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A recuperação do homem natural em Feuerbach ou para crítica da
                        filosofia especulativa
                                                    Prof. Ms. Ricardo George de Araújo Silva1



    1. Introdução

                  Ludwig Andreas Feuerbach, apesar de pouco pesquisado na academia,
         foi um pensador contundente para sua época, primeiro pela coragem de dialogar
         com a tradição, assumindo, assim, um pressuposto filosófico fundamental qual
         seja: o enfrentamento dos sistemas por dentro, isto é, buscando a crítica a partir
         de um diálogo direto com os autores por ele elencados, segundo pela inovação
         ao contrapor a perspectiva filosófica dominante na época que era o idealismo
         Alemão, que encontrava em Fichte, Schelling e Hegel seus maiores
         representantes.

                  Feuerbach tem como seu objeto fundamental, a nosso ver, a recuperação
         do homem natural, sensível, historicamente determinada, isto é, o homem
         perdido pela tradição ocidental que o esvaziou em conceito, no caso da filosofia,
         ou o transformou em consciência frustrada, na medida em que ansiava por outra
         dimensão, e considerava tudo que era humano como degenerativo do espírito,
         que um dia iria alcançar a Jerusalém celeste, como no caso do cristianismo.
         Assim, temos em Feuerbach dois caminhos utilizados para realizar tal
         empreitada, embora acabem por ser um, ou seja, a crítica à religião e a crítica à
         filosofia especulativa, que se expressa, segundo o pensador, como religião ou
         teologia do conceito, e, nessa perspectiva, segundo o filósofo de Landshut,
         Hegel é a maior expressão.

                  Feuerbach encontrou no Hegelianismo uma filosofia que o permite
         pensar o indivíduo e a subjetividade em sua relação com o todo, o espírito ou
         como ele expressará o gênero. O que levará a se distanciar do sistema hegeliano
         é a ambiguidade como este apresenta a religião. O velho Hegel e ainda mais os
         hegelianos de primeira hora tendem a deixar a religião e a filosofia lado a lado,


1
  Mestre em Filosofia (UFC). Professor Assistente da Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. Membro
dos Grupos de Pesquisa: Labor e Filosofia Política – UFC, Ambos do CNPQ. Atualmente coordena uma pesquisa na
área de Filosofia Política na UFRPE. ricardogeo11@yahoo.com.br

                                                                                                           1
em coexistência pacífica. Para Feuerbach, trata-se desde cedo de pensar o gênero
         ou essência humana e não um ser estranho à mesma, significando a crença num
         ser transcendente, um desconhecido da verdadeira natureza humana de sua
         relação com o divino que a caracteriza.

                  Temos, assim, a pretensão de trazer à baila a crítica de Feuerbach a toda
         forma de filosofia especulativa ou saber que desconsidere a empírica vida dos
         homens. Portanto, nosso trabalho quer ser uma provocação elucidativa do
         pensamento do referido autor, não tendo a pretensão de esgotar ou encerrar
         quaisquer questões sobre o mesmo. Faremos uso de textos centrais do pensador,
         sobretudo, Necessidade de uma Reforma da filosofia (1842) Princípios da
         filosofia do futuro (1842), e Teses provisórias para a reforma da filosofia
         (1843)2.

    2. Crítica à filosofia Hegeliana ou para construção de uma nova filosofia

                  Feuerbach parte do pressuposto de que a filosofia de Hegel, apesar de
         todos os méritos, padece de realidade empírica na medida em que esvazia o
         mundo dos homens de suas determinações, ficando o mesmo apenas com a
         idealidade, e tomando esta por realidade. Acaba Hegel por ser a culminância de
         toda uma maneira de se fazer filosofia que não considerou de forma aguda a
         existência dos homens, por valorizarem o supra-sensível em detrimento do
         sensível.

                  A pretensão de Feuerbach, ao romper com Hegel, é reformar a filosofia, é
         tirar esta do céu das idéias e a colocar no mundo dos homens. De modo que se
         faz necessário afastar-se da especulação estéreo da filosofia idealista que não
         passa de racionalização da teologia. O convite aqui posto por Feuerbach recai
         sobre uma filosofia que considere o humano enquanto humano, uma filosofia
         com força positiva, por ser negativa. Uma filosofia que não teme a ruptura para
         encontrar-se com a realidade. Portanto, uma filosofia que vá além do
         hegelianismo e do cristianismo salvacionista, consoante Feuerbach

                                    “A filosofia Hegeliana foi à síntese arbitrária de diversos sistemas, de
                                    insuficiências – sem força positiva, porque sem negatividade absoluta.
                                    Só quem tem a coragem de ser absolutamente negativo que tem a

2
 Aqui será utilizada a tradução portuguesa de Artur Mourão. FEUERBACH, Ludwig. Princípios da Filosofia do
Futuro. Lisboa: Edições 70, 1988.

                                                                                                            2
força de criar a novidade (...). O cristianismo já não corresponde nem
                                      ao homem teórico, nem ao homem prático; já não satisfaz o espírito,
                                      nem sequer também satisfaz o coração, porque temos outros interesses
                                      para o nosso coração diversos da beatitude celeste e eterna”
                                      (FEUERBACH, 1988 p. 14 )

                    Assim, observamos que as críticas à postura de Hegel, realizadas por
           Feuerbach, representam uma tomada de consciência da realidade sensível. Tal
           fato é visível no pensador materialista desde seus trabalhos iniciais quando o
           mesmo afirma que a filosofia de Hegel não passa de um logocentrismo,
           constatação essa feita na obra “Para a crítica da filosofia Hegelina” (1839), ou
           seja, a filosofia de Hegel estabelece uma centralidade absurda no conceito, na
           postura idealista, nas realidades extra-mundo, no racionalismo anti-histórico.
           Para Feuerbach, a filosofia não pode começar pressupondo a si mesma, mas, ao
           contrário, iniciar com o não-filosófico; assim, o pensamento deve entrar em
           diálogo com o que é da ordem do empírico. Dessa forma, Feuerbach propõe,
           contra as mediações infinitas do sistema hegeliano, uma retomada da
           imediatidade tanto do pensamento quanto da intuição sensível, levando ambas a
           um diálogo.

