O documento discute a teoria do ócio criativo desenvolvida pelo sociólogo italiano Domenico de Masi. Ele propõe que o trabalho e o lazer devem ser sinergizados de forma a promover a criatividade. O avanço tecnológico permite mais tempo livre que pode ser usado para atividades prazerosas que alimentem novas ideias. A criatividade será cada vez mais valorizada na era da informação.
1. Trabalho e lazer:
uma união criativa
Prazer é o melhor combustível de trabalho na era pós-industrial
FABÍOLA AMARAL, IZABEL ROIZEN E JOANA VIEIRA
Nos produtores, ócio é produtivo; e nenhum que precisa entregar no fim do dia. Faz algumas
anotações e, finalmente, se senta em frente ao com-
criador, de qualquer magnitude que seja,
putador para concretizar a obra. Você já está em
jamais foi capaz de pular esse estágio mais ritmo de trabalho.
do que uma mãe pode pular a gestação. Este deve ser o sonho de muita gente e é também
Jacques Barzun a descrição do ideal de um trabalhador moderno.
Ou seria melhor dizer pós-moderno? Vivemos na
era pós-industrial. Ao mesmo tempo em que a
À
s dez horas da manhã você acor- sociedade da informação se instaura, ainda esta-
da. Toma o café ainda de pijama. mos sob a pressão da produção industrial. Apesar
Lê alguns jornais. Confortavel- de tantas transformações, o tempo ainda é escasso.
mente acomodado numa poltro- Cada vez mais, a criatividade se apresenta como
na, você começa a organizar suas o valor máximo desse novo mundo. Dizem que
tarefas. Ouvindo uma boa música, se lembra das daqui a algum tempo ela será a única capaz de
idéias que teve na noite anterior para aquele texto manter os nossos empregos. Até porque as má-
“Se a necessidade é a mãe das invenções, o ócio é o pai das idéias”
DOMENICO DE MASI
Condensar estudo, máquinas. Com mais agilidade e labor e lazer. “Você pode sair
trabalho e prazer. É velocidade na produção, o tempo daqui, ir ao cinema, fazer amor,
o que propõe o livre se estende e abre espaço passear, dormir, mas ainda assim,
sociólogo italiano para o ócio criativo. E isso está vai estar pensando no artigo que
Domenico de Masi distante de significar preguiça, tem que escrever”, exemplifica.
com a teoria do ócio criativo. Ele sedentarismo ou alienação. Uma Ser feliz com o desempenho pro-
não prega a diminuição das horas analogia possível, segundo o fissional é o caminho para elevar
trabalhadas, mas que a respon- sociólogo, seria a do poeta deita- a qualidade de vida.
sabilidade não seja tão estafante. do numa rede, compondo seus A teoria do italiano aponta um
Só poderemos atingir um nível versos mentalmente. ideal de sociedade para uma
melhor de bem estar e felicidade De Masi afirma que o único meio nova ordem econômica, política
quando nos dermos o luxo de ter de gerar idéias geniais é através do e social. No entanto, algumas
nas atividades criativas o nosso ócio criativo. O ritmo acelerado de e m p resas já funcionam com no-
maior tempo gasto, em que tra- trabalho imposto pela sociedade vos modelos de trabalho, per-
balho formal e tempo livre se industrial, que ainda resiste, não mitindo que funcionários desen-
confundam. oferece ao homem tempo para volvam suas atividades em casa,
O avanço tecnológico promove que possa se desenvolver como um no conceito home off i c e, ou que
uma constante substituição do todo. Não é mais possível haver tenham horários flexíveis de
trabalho braçal pelo uso das uma separação estanque entre expediente.
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2. quinas já fazem quase todo o trabalho braçal. Mas, lizar o seu tempo livre para acumular conhecimen-
não há como nos tornarmos criativos sem termos a to e fertilizar novas idéias. Saber escolher um bom
oportunidade de vivenciar experiências prazerosas filme, um bom livro e estar aberto a boas relações
e construtivas. de amizade são grandes elementos para a troca e
O sociólogo italiano Domenico fruição de experiências, alimen-
de Masi desenvolveu a teoria do tando a criatividade e o espaço de
Ócio criativo – um sincretismo reflexão e crítica.
entre trabalho, aprendizado e pra- A professora da PUC-Rio Karina
O ócio criativo
zer, para que o homem se desen- Kuschnir, doutora em antropologia
volva em todas as suas condições e associa trabalho, social, aponta a importância de
tenha um aproveitamento inteli- aprendizado e prazer reservar um tempo para sentir-se
gente e construtivo do tempo. Ele ao aproveitamento bem fazendo o que se gosta, para
aposta numa sociedade em que as aprender e refletir. Segundo ela, a
pessoas aprendam a ocupar o
inteligente do tempo repetição automática das ativida-
tempo com atividades que tragam des diárias leva à robotização do
satisfação e agreguem valor. ser humano. Conversar sobre diferentes assuntos e
Na era da informação, o poder não está mais vin- contemplar a arte ajudam a desacelerar e a desen-
culado aos donos dos meios de produção de bens volver o pensamento.
