A bioética e sua relação com os direitos humanos pdf
A recuperação do homem natural em Feuerbach
1. A recuperação do homem natural em Feuerbach ou para crítica da
filosofia especulativa
Prof. Ms. Ricardo George de Araújo Silva1
1. Introdução
Ludwig Andreas Feuerbach, apesar de pouco pesquisado na academia,
foi um pensador contundente para sua época, primeiro pela coragem de dialogar
com a tradição, assumindo, assim, um pressuposto filosófico fundamental qual
seja: o enfrentamento dos sistemas por dentro, isto é, buscando a crítica a partir
de um diálogo direto com os autores por ele elencados, segundo pela inovação
ao contrapor a perspectiva filosófica dominante na época que era o idealismo
Alemão, que encontrava em Fichte, Schelling e Hegel seus maiores
representantes.
Feuerbach tem como seu objeto fundamental, a nosso ver, a recuperação
do homem natural, sensível, historicamente determinada, isto é, o homem
perdido pela tradição ocidental que o esvaziou em conceito, no caso da filosofia,
ou o transformou em consciência frustrada, na medida em que ansiava por outra
dimensão, e considerava tudo que era humano como degenerativo do espírito,
que um dia iria alcançar a Jerusalém celeste, como no caso do cristianismo.
Assim, temos em Feuerbach dois caminhos utilizados para realizar tal
empreitada, embora acabem por ser um, ou seja, a crítica à religião e a crítica à
filosofia especulativa, que se expressa, segundo o pensador, como religião ou
teologia do conceito, e, nessa perspectiva, segundo o filósofo de Landshut,
Hegel é a maior expressão.
Feuerbach encontrou no Hegelianismo uma filosofia que o permite
pensar o indivíduo e a subjetividade em sua relação com o todo, o espírito ou
como ele expressará o gênero. O que levará a se distanciar do sistema hegeliano
é a ambiguidade como este apresenta a religião. O velho Hegel e ainda mais os
hegelianos de primeira hora tendem a deixar a religião e a filosofia lado a lado,
1
Mestre em Filosofia (UFC). Professor Assistente da Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. Membro
dos Grupos de Pesquisa: Labor e Filosofia Política – UFC, Ambos do CNPQ. Atualmente coordena uma pesquisa na
área de Filosofia Política na UFRPE. ricardogeo11@yahoo.com.br
1
2. em coexistência pacífica. Para Feuerbach, trata-se desde cedo de pensar o gênero
ou essência humana e não um ser estranho à mesma, significando a crença num
ser transcendente, um desconhecido da verdadeira natureza humana de sua
relação com o divino que a caracteriza.
Temos, assim, a pretensão de trazer à baila a crítica de Feuerbach a toda
forma de filosofia especulativa ou saber que desconsidere a empírica vida dos
homens. Portanto, nosso trabalho quer ser uma provocação elucidativa do
pensamento do referido autor, não tendo a pretensão de esgotar ou encerrar
quaisquer questões sobre o mesmo. Faremos uso de textos centrais do pensador,
sobretudo, Necessidade de uma Reforma da filosofia (1842) Princípios da
filosofia do futuro (1842), e Teses provisórias para a reforma da filosofia
(1843)2.
2. Crítica à filosofia Hegeliana ou para construção de uma nova filosofia
Feuerbach parte do pressuposto de que a filosofia de Hegel, apesar de
todos os méritos, padece de realidade empírica na medida em que esvazia o
mundo dos homens de suas determinações, ficando o mesmo apenas com a
idealidade, e tomando esta por realidade. Acaba Hegel por ser a culminância de
toda uma maneira de se fazer filosofia que não considerou de forma aguda a
existência dos homens, por valorizarem o supra-sensível em detrimento do
sensível.
A pretensão de Feuerbach, ao romper com Hegel, é reformar a filosofia, é
tirar esta do céu das idéias e a colocar no mundo dos homens. De modo que se
faz necessário afastar-se da especulação estéreo da filosofia idealista que não
passa de racionalização da teologia. O convite aqui posto por Feuerbach recai
sobre uma filosofia que considere o humano enquanto humano, uma filosofia
com força positiva, por ser negativa. Uma filosofia que não teme a ruptura para
encontrar-se com a realidade. Portanto, uma filosofia que vá além do
hegelianismo e do cristianismo salvacionista, consoante Feuerbach
“A filosofia Hegeliana foi à síntese arbitrária de diversos sistemas, de
insuficiências – sem força positiva, porque sem negatividade absoluta.