                    Feuerbach, nas teses provisórias para uma reforma da filosofia (1842),
           rompe definitivamente com a especulação hegeliana e com seu próprio ideal
           teórico-prático da filosofia, e o faz reconhecendo positivamente na religião sua
           capacidade de satisfazer as necessidades do coração e do sujeito sensível, sua
           afirmação da sensibilidade e da certeza imediata. A nova filosofia deveria
           resgatar precisamente este momento da religião, possibilitando a conciliação
           entre filosofia e vida, essência e individualidade, teoria e prática.3

                                      “A essência da teologia é a essência do homem, transcendente,
                                      projetada para fora do homem; a essência da lógica de Hegel é o
                                      pensamento transcendente, o pensamento do homem posto fora do
                                      homem” (FEUERBACH, 1988 p.21)

                    Dividir o homem, cindi-lo em seu existir foi a tarefa da tradição
           filosófica, que negou a sensibilidade. Esta filosofia, chamada de idealismo, em
           sua busca de uma essência infinita, esqueceu-se do homem, este foi por um
           processo de exteriorização de sua essência, isto é, daquilo que o faz humano,
           negligenciado. Urge, pois, um novo entendimento, e este só pode ser o de
           resgatar o homem natural e sensível, daí a nova filosofia ter quer iniciar com o
3
    BECKENKAMP, Joãosinho. Seis Modernos. Ed. Universitária. Pelotas, 2005. p. 29.

                                                                                                          3
finito, enxergando nesse o próprio infinito e ascendendo do concreto para o
abstrato.

       Aqui, o salto a ser dado reside no resgate dos elementos positivos da
religião, quais sejam: sua afirmação das necessidades do coração e da certeza
sensível. A nova filosofia brotará do próprio homem que pensa a si mesmo,
descobrindo-se em sua essência como a infinita perfectibilidade, e não como
algo pré-formado e dado de uma vez por todas.

                     “A nova filosofia, a única filosofia positiva, é a negação de toda a
                     filosofia de escola, embora dela contenha em si a verdade, é a negação
                     da filosofia como qualidade abstrata, particular, isto é, escolástica: não
                     possui nenhum santo-e-senha, nenhuma linguagem particular, nenhum
                     nome particular, nenhum princípio particular, ela é o próprio homem
                     pensante – o homem que é e sabe que é a essência autoconsciente da
                     natureza, a essência da história, a essência dos Estados, a essência da
                     religião – o homem que é e sabe que é identidade real (não
                     imaginária), absoluta, de todos os princípios e contradições, de todas
                     as qualidades activas e passivas, espirituais e sensíveis, políticas e
                     sociais – que sabe que o ser panteísta, que os filósofos especulativos
                     ou, antes, os teólogos separavam do homem, e objetivavam num ser
                     abstracto, nada mais é do que a sua própria essência indeterminada,
                     mas capaz de infinitas determinações” (FEUERBACH. 1988 p, 32-33)



       Para Feuerbach, a verdadeira filosofia deve considerar a natureza em sua
realidade mesma e não duplicá-la, ou ainda esvaziá-la de suas determinações.
Não cabe, pois, à filosofia negar o que é, ao contrário, é tarefa sua por em
evidência a essência mesma da coisa, e a essência da natureza é o homem
sensível, histórico e não uma formulação abstrata. Segundo o pensador em
questão, “A filosofia é o conhecimento do que é. Pensar e conhecer as coisas e
os seres como são – eis a lei suprema, a mais elevada tarefa da filosofia”
(FEUERBACH, 1988, p. 26). Assim, temos a filosofia especulativa e, de modo
especial, Hegel realizou um caminho inverso da verdadeira filosofia. A filosofia
especulativa tem como objeto o absoluto. Contudo, o absoluto do idealismo é
ilusão, é pura forma, carece de conteúdo de necessidade. O absoluto do
idealismo é ser sem limites, sem carência. A nova filosofia não tem como
conceber tal ser, sob pena de não realizar sem intento de superar tal estrutura.
Uma filosofia que considere o existir sensível não pode, por exemplo, negar
dimensões fundamentais desse existir, como o espaço e o tempo, tais estruturas
“são formas de revelação do infinito real.” (FEUERBACH, 1998, p.27).


                                                                                             4
Reconhecer a vida e a natureza presente nela é reconhecer a necessidade, a
         contingência, a dor, o sofrimento. O resgate do homem natural passa por
         assimilar suas características fundamentais, negadas ao longo do tempo pela
         filosofia especulativa. De acordo com Feuerbach:

                                    “Onde não existe nenhum limite, nenhum tempo, nenhuma aflição,
                                    também aí não existe nenhuma qualidade, nenhuma energia, nenhum
                                    espírito, nenhuma chama, nenhum amor. Só o ser indigente é o ser
                                    necessário. A existência sem necessidade é uma existência supérflua.
                                    O que é em geral isento de necessidade também não tem qualquer
                                    necessidade da existência. Quer ele seja ou não é tudo um – um para
                                    si, um para os outros. Um ser sem indigência é um ser sem
                                    fundamento. Só merece existir o que pode sofrer. Só o ser doloroso é
                                    um ser divino. Um ser sem afecção é um ser sem ser. Mas um ser
                                    afecção nada mais é do que um ser sem sensibilidade, sem matéria.”
                                    (FEUERBACH, 1988, p. 27)



                  A crítica de Feuerbach à filosofia especulativa incide na dificuldade desta
         de reconhecer a vida e seus componentes como objeto. O mundo dos homens
         não tem valor investigativo para a filosofia especulativa, a constatação mais
         eminente disso talvez seja a argumentação da ciência da lógica hegeliana ao
         tratar o “Nada” enquanto fundamento na medida em que concebe o absoluto
         como puro ser. Assim, “Hegel começa, como mencionado, com o puro ser ou,
         melhor expresso, com o conceito do ser ou com o ser abstrato, vazio mesmo,
         pelo qual ele quer assentar o primeiro princípio da filosofia, o primeiro
         cientificamente. Em oposição a Hegel, Feuerbach pergunta em seu escrito Zur
         Kritik der Hegelschen Philosophie (Para a Crítica da Filosofia Hegeliana)
         (1839): deve o princípio do filosofar, como Hegel o concebe ser o conceito
         abstrato do ser? “Por que eu não devo começar com ser mesmo, isto é, com o ser
         real? Ou por que não com a razão, já que o ser, na medida em que ele foi
         pensado, tal como ele é objeto na ‘Logik’, me remete imediatamente à razão?’’
         (FEUERBACH, 1970, p. 23-24) Ou melhor: se Hegel começa com o espírito
         absoluto (com a razão, o saber absoluto),ele não inicia já com um
         pressuposto?”.4 Feuerbach provoca um retomada do ser ao questionar Hegel na
         sua opção de partir do indeterminado, do não-ser. Novamente a crítica a Hegel

4
    CHAGAS. Eduardo F. A QUESTÃO DO COMEÇO NA FILOSOFIA DE HEGEL -Feuerbach: Crítica ao
"começo" da Filosofia de Hegel na Ciência da lógica e na Fenomenologia do Espírito. In: Revista eletrônica de
Estudos hegelianos. Ano 2 – Nº 02 Junho 2005. Disponível em < http:://www.hegelbrasil.org/rev02b.htm. acesso em
19/03/2010.


