1) O autor chega a Brasília no dia 31 de março de 1964 após uma longa viagem de carro sem saber que um golpe militar estava ocorrendo.
2) Ao chegar, eles descobrem que Brasília está em um estado de tensão com boatos e informações desencontradas sobre o golpe.
3) O autor é convidado a se alistar como "voluntário da pátria" para a resistência, mas não sabe manejar armas.
3. A história que vocês vão ler começa e termina
em Brasília no dia 31 de março de 1964,
ainda que o autor tenha se deslocado
algumas ve^s para outras datas e lugares.
Mas são "viagens " curtas por meio das
lembranças dele próprio ou dos outros e
através das notícias e boatos que chegaram à
capital da República naquele angustiante dia.
São memórias de um momento carregado de
paixão política e cuja complexidade admite
muitos pontos de vista e opiniões. Passados
quarenta anos, as visões são tão variadas,
quando não desencontradas, quantas eram as
versões naquela jornada em que se decidiram
novos rumos para o Brasil. A memória, a
nossa e a alheia, é, como se diç, traiçoeira.
Mas é também inventiva: não só omite como
acrescenta. O que houver de falta ou de sobra
neste relato pode-se atribuir a ela.
4. — Qual é a arma que você sabe manejar?
— Qual é a arma que eu sei manejar?
— É, qual é a arma que você sabe
manejar?
Achei que ele perguntaria primeiro o
nome, a profissão, essas coisas de praxe. Não
estava preparado para aquela pergunta, assim,
de chofre. Na Universidade de Brasília, alguém
convocara o pessoal dizendo que se tratava de
um "voluntariado para a resistência". Bastava
que nos dirigíssemos ao Teatro Nacional e
procurássemos o local de alistamento. Ninguém
me preveniu para a hipótese de "pegar em
armas". A expressão, para mim, tinha a força
retórica equivalente a outra que ouvira a tarde
toda: "morrer pelo Brasil". Não se podia tomar
ao pé da letra.
Eu continuava ali, parado, sem saber o que
responder, pois não me lembrava de jamais ter
chegado perto de uma arma, quanto mais
manejá-la. Tive vontade de dizer que era bom
de primeiros socorros, mas fiquei com
vergonha. Enfermagem era tarefa para mulher
9
5. e eu, afinal, era um Voluntário da Pátria,
embora não soubesse bem o que fazia ali.
O jornalista Pompeu de Souza estava
implantando o curso de Comunicação de Massa
e pedira a um amigo nosso comum, o professor
e jornalista Hélcio Martins, uma sugestão de
nome para lecionar jornalismo comparado ou
técnica de redação, não me lembro bem. Aceitei
com entusiasmo, não só porque estava
desempregado como porque ia ter a honra de
trabalhar na "universidade do Darcy", uma
experiência revolucionária em matéria de
ensino superior.
Já estavam lá Perseu Abramo, Paulo
Emílio Sales Gomes, Cláudio Santoro, os
arquitetos da equipe de Oscar Niemeyer, ítalo
Campofiorito e Lelé (João da Gama Filgueiras
Lima), e até um jovem assistente chamado José
Paulo Sepúlveda Pertence, que acabaria
ministro do Supremo Tribunal Federal. Alguns
professores já gozavam de reputação
internacional, como os físicos Roberto Salmeron
e Jayme Tiomno. Com quarenta
10
anos, os dois brasileiros eram importantes
pesquisadores, os melhores de sua geração,
respeitados na Europa e nos Estados Unidos.
Para eu me mudar, só faltava acertar
alguns detalhes, e foi para isso que fiz a viagem:
onde morar, emprego para minha mulher,
também jornalista, salário. Quaisquer que
fossem as condições oferecidas, porém, nada
alteraria nossa disposição, minha e de minha
mulher, com menos de dois anos de casados,
para essa aventura de começar vida nova
profissional na nova capital.
Eu chegara na hora do almoço do dia 31
de março de 1964, com minha mulher, Mary, e
com uma colega da antiga Faculdade de
Filosofia, Maria Luiza, que também ia se
transferir para a UnB, além de Hélcio. A
viagem durou quase três dias a bordo de um
valente, mas impotente, fusquinha. Era um
tempo em que quatro pessoas achavam natural
viajar mil e duzentos quilômetros num carrinho
daqueles, parando para comer em pé-sujo à
beira da estrada e dormir em espeluncas.
11
6. Em compensação, uma espera para troca de
pneu numa estrada deserta não representava
nenhum risco de assalto.
Hoje, é impossível viajar alguns
quilômetros em qualquer estrada do Brasil sem
saber o que está acontecendo no resto do país.
Haverá sempre uma televisão, um celular, uma
internet no caminho. O golpe militar de 64, que
começou a ser pensado em 1961, logo depois da
posse de João Goulart, ocorreu em grande parte
durante nossa viagem, sem que
desconfiássemos de nada. Saímos do Rio de
Janeiro com Jango mandando brasa, para usar
uma expressão da época, e chegamos a Brasília
com um certo general Mourão Filho, que viria
a se autodefinir como "apenas uma vaca
fardada", dando as ordens e ameaçando invadir
a Guanabara.
Hélcio e eu nos revezávamos ao volante,
menos por cansaço e mais para evitar a
monotonia daquelas retas infindáveis, sem
curvas, nas quais não conseguíamos atingir cem
quilômetros por hora, por mais que pisássemos
12
no acelerador. Não ter no que fixar o olhar,
nem uma montanha, nem uma alteração
geográfica, entediava tanto quanto aquela
sensação de que não avançávamos, não
saíamos do lugar. Para não cochilar e acabar
no mato, fora da estrada, como aconteceu pelo
menos uma vez, era preciso de vez em quando
cantar, dar uns gritos, brincar de bater um no
outro.
Numa estrada praticamente sem
movimento, naquela solidão, não havia nem o
risco ou sobressalto de algum acidente com
outro carro para despertar a atenção e espantar
o tédio. Nos oitocentos quilômetros a partir de
Belo Horizonte, só havia, pelo que me lembro,
um lugar para comer e dormir. Sem ar
refrigerado e sem poder andar muito tempo
com os vidros abertos por causa da poeira e do
barulho, a viagem oferecia tanto calor e
desconforto que se transformou numa proeza
épica que não exigia heroísmo, mas paciência e
resistência, principalmente de quem estava
grávida, como minha mulher.
13
7. Pouco mais de cinco meses depois de ter
tido o primeiro filho e a cinco de parir o
próximo, que ainda não sabíamos que seria uma
menina (o sexo de uma criança só era conhecido
depois que ela nascia), Mary ainda apresentava
os sintomas desagradáveis do primeiro terço da
gravidez, estimulados pelo cheiro da gasolina
que, por precaução, armazenáramos num galão.