Só quem tem a coragem de ser absolutamente negativo que tem a
2
Aqui será utilizada a tradução portuguesa de Artur Mourão. FEUERBACH, Ludwig. Princípios da Filosofia do
Futuro. Lisboa: Edições 70, 1988.
2
3. força de criar a novidade (...). O cristianismo já não corresponde nem
ao homem teórico, nem ao homem prático; já não satisfaz o espírito,
nem sequer também satisfaz o coração, porque temos outros interesses
para o nosso coração diversos da beatitude celeste e eterna”
(FEUERBACH, 1988 p. 14 )
Assim, observamos que as críticas à postura de Hegel, realizadas por
Feuerbach, representam uma tomada de consciência da realidade sensível. Tal
fato é visível no pensador materialista desde seus trabalhos iniciais quando o
mesmo afirma que a filosofia de Hegel não passa de um logocentrismo,
constatação essa feita na obra “Para a crítica da filosofia Hegelina” (1839), ou
seja, a filosofia de Hegel estabelece uma centralidade absurda no conceito, na
postura idealista, nas realidades extra-mundo, no racionalismo anti-histórico.
Para Feuerbach, a filosofia não pode começar pressupondo a si mesma, mas, ao
contrário, iniciar com o não-filosófico; assim, o pensamento deve entrar em
diálogo com o que é da ordem do empírico. Dessa forma, Feuerbach propõe,
contra as mediações infinitas do sistema hegeliano, uma retomada da
imediatidade tanto do pensamento quanto da intuição sensível, levando ambas a
um diálogo.
Feuerbach, nas teses provisórias para uma reforma da filosofia (1842),
rompe definitivamente com a especulação hegeliana e com seu próprio ideal
teórico-prático da filosofia, e o faz reconhecendo positivamente na religião sua
capacidade de satisfazer as necessidades do coração e do sujeito sensível, sua
afirmação da sensibilidade e da certeza imediata. A nova filosofia deveria
resgatar precisamente este momento da religião, possibilitando a conciliação
entre filosofia e vida, essência e individualidade, teoria e prática.3
“A essência da teologia é a essência do homem, transcendente,
projetada para fora do homem; a essência da lógica de Hegel é o
pensamento transcendente, o pensamento do homem posto fora do
homem” (FEUERBACH, 1988 p.21)
Dividir o homem, cindi-lo em seu existir foi a tarefa da tradição
filosófica, que negou a sensibilidade. Esta filosofia, chamada de idealismo, em
sua busca de uma essência infinita, esqueceu-se do homem, este foi por um
processo de exteriorização de sua essência, isto é, daquilo que o faz humano,
negligenciado. Urge, pois, um novo entendimento, e este só pode ser o de
resgatar o homem natural e sensível, daí a nova filosofia ter quer iniciar com o
3
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis Modernos. Ed. Universitária. Pelotas, 2005. p. 29.
3
4. finito, enxergando nesse o próprio infinito e ascendendo do concreto para o
abstrato.
Aqui, o salto a ser dado reside no resgate dos elementos positivos da
religião, quais sejam: sua afirmação das necessidades do coração e da certeza
sensível. A nova filosofia brotará do próprio homem que pensa a si mesmo,
descobrindo-se em sua essência como a infinita perfectibilidade, e não como
algo pré-formado e dado de uma vez por todas.
“A nova filosofia, a única filosofia positiva, é a negação de toda a
filosofia de escola, embora dela contenha em si a verdade, é a negação
da filosofia como qualidade abstrata, particular, isto é, escolástica: não
possui nenhum santo-e-senha, nenhuma linguagem particular, nenhum
nome particular, nenhum princípio particular, ela é o próprio homem
pensante – o homem que é e sabe que é a essência autoconsciente da
natureza, a essência da história, a essência dos Estados, a essência da
religião – o homem que é e sabe que é identidade real (não
imaginária), absoluta, de todos os princípios e contradições, de todas
as qualidades activas e passivas, espirituais e sensíveis, políticas e
sociais – que sabe que o ser panteísta, que os filósofos especulativos
ou, antes, os teólogos separavam do homem, e objetivavam num ser
abstracto, nada mais é do que a sua própria essência indeterminada,
mas capaz de infinitas determinações” (FEUERBACH. 1988 p, 32-33)
Para Feuerbach, a verdadeira filosofia deve considerar a natureza em sua
realidade mesma e não duplicá-la, ou ainda esvaziá-la de suas determinações.