                                                                                                             5
remete a uma nova abordagem do filosofar. De tal forma, que uma filosofia que
   não tenha como objeto o homem em suas determinações, não pode ser
   contudente. Assim, “O filosófo deve introduzir no texto da filosofia aquilo que
   no homem não filosofa, o que, pelo contrário, é contra a filosofia, que se opõe ao
   pensamento abstracto, portanto, o que em Hegel se reduz a simples nota.”
   (FEUERBACH, 1988, p.28).

          A ruptura de Feuerbach com a filosofia de Hegel vai ganhando corpo a
   ponto de o pensador materialista propor um abandono da filosofia hegeliana, sob
   pena de não romper com a égide da teologia, o que implica que para Feuerbach o
   idealismo especulativo de Hegel equivale à teologia ou, entre palavras, a
   filosofia hegeliana não passa do recôndito dos racionalistas, sua última morada,
   com isso, parece-nos que Feuerbach elabora duas críticas: a primeira seria
   positiva, um elogio a Hegel, ao reconhecer em seu pensamento a forma mais
   acabada desse paradigma de filosofia, a segunda seria negativa, na medida em
   que já não é mais possível se filosofar a partir de um ser que é um não ser, ou
   seja, um vazio de determinações. Consoante o filosofo de Landshut:

                         “Quem não abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia.
                         A doutrina hegeliana de que a natureza é a realidade posta pela idéia é
                         apenas a expressão racional da doutrina teológica, segundo a qual a
                         natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é,
                         um ser abstracto (...) A filosofia Hegeliana é o último lugar de refúgio,
                         o último suporte racional da teologia. (FEUERBACH, 1988, p.31)




3. A crítica à religião ou à recuperação do “divino” no homem.


          A crítica da religião em Feuerbach pode ser entendida como a espinha
   dorsal de seu pensamento. Tendo no homem e na natureza seus objetos diletos
   de pesquisa, toma-os a partir de um diálogo crítico com a tradição idealista e
   racionalista da filosofia, sobretudo, Leibniz, Espinosa e os representantes do
   idealismo Alemão, além de toda tradição judaico-cristã. Assim, Feuerbach, ao
   elencar seu objeto e suas vias de investigação, localiza seu pensamento como
   uma crítica à teologia, esteja ela na dimensão do conceito ou da representação da




                                                                                                6
fé. De modo que a assertiva que acaba por perpassar toda sua obra com mais
        força é a de que “toda teologia não passa de uma antropologia”.5
                 A afirmação de que toda teologia é uma antropologia significa que os
        atributos de Deus nada mais são que atributos do homem elevados a condição de
        atributos universais e colocados acima do homem. O equívoco da teologia
        corresponde ao equívoco da filosofia do absoluto ao tomar o infinito como a
        verdade suprema. O fato é que a teologia negou o homem em favor de Deus e o
        idealismo negou o finito em favor do infinito, ou seja, tais posturas têm como
        método a inversão da realidade sensível. Portanto,
                                   “A tarefa da verdadeira filosofia não é reconhecer o infinito como o
                                   finito, mas o finito como o não finito, como o infinito; ou, não é
                                   transpor o finito para o infinito, mas o infinito para o finito.”
                                   (FEUERBACH, 1988, p. 24)

                 Para Feuerbach, os representantes e defensores da eterna natureza de
        Deus o tomam por “espírito puro, autoconsciência resplandecente, personalidade
        ética”. (FEUERBACH, 1997, p. 131). Contudo, cabe indagar, se é possível que o
        impuro tenha origem no puro, que as trevas nasçam da luz. Assim, devemos nos
        perguntar se é possível uma natureza superior como a de Deus fazer brotar no
        seio do mundo tais elementos, o que desembocaria, a princípio, em contradição.
        Deus, na verdade, é a negação do humano, e não a efetividade da plenitude do
        ser. É negação do finito, do sensível, em favor de uma fuga da realidade, que
        pode ocorrer por medo de enfrentar o sensível, marcado pela dor e pelo
        sofrimento ou por projeção patológica e fantasiosa como fazem os místicos.6 Só
        uma ruptura negativa com a teologia e com a filosofia especulativa será capaz de
        reconhecer a verdadeira essência de Deus, que é o homem.

                  O homem precisa ser resgatado do céu da infinitude, da eternidade, da
        abstração para o plano terreno, para o plano da vida.                      O homem precisa
        reconhecer o supremo Deus nele mesmo, reconhecer suas virtudes para poder
        viver consigo mesmo, pois enquanto reconhecer apenas suas fraquezas, sempre

5
  Isto é observado na Essência do cristianismo. p.32 Ed, Papirus. São Paulo. 1989 ; Preleções sobre a
essência da Religião. p.23. Ed. Papirus. São Paulo. 1989; teses provisórias para a reforma da filosofia.
p.19. Ed. 70. Lisboa. 1988. Entre outras tantas formulações que acabam por enunciar o mesmo sentido,
ou seja, demonstrar que o Deus exposto não passa do homem exteriorizado em uma perspectiva otimizada
do existir (onipresença, onipotência, onisciência)
6
  Aqui Feuerbach chama a atenção para a verdadeira face da teologia que mais se aproxima das ciências
que tratam homem do que de qualquer outra coisa. Assim, a teologia não passa de uma psicologia
esotérica, e que por isso, saberes como a antropologia, a patologia e a psicologia tem mais direito sobre o
nome teologia que ela própria. (FEUERBACH, 1997 p. 132)

