O documento discute a importância da accountability (responsabilização) no incentivo à formação de consórcios intermunicipais para gestão de políticas públicas. Aponta que o uso de incentivos financeiros pode levar os municípios a verem os consórcios apenas como meio de obter recursos, em vez de promover cooperação. Defende que mecanismos de controle social e avaliação de resultados auxiliam na accountability e na efetividade dos consórcios.
A importância da accountability e da avaliação de resultados para o incentivo aos consórcios intermunicipais
1. Da importância da accountability no incentivo aos consórcios
intermunicipais
Rodrigo Chaloub Dieguez
Mestre em Ciências Sociais
A preocupação com a utilização de incentivos seletivos1 para fomentar a
formação de consórcios intermunicipais e atribuir melhor coordenação em
políticas públicas descentralizadas reduzindo custos de transações federativas
assenta-se no risco de transformar a cooperação em um negócio para atores
estimulados unicamente pela captação de recursos financeiros. Essa lógica
desvirtua a finalidade do consórcio, que é a negociação de decisões
compartilhadas e a produção de acordos para a atuação regional, na busca de
superação do discurso autárquico localista da autossuficiência e mesmo da
transferência de custos para demais entes governamentais através do efeito
carona.
A natureza da cooperação intermunicipal, impulso que mobiliza a ação
coletiva, no momento de formação de um consórcio, pode ser classificada
como resultado de articulação a partir de uma iniciativa voluntária ou induzida
por incentivos externos. De certa forma, o que está sendo discutido é a
condição sobre a qual se constrói relações sinérgicas entre os prefeitos.
Segundo o modelo de evolução institucional construído por Diniz Filho
(2006), em que o consórcio se desenvolve por etapas como em uma “escada”
ou sua ascensão é oscilante como em uma rampa, a cooperação voluntária
torna o consórcio mais vulnerável aos questionamentos locais sobre a própria
razão de existência do arranjo, ao passo que o incentivo externo poder tornar
1
Incentivos seletivos são os mecanismos em que um ente federativo condiciona a liberação de
qualquer tipo de recurso, principalmente financeiro, à formação de um consórcio intermunicipal. Em
outras palavras, o município que desejar ter acesso a esses recursos para executar um projeto específico
ou participar de uma política pública deverá estar consorciado. Para exemplificar, pode ser utilizado o
destaque dado por Rocha e Faria quando analisaram o papel da indução estadual na formação dos
consórcios intermunicipais de saúde em Minas Gerais na década de 1990: “a ação do governo estadual
não se limitou à difusão do ideário cooperativo na área e ao fornecimento de informações para a criação
dos consórcios. Como forma de pressão, o secretário de saúde acenou com a possibilidade de liberação de
recursos estaduais para o setor e definiu que negociaria apenas com os municípios consorciados” (Rocha
e Faria, 2004: 96). Outra forma de incentivo seletivo constantemente mobilizado é o financiamento do
governo federal na Política Nacional de Resíduos Sólidos privilegiando os Consórcios Públicos.
2. questionável apenas os recursos que cada município passa a ter direito sem
contestar o consórcio em si. Dessa forma, os consórcios por estímulo externo
tendem a não retroceder, pois suas ações estão voltadas para uma etapa
específica – um degrau, enquanto o ímpeto não-induzido de cooperação está
sujeito a maior oscilação, perdendo força quando os fatores que geram a sua
coesão interna são perturbados e retrocedendo com maior facilidade, pois esta
não apresenta a estabilidade dos “planos nivelados” para se sustentar.
Por outro lado, a articulação voluntária se afasta de uma lógica
estritamente pragmática, contribuindo para a conscientização regional sobre a
interdependência entre os municípios, formando um capital social favorável à
cooperação e ao consorciamento. Em seu trabalho sobre o Consórcio do
Grande ABC, Reis (2008) destaca que a experiência de atuação conjunta,
baseadas em relações federativas de cooperação e não de competição,
precisa ser interiorizada na cultura política regional, sendo importante neste
processo esclarecer que “para um ganhar não é necessário que o outro perca”,
o que “não está na cabeça de boa parte dos prefeitos” (Reis, 2008: 158). Neste
sentido, a autora ressalta a importância da construção de uma regionalidade2
como parte de uma estratégia de interiorizar a cooperação intermunicipal na
cultura política local, buscando o desenvolvimento sustentável das ações dos
consórcios. Por fim, o caráter democrático que caracterizou as ações regionais
é tido como mecanismo essencial para evitar que disputas entre interesses
vinculados à filiação política dos prefeitos interfiram na política regional,
partidarizando as suas ações. A relação entre o setor público e a sociedade
civil, ancorada nos princípios da pluralidade, da cooperação e da parceria,
estiveram presentes nas decisões do Consórcio do ABC através do canal
democrático estabelecido pela Câmara Regional do ABC, instância decisória
que institucionalizou essa articulação resguardando, no formato dos acordos
firmados em sua dinâmica interna, a liberdade e a autonomia dessas
organizações (idem: 87-88).