Não cabe, pois, à filosofia negar o que é, ao contrário, é tarefa sua por em
evidência a essência mesma da coisa, e a essência da natureza é o homem
sensível, histórico e não uma formulação abstrata. Segundo o pensador em
questão, “A filosofia é o conhecimento do que é. Pensar e conhecer as coisas e
os seres como são – eis a lei suprema, a mais elevada tarefa da filosofia”
(FEUERBACH, 1988, p. 26). Assim, temos a filosofia especulativa e, de modo
especial, Hegel realizou um caminho inverso da verdadeira filosofia. A filosofia
especulativa tem como objeto o absoluto. Contudo, o absoluto do idealismo é
ilusão, é pura forma, carece de conteúdo de necessidade. O absoluto do
idealismo é ser sem limites, sem carência. A nova filosofia não tem como
conceber tal ser, sob pena de não realizar sem intento de superar tal estrutura.
Uma filosofia que considere o existir sensível não pode, por exemplo, negar
dimensões fundamentais desse existir, como o espaço e o tempo, tais estruturas
“são formas de revelação do infinito real.” (FEUERBACH, 1998, p.27).
4
5. Reconhecer a vida e a natureza presente nela é reconhecer a necessidade, a
contingência, a dor, o sofrimento. O resgate do homem natural passa por
assimilar suas características fundamentais, negadas ao longo do tempo pela
filosofia especulativa. De acordo com Feuerbach:
“Onde não existe nenhum limite, nenhum tempo, nenhuma aflição,
também aí não existe nenhuma qualidade, nenhuma energia, nenhum
espírito, nenhuma chama, nenhum amor. Só o ser indigente é o ser
necessário. A existência sem necessidade é uma existência supérflua.
O que é em geral isento de necessidade também não tem qualquer
necessidade da existência. Quer ele seja ou não é tudo um – um para
si, um para os outros. Um ser sem indigência é um ser sem
fundamento. Só merece existir o que pode sofrer. Só o ser doloroso é
um ser divino. Um ser sem afecção é um ser sem ser. Mas um ser
afecção nada mais é do que um ser sem sensibilidade, sem matéria.”
(FEUERBACH, 1988, p. 27)
A crítica de Feuerbach à filosofia especulativa incide na dificuldade desta
de reconhecer a vida e seus componentes como objeto. O mundo dos homens
não tem valor investigativo para a filosofia especulativa, a constatação mais
eminente disso talvez seja a argumentação da ciência da lógica hegeliana ao
tratar o “Nada” enquanto fundamento na medida em que concebe o absoluto
como puro ser. Assim, “Hegel começa, como mencionado, com o puro ser ou,
melhor expresso, com o conceito do ser ou com o ser abstrato, vazio mesmo,
pelo qual ele quer assentar o primeiro princípio da filosofia, o primeiro
cientificamente. Em oposição a Hegel, Feuerbach pergunta em seu escrito Zur
Kritik der Hegelschen Philosophie (Para a Crítica da Filosofia Hegeliana)
(1839): deve o princípio do filosofar, como Hegel o concebe ser o conceito
abstrato do ser? “Por que eu não devo começar com ser mesmo, isto é, com o ser
real? Ou por que não com a razão, já que o ser, na medida em que ele foi
pensado, tal como ele é objeto na ‘Logik’, me remete imediatamente à razão?’’