                                                                                                         7
projetará seu ser em outro ser, aquilo que é seu. O homem precisa assumir os
limites da vida, do sensível, para reconhecer sua essência nesta e não transportá-
la para o além. Consoante Feuerbach:

                      “A essência divina é a essência humana transfigurada pela morte da
                      abstração - o espírito falecido do homem. Na religião o homem se
                      liberta das limitações da vida; aqui deixa ele desaparecer o que o
                      oprime, trava e impressiona negativamente, Deus é o sentimento que
                      tem de si mesmo libertado de qualquer obstáculo; livre, feliz,
                      realizado o homem só se sente em sua religião, porque só aqui vive ele
                      para seu gênio” (FEUERBACH, 1997 p. 140)

       Assim, “A tarefa dos tempos modernos foi a realização e a humanização
de Deus a transformação e a resolução da teologia na antropologia”
(FEUERBACH, 1988, p. 37). A asseveração feuerbachiana conclama a uma
nova filosofia. Ao pretender retirar a religião da vida humana, Feuerbach propõe
que o homem moderno já não representa mais o homem místico da teologia,
preocupado com a santidade e a vida celeste. A prova maior, do homem
moderno, distinto do homem místico, é sua forma de organização. O Estado
substitui o papel do Javé-Iere, isto é, o Deus da providência. Assim, o Deus
protetor e providente das necessidades humanas, que atuava no contexto das
religiões, encontra-se agora reconhecido no homem como deus do próprio
homem. Ocorre o abandono de um Deus distinto do homem, este não carece
mais exteriorizar o seu ser em favor de outro ser, distinto de si. O processo aqui
desenvolvido, que deve tornar-se a tarefa da nova filosofia é o da identificação
do homem com o próprio homem, é o reconhecimento da natureza contingente e
efêmera com o finito. De modo que a maneira de se organizar dos homens seja
seu fundamento e não algo exterior a ela. Assim, “a política deve tornar-se a
nossa religião” (FEUERBACH, 1988, p. 16), ou em outras palavras:

                      “A religião, no sentido ordinário, é tão pouco o vínculo do Estado
                      como é antes a sua dissolução. Deus, no sentido da religião, é o pai, o
                      conservador, o providenciador, o guarda, o protector, o regente e o
                      senhor da monarquia mundial. Por isso, o homem não precisa do
                      homem; tudo o que ele deve receber de si ou dos outros recebe-o
                      imediatamente de Deus. Confia em Deus, não no homem; dá graças a
                      Deus e não ao homem, por conseguinte, o homem só por acidente está
                      vinculado ao homem. Na explicação subjectiva do Estado, os homens
                      reúnem-se pela simples razão de que não crêem em Deus algum,
                      porque negam inconscientemente, de modo instintivo e prático, a sua
                      fé religiosa. Não é a fé em Deus, mas a desconfiança em Deus que
                      funda os Estados. É a crença no homem como Deus do homem que
                      explica subjectivamente a origem do Estado.” (FEUERBACH, 1988
                      p. 17)

                                                                                           8
A Realidade é agora inscrita pelos homens em organização, a
  modernidade suplantou o Deus que supria as necessidades humanas, seus
  atributos agora são reconhecidos na diversidade e pluralidade da organização
  sócia. O homem como membro da comunidade política torna-se capaz de
  onisciência, na medida em que o que um não sabe, outros sabem, é o saber do
  gênero, e o saber do gênero é o saber de todos e de cada um. Assim, o que ocorre
  com a omnisciência, serve para a omnipresença, o fato é que o homem, ainda
  que para muitos de forma inconsciente, é um homem divino para o próprio
  homem a partir de sua organização, conforme Feuerbach:

                         “O que se passa com a omnisciência divina passa-se também com
                         omnipresença divina, que também se realizou no homem. Enquanto
                         um determinado homem observa o que ocorre na Lua ou em Úrano,
                         outro observa Vénus ou as vísceras da lagarta, ou qualquer outro lugar
                         onde, até, sob o domínio do Deus omnisciente e omnipresente nenhum
                         olhar humano penetrara. Sim, enquanto o homem observa esta estrela
                         do ponto de vista da Europa, observa simultaneamente a mesma
                         estrela do ponto de vista da América. O que é absolutamente
                         impossível a um homem só é possível a dois.” (FEUERBACH, 1988
                         p.49)

          Os homens, portanto, descobrem-se como capazes em sua condição
  natural e sensível, a tutela da teologia é superada pela ciência e pelo Estado, o
  mundo moderno projeta o homem para a autonomia. “O Estado é o homem que
  se determina a si mesmo, o homem que se refere a si próprio, o homem absoluto.
  (FEUERBACH, 1988, p. 17)

4. Conclusão
          A proposta de renovação da filosofia em Feuerbach nasce do tufo de
nossa necessidade, como seres finitos e sensíveis. Necessidade de superar a
especulação idealista, o racionalismo vazio, que não consideraram de forma aguda
a vida dos homens. O homem natural, para Feuerbach, precisava emergir a primeira
página da filosofia, sob pena de estarmos postergando uma tradição conceitual, rica
de especulações e ilusões sobre a realidade.
          O materialismo é primeira saída para superar esse caminho, oportunizado
pela tradição, isto é, reconhecer o homem como absoluto do homem, reconhecer o
finito como condição de reflexão imediata.
          Neste contexto, a crítica à teologia e à superação do homem místico de
visão fantasiosa e anseios fora da realidade empírica, colocam a filosofia
                                                                                             9
feuerbachiana em confronto direto com a teologia que se manifestava como uma
    teologia racional. Assim, este homem da teologia tem que reconhecer sua dimensão
    “divina”, isto é, reconhecer que os atributos exteriorizados em outro ser, na
    verdade, pertencem a ele. O mesmo cabe à filosofia especulativa, que deveria
    considerar como ponto de partida o finito e não fundamentar sua verdade no vazio
    de determinações do infinito, do nada. O que nos leva a concluir que o fundamental
    de uma filosofia é proporcionar que o homem determine o humano em si, enquanto
    homem absoluto.