materiais, como na sociedade industrial, mas à pro-
dução de valores, símbolos, serviços, design, estética O problema do lazer
e conhecimento. A sociedade das idéias passa, Muitas áreas de estudos dedicam-se à pesquisa da
então, a exigir ainda mais da inovação e da cria- função social do lazer. O que fazer com o tempo
tividade. Diante desta perspectiva, a educação para que sobra? O simples fato dessa preocupação exis-
criação e empreendedorismo assume um papel fun- tir revela que o homem está consciente de sua
damental na formação de pessoas que saibam uti- autonomia para aproveitar o tempo livre sem o
Nem sempre o trabalho dignificou o homem
A visão positiva do trabalho é trabalhador era o mesmo que per- Com o ressurgimento das ci-
muito recente na história da tencer a uma hierarquia inferior. dades na Europa, o trabalho
humanidade. No século XVII, o Os nobres, que se consideravam assalariado passa a ser uma
matemático e filósofo René Des- superiore não praticavam nen-
s, opção para os trabalhadores que
cartes declarava não dedicar hum ato que fosse próprio dos fogem das propriedades feudais.
muito tempo do seu dia ao tra- estamentos mais baixos. Para eles Este é pelo menos um efeito
balho. Dizia ocupar mais horas isso seria o mesmo que atentar colateral desta modalidade de
do dia com os afazeres cotidi- contra a própria natureza, que trabalho.
anos. Para um homem que colocou os senhores da terr a Os golpes finais na concepção
gostava de acordar depois do acima dos outros homens. pejorativa do trabalho são, po-
meio-dia, talvez isso fosse ver- Os primeiros a terem uma visão liticamente, a Revolução France-
dade. No entanto, com sua positiva do trabalho são os mer- sa e a independência dos Estados
enorme produção intelectual, o cadores burgueses da alta Idade Unidos, que varrem a nobreza e
mais provável é que se dedicasse Média e início da Idade Moderna. a sua vida ociosa. E, finalmente,
muito ao trabalho. Esses homens enriquecem pelo do ponto de vista econômico, a
Durante toda a Antigüidade e a próprio esforço, através do comér- Revolução Industrial determ i-
Idade Média, trabalhar era uma cio de produtos importados do na a nossa nova concepção de
coisa negativa. O trabalho era para Oriente. De acordo com a visão trabalho e de tempo. Tu d o
escravos, servos, seres embrutecidos rígida dos medievais, eles estavam passa a girar em torno da pro-
e considerados inferiores. Ser um pecando ao buscar o lucro. dução.
Com muito prazer
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3.
sentimento de culpa por não estar facetada. O lazer é um mercado
produzindo formalmente, ou seja, em ampliação, é uma área aca-
trabalhando. dêmica, é motivo de políticas pú-
Isso reflete o início de transfor- “Repetir a blicas, uma necessidade individual
mação do sistema de produção rotina diária e um direito social. “Creio que o
na sociedade industrial, em que o âmbito do lazer hoje se apresenta
automaticamente nos
homem era essencialmente pro- como estratégia na elaboração de
dutor e só poderia atingir a ple- transforma em robôs. p ropostas que visem à construção
nitude nas horas de trabalho. Tal Conversar sobre de uma nova ordem social”.
pragmatismo gerava um conceito diversos assuntos e Segundo Vi c t o r, as saídas estão no
negativo de ócio e de lazer. Na próprio cotidiano. “A função dos
era do ditado “tempo é dinheiro”,
apreciar a arte ajuda acadêmicos é de mediadores e insti-
o lazer é aceito apenas como um a desacelerar e a gadores, contribuindo para desesta-
recurso que revigora o traba- pensar em algo bilizar os valores construídos anteri-
lhador para o aumento da pro d u- ormente, buscando novas con-
diferente”
tividade. dições e formas de conceber a vida
Para Victor Mello, doutor em Karina Kuschnir em sociedade”, diz.
lazer e professor da Universidade Autor do livro Lazer: princípios,
Federal do Rio de Janeiro, esse fenômeno social tipos e formas na vida e no trabalho, José Vicente de
moderno pode ser compreendido de forma multi- Andrade afirma que o fato de alguém ter prazer ou
Felipe Santoro Felipe Santoro
Alternativas de vida Depois de
passar a
Gonçalo, onde precisa ir apenas
manhã na
duas vezes na semana. O res-
praia,
tante do tempo ela dedica à fac-
o médico
uldade de Pedagogia, que con-
João Baptista
cluirá no final deste ano. Ele é
sai para
médico dermatologista e tam-
trabalhar
bém vai ao Rio duas vezes por
na Clínica
semana para trabalhar. Na
Búzios
Região dos Lagos, ele tem expe-
diente toda sexta-feira numa
clínica de estética.