Diante da dificuldade de se construir relações de cooperação de forma
espontânea tal como descrito no parágrafo acima em outras regiões, a
utilização de incentivos seletivos como forma de coordenação para estimular a
2
Por regionalidade, entende-se a subjetividade da construção coletiva de pertencimento a uma
região que ultrapasse as fronteiras municipais.
3. formação de consórcios, conforme dito no início, foi inserida na agenda de
alguns governos e também de sistemas de políticas públicas específicos em
determinados setores, como, por exemplo, na área ambiental.
Retomando nosso ponto de discussão – a transformação da cooperação
em negócio voltado exclusivamente para se captar recursos dos demais entes
federativos – para mitigar tal risco, a utilização desse tipo de indução deve ser
acompanhada de mecanismos institucionalizados de controle que priorizem a
gestão por resultados. Nesse sentido, entra em pauta não apenas a dinâmica
das relações intergovernamentais de cooperação e coordenação, aspecto
primordial para a compreensão desse arranjo, mas como tem sido praticado
o controle sobre a gestão dos consórcios intermunicipais. Esta agenda
valoriza a dimensão da accountability ao mesmo tempo em que desafia a
polity3, a sociedade, as comunidades afetadas pelas políticas públicas e a
própria academia em pensar sobre mecanismos de controle sistematizados
que colaborem, e não simplesmente enrijeçam, na construção de um padrão de
políticas públicas pautado por princípios como eficiência e equidade.
Isto significa a busca por controles não limitados a questões processuais
de legalidade, conforme interpretações e ações dos Tribunais de Contas que
engessam o direito administrativo, à responsabilidade fiscal e à contabilidade
pública, a exemplo da recente Portaria STN nº 72 de 2012,4 mas que
incorporem também ferramentas de verificação do atingimento das metas
3
Na literatura da ciência política para a análise de políticas públicas, há três dimensões diferentes
da política utilizadas: polity, politics e policy. A primeira - polity, de caráter institucional, “se refere à
ordem do sistema político, delineada pelo sistema jurídico, e à estrutura institucional do sistema político-
administrativo”; ao passe que a segunda - politics, de natureza processual, é dedicada ao estudo sobre a
disputa pelo poder, “frequentemente de caráter conflituoso no que diz respeito à imposição de objetivos,
aos conteúdos e às decisões de distribuição”; cabendo à terceira – policy, de concepção material, os
conteúdos concretos, isso é, a configuração dos programas políticos, os problemas técnicos e o conteúdo
material das decisões políticas (Frey, 2000: 217).
4
A Portaria STN nº 72, de 01 de fevereiro de 2012, “estabelece as normas gerais consolidação das
contas dos consórcios públicos a serem observadas na gestão orçamentária, financeira e contábil, em
conformidade com os pressupostos da responsabilidade fiscal”. Dentre outros assuntos, o foco principal
foi estabelecer critérios que garantam o alinhamento da gestão orçamentária e financeira dos consórcios
com as regras já existentes sobre a classificação de receitas e despesas, bem como a sua integração com o
Relatório de Gestão Fiscal do Poder Executivo, permitindo que a sua contabilização reflita os princípios
do direito financeiro e da responsabilidade fiscal e não produza duplicidades na elaboração de
demonstrativos de despesas obrigatórios para os municípios. Outros pontos que merecem destaque são a
preocupação com o controle sobre a composição, a execução orçamentária e o impacto dos recursos
alocados no contrato de rateio sobre a higidez financeira dos municípios consorciados; a contabilidade
patrimonial decorrente das atividades do consórcio; a transparência da gestão fiscal dando a devida
publicidade aos seus documentos em imprensas oficiais e divulgações eletrônicas; além de reforçar a sua
sujeição aos limites e condições impostos pelo Senado Federal em caso de contratação de operação de
crédito.