(FEUERBACH, 1970, p. 23-24) Ou melhor: se Hegel começa com o espírito
absoluto (com a razão, o saber absoluto),ele não inicia já com um
pressuposto?”.4 Feuerbach provoca um retomada do ser ao questionar Hegel na
sua opção de partir do indeterminado, do não-ser. Novamente a crítica a Hegel
4
CHAGAS. Eduardo F. A QUESTÃO DO COMEÇO NA FILOSOFIA DE HEGEL -Feuerbach: Crítica ao
"começo" da Filosofia de Hegel na Ciência da lógica e na Fenomenologia do Espírito. In: Revista eletrônica de
Estudos hegelianos. Ano 2 – Nº 02 Junho 2005. Disponível em < http:://www.hegelbrasil.org/rev02b.htm. acesso em
19/03/2010.
5
6. remete a uma nova abordagem do filosofar. De tal forma, que uma filosofia que
não tenha como objeto o homem em suas determinações, não pode ser
contudente. Assim, “O filosófo deve introduzir no texto da filosofia aquilo que
no homem não filosofa, o que, pelo contrário, é contra a filosofia, que se opõe ao
pensamento abstracto, portanto, o que em Hegel se reduz a simples nota.”
(FEUERBACH, 1988, p.28).
A ruptura de Feuerbach com a filosofia de Hegel vai ganhando corpo a
ponto de o pensador materialista propor um abandono da filosofia hegeliana, sob
pena de não romper com a égide da teologia, o que implica que para Feuerbach o
idealismo especulativo de Hegel equivale à teologia ou, entre palavras, a
filosofia hegeliana não passa do recôndito dos racionalistas, sua última morada,
com isso, parece-nos que Feuerbach elabora duas críticas: a primeira seria
positiva, um elogio a Hegel, ao reconhecer em seu pensamento a forma mais
acabada desse paradigma de filosofia, a segunda seria negativa, na medida em
que já não é mais possível se filosofar a partir de um ser que é um não ser, ou
seja, um vazio de determinações. Consoante o filosofo de Landshut:
“Quem não abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia.
A doutrina hegeliana de que a natureza é a realidade posta pela idéia é
apenas a expressão racional da doutrina teológica, segundo a qual a
natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é,
um ser abstracto (...) A filosofia Hegeliana é o último lugar de refúgio,
o último suporte racional da teologia. (FEUERBACH, 1988, p.31)
3. A crítica à religião ou à recuperação do “divino” no homem.
A crítica da religião em Feuerbach pode ser entendida como a espinha
dorsal de seu pensamento. Tendo no homem e na natureza seus objetos diletos
de pesquisa, toma-os a partir de um diálogo crítico com a tradição idealista e
racionalista da filosofia, sobretudo, Leibniz, Espinosa e os representantes do
idealismo Alemão, além de toda tradição judaico-cristã. Assim, Feuerbach, ao
elencar seu objeto e suas vias de investigação, localiza seu pensamento como
uma crítica à teologia, esteja ela na dimensão do conceito ou da representação da
6
7. fé. De modo que a assertiva que acaba por perpassar toda sua obra com mais
força é a de que “toda teologia não passa de uma antropologia”.5
A afirmação de que toda teologia é uma antropologia significa que os
atributos de Deus nada mais são que atributos do homem elevados a condição de
atributos universais e colocados acima do homem. O equívoco da teologia
corresponde ao equívoco da filosofia do absoluto ao tomar o infinito como a
verdade suprema. O fato é que a teologia negou o homem em favor de Deus e o
idealismo negou o finito em favor do infinito, ou seja, tais posturas têm como
método a inversão da realidade sensível. Portanto,
“A tarefa da verdadeira filosofia não é reconhecer o infinito como o
finito, mas o finito como o não finito, como o infinito; ou, não é
transpor o finito para o infinito, mas o infinito para o finito.”
(FEUERBACH, 1988, p. 24)
Para Feuerbach, os representantes e defensores da eterna natureza de
Deus o tomam por “espírito puro, autoconsciência resplandecente, personalidade
ética”. (FEUERBACH, 1997, p. 131). Contudo, cabe indagar, se é possível que o
impuro tenha origem no puro, que as trevas nasçam da luz. Assim, devemos nos
perguntar se é possível uma natureza superior como a de Deus fazer brotar no
seio do mundo tais elementos, o que desembocaria, a princípio, em contradição.