Regina divide seu tempo entre a Segundo João e Regina, a de-
monografia e a praia cisão de viver parte da semana
em Búzios melhorou muito a
Começar o dia indo à praia, qualidade de vida dos dois. “Ago-
almoçar e depois trabalhar. Essa ra nossas preocupações são ou- dica-se apenas ao trabalho for-
é a rotina do casal João Baptista, tras. Não vivemos mais aquela mal.
56 anos, e Regina Coeli, 54, que correria que é a vida na cidade Regina e João acreditam que o
decidiu trocar o ritmo intenso do grande. E, mesmo assim, conti- estágio de vida que alcançaram
Rio de Janeiro pela tranqüili- nuamos produzindo, exercitan- é um privilégio de poucos. “A
dade de Búzios. Desta forma, eles do nossas mentes”, afirma Regi- sociedade brasileira possui uma
conseguiram conciliar trabalho na Coeli. condição econômica muito mi-
e lazer, produzindo inclusive nos Ela passa algumas horas, na serável. Nem todo mundo pode
tempos livres. frente do computador, fazendo se dar ao luxo de trabalhar
Ela é coordenadora geral de sua monografia e ele, estudando quando quiser. Tem que traba-
uma escola da rede privada de os novos conceitos da medicina. lhar para sobreviver”, ressalta o
ensino no Município de São Quando está no Rio, o casal de- médico.
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4. sentir-se em lazer na profissão Sempé
que exerce não descaracteriza
nem o prazer nem o trabalho.
Apenas mostra que é muito bom
ter-se por profissão o que se faz
por lazer.
Para o escritor, no futuro, o
ócio será encarado como estado
de uso racional, afetivo e cons-
t rutivo da liberdade de ser e de
a g i r. “A realidade pare c e - m e
estar tão pesada, assim como o
d e s c o n f o rto das relações huma-
nas. O que, em breve, deve
p rovocar algum tipo de reação
conjunta das pessoas contra a
sistematização merc a d o l ó g i c a
do que se denominava ócio”. As
relações tendem a ser re d i m e n-
sionadas e desconectadas dos
i n t e resses do consumismo, aten-
tando para a existência do
tempo livre, do ócio e do prazer.
Educação para a criatividade passar por um processo de mu- nos é o desafio de todas as áreas
O lazer não pode ser encarado danças comportamentais, cultu- de intervenção da pedagogia,
como um exercício compensa- rais e políticas. como a educação artística, estéti-
tório pelas ho- Por ser conside- ca e esportiva, por exemplo. A
ras de traba- rado espontâneo, c o n s t rução de um ser reflexivo
lho. A diversão hospitaleiro, ale- passa pela experiência lúdica,
e o descanso gre e sensual, po- que possui um alto teor de re a-
não podem ser- Experiências lúdicas de-se dizer que o lização. O prazer de vivenciar
vir apenas co- promovem a povo brasileiro experiências genuínas e poéticas
mo ameniza- está bem pre- é diferente do simples divert i-
realização. Não são
dores da pres- parado para as mento. Ou seja, do simples ato
são do cotidi- apenas para mudanças na re- de evasão, de entre t e r-se para
ano, que ainda matar o tempo. lação trabalho- “matar o tempo”.
mantém o mo- lazer. Essas ca- Para conquistar e garantir
delo de socie- racterísticas po- espaço na nova sociedade que se
dade industrial e exige um ritmo tencializam a capacidade de f o rma, o modo passivo de con-
exagerado dos trabalhadores. transformar a vida em inspiração sumir os prazeres empacotados
Precisamos conquistar uma nova artística. Um exemplo disso é a pela indústria cultural deve ser
forma de desenvolver ações pra- valorização de produtos culturais reavaliado. O interesse agora é
zerosas, enriquecedoras do desen- brasileiros no cenário mundial, nutrir uma cultura do ócio ativo
volvimento subjetivo e que estim- como a música, o carnaval e, e participativo, trabalhando pa-
ulem a construção de conceitos. mais recentemente, o cinema. ra fabricar idéias e acrescentar
Para atingir esse grau, devemos A formação de indivíduos ple- informações.
Com muito prazer
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