Se faltasse combustível, teríamos que dormir na
estrada. Seria muito difícil alguma alma
caridosa aparecer em socorro.
— Não é possível! Já era para ter parado
os enjôos — ela reclamava toda vez que descia
do carro para vomitar.
Numa dessas ocasiões, sentada num
pequeno monturo ao lado da pista, com as mãos
segurando a cabeça e os braços apoiados pelos
cotovelos nos joelhos, depois de expelir as
vísceras, ela fez um juramento que, sem saber o
que nos esperava, viria a cumprir.
— Eu só volto para casa de avião — disse,
um pouco antes de ser expulsa do seu banquinho
14
improvisado por um bando de agressivos
inimigos. Aquilo era um formigueiro.
Chegar à cidade não foi nada. Difícil foi,
sem placas de orientação, descobrir o local de
destino, enfrentando de vez em quando ondas
de terra vermelha transformada em pó fino e
pegajoso que colava na pele e entrava pelos
poros e pelo nariz até o pulmão. Não só o fusca,
originalmente bege, havia mudado de cor, mas
também nossos cabelos, sobrancelhas e cílios.
Me lembrei do que Juscelino Kubitschek
dizia quando forasteiros desacostumados de
aventuras e sem sangue de pioneiros como nós
reclamavam: "Essa poeira tem terramicina, é
poeira sadia, faz bem pra saúde".
Como ele visitou a cidade 225 vezes
durante a construção, mantendo a disposição e
o bom humor, a tal terramicina devia mesmo
fazer bem — pelo menos para quem parecia
incansável. Já que não podia deixar o Rio
durante o dia, JK esperava o fim do expediente e
tomava um avião para Brasília, aonde chegava
15
8. lá pelas onze da noite. "Percorria então as obras
até as três da madrugada, quando pegava de
novo o avião." No começo, essa viagem era
feita numa espécie de fusquinha do ar, o D 03,
que não desenvolvia mais do que duzentos
quilômetros por hora. Depois passou a usar um
Viscount, com o dobro da potência.
De pergunta em pergunta e de erro em
erro, já meio desanimados de um dia conseguir
tomar um banho de chuveiro, chegamos
finalmente a um canteiro de obras, ou melhor, à
universidade e ao alojamento procurado, onde
se encontravam alguns professores reunidos.
Nós, quatro intrépidos bandeirantes,
comemoramos a chegada como se tivéssemos
vencido uma maratona de resistência e
obstáculos.
Sem rádio no carro e sem contato na
estrada, como já disse, ignorávamos
completamente o que estava acontecendo no
Brasil e no mundo. Tudo era surpresa para a
gente naquela entrada triunfal. Brasília ainda
não estava completamente pronta — faltava
16
o Itamaraty, a catedral ainda não tinha sido
terminada — mas, mesmo assim, o choque do
primeiro olhar, a emoção estética daquelas
construções improváveis, o contraste entre a
falta do que ver durante quase três dias e de
repente aquela oferta grandiosa de formas que
pareciam não tanto colunas e paredes, mas
poemas que usassem como matéria-prima não
as palavras mas o cimento — tudo isso por si
só teria valido a viagem.
De todas as impressões de viajantes sobre
esse admirável mundo novo construído em
apenas três anos e dez meses — escritores como
Aldous Huxley, a rainha Elizabeth, da
Inglaterra, o rei Hailé Selassié, da Etiópia,
presidentes de vários países, como Eisenhower e
Fidel Castro —, a que me vinha à cabeça
naquela hora era a definição de André Malraux
antes até da inauguração: "Brasília é a capital da
esperança". Seria mesmo? Era pelo menos o
que buscávamos, todos os que estavam
dispostos a trocar a Cidade Maravilhosa por
essa nova utopia.
17
9. Mal refeitos do deslumbramento, iríamos
perceber logo que a recém-nascida cidade havia
se transformado num campo de batalha virtual
onde estilhaços de informações desencontradas
explodiam por todos os lados. De Minas, Rio de
Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul,
principalmente, chegava uma mistura feita de
notícias, rumores e boatos que era difícil de
separar.
Havia um clima pesado no ar e a sensação
de que, por trás dos desmentidos oficiais e das
mensagens tranqüilizadoras, uma nuvem escura
mais cedo ou mais tarde desabaria sobre o país.
Naquele momento mesmo, traziam a notícia de
que o general Mourão Filho estava marchando
com suas tropas sediadas em Juiz de Fora na
direção do Rio de Janeiro. Mas quem ia acreditar
nisso?
— Que nada, esse é um maluco fanfarrão
— disse alguém citando a rádio Mayrink Veiga,
a maior autoridade em notícias ou boatos
favoráveis ao governo. Era ótima de ouvir
porque não dava crédito a nenhuma
18
informação a favor dos revoltosos, mesmo
que verdadeira.
Ao ouvir a notícia, Vera Brant teve um
acesso de riso e de estupefação.
— Quem? Não acredito. O Olimpinho?
Mineira de Diamantina, como Juscelino
e o próprio Olimpinho, grande amiga de Darcy,
que a levara para a UnB, ela conhecia muito
bem o personagem, famoso na sua família
porque não ria de anedotas. Ouvia e não achava
graça. No começo pensava-se que por falta de
senso de humor, mas depois se descobriu que
era por outra razão: ele tinha uma enorme
dificuldade de entender. Um dia, um primo de
Vera o encontrou:
— Ô, Olimpinho, que bom eu te ver!
Tenho uma anedota que essa você vai entender.
Contou, era de fácil entendimento, esperou
e mais uma vez nada, nem um sorriso.
"Por isso", recorda Vera agora, "quando
ouvi aquele negócio de Olímpio Mourão à frente
de tropas, eu disse: 'Só pode ser bobagem'."
Com certeza era mais um boafo. Logo depois do
19
10. almoço, ela fora despachar com Darcy — servia
de intermediária entre ele e os coordenadores
da UnB — e ouviu uma advertência contra a
guerra de informações.
— Cuidado, filha, porque Brasília hoje está
dominada pelos boatos.
Lembrando-se disso e das histórias de
Olimpinho, ela procurou tranqüilizar seus
amigos: "Isso é piada, gente".
Não era.
20
UM GENERAL DE PIJAMA
A ih^o daquela madrugada, em Juiz de Fora,
o general Olímpio Mourão Filho acendeu seu
cachimbo e mentalmente registrou o que mais
tarde passaria para seu livro de memórias —
daí a algumas horas levantaria suas tropas e
derrubaria o presidente João Goulart, que ele
acabara de ver na televisão agitando
subtenentes e sargentos, que gritavam "Manda
brasa, presidente!" a cada promessa radical de
reformas sociais.