Deus, na verdade, é a negação do humano, e não a efetividade da plenitude do
ser. É negação do finito, do sensível, em favor de uma fuga da realidade, que
pode ocorrer por medo de enfrentar o sensível, marcado pela dor e pelo
sofrimento ou por projeção patológica e fantasiosa como fazem os místicos.6 Só
uma ruptura negativa com a teologia e com a filosofia especulativa será capaz de
reconhecer a verdadeira essência de Deus, que é o homem.
O homem precisa ser resgatado do céu da infinitude, da eternidade, da
abstração para o plano terreno, para o plano da vida. O homem precisa
reconhecer o supremo Deus nele mesmo, reconhecer suas virtudes para poder
viver consigo mesmo, pois enquanto reconhecer apenas suas fraquezas, sempre
5
Isto é observado na Essência do cristianismo. p.32 Ed, Papirus. São Paulo. 1989 ; Preleções sobre a
essência da Religião. p.23. Ed. Papirus. São Paulo. 1989; teses provisórias para a reforma da filosofia.
p.19. Ed. 70. Lisboa. 1988. Entre outras tantas formulações que acabam por enunciar o mesmo sentido,
ou seja, demonstrar que o Deus exposto não passa do homem exteriorizado em uma perspectiva otimizada
do existir (onipresença, onipotência, onisciência)
6
Aqui Feuerbach chama a atenção para a verdadeira face da teologia que mais se aproxima das ciências
que tratam homem do que de qualquer outra coisa. Assim, a teologia não passa de uma psicologia
esotérica, e que por isso, saberes como a antropologia, a patologia e a psicologia tem mais direito sobre o
nome teologia que ela própria. (FEUERBACH, 1997 p. 132)
7
8. projetará seu ser em outro ser, aquilo que é seu. O homem precisa assumir os
limites da vida, do sensível, para reconhecer sua essência nesta e não transportá-
la para o além. Consoante Feuerbach:
“A essência divina é a essência humana transfigurada pela morte da
abstração - o espírito falecido do homem. Na religião o homem se
liberta das limitações da vida; aqui deixa ele desaparecer o que o
oprime, trava e impressiona negativamente, Deus é o sentimento que
tem de si mesmo libertado de qualquer obstáculo; livre, feliz,
realizado o homem só se sente em sua religião, porque só aqui vive ele
para seu gênio” (FEUERBACH, 1997 p. 140)
Assim, “A tarefa dos tempos modernos foi a realização e a humanização
de Deus a transformação e a resolução da teologia na antropologia”
(FEUERBACH, 1988, p. 37). A asseveração feuerbachiana conclama a uma
nova filosofia. Ao pretender retirar a religião da vida humana, Feuerbach propõe
que o homem moderno já não representa mais o homem místico da teologia,
preocupado com a santidade e a vida celeste. A prova maior, do homem
moderno, distinto do homem místico, é sua forma de organização. O Estado
substitui o papel do Javé-Iere, isto é, o Deus da providência. Assim, o Deus
protetor e providente das necessidades humanas, que atuava no contexto das
religiões, encontra-se agora reconhecido no homem como deus do próprio
homem. Ocorre o abandono de um Deus distinto do homem, este não carece
mais exteriorizar o seu ser em favor de outro ser, distinto de si. O processo aqui
desenvolvido, que deve tornar-se a tarefa da nova filosofia é o da identificação
do homem com o próprio homem, é o reconhecimento da natureza contingente e
efêmera com o finito. De modo que a maneira de se organizar dos homens seja
seu fundamento e não algo exterior a ela. Assim, “a política deve tornar-se a
nossa religião” (FEUERBACH, 1988, p. 16), ou em outras palavras:
“A religião, no sentido ordinário, é tão pouco o vínculo do Estado
como é antes a sua dissolução. Deus, no sentido da religião, é o pai, o
conservador, o providenciador, o guarda, o protector, o regente e o
senhor da monarquia mundial. Por isso, o homem não precisa do
homem; tudo o que ele deve receber de si ou dos outros recebe-o
imediatamente de Deus. Confia em Deus, não no homem; dá graças a
Deus e não ao homem, por conseguinte, o homem só por acidente está
vinculado ao homem. Na explicação subjectiva do Estado, os homens
reúnem-se pela simples razão de que não crêem em Deus algum,
porque negam inconscientemente, de modo instintivo e prático, a sua