    Referências Bibliográficas

CHAGAS, E. F. A questão do começo na filosofia de Hegel – Feuerbach: Crítica ao “começo”
da filosofia de Hegel na Ciência da lógica e na Fenomenologia do Espírito. Revista Eletrônica
de     Estudos    Hegelianos.    Ano     2,    n,   2,  Jun,    2005.     Disponível     em<
http:://www.hegelbrasil.org/rev02b.htm. acesso em 19/03/2010.

FEUERBACH, Ludwig. Necessidade de uma reforma da filosofia. In: Príncipios da
Filosofia do Futuro. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1998.

__________________. Teses provisórias para a reforma da filosofia. In: Príncipios da
Filosofia do Futuro. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1998.

__________________. Princípios da Filosofia do Futuro. Tradução de Artur Morão.
Lisboa: Edições 70, 1998.

__________________ . A essência do cristianismo. Tradução de José da Silva Brandão.
Campinas: Papirus, 1997.

__________________ . Preleções sobre a essência da Religião. Tradução de José da
Silva Brandão. Campinas: Papirus, 1989.




                                                                                          10

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A recuperação do homem natural em Feuerbach

  • 1. A recuperação do homem natural em Feuerbach ou para crítica da filosofia especulativa Prof. Ms. Ricardo George de Araújo Silva1 1. Introdução Ludwig Andreas Feuerbach, apesar de pouco pesquisado na academia, foi um pensador contundente para sua época, primeiro pela coragem de dialogar com a tradição, assumindo, assim, um pressuposto filosófico fundamental qual seja: o enfrentamento dos sistemas por dentro, isto é, buscando a crítica a partir de um diálogo direto com os autores por ele elencados, segundo pela inovação ao contrapor a perspectiva filosófica dominante na época que era o idealismo Alemão, que encontrava em Fichte, Schelling e Hegel seus maiores representantes. Feuerbach tem como seu objeto fundamental, a nosso ver, a recuperação do homem natural, sensível, historicamente determinada, isto é, o homem perdido pela tradição ocidental que o esvaziou em conceito, no caso da filosofia, ou o transformou em consciência frustrada, na medida em que ansiava por outra dimensão, e considerava tudo que era humano como degenerativo do espírito, que um dia iria alcançar a Jerusalém celeste, como no caso do cristianismo. Assim, temos em Feuerbach dois caminhos utilizados para realizar tal empreitada, embora acabem por ser um, ou seja, a crítica à religião e a crítica à filosofia especulativa, que se expressa, segundo o pensador, como religião ou teologia do conceito, e, nessa perspectiva, segundo o filósofo de Landshut, Hegel é a maior expressão. Feuerbach encontrou no Hegelianismo uma filosofia que o permite pensar o indivíduo e a subjetividade em sua relação com o todo, o espírito ou como ele expressará o gênero. O que levará a se distanciar do sistema hegeliano é a ambiguidade como este apresenta a religião. O velho Hegel e ainda mais os hegelianos de primeira hora tendem a deixar a religião e a filosofia lado a lado, 1 Mestre em Filosofia (UFC). Professor Assistente da Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. Membro dos Grupos de Pesquisa: Labor e Filosofia Política – UFC, Ambos do CNPQ. Atualmente coordena uma pesquisa na área de Filosofia Política na UFRPE. ricardogeo11@yahoo.com.br 1
  • 2. em coexistência pacífica. Para Feuerbach, trata-se desde cedo de pensar o gênero ou essência humana e não um ser estranho à mesma, significando a crença num ser transcendente, um desconhecido da verdadeira natureza humana de sua relação com o divino que a caracteriza. Temos, assim, a pretensão de trazer à baila a crítica de Feuerbach a toda forma de filosofia especulativa ou saber que desconsidere a empírica vida dos homens. Portanto, nosso trabalho quer ser uma provocação elucidativa do pensamento do referido autor, não tendo a pretensão de esgotar ou encerrar quaisquer questões sobre o mesmo. Faremos uso de textos centrais do pensador, sobretudo, Necessidade de uma Reforma da filosofia (1842) Princípios da filosofia do futuro (1842), e Teses provisórias para a reforma da filosofia (1843)2. 2. Crítica à filosofia Hegeliana ou para construção de uma nova filosofia Feuerbach parte do pressuposto de que a filosofia de Hegel, apesar de todos os méritos, padece de realidade empírica na medida em que esvazia o mundo dos homens de suas determinações, ficando o mesmo apenas com a idealidade, e tomando esta por realidade. Acaba Hegel por ser a culminância de toda uma maneira de se fazer filosofia que não considerou de forma aguda a existência dos homens, por valorizarem o supra-sensível em detrimento do sensível. A pretensão de Feuerbach, ao romper com Hegel, é reformar a filosofia, é tirar esta do céu das idéias e a colocar no mundo dos homens. De modo que se faz necessário afastar-se da especulação estéreo da filosofia idealista que não passa de racionalização da teologia. O convite aqui posto por Feuerbach recai sobre uma filosofia que considere o humano enquanto humano, uma filosofia com força positiva, por ser negativa. Uma filosofia que não teme a ruptura para encontrar-se com a realidade. Portanto, uma filosofia que vá além do hegelianismo e do cristianismo salvacionista, consoante Feuerbach “A filosofia Hegeliana foi à síntese arbitrária de diversos sistemas, de insuficiências – sem força positiva, porque sem negatividade absoluta. Só quem tem a coragem de ser absolutamente negativo que tem a 2 Aqui será utilizada a tradução portuguesa de Artur Mourão. FEUERBACH, Ludwig. Princípios da Filosofia do Futuro. Lisboa: Edições 70, 1988. 2