Ele se referia ao comício do Automóvel
Clube no Rio, o último que Jango faria como
presidente. "Deixei Maria na sala e me retirei.
Não queria ouvi-lo. Não me convinha, pois eu
ia partir contra ele às quatro horas do dia 31 e
já eram vinte e duas horas do dia 30."
Dez anos depois, eu preparava para a
revista Visão um número especial sobre o
décimo aniversário do golpe, quando
entrevistei dona Maria no seu leito de recém-
operada para que falasse do episódio.
21
11. Apesar da saúde frágil, ela conservava boa
memória. "Ele [o marido] desligou a televisão e
saiu. E eu não sei por que tive um estalo e liguei
de novo. Disse-me ele: 'Então você vai ouvir
isso?'. Eu falei: 'Vou ouvir porque se você vai
fazer esse movimento todo, é interessante a
gente ouvir'."
Dona Maria teve a impressão de que o
presidente, com "a fisionomia muito
carregada", talvez não estivesse se sentindo
confortável. Ela ainda recordava alguns trechos
do discurso e gostava especialmente de um em
que Jango falava das cores da reforma. Não foi
difícil recuperá-lo:
"Se quiserem saber quais as cores que
presidirão as reformas que serão realizadas, basta
olhar a túnica de comandantes e comandados do
nosso Exército, da nossa Aeronáutica, da nossa
Marinha, da Polícia Militar. E ali, em cada
túnica, encontrarão o verde-oliva que é o verde da
bandeira brasileira. O a^ul da Aeronáutica e da
Marinha, que é o a^ul da bandeira brasileira.
22
E com essas cores, verde, amarelo e a^ul, que
faremos as reformas."
Ela acreditava em más influências. "O
Jango foi levado, coitado. Eu tive algum contato
com ele, era um homem bom, eu acho. Não tinha
nada de comunista. O cunhado dele [Brizola] é
que era o agitador." Houve um momento em
que parecia que os soldados queriam pegá-lo no
colo. "Aí o Mourão entrou na sala e ficou
furioso de ver aquele barulho todo."
O comandante da Quarta Região Militar
não era um novato na atividade clandestina. Já
havia conspirado no Rio Grande do Sul e em
São Paulo, onde comandara em 1963 a Segunda
Região Militar. O ingênuo Jango, porém,
considerava-o incapaz de "transgredir a lei para
lançar-se à sedição".
Segundo dona Maria, o comício do
Automóvel Clube era o estímulo de que o marido
precisava para desencadear o levante. Às cinco
horas, ainda de pijama e roupão de seda vermelho,
23
12. ele começou a agir. Isso permitiu-lhe escrever
mais tarde, "com orgulho e originalidade", que
fora o único homem no mundo que
"desencadeou uma revolução de pijama".
O ridículo não seria incompatível com
o poder que estava para se instalar.
Mas Brasília não sabia disso e nem bem o
que estava acontecendo. No Palácio do
Planalto, Darcy Ribeiro, que deixara a reitoria
da universidade com Anísio Teixeira ao assumir
a chefia da Casa Civil, passou o dia 31 de março
desesperado atrás de notícias. Tentava falar
com o Rio, onde estava o presidente, mas as
ligações eram ruins e demoradas. Os informes
que recebia da Casa Militar não o convenciam.
Eles repetiam de forma quase suspeita o mesmo
bordão: "Está tudo sob controle". Mas e o
levante de Minas? "Boatos, está tudo sob
controle."
O famoso "dispositivo militar" do general
Assis Brasil, chefe da Casa Militar, espécie de
"Linha Maginot" de Jango, era a força mítica
irresistível com que o governo contava. Dias
24
antes, o presidente reunira-se com oficiais do
seu gabinete num sítio perto de Brasília. Na
mesa onde em seguida seria servido o
churrasco, Assis Brasil abriu vários mapas e fez
uma exposição sobre o poderio das forças à sua
disposição. Para encerrar, atiçou: "Manda brasa,
presidente!". Tudo isso seria posto à prova
naquela última terça-feira de março.
"O dia 31 foi uma loucura", recorda
Iracema Kemp, ex-aluna, amiga e, com vinte e
poucos anos em 64, secretária particular de
Darcy. "Havia aquela série de notícias
contraditórias, Darcy pressionando para obter
informações e o Gabinete Militar, ou porque
não as tinha ou porque sonegava, repetindo que
a situação estava sob controle."
De tarde, depois de muitas tentativas das
duas, a mãe de Iracema, que morava num
apartamento na rua Senador Vergueiro, no
Flamengo, conseguiu completar a ligação:
"Iracema, o Rio de Janeiro está em festa, com
passeata e foguetório. Carlos Lacerda está
anunciando que o Jango caiu". "E eu,
25
13. ingenuamente e cheia de verdade: 'Mamãe, isso
é conversa, é guerra de nervos, não dê ouvidos.
Jango está firme'. Minha mãe com a razão e eu,
ingênua, desmentindo."
ítalo Campofiorito, um arquiteto da equipe
de Oscar Niemeyer levado por Darcy para
dirigir a Faculdade de Arquitetura, pôde viver
o que Iracema ouviu por telefone. Ele só estava
no Rio porque sua mãe fora operada no
Hospital dos Servidores do Estado, justamente
o mesmo onde o ministro da Guerra, Jair
Dantas Ribeiro, se submetera a uma cirurgia de
próstata muito providencial para o golpe. Por
causa do impedimento, ele fora substituído pelo
general Moraes Ancora, seu amigo, que Darcy
descrevia assim: "Era um general magro,
asmático, que tossia sem parar. Levava a
tiracolo não uma arma, mas uma espécie de
bombinha de flit com que, de vez em quando,
aspergia algum remédio na garganta".
O chefe da Casa Civil queria trocar o
ministro interino e o titular pelo marechal
Henrique Lott, que seria, segundo ele,
26
a única maneira de salvar o governo. Mas Jango
recusou a proposta: "Como é que eu vou
demitir o ministro Jair Dantas Ribeiro, que está
de barriga aberta numa sala de operações?".
Mais ou menos na hora em que Iracema
conversava por telefone com sua mãe, ítalo
deixou o hospital na praça Mauá e andou até a
avenida Rio Branco. Com a greve decretada
pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT),
não havia trem da Central ou da Leopoldina,
barca para Niterói, nem avião para Brasília. Mas
havia lotação, um tipo de condução da época,
um microônibus no qual só se viajava sentado,
além de ser mais veloz e confortável do que os
ônibus. Ele pegou um em direção à Zona Sul e
teve seu primeiro choque ao passar em frente ao
Clube Militar, sob direção progressista, onde
parecia haver um morto no chão.
Seu pai, acompanhando a mulher
convalescente, estava ouvindo a rádio Mayrink
Veiga. ítalo, claro, saíra do quarto com a
certeza da vitória. "Foi espantoso para mim.