fé religiosa. Não é a fé em Deus, mas a desconfiança em Deus que
funda os Estados. É a crença no homem como Deus do homem que
explica subjectivamente a origem do Estado.” (FEUERBACH, 1988
p. 17)
8
9. A Realidade é agora inscrita pelos homens em organização, a
modernidade suplantou o Deus que supria as necessidades humanas, seus
atributos agora são reconhecidos na diversidade e pluralidade da organização
sócia. O homem como membro da comunidade política torna-se capaz de
onisciência, na medida em que o que um não sabe, outros sabem, é o saber do
gênero, e o saber do gênero é o saber de todos e de cada um. Assim, o que ocorre
com a omnisciência, serve para a omnipresença, o fato é que o homem, ainda
que para muitos de forma inconsciente, é um homem divino para o próprio
homem a partir de sua organização, conforme Feuerbach:
“O que se passa com a omnisciência divina passa-se também com
omnipresença divina, que também se realizou no homem. Enquanto
um determinado homem observa o que ocorre na Lua ou em Úrano,
outro observa Vénus ou as vísceras da lagarta, ou qualquer outro lugar
onde, até, sob o domínio do Deus omnisciente e omnipresente nenhum
olhar humano penetrara. Sim, enquanto o homem observa esta estrela
do ponto de vista da Europa, observa simultaneamente a mesma
estrela do ponto de vista da América. O que é absolutamente
impossível a um homem só é possível a dois.” (FEUERBACH, 1988
p.49)
Os homens, portanto, descobrem-se como capazes em sua condição
natural e sensível, a tutela da teologia é superada pela ciência e pelo Estado, o
mundo moderno projeta o homem para a autonomia. “O Estado é o homem que
se determina a si mesmo, o homem que se refere a si próprio, o homem absoluto.
(FEUERBACH, 1988, p. 17)
4. Conclusão
A proposta de renovação da filosofia em Feuerbach nasce do tufo de
nossa necessidade, como seres finitos e sensíveis. Necessidade de superar a
especulação idealista, o racionalismo vazio, que não consideraram de forma aguda
a vida dos homens. O homem natural, para Feuerbach, precisava emergir a primeira
página da filosofia, sob pena de estarmos postergando uma tradição conceitual, rica
de especulações e ilusões sobre a realidade.
O materialismo é primeira saída para superar esse caminho, oportunizado
pela tradição, isto é, reconhecer o homem como absoluto do homem, reconhecer o
finito como condição de reflexão imediata.
Neste contexto, a crítica à teologia e à superação do homem místico de
visão fantasiosa e anseios fora da realidade empírica, colocam a filosofia
9
10. feuerbachiana em confronto direto com a teologia que se manifestava como uma
teologia racional. Assim, este homem da teologia tem que reconhecer sua dimensão
“divina”, isto é, reconhecer que os atributos exteriorizados em outro ser, na
verdade, pertencem a ele. O mesmo cabe à filosofia especulativa, que deveria
considerar como ponto de partida o finito e não fundamentar sua verdade no vazio
de determinações do infinito, do nada. O que nos leva a concluir que o fundamental
de uma filosofia é proporcionar que o homem determine o humano em si, enquanto
homem absoluto.
Referências Bibliográficas
CHAGAS, E. F. A questão do começo na filosofia de Hegel – Feuerbach: Crítica ao “começo”
da filosofia de Hegel na Ciência da lógica e na Fenomenologia do Espírito. Revista Eletrônica
de Estudos Hegelianos. Ano 2, n, 2, Jun, 2005. Disponível em<
http:://www.hegelbrasil.org/rev02b.htm. acesso em 19/03/2010.
FEUERBACH, Ludwig. Necessidade de uma reforma da filosofia. In: Príncipios da
Filosofia do Futuro. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1998.
__________________. Teses provisórias para a reforma da filosofia. In: Príncipios da
Filosofia do Futuro. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1998.
__________________. Princípios da Filosofia do Futuro. Tradução de Artur Morão.
Lisboa: Edições 70, 1998.
__________________ . A essência do cristianismo. Tradução de José da Silva Brandão.
Campinas: Papirus, 1997.
__________________ . Preleções sobre a essência da Religião. Tradução de José da
Silva Brandão. Campinas: Papirus, 1989.
10