  • 3. força de criar a novidade (...). O cristianismo já não corresponde nem ao homem teórico, nem ao homem prático; já não satisfaz o espírito, nem sequer também satisfaz o coração, porque temos outros interesses para o nosso coração diversos da beatitude celeste e eterna” (FEUERBACH, 1988 p. 14 ) Assim, observamos que as críticas à postura de Hegel, realizadas por Feuerbach, representam uma tomada de consciência da realidade sensível. Tal fato é visível no pensador materialista desde seus trabalhos iniciais quando o mesmo afirma que a filosofia de Hegel não passa de um logocentrismo, constatação essa feita na obra “Para a crítica da filosofia Hegelina” (1839), ou seja, a filosofia de Hegel estabelece uma centralidade absurda no conceito, na postura idealista, nas realidades extra-mundo, no racionalismo anti-histórico. Para Feuerbach, a filosofia não pode começar pressupondo a si mesma, mas, ao contrário, iniciar com o não-filosófico; assim, o pensamento deve entrar em diálogo com o que é da ordem do empírico. Dessa forma, Feuerbach propõe, contra as mediações infinitas do sistema hegeliano, uma retomada da imediatidade tanto do pensamento quanto da intuição sensível, levando ambas a um diálogo. Feuerbach, nas teses provisórias para uma reforma da filosofia (1842), rompe definitivamente com a especulação hegeliana e com seu próprio ideal teórico-prático da filosofia, e o faz reconhecendo positivamente na religião sua capacidade de satisfazer as necessidades do coração e do sujeito sensível, sua afirmação da sensibilidade e da certeza imediata. A nova filosofia deveria resgatar precisamente este momento da religião, possibilitando a conciliação entre filosofia e vida, essência e individualidade, teoria e prática.3 “A essência da teologia é a essência do homem, transcendente, projetada para fora do homem; a essência da lógica de Hegel é o pensamento transcendente, o pensamento do homem posto fora do homem” (FEUERBACH, 1988 p.21) Dividir o homem, cindi-lo em seu existir foi a tarefa da tradição filosófica, que negou a sensibilidade. Esta filosofia, chamada de idealismo, em sua busca de uma essência infinita, esqueceu-se do homem, este foi por um processo de exteriorização de sua essência, isto é, daquilo que o faz humano, negligenciado. Urge, pois, um novo entendimento, e este só pode ser o de resgatar o homem natural e sensível, daí a nova filosofia ter quer iniciar com o 3 BECKENKAMP, Joãosinho. Seis Modernos. Ed. Universitária. Pelotas, 2005. p. 29. 3
  • 4. finito, enxergando nesse o próprio infinito e ascendendo do concreto para o abstrato. Aqui, o salto a ser dado reside no resgate dos elementos positivos da religião, quais sejam: sua afirmação das necessidades do coração e da certeza sensível. A nova filosofia brotará do próprio homem que pensa a si mesmo, descobrindo-se em sua essência como a infinita perfectibilidade, e não como algo pré-formado e dado de uma vez por todas. “A nova filosofia, a única filosofia positiva, é a negação de toda a filosofia de escola, embora dela contenha em si a verdade, é a negação da filosofia como qualidade abstrata, particular, isto é, escolástica: não possui nenhum santo-e-senha, nenhuma linguagem particular, nenhum nome particular, nenhum princípio particular, ela é o próprio homem pensante – o homem que é e sabe que é a essência autoconsciente da natureza, a essência da história, a essência dos Estados, a essência da religião – o homem que é e sabe que é identidade real (não imaginária), absoluta, de todos os princípios e contradições, de todas as qualidades activas e passivas, espirituais e sensíveis, políticas e sociais – que sabe que o ser panteísta, que os filósofos especulativos ou, antes, os teólogos separavam do homem, e objetivavam num ser abstracto, nada mais é do que a sua própria essência indeterminada, mas capaz de infinitas determinações” (FEUERBACH. 1988 p, 32-33) Para Feuerbach, a verdadeira filosofia deve considerar a natureza em sua realidade mesma e não duplicá-la, ou ainda esvaziá-la de suas determinações. Não cabe, pois, à filosofia negar o que é, ao contrário, é tarefa sua por em evidência a essência mesma da coisa, e a essência da natureza é o homem sensível, histórico e não uma formulação abstrata. Segundo o pensador em questão, “A filosofia é o conhecimento do que é. Pensar e conhecer as coisas e os seres como são – eis a lei suprema, a mais elevada tarefa da filosofia” (FEUERBACH, 1988, p. 26). Assim, temos a filosofia especulativa e, de modo especial, Hegel realizou um caminho inverso da verdadeira filosofia. A filosofia especulativa tem como objeto o absoluto. Contudo, o absoluto do idealismo é ilusão, é pura forma, carece de conteúdo de necessidade. O absoluto do idealismo é ser sem limites, sem carência. A nova filosofia não tem como conceber tal ser, sob pena de não realizar sem intento de superar tal estrutura. Uma filosofia que considere o existir sensível não pode, por exemplo, negar dimensões fundamentais desse existir, como o espaço e o tempo, tais estruturas “são formas de revelação do infinito real.” (FEUERBACH, 1998, p.27). 4
  • 5. Reconhecer a vida e a natureza presente nela é reconhecer a necessidade, a contingência, a dor, o sofrimento. O resgate do homem natural passa por assimilar suas características fundamentais, negadas ao longo do tempo pela filosofia especulativa. De acordo com Feuerbach: “Onde não existe nenhum limite, nenhum tempo, nenhuma aflição, também aí não existe nenhuma qualidade, nenhuma energia, nenhum espírito, nenhuma chama, nenhum amor. Só o ser indigente é o ser necessário. A existência sem necessidade é uma existência supérflua. O que é em geral isento de necessidade também não tem qualquer necessidade da existência. Quer ele seja ou não é tudo um – um para si, um para os outros. Um ser sem indigência é um ser sem fundamento. Só merece existir o que pode sofrer. Só o ser doloroso é um ser divino. Um ser sem afecção é um ser sem ser. Mas um ser afecção nada mais é do que um ser sem sensibilidade, sem matéria.” (FEUERBACH, 1988, p. 27) A crítica de Feuerbach à filosofia especulativa incide na dificuldade desta de reconhecer a vida e seus componentes como objeto. O mundo dos homens não tem valor investigativo para a filosofia especulativa, a constatação mais eminente disso talvez seja a argumentação da ciência da lógica hegeliana ao tratar o “Nada” enquanto fundamento na medida em que concebe o absoluto como puro ser. Assim, “Hegel começa, como mencionado, com o puro ser ou, melhor expresso, com o conceito do ser ou com o ser abstrato, vazio mesmo, pelo qual ele quer assentar o primeiro princípio da filosofia, o primeiro cientificamente. Em oposição a Hegel, Feuerbach pergunta em seu escrito Zur Kritik der Hegelschen Philosophie (Para a Crítica da Filosofia Hegeliana) (1839): deve o princípio do filosofar, como Hegel o concebe ser o conceito abstrato do ser? “Por que eu não devo começar com ser mesmo, isto é, com o ser real? Ou por que não com a razão, já que o ser, na medida em que ele foi pensado, tal como ele é objeto na ‘Logik’, me remete imediatamente à razão?’’ (FEUERBACH, 1970, p. 23-24) Ou melhor: se Hegel começa com o espírito absoluto (com a razão, o saber absoluto),ele não inicia já com um pressuposto?”.4 Feuerbach provoca um retomada do ser ao questionar Hegel na sua opção de partir do indeterminado, do não-ser. Novamente a crítica a Hegel 4 CHAGAS. Eduardo F. A QUESTÃO DO COMEÇO NA FILOSOFIA DE HEGEL -Feuerbach: Crítica ao "começo" da Filosofia de Hegel na Ciência da lógica e na Fenomenologia do Espírito. In: Revista eletrônica de Estudos hegelianos. Ano 2 – Nº 02 Junho 2005. Disponível em < http:://www.hegelbrasil.org/rev02b.htm. acesso em 19/03/2010. 5