Havia uma ameaça de golpe, a gente estava
27
14. ganhando e tinha gente nossa estendida no
chão. Não era um bom sinal."
O lotação seguiu e, quando passou pelo
Flamengo, ele viu que a UNE estava pegando
fogo. "Uma rapaziada forte e loura, bem
vestida, com uma faixa azul no braço, indicando
pertencer a alguma organização fascista, gritava
para os lotações, provocando os passageiros."
Quando chegou à avenida Nossa Senhora
de Copacabana, ítalo desceu e foi andando a pé.
Chovia muito, havia uma passeata, e das janelas
lençóis brancos desfraldados sinalizavam apoio
a Lacerda. Um avião puxava uma faixa: "Jango
fugindo". De repente, uma senhora toda
molhada de chuva e de suor, com aquela
mistura escorrendo pelo corpo, se abraçou com
ele e ordenou: "Grita viva Lacerda!", ítalo se
recusava a repetir, mas estava com medo da
grudenta "mal-amada". Por isso resmungava,
trincando os dentes, quase sem ser ouvido:
"Não grito", "Não grito". E não gritou.
28
"Vi aquela multidão em volta de mim
bradando 'Viva Lacerda' e consegui fugir para
dentro de um prédio, cujo porteiro, um crioulo
simpático, chorava a queda de Jango. Tudo parece
esquemático e emblemático nessa história, mas foi
assim que aconteceu. As coisas iam de mal a pior:
o Jango tinha caído, a multidão contrária na rua,
ninguém do nosso lado, a não ser o porteiro
chorando, e eu inteiramente perdido."
Enfim, ítalo procurou refúgio na casa de
seu amigo, o fotógrafo Mário Carneiro, que era
casado com Marília. Ali passou não só o dia
como a noite. "Dormi junto com Mário e
Marília — eles na cama e eu no chão."
Com o fim da greve no dia seguinte, ele
voltou a Brasília para quase uma semana depois
ser preso. A ordem era prender Oscar
Niemeyer, que no entanto tinha viajado para
Israel. Como bom militar, o oficial não se
conformou: "Então traz o substituto". E lá foi
ítalo Campofiorito.
Nos dois principais palácios da Guanabara,
29
15. o Laranjeiras, onde estava o presidente João
Goulart, e o Guanabara, base do governador
Carlos Lacerda, a agitação era grande. Jango,
sem dispositivo militar e sem apoio armado da
base que o sustentava, recebeu à tarde em
audiência o ex-presidente Juscelino Kubitschek e
o então chefe do Estado-Maior das Forças
Armadas, general- Peri Bevilacqua. Os dois,
separadamente, propuseram a Jango que
adotasse uma solução política para a crise, o que
eqüivalia a assumir um compromisso público de
governar com os partidos políticos, não com os
sindicatos, e de se apoiar nas Forças Armadas.
Quando o presidente conversava com o
general, o ministro da Justiça, Abelardo
Jurema, pediu licença para interromper e
entregou-lhe um pedaço de papel. Jango leu e
disse: "O general Mourão acaba de publicar um
manifesto exigindo a minha renúncia. Estará
isto direito?".
Bevilacqua revelou então ser amigo de
Mourão, quase tanto quanto JK. "O general
30
aprendeu a ler com a mãe do presidente
Juscelino e o presidente Juscelino aprendeu o
bê-á-bá com a mãe do general." Ele esperava que
Jango usasse um dos dois ou os dois para uma
intermediação junto ao insurreto general
mineiro. Mais tarde, Bevilacqua recordaria:
"Bastava que nesse momento, ouvindo a mim,
que era amigo do Mourão, e também o Juscelino,
que era amigo de infância do Mourão, ele tivesse me
dito: "General, eu lhe peço que viaje imediatamente
para Minas Gerais, vá se entender com seu amigo
Mourão e convide para ir em sua companhia o
senador Juscelino Kubitschek'. Estou certo de que
teria sido obtida imediatamente uma solução política
para aquela gravíssima crise em que estava
submersa a República."
Jurema passou o dia todo no Laranjeiras e,
segundo testemunhas, não parava. O poeta
Gerardo Melo Mourão, lá presente, é quem
conta: "De cinco em cinco minutos, o ministro
Abelardo Jurema descia do gabinete
31
16. presidencial e, com sua poderosa voz de
barítono, mandava sua brasa nos microfones
oficiais. O ministro Jurema era um bom copo e
uma boa garganta. Entusiasmado com essas
duas qualidades, passava por nós e convidava,
triunfante: 'Vou fazer uma proclamação,
venham ouvir'. Depois de uma dúzia de
proclamações, verifiquei que o ministro não
transmitia nunca uma notícia concreta sobre os
acontecimentos. Interpelei-o, numa de suas
descidas: 'Abelardo, você precisa dar alguma
notícia, alguma informação, onde estão as
tropas do Mourão, onde estão as forças que
foram ao seu encontro, alguma coisa real'.
Olhou-me o ministro, entusiasmado: 'Vou já
fazer mais uma proclamação'. E tocou-se para o
microfone, orgulhoso com a própria voz".
No fim da tarde, começaram a surgir
boatos de que os fuzileiros navais, comandados
pelo almirante Aragão, iriam atacar o Palácio
Guanabara. Isso foi suficiente para transformar
o local numa barricada, feita com caminhões da
limpeza pública com motores ligados.
32
Armas foram distribuídas, voluntários se
apresentaram e a tensão aumentou. Lacerda,
com a metralhadora que seu filho Sérgio o
ensinara rapidamente a manejar e com japona
preta, "para evitar que sua camisa branca o
transformasse num alvo fácil", fazia dramáticos
apelos pelo rádio. Tudo estava pronto para que o
primeiro tiro saísse do Palácio Guanabara. Não
saiu dali nem de lugar nenhum. No golpe de 64,
o telefone teve mais serventia do que os fuzis e
as metralhadoras.
33
17. TUDO SOB CONTROLE
Ao meu círculo em Brasília, só chegavam as
boas notícias. O otimismo era alimentado pela
certeza oficial que as rádios do governo
espalhavam: "tudo sob controle". Mas lá no
fundo, numa zona remota em que eu ainda
guardava alguma reserva de bom senso, uma
voz mineira me dizia que aquilo não ia dar
certo. Aquele cheiro de pólvora no ar, aquela
euforia beligerante, "a disposição para a
resistência" dos jovens, tudo parecia uma
aventura perigosa e inconseqüente destinada ao
fracasso.