4. pactuadas nos contratos de programa e de distribuição dos recursos entre os
municípios, o que demanda capacidade de planejamento, implementação,
gestão e avaliação dos consórcios e das equipes envolvidas.
Estratégias estaduais de descentralização da autoridade sobre a
execução de políticas públicas através do incentivo à formação dos consórcios
podem ser acompanhadas de autonomia também sobre a sua formulação e
implementação. O ponto chave é integrar no modelo institucional de políticas
descentralizadas instrumentos e indicadores que permitam avaliar os
resultados dessas ações. Contratos de gestão entre consórcios intermunicipais
e administrações estaduais podem reduzir as incertezas dos custos de
transação e os dilemas em que se encontram os agentes políticos pelo receio
de perder controle sobre recursos de políticas públicas eleitoralmente
importantes, sem que seja necessário fazer parte do próprio contrato de
consórcio público.
Da mesma forma, a ampliação da participação democrática não pode ser
ignorada ou evitada sob a égide do argumento que sustenta o compromisso do
consórcio apenas com o poder executivo, como se o município a ele se
restringisse. Relatos de experiências de consorciamento para gestão de
recursos hídricos apontam que a criação de canais institucionalizados de
diálogo com a sociedade produz resultados atrativos tanto para os usuários
quanto para as associações civis, além de desvincular-se de interesses
partidários e garantir maior estabilidade nos momentos de transição política
decorrente dos resultados eleitorais. Outro destaque a ser feito refere-se ao
desenho de modelos organizacionais que empoderam a sociedade tornando-a
um ator relevante na institucionalidade da estrutura decisória do consórcio,
como o observado por Dieguez (2011) em relação ao Consórcio Intermunicipal
Lagos São João no Estado do Rio de Janeiro. Esse tipo de relacionamento
entre o poder público e a sociedade estabelece mecanismos de controle que
vitalizam a accountability na sua gestão, propiciando maior transparência e
responsabilização das atividades, além de alavancar seu desempenho. O
trecho a seguir de Sano e Abrucio resumem esse ponto:
A pergunta que fica ao final é a seguinte: qual seria a
importância da accountability para a melhoria da gestão
pública? De forma muito resumida, o que a literatura ressalta é
que o aumento do controle sobre o poder público tem dois
5. efeitos importantes. Primeiro, a responsabilização reduz as
chances de erros dos governantes, pois ela pode corrigir tais
equívocos ou, em última análise, levar à punição dos
responsáveis. Trata-se aqui de um aperfeiçoamento cívico
contínuo da sociedade como um todo. Mas a existência de
múltiplos e ininterruptos instrumentos de accountability traz
também a possibilidade de aprendizado por parte dos
policymakers [responsáveis pelo planejamento e execução das
políticas públicas], sejam os políticos, sejam os burocratas. O
paradigma da learning organization [aprendizado
organizacional a partir de avaliação constante de resultados e
incorporação de práticas bem-sucedidas de outras
organizações], um dos principais postulados de autores que
têm refletido sobre a Nova Gestão Pública, só pode ser obtido
reduzindo a concentração de poder e tornando-o mais
accountable [controlável social, política e institucionalmente],
para que sejam acesos alarmes de incêndio aos dirigentes
públicos (Sano e Abrucio, 2008: 80).
Em resumo, o foco do controle sobre a efetividade do desempenho
institucional dos consórcios aliado aos incentivos seletivos de descentralização
das políticas públicas contribui na redução dos efeitos compartimentalizantes
do “hobbesianismo municipal” (NE) (Melo, 1996 e Abrucio, 2006). Mesmo que
atraentes como negócio de captação de recursos externos para os prefeitos,
quando acompanhados da presença de accountability e do envolvimento da
sociedade para acompanhar e participar das decisões tomadas essencial neste
sistema, os consórcios intermunicipais apresentam-se como ponto positivo no
contexto federativo do sistema político brasileiro.
(NE) Nota do Editor – Hobbesianismo é a doutrina formulada pelo filósofo inglês
Thomas Robbes (1588-1679) que, partindo da suposição de uma insociabilidade inerente à
condição humana, considera o poder coercitivo do estado originado por um pacto consentido
entre os cidadãos, com o objetivo de limitar os desejos exacerbados ou beligerantes e instaura
a paz na vida social.
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