  • 6. remete a uma nova abordagem do filosofar. De tal forma, que uma filosofia que não tenha como objeto o homem em suas determinações, não pode ser contudente. Assim, “O filosófo deve introduzir no texto da filosofia aquilo que no homem não filosofa, o que, pelo contrário, é contra a filosofia, que se opõe ao pensamento abstracto, portanto, o que em Hegel se reduz a simples nota.” (FEUERBACH, 1988, p.28). A ruptura de Feuerbach com a filosofia de Hegel vai ganhando corpo a ponto de o pensador materialista propor um abandono da filosofia hegeliana, sob pena de não romper com a égide da teologia, o que implica que para Feuerbach o idealismo especulativo de Hegel equivale à teologia ou, entre palavras, a filosofia hegeliana não passa do recôndito dos racionalistas, sua última morada, com isso, parece-nos que Feuerbach elabora duas críticas: a primeira seria positiva, um elogio a Hegel, ao reconhecer em seu pensamento a forma mais acabada desse paradigma de filosofia, a segunda seria negativa, na medida em que já não é mais possível se filosofar a partir de um ser que é um não ser, ou seja, um vazio de determinações. Consoante o filosofo de Landshut: “Quem não abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia. A doutrina hegeliana de que a natureza é a realidade posta pela idéia é apenas a expressão racional da doutrina teológica, segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é, um ser abstracto (...) A filosofia Hegeliana é o último lugar de refúgio, o último suporte racional da teologia. (FEUERBACH, 1988, p.31) 3. A crítica à religião ou à recuperação do “divino” no homem. A crítica da religião em Feuerbach pode ser entendida como a espinha dorsal de seu pensamento. Tendo no homem e na natureza seus objetos diletos de pesquisa, toma-os a partir de um diálogo crítico com a tradição idealista e racionalista da filosofia, sobretudo, Leibniz, Espinosa e os representantes do idealismo Alemão, além de toda tradição judaico-cristã. Assim, Feuerbach, ao elencar seu objeto e suas vias de investigação, localiza seu pensamento como uma crítica à teologia, esteja ela na dimensão do conceito ou da representação da 6
  • 7. fé. De modo que a assertiva que acaba por perpassar toda sua obra com mais força é a de que “toda teologia não passa de uma antropologia”.5 A afirmação de que toda teologia é uma antropologia significa que os atributos de Deus nada mais são que atributos do homem elevados a condição de atributos universais e colocados acima do homem. O equívoco da teologia corresponde ao equívoco da filosofia do absoluto ao tomar o infinito como a verdade suprema. O fato é que a teologia negou o homem em favor de Deus e o idealismo negou o finito em favor do infinito, ou seja, tais posturas têm como método a inversão da realidade sensível. Portanto, “A tarefa da verdadeira filosofia não é reconhecer o infinito como o finito, mas o finito como o não finito, como o infinito; ou, não é transpor o finito para o infinito, mas o infinito para o finito.” (FEUERBACH, 1988, p. 24) Para Feuerbach, os representantes e defensores da eterna natureza de Deus o tomam por “espírito puro, autoconsciência resplandecente, personalidade ética”. (FEUERBACH, 1997, p. 131). Contudo, cabe indagar, se é possível que o impuro tenha origem no puro, que as trevas nasçam da luz. Assim, devemos nos perguntar se é possível uma natureza superior como a de Deus fazer brotar no seio do mundo tais elementos, o que desembocaria, a princípio, em contradição. Deus, na verdade, é a negação do humano, e não a efetividade da plenitude do ser. É negação do finito, do sensível, em favor de uma fuga da realidade, que pode ocorrer por medo de enfrentar o sensível, marcado pela dor e pelo sofrimento ou por projeção patológica e fantasiosa como fazem os místicos.6 Só uma ruptura negativa com a teologia e com a filosofia especulativa será capaz de reconhecer a verdadeira essência de Deus, que é o homem. O homem precisa ser resgatado do céu da infinitude, da eternidade, da abstração para o plano terreno, para o plano da vida. O homem precisa reconhecer o supremo Deus nele mesmo, reconhecer suas virtudes para poder viver consigo mesmo, pois enquanto reconhecer apenas suas fraquezas, sempre 5 Isto é observado na Essência do cristianismo. p.32 Ed, Papirus. São Paulo. 1989 ; Preleções sobre a essência da Religião. p.23. Ed. Papirus. São Paulo. 1989; teses provisórias para a reforma da filosofia. p.19. Ed. 70. Lisboa. 1988. Entre outras tantas formulações que acabam por enunciar o mesmo sentido, ou seja, demonstrar que o Deus exposto não passa do homem exteriorizado em uma perspectiva otimizada do existir (onipresença, onipotência, onisciência) 6 Aqui Feuerbach chama a atenção para a verdadeira face da teologia que mais se aproxima das ciências que tratam homem do que de qualquer outra coisa. Assim, a teologia não passa de uma psicologia esotérica, e que por isso, saberes como a antropologia, a patologia e a psicologia tem mais direito sobre o nome teologia que ela própria. (FEUERBACH, 1997 p. 132) 7