Mas como não ia dar certo, se quando
saímos do Rio o povo, as Forças Armadas e
todo o dispositivo militar estavam prontos e
decididos a defender Jango e suas reformas de
base? Quem não via isso? No dia 13, eu
mesmo, eu e mais cem mil pessoas (ou trezentas
mil, segundo alguns jornais), assistíramos ao
grandioso Comício das Reformas na Central
do Brasil no Rio. Estavam lá no palanque
34
os ministros militares: o general Jair Dantas, do
Exército, brigadeiro Anísio Botelho, da
Aeronáutica, e o almirante Sílvio Mota, da
Marinha, além do marechal Osvino Ferreira
Alves, presidente da Petrobras, entre outras
autoridades, ao lado das lideranças sindicais do
CGT, PUA e do Partido Comunista.
Os grandes líderes populares compareceram.
Brizola, o deputado mais votado do Rio, o
governador Arraes, de Pernambuco, Seixas
Dória, governador de Sergipe, o presidente da
UNE, todos unidos na Frente Única Popular de
apoio às reformas. Estava lá também, claro, ao
lado do presidente, a primeira-dama Maria
Teresa. Aos vinte e sete anos, ela era
provavelmente a mulher mais bonita do país na
época. Com um vestido azul-piscina e aquele
penteado para cima em forma de coque — sexy,
linda, carismática — era uma atração à parte.
Ouvia-se Jango, vibrava-se com seu discurso,
mas só se tinham olhos para aquele perfil clássico,
de traços irretocáveis. No final, ela classificou o
comício de "maravilhoso". Os repórteres,
35
18. deslumbrados, sabiam muito bem que
estava diante deles a verdadeira maravilha,
ela, que pela primeira vez comparecia a um
comício.
Pouco antes, no Palácio Laranjeiras, o
presidente assinara o decreto de desapropriação
de áreas ao longo das ferrovias, rodovias,
zonas de irrigação e açudes — passo inicial
para a reforma agrária — e o da encampação
das refinarias particulares de petróleo como as
de Capuava, Manguinhos, Matarazzo. Logo
depois, já no palanque, anunciara o
tabelamento dos aluguéis. Se alguém ainda
tinha dúvidas de seu poder e disposição, que
ouvisse o seu discurso, enquanto Maria Teresa
se preocupava em passar-lhe um copo de água
gelada a cada momento.
"Nenhuma força será capaç de impedir que
o governo continue a assegurar absoluta liberdade
ao povo brasileiro. Epara isso podemos declarar
com orgulho que contamos com a compreensão e o
patriotismo das bravas e gloriosas Forças
Armadas."
36
Dezenas de faixas levadas por delegações
vindas de toda parte davam o tom das
reivindicações: "Salve o glorioso CGT"
,"Abaixo com as companhias estrangeiras",
"Jango, abaixo com os latifúndios e os trustes",
"PCB, teus direitos são sagrados", "Jango,
defenderemos as reformas a bala",
"Trabalhadores querem armas para defender o
seu governo".
Primeiro lendo o que havia preparado,
depois improvisando, Jango discursou com
veemência durante mais de uma hora,
prometendo e ameaçando.
"A maioria dos brasileiros não se conforma
com a ordem social vigente, imperfeita, injusta e
desumana. Esse é o motivo que me leva a lutar
pelas reformas, de estruturas, de métodos, de
estilos, de trabalho e de objetivos, pois não é
possível progredir sem reformas."
Como ainda duvidar do apoio que o país
dava a seu presidente? Era só ler o que o Diário
Carioca publicou no dia seguinte: "Foi uma
37
19. extraordinária demonstração de pujança do
regime democrático, com o povo brasileiro
unido ao seu presidente na praça pública, em
festivo ato de pleno exercício da democracia".
É bem verdade que menos de uma semana
depois, no dia 19, era realizada em São Paulo a
maior mobilização contra o governo: a Marcha
da Família com Deus pela Liberdade,
organizada por grupos de direita e por setores
conservadores da Igreja Católica. Cerca de
quatrocentas mil pessoas, segundo alguns, e
um milhão, segundo outros, saíram às ruas
carregando faixas que respondiam ao Comício
da Central: "Verde a amarelo, sem foice nem
martelo", "Vermelho bom só batom". Exigiam
a renúncia do presidente da República.
38
QUERES ME DEIXAR SOZINHO?"
De noite na capital, um episódio iria reforçar o
telefonema da mãe de Iracema, que, ao
relembrá-lo, não tem dúvidas em classificar
como sonegação de informações o que os
colegas fardados de Darcy fizeram com ele. De
repente, um passou por ela e disse, tentando
protegê-la:
— Dona Iracema, vá pra casa.
— Por quê?
— Porque a situação está perdida e nós,
militares, nos entendemos.
Iracema está convencida de que, se esse
oficial estava sabendo, é porque todo o esquema
de conspiração também: "Eles dispunham de
radiocomunicação, não apenas de telefones.
Acompanhavam o movimento das tropas". O
próprio Gabinete Civil recebera dias antes um
envelope de remetente anônimo com a
denúncia de que o governador Ademar de
Barros e o general Amaury Kruel, comandante
do Segundo Exército, haviam importado
39
20. clandestinamente grande quantidade de
armamento e munição.
"Uma coisa sempre me intrigou esses anos
todos", lembra Iracema. "Por que não tomamos
conhecimento daquela folha enorme com a
denúncia, que parecia séria? Com aquela
trabalheira toda, propostas de mudanças,
projetos de reformas, problemas, tanta coisa
para resolver, a gente não deu importância
àquilo e o papel sumiu."
Acontece que, de um lado, havia os que
não queriam fornecer informações, e do outro
os que não queriam recebê-las, quando
desfavoráveis. Ela hoje acredita que, voltados
para o trabalho e as propostas de mudança —
"a gente só pensava em trabalhar" —, Jango e
Darcy esqueceram que uma base importante era
o apoio militar.
No fundo, no fundo, Darcy não confiava
no esquema militar de sustentação. Bem antes
dessa crise, voando do Rio para Brasília com o
presidente, ele não parou de falar, ele que não
gostava de conversar em vôo. Para livrar-se
40
do Comando Militar, ele insistia para que Jango
o deixasse articular uma demissão coletiva de
todo o ministério, obrigando assim os ministros
militares a também deixar os cargos. "Que é
isso, Darcy? Tu queres me deixar sozinho
justamente no meio desta crise?", foi a resposta
do presidente encerrando a questão.
Darcy passou o dia 31 tentando convencer
Jango a reagir. Achava que em vez de ficar ao
telefone conversando com os comandantes dos
quatro Exércitos, que continuavam enrolando e
tirando o corpo fora, ele devia contra-atacar
não mais com palavras.
"A tropa que saíra do quartel de Juiz de
Fora era formada por recrutas com menos de
três meses de caserna. Voltaria correndo para
casa se fosse lambida por algumas
metralhadoras da viação fiel ao governo."
