Ele ficou agradecido, pois realmente precisou desse tempo todo para ter mais clareza. Ele se deu conta do tédio em suas atividades habituais e da sua
  • 58. necessidade de explorar um terreno radicalmente novo. Sua escutante lhe apresentou os atuais ateliês de conhecimento de si e lhe propôs se perguntar se tinha chegado o momento de procurar um deles. Seguindo sua sugestão, ele foi caminhar no parque durante um bom tempo. Até então, a descoberta de si não tinha sido um aspecto da educação que o atraísse. O professor que o orientava já lhe tinha feito proposições nesse sentido várias vezes, mas ele tinha ficado ocupado demais, ano após ano, realizando muitas vontades, e todo o tempo que ele se reservou, distante da escola, foi dedicado ao lazer. Na beira dos seus quatorze anos, talvez realmente fosse hora de parar e fazer um balanço. Depois da pausa do meio-dia, um pouco aliviado, ele se juntou ao seu time para o ateliê de "análise de desempenho do jogador de futebol". Seu entusiasmo por essa disciplina vinha do fato de que, no ano anterior, o time dos "Carvões Ardentes" tinha ganho o torneio da escola graças a um curso de "lógica e futebol". Com a ajuda de um professor, seus membros tinham analisado as estratégias de todos os seus adversários e elaborado combinações vitoriosas para cada jogo. Para o ano letivo de 2020, o seu próprio time, bem como todos os outros, matricularam-se nesta disciplina. Para se assegurarem da vitória, eles tinham definido esse novo curso com uma professora. Naquela tarde, passaram cerca de duas horas tentando otimizar seus movimentos de corrida com o recurso de um vídeo. Antes de ir para casa, ele foi perambular pela Ágora. A maioria das pessoas presentes era constituída de estudantes mais jovens. A Ágora era um lugar muito enriquecedor para eles, que esperavam poder captar ali a atenção dos veteranos de quinze anos. Ivan fazia parte de um grupo influente, eficaz no meio dos alunos porque nenhum adulto tinha aceitado participar dele. Seu objetivo era manter os torneios da escola que ainda eram competitivos. A intenção dos seus membros era votar este assunto no conselho seguinte da escola, o que implicava em obter previamente uma decisão por consenso. Para isso, era necessário juntar pelo menos uma minoridade decisória: 30%. Ele passou de uma roda a outra, sem se sentar, escutando o jargão dos lobistas. Depois, afastou-se com as orelhas vibrantes pela magia dos argumentos e, fato estranho, com o coração resserenado pela ambiência febril. Decididamente, era difícil se entediar na escola.
  • 59. 19 As características de uma escola não-diretiva Pode ser que a maior descoberta que tenhamos feito em Summerhill5 é que uma criança nasce sincera. Decidimos não incomodá-la para descobrir sua verdadeira natureza. A.S. Neill A atração que a competição exercia sobre os estudantes entrevistos no capítulo anterior talvez choque aqueles e aquelas que sonham com uma educação cooperativa. Por isso, quero me explicar: se eu os descrevi assim, foi porque queria dar realismo à história. A competição é um modo de pensamento tão presente nas nossas sociedades que temo ser preciso algumas décadas para limitar o seu poder nocivo. Suponho que durante muitos anos os professores tenham de levar em consideração a presença desse fator nos jovens dos quais cuidam... bem como em si mesmos. A relação do cotidiano de Ivan visa a ilustrar, entre múltiplas possibilidades, o funcionamento de uma escola que aplica globalmente a CNV. O fato de que sua estrutura pudesse ter diferentes formas representa justamente algumas características dessa pedagogia. No entanto, seja qual for a representação que façamos de um estabelecimento escolar desse tipo, existiriam algumas especificidades. Nestas escolas sempre haveria:  Uma ênfase sobre os impulsos e as necessidades mútuas, tanto de professores como de alunos.  Um ambiente rico e uma ação dos professores focada mais na 5 "Summerhill é uma escola inglesa, fundada em 1921 por Alexander Sutherland Neill (Escócia, 1883-1973). É uma das pioneiras dentro do movimento das escolas democráticas. Atende crianças do equivalente ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Uma escola democrática é caracterizada por dois princípios básicos: a possibilidade de os alunos escolherem se querem ou não assistir às aulas e a dinâmica de assembléias, onde todos participam para decidir as normas da escola. Summerhill se destaca por defender que as crianças aprendem melhor se livres dos instrumentos de coerção e repressão usados pela grande maioria das escolas. Todas as aulas são opcionais, os alunos podem escolher as que desejam freqüentar e as que não desejam. Neill fundou a escola acreditando que 'uma criança deve viver sua própria vida — não uma vida que seus pais acreditem que ela deva viver, não uma vida decidida por um educador que supõe saber o que é melhor para a criança'". Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Summerhill (N.T.).