  • 8. projetará seu ser em outro ser, aquilo que é seu. O homem precisa assumir os limites da vida, do sensível, para reconhecer sua essência nesta e não transportá- la para o além. Consoante Feuerbach: “A essência divina é a essência humana transfigurada pela morte da abstração - o espírito falecido do homem. Na religião o homem se liberta das limitações da vida; aqui deixa ele desaparecer o que o oprime, trava e impressiona negativamente, Deus é o sentimento que tem de si mesmo libertado de qualquer obstáculo; livre, feliz, realizado o homem só se sente em sua religião, porque só aqui vive ele para seu gênio” (FEUERBACH, 1997 p. 140) Assim, “A tarefa dos tempos modernos foi a realização e a humanização de Deus a transformação e a resolução da teologia na antropologia” (FEUERBACH, 1988, p. 37). A asseveração feuerbachiana conclama a uma nova filosofia. Ao pretender retirar a religião da vida humana, Feuerbach propõe que o homem moderno já não representa mais o homem místico da teologia, preocupado com a santidade e a vida celeste. A prova maior, do homem moderno, distinto do homem místico, é sua forma de organização. O Estado substitui o papel do Javé-Iere, isto é, o Deus da providência. Assim, o Deus protetor e providente das necessidades humanas, que atuava no contexto das religiões, encontra-se agora reconhecido no homem como deus do próprio homem. Ocorre o abandono de um Deus distinto do homem, este não carece mais exteriorizar o seu ser em favor de outro ser, distinto de si. O processo aqui desenvolvido, que deve tornar-se a tarefa da nova filosofia é o da identificação do homem com o próprio homem, é o reconhecimento da natureza contingente e efêmera com o finito. De modo que a maneira de se organizar dos homens seja seu fundamento e não algo exterior a ela. Assim, “a política deve tornar-se a nossa religião” (FEUERBACH, 1988, p. 16), ou em outras palavras: “A religião, no sentido ordinário, é tão pouco o vínculo do Estado como é antes a sua dissolução. Deus, no sentido da religião, é o pai, o conservador, o providenciador, o guarda, o protector, o regente e o senhor da monarquia mundial. Por isso, o homem não precisa do homem; tudo o que ele deve receber de si ou dos outros recebe-o imediatamente de Deus. Confia em Deus, não no homem; dá graças a Deus e não ao homem, por conseguinte, o homem só por acidente está vinculado ao homem. Na explicação subjectiva do Estado, os homens reúnem-se pela simples razão de que não crêem em Deus algum, porque negam inconscientemente, de modo instintivo e prático, a sua fé religiosa. Não é a fé em Deus, mas a desconfiança em Deus que funda os Estados. É a crença no homem como Deus do homem que explica subjectivamente a origem do Estado.” (FEUERBACH, 1988 p. 17) 8
  • 9. A Realidade é agora inscrita pelos homens em organização, a modernidade suplantou o Deus que supria as necessidades humanas, seus atributos agora são reconhecidos na diversidade e pluralidade da organização sócia. O homem como membro da comunidade política torna-se capaz de onisciência, na medida em que o que um não sabe, outros sabem, é o saber do gênero, e o saber do gênero é o saber de todos e de cada um. Assim, o que ocorre com a omnisciência, serve para a omnipresença, o fato é que o homem, ainda que para muitos de forma inconsciente, é um homem divino para o próprio homem a partir de sua organização, conforme Feuerbach: “O que se passa com a omnisciência divina passa-se também com omnipresença divina, que também se realizou no homem. Enquanto um determinado homem observa o que ocorre na Lua ou em Úrano, outro observa Vénus ou as vísceras da lagarta, ou qualquer outro lugar onde, até, sob o domínio do Deus omnisciente e omnipresente nenhum olhar humano penetrara. Sim, enquanto o homem observa esta estrela do ponto de vista da Europa, observa simultaneamente a mesma estrela do ponto de vista da América. O que é absolutamente impossível a um homem só é possível a dois.” (FEUERBACH, 1988 p.49) Os homens, portanto, descobrem-se como capazes em sua condição natural e sensível, a tutela da teologia é superada pela ciência e pelo Estado, o mundo moderno projeta o homem para a autonomia. “O Estado é o homem que se determina a si mesmo, o homem que se refere a si próprio, o homem absoluto. (FEUERBACH, 1988, p. 17) 4. Conclusão A proposta de renovação da filosofia em Feuerbach nasce do tufo de nossa necessidade, como seres finitos e sensíveis. Necessidade de superar a especulação idealista, o racionalismo vazio, que não consideraram de forma aguda a vida dos homens. O homem natural, para Feuerbach, precisava emergir a primeira página da filosofia, sob pena de estarmos postergando uma tradição conceitual, rica de especulações e ilusões sobre a realidade. O materialismo é primeira saída para superar esse caminho, oportunizado pela tradição, isto é, reconhecer o homem como absoluto do homem, reconhecer o finito como condição de reflexão imediata. Neste contexto, a crítica à teologia e à superação do homem místico de visão fantasiosa e anseios fora da realidade empírica, colocam a filosofia 9
  • 10. feuerbachiana em confronto direto com a teologia que se manifestava como uma teologia racional. Assim, este homem da teologia tem que reconhecer sua dimensão “divina”, isto é, reconhecer que os atributos exteriorizados em outro ser, na verdade, pertencem a ele. O mesmo cabe à filosofia especulativa, que deveria considerar como ponto de partida o finito e não fundamentar sua verdade no vazio de determinações do infinito, do nada. O que nos leva a concluir que o fundamental de uma filosofia é proporcionar que o homem determine o humano em si, enquanto homem absoluto. Referências Bibliográficas CHAGAS, E. F. A questão do começo na filosofia de Hegel – Feuerbach: Crítica ao “começo” da filosofia de Hegel na Ciência da lógica e na Fenomenologia do Espírito. Revista Eletrônica de Estudos Hegelianos. Ano 2, n, 2, Jun, 2005. Disponível em< http:://www.hegelbrasil.org/rev02b.htm. acesso em 19/03/2010. FEUERBACH, Ludwig. Necessidade de uma reforma da filosofia. In: Príncipios da Filosofia do Futuro. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1998. __________________. Teses provisórias para a reforma da filosofia. In: Príncipios da Filosofia do Futuro. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1998. __________________. Princípios da Filosofia do Futuro. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1998. __________________ . A essência do cristianismo. Tradução de José da Silva Brandão. Campinas: Papirus, 1997. __________________ . Preleções sobre a essência da Religião. Tradução de José da Silva Brandão. Campinas: Papirus, 1989. 10