Darcy se articulou com o almirante Cândido
Aragão, para que, com sua tropa de fuzileiros
navais, atacasse o governador Carlos Lacerda
em seu palácio e prendesse o general Castelo
Branco, que estava reunido com um grupo
41
21. de oficiais antigovernistas numa escola militar
da Praia Vermelha. Caberia ao brigadeiro
Francisco Teixeira, comprometido com o plano,
levar seus aviões já a postos no Rio para a
missão de "lamber" as tropas de Mourão.
Darcy continuava insistindo com o
presidente para que ele desse a ordem. Alegava
que as tropas do Primeiro Exército, do Rio, ao
contrário do que dizia o chefe da Casa Militar,
estavam dominadas por oficiais antigovernistas
que sabotavam os carros de guerra e as armas.
Não adiantava. Jango se recusava a
contribuir de qualquer modo para que houvesse
uma guerra civil que, segundo ele, custaria a
vida de um milhão de pessoas.
42
ONDE ESTÃO AS ARMAS?
A agitação era grande dentro e fora do Teatro
Nacional, onde numerosos grupos tentavam
organizar a resistência armada. A Rádio
Nacional de Brasília, em poder dos legalistas,
conclamava a população com apelos cívicos e
incitava os militares com discursos patrióticos.
Segundo notícias que nos chegavam em voz
baixa e com a recomendação de "não espalhar",
Darcy ordenara que distribuíssem armas às
centenas de candangos e trabalhadores que ele
convocara e que estavam concentrados dentro
do teatro. Alguns amigos de Iracema, como
uma funcionária do Tribunal de Contas, faziam
parte da fila de voluntários prontos para a
resistência.
A história das armas não se confirmou.
"Não tínhamos arma nenhuma", lembra
Iracema, achando graça da absurda hipótese.
Mas a convocação de fato houve. O próprio
Darcy contou mais tarde: "Tinha posto, com a
ajuda do prefeito, uns mil candangos sentados,
43
22. esperando, na platéia do Teatro Nacional.
Quisera ocupar com eles, se fosse o caso, a
Câmara e o Senado na manhã seguinte,
pacificamente. Não deu. Auro de Moura
Andrade, presidente do Congresso, antecipou o
golpe, reunindo os deputados e senadores às
onze da noite".
Armas era o que todo mundo queria ali no
Teatro Nacional. Luís Mário Xavier tinha
dezenove anos, era do Rio e fora para Brasília
estudar arquitetura. Fazia o curso básico do
Instituto das Artes, que durava dois anos.
Qualquer aluno tinha que passar por esse
estágio antes de cursar uma faculdade específica.
Ele foi muito importante naquele dia 31 porque
era dos poucos alunos a ter carro. E, melhor,
ter uma caminhonete Vemaguet, que podia
carregar dois cestos cheios de pães, desses
grandes de padeiro.
Durante todo o dia, ele e um colega
ficaram fazendo viagens entre a universidade e
o teatro, levando alimento para os candangos ali
concentrados. Na cozinha do refeitório,
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que estava funcionando só para isso, alunos e
alunas se dedicavam à tarefa de preparar
sanduíches de pão e queijo. No teatro, outros
estudantes se encarregavam da distribuição.
Ele chegava com o colega ajudante, entrava
pela porta dos fundos, tirava os sanduíches do
carro, colocava sobre uma mesa e um grupo
vinha logo pegar.
No palco, líderes estudantis e sindicais se
revezavam em discursos inflamados para
manter os candangos e operários mobilizados.
Não era difícil; problema mesmo foi quando
começou a cobrança: "E as armas, onde estão
as armas, quando é que chegam?".
"Uma hora tivemos que dizer que não
tinha arma nenhuma", conta Luís Mário, "e foi
uma decepção tão grande para aquela gente
que todo mundo começou a chorar. Ficamos
perdidos. Não tínhamos armas, não sabíamos o
que estava acontecendo nem o que ia acontecer.
As notícias eram todas tortas: chegava alguém
dizendo que as tropas golpistas tinham sido
derrotadas não sei onde; chegava
45
23. outro dizendo que não, que as tropas contrárias
é que estavam chegando a Brasília."
No fim da noite, grupos se reuniram nas
casas uns dos outros, tentando saber o que ia
ser no dia seguinte. "Pelo que se dizia, Jango
estava fugindo, Darcy a gente não sabia onde
tinha ido parar. Passamos a noite em claro e só
no dia Ia
de abril se teve certeza do que
aconteceu."
A solidariedade dos estudantes aos
operários construtores de Brasília, a união entre
eles, foi o que mais comoveu Luís Mário nesse
dia. E ainda hoje. "Impressionante como ficou
todo mundo junto."
46
A ESPERA DO CHAMADO
O homem com a ficha na mão não tinha tempo
a perder, mostrava-se muito impaciente. A fila
de alistamento tinha crescido, estava enorme.
Atrás de mim havia ainda muita gente.
— Quer que repita de novo?
Pedi desculpas, disse que não.
Os de trás me cobravam pressa: "O,
voluntário, anda logo ou então sai da fila".
Acho que foi essa pressão que de repente
acionou minha memória, trazendo de volta um
magricela fardado, quase quinze anos mais
jovem, de fuzil a tiracolo. Eu disse lá atrás que
nunca havia chegado perto de uma arma. Não
era verdade.
— Fuzil Mauser 1908 — declarei com
convicção.
— Fuzil Mauser 1908? — agora era ele
quem repetia a pergunta.
Só quem fez o tiro-de-guerra lá pelo
começo dos anos 50 sabia o que isso significava.
Para passar no fim de ano e receber o
47
24. certificado de reservista de segunda categoria,
era preciso vencer algumas provas, como saltar
obstáculos, caminhar trinta quilômetros,
rastejar pelo chão molhado de orvalho no
inverno rigoroso de Nova Friburgo, pular de
um barranco alto e sobretudo simular que
estava cercado pelo inimigo no meio do mato,
de noite, e precisava desmontar e montar um
fuzil de olhos vendados em alguns segundos —
o famoso fuzil Mauser 1908.
Eu era o número 108 da turma do TG-24
que recebeu o certificado de reservista em 1951.
Por ser o último da chamada, que era em ordem
alfabética, desfrutava pelo menos da vantagem
de aprender com os outros na minha frente.
Além disso, não queria ser chamado de
"batráquio" pelo sargento que nos preparava.
Era assim que ele tratava os que não cumpriam
direito suas ordens ou se atrasavam em cumpri-
las. "Anda rápido, ô batráquio!"
Graças a isso, virei um caxias. Sabia de cor
o que o tenente Renato, comandante supremo
do nosso TG, pregava em todas as datas cívicas
48
e que a gente deveria repetir no exame final:
estávamos sendo preparados "para o desempenho
das funções de combatente básico da Força
Territorial, apto a cumprir qualquer missão de
defesa do país". Também me preparei com
afinco para as provas práticas de fim de curso,
não só as de ordem-unida — "Ombro arma!",
"apontar fuzil!", "meia-volta, volver!" — como
as de manejo. Virava o ferrolho com uma rapidez
que enchia alguns colegas de inveja. Montava e
desmontava o velho fuzil em alguns segundos,
sabia ajustar a mira e tinha tão boa pontaria que
nunca errei o alvo, até porque a gente disparava
com festim.
— É, fuzil Mauser 1908, qual o problema?
— desafiei, com a súbita segurança que as
recordações do meu velho tiro-de-guerra me
deram.
Com cara de interrogação, o homem da
ficha olhou para o colega ao lado, que deveria ser
seu superior, e este fez um gesto benevolente que
podia ser entendido como: "Não sei o que é, mas
deixa passar, esse cara não vai ser
49
25. selecionado mesmo, não vai receber arma".
Tratava-se evidentemente de dois ignorantes
das artes militares, que não sabiam o que era um
fuzil Mauser 1908. Mas assim que soasse a hora
da resistência e eu tivesse a chance de
empunhar um, eles veriam do que eu era capaz.
Eles e o inimigo.
E virei as costas. Permaneceria à espera do
chamado da pátria, e das armas. Ou melhor, da
arma: do meu fuzil Mauser 1908.
No Congresso, oposição e governo agiam
num ritmo ciclotímico que oscilava entre a
euforia e a depressão conforme as notícias ou os
boatos iam chegando. Havia incerteza e
indefinição quanto à situação de Minas, do Rio,
do Rio Grande do Sul. Mas a grande incógnita
do dia ainda permanecia: era São Paulo. Com
quem afinal ficaria o general Kruel? O
deputado Baby Bocaiúva mantinha Darcy
Ribeiro informado do que se passava entre os
parlamentares. Várias vezes ele fez a pé
50
o percurso entre o Palácio do Planalto
e o prédio da Câmara.
Finalmente à meia-noite, Kruel se
pronunciou publicamente, aderindo ao
movimento revolucionário e pondo fim a uma
expectativa que deixara o país em suspense
durante vinte e quatro horas. Quando a notícia
chegou ao Congresso, o deputado Doutel de
Andrade, líder do PTB, não acreditou: era a
sexta vez no dia que uma notícia dessas chegava
ali.
Só que agora era para valer. Até então,
também o presidente Goulart dava a impressão
de tranqüilidade. Suas esperanças estavam
concentradas em torno de Kruel, seu amigo e
compadre a quem prestara favores e que servira
como seu chefe do Gabinete Militar e ministro
da Guerra. Segundo depoimento do general
Riograndino Kruel, irmão do comandante do
Segundo Exército, eles se falaram três vezes na
noite de 31 de março. Cada um recorria aos
compromissos assumidos. O presidente insistia
em que não podia aceitar
51
26. a pressão dos militares e trair as forças
populares que o apoiavam. Kruel, dizendo falar
em nomes dos generais, queria arrancar a
promessa de que Jango se afastaria dos
comunistas (a começar, segundo algumas
versões, por Darcy Ribeiro e pelo secretário de
Imprensa, Raul Ryff). No último telefonema,
após insistirem nos compromissos que não
podiam romper, teriam trocado estas palavras:
— Quer dizer, general, que o senhor, meu
amigo, também me abandona?
— Não, presidente, o senhor é que está
abandonando o Exército.
Passava um pouco da meia-jioite e o
deputado Almino Afonso, líder do PTB, estava
na tribuna fazendo uma análise da situação.
Repetia mais ou menos o discurso que os
governistas vinham fazendo ao longo do dia.
Denunciava os que, "acostumados a viver de
privilégios de uma estrutura superada,
escandalizam-se ante a perspectiva de vir a
perdê-los". Mas dentro de pouco tempo, ele
garantia, o povo assumiria o poder.
52
Nesse momento, ele viu entrando pelo
fundo do plenário um grupo de parlamentares
udenistas aos gritos de "Viva São Paulo!".
Achou que aquela cena insólita era uma
provocação. Não deu importância, até que seu
colega Bocaiúva Cunha lhe passou um bilhete:
"Almino, o Kruel acaba de aderir".
"Continuei meu discurso com muita
violência verbal", lembra Almino. "Até hoje me
espanto como consegui ser tão radical." Disse
que o povo reagiria, rua por rua, casa por casa,
cidade por cidade e, olhando para o banqueiro
Herbert Levy e para o padre Godinho,
ardorosos defensores do golpe, afirmou que os
banqueiros seriam pendurados no poste, junto
com os padres que traíram suas batinas.
De madrugada, depois de empossado
como presidente no lugar de Jango, o deputado
Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara, na
companhia de uma pequena comitiva, dirigiu-se
ao terceiro andar do Planalto para tomar posse.
Os oficiais da Casa Militar, nervosos, iam da
53
27. porta do Palácio à sala de Darcy, pressionando-o
a sair e como que irradiando os acontecimentos.
"Mazzilli está subindo com um grupo de
deputados e com dois generais." "Tomaram o
elevador." "Estão entrando no gabinete
presidencial."
No quarto andar, Iracema estava fechando
as gavetas quando eles a apressaram: "Vamos
logo, vamos embora logo, eles já chegaram".
Darcy ainda teve tempo de encontrar o general
Nicolau Fico, comandante da Região Militar de
Brasília, para xingá-lo. Estava com ele até o
pescoço depois que interceptara um telegrama
seu ao general Costa e Silva, tratando-o de "meu
chefe". Ao encontrar-se com Fico, Darcy gritou:
"Ele não é seu chefe. É um macaco. Você não
merece vestir a saia da Iracema!".
Apesar da tensão do momento, Darcy se
divertiu muito com a surpresa do senador Mem
de Sá, ao sair do elevador e dar de cara com o
chefe do Gabinete Civil. "Gelou o riso que
trazia para Mazzilli e recebeu o meu de gozação.
Voltou de costas para o elevador."
54
Mais cedo, Darcy já tivera uma altercação
séria com os oficiais do Gabinete Militar. "Ele
estava irado, ensandecido com as informações
que lhe davam", conta Iracema. "Esbravejou
quanto pôde e disse que se sentia ludibriado.
Havia na reunião funcionários civis, os únicos a
levantar a mão quando Darcy perguntou quem
estava disposto a resistir. Não vi um militar
levantar a mão." Com a palavra o próprio:
"Eu estava siderado. Tinha os pés e as mãos
atados, a boca tapada. Justo naquela hora em que
minha disposição era enfrentar canhões com minhas
carnes. Era atirar, arrasar. Uma imagem que não
me saía da cabeça era afigura danada do Auro,
que eu queria esmagar. O pai dele fora o maior
grileiro de terras do Brasil, apossou-se de centenas
de quilômetros de terras em São Paulo. O filho
prosseguiu comendo terras, já em Mato Grosso.
Terras que tinha como suas, como as carnes de seu
corpo." (Confissões, Companhia das Letras, 1997)
55
28. Iracema passou quarenta anos sem revelar
para onde Darcy Ribeiro se dirigiu naquela
madrugada. Durante esse tempo, ouviu muitas
versões: "Foi para minha casa", "Não, foi para
a minha", diziam uns e outros. "Na verdade,
ele fez a coisa mais insensata, mais louca. Foi
exatamente para onde não devia ir: para minha
casa." Pediu a chave à amiga e ainda deu uma
passada para pegar alguma coisa na casa dele.
"Quando entro na minha quadra, a
Superquadra Sul 308, o que vejo? O meu
apartamento, que era de frente, com a luz acesa
e as persianas abertas. E aquele mundo de
gente. Ele levara vários companheiros para lá.
Estava fácil pegar o homem." Diante do risco
que isso representava, Darcy acabou se
convencendo a ir para a casa de outra amiga,
cujo nome Iracema não revela.
56
CÂNCER A GENTE RASPA
Naquela época eu não o conhecia. Vim a
conhecê-lo em 1974, quando voltou ao Brasil de
um de seus exílios para retirar um câncer do
pulmão. O governo permitiu sua volta porque
achou que ele vinha para morrer. Na véspera da
operação, fui apresentado a ele: "Os militares
estão achando que vou morrer. Eles não sabem
que câncer a gente raspa e pronto".
De fato, raspou e viveu ainda vinte e três
anos.
Em 1994 nos encontramos na Feira do
Livro de Frankfurt. Cada escritor dispunha de
uma intérprete, que funcionava também como
cicerone. A dele, Barbara, tinha dezoito anos e
era muito bonita. Pra variar, Darcy fez-lhe a
corte o tempo todo. No jantar de despedida,
pude ouvir a cantada mais original de que já
tomei conhecimento. Darcy tentava convencê-la
a vir com ele para o Brasil. Ela resistia.
Segurando sua mão, ele insistia: "Barbara,
57
29. pensa bem, você vai ser a viúva de Darcy
Ribeiro, já imaginou?".
Ele sabia que o câncer da próstata já se
espalhara em metástase por todo o corpo. Só não
atingira seu senso de humor, capaz de fazer rir
até os médicos. "A próstata é um erro de Deus,
que decidiu colocar no mesmo encanamento de
esgoto a porra e a urina, coisa que nenhum
engenheiro faria." Estava disposto a extirpá-la
assim que chegasse ao Brasil. Dizia que o único
inconveniente era que "passaria a ejacular para
dentro da bexiga, coisa que esconderia das
mulheres". As mulheres continuavam sendo a
grande fixação de sua vida. Vaidoso e
darcysista, se amava muito. Considerava-se não
só inteligente como lindo. Quando alguém num
discurso o elogiava, ele pedia: "Não pára não,
continua".
Pegamos o mesmo trem para Paris, mas
viajamos em carros separados: o meu bem no
final, o dele na frente. Em Confissões, ele faz o
relato da viagem:
58
"Já no vagão em que me sentei, cheio de
desejos de ver o outono europeu pela janela, me
senti miseravelmente mal, com um enjôo infernal.
Encolhi-me todo. Tanto que uma senhora francesa
que estava a meu lado fe^ gestos de socorrer-me.
Eu queria era estar só com meu enjôo. Chegando a
Paris, a tal senhora desceu minha mala e me
ajudou a baixar do trem. Não podendo andar,
abracei-me num poste e lá fiquei, até que
passaram por mim meu querido Zuenir Ventura e
um grupo de brasileiros. Me socorreram e me
levaram ao hotel, mas o pobre teve que ficar a
noite toda me cuidando."
Acompanhei-o até um hotel em Saint-
Germain, modestíssimo, onde, apesar de
senador, preferia se hospedar. Chamei logo o
médico de um serviço de socorro urgente e ele
levou um susto quando mediu sua pressão.
Estava altíssima. E Darcy continuava contando
seus planos para o futuro, falando, falando.
Sem entender francês, ele se irritava: "Traduz
pra mim o que ele tá dizendo, porra!". Como
59
30. não parasse de falar — o corpo estava
enfraquecido, mas a cabeça continuava a mil —,
o médico, um franco-argelino, apelou para
mim. "Por favor, ele está mal, faça com que
cale a boca." Sabendo que era impossível,
argumentei: "Doutor, não adianta, nem os
militares conseguiram isso". E expliquei quem
ele era: um raro, extraordinário exemplar de
cidadão brasileiro.
Tempos depois, rememoramos a noite de
64, em que estivemos tão perto e tão longe.
Darcy confessou que fora uma das piores que
viveu. Costumava classificá-la de "hora de
chumbo". Foi dessa maneira que registrou no
seu livro de memórias: "Aquela era minha hora
de chumbo. Hora em que eu preferia estar
morto a sofrê-la: a hora do derrotado".
Minha hora também havia chegado junto
com o fim do dia 31 de março. Toda aquela
situação que acabáramos de viver só não foi
ridícula ou patética porque havia em nós
inocência, entrega e generosidade. Quarenta
anos depois, parece absurda a distância que
60
existia entre a realidade e a percepção dela. Mas
era uma época de voluntarismo, com a vontade
querendo predominar sobre o mundo real.
Pompeu de Souza, que acabei não vendo
naquela viagem, toda vez que se encontrava
comigo brincava afirmando que o golpe fora
atrás de mim lá. "Foi por sua causa. Bastou
você chegar para que as coisas começassem a
acontecer. Antes, isto aqui era uma
tranqüilidade."
Minha aventura termina aí. Adeus UnB,
adeus Brasília, adeus ilusões, sonhos e utopias!
61
31. Começava uma outra história. No dia 11 de abril
de 1964, a capital da República e o país estavam
dominados. Cedo, deixamos o fusca com Hélcio e
fomos para o aeroporto cumprir o juramento de
Mary: voltar de avião. Conseguimos embarcar no
primeiro vôo que saiu com destino ao Rio — não me
perguntem como, porque não saberia dijer. Os
passageiros eram todos militares, todos, com
exceção de um casal sentado na última fila: o
derrotado voluntário da pátria e sua mulher
grávida.
Esta obra foi composta por Raul Loureiro em Fournier e impressa pela
Gráfica Bartira, em papel pólen bold da Companhia Suzano para a
Editora Schwarcz em março de 2004