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Duas interpretações para O homem da multidão
O presente ensaio pretende analisar duas e diferentes perspectivas relacionadas ao
significado extraído do conto The man of the crowd ― O homemda multidão ― de Edgar Allan
Poe. Quais são os dois caminhos? O primeiro é retirar um único significado do conto, o
significante, a obra ― de arte. O segundo é a árdua tentativa de conter a pluralidade de
significados que pinga deste significante, o conto.
É sabido que o conto de Edgar Poe é muitas vezes tomado como uma altiva crítica à
arte ― e à todo o movimento ― dito realista e seu vício descritivo. Mais do que isso: a sempre
insatisfeita ideia de achar que uma palavra tem um sentido inerente a ela e o leitor retira dela
exatamente o seu único sentido, por assim dizer, a priori. Decerto conclui-se que há nestas duas
visões modos de pensamentos diferentes: o primeiro acredita que o signo é a fusão do
significante mais o seu significado: o que lembra a filosofia de Saussure. Já o segundo acredita
que o signo é e apenas é significante, ou seja, um manifestador de significados. Em outros
termos, um mero símbolo: o que na filosofia de Kant dizer-se ia: o fenômeno; E, isto já estaria
mais para a filosofia de Lacan, que diverge símbolo de real e de imaginário, ou imaginativo ―
mesmo apesar de Lacan se fundamentar na corrente estruturalista. Entretanto, o que tem o
homem da multidão com isso? Ora, efetivamente, tudo. O homem da multidão é, assim como
qualquer coisa, uma palavra, um significante, um símbolo. Mas o que isso quer dizer? Pois o
que adianta-nos saber que o homem da multidão é uma palavra senão sabemos o que é a
palavra? A palavra é, sumariamente, uma obra de arte: Arte no sentido clássico; no sentido de
artista como artesão: aquele que manufatura uma coisa, um vaso, uma pintura, escultura, prosa e
poesia. Isto quer dizer: há ― o que é evidente ― alguns métodos (uns caminhos) para construir
uma palavra; Há métodos para a construção de uma frase; Há métodos para a construção de uma
oração, de um conto, um romance, uma poesia. E, métodos diferentes para cada um deles.
Desde o soneto até a epopeia clássica. Pois cada coisa há em si mesma uma singularidade única
e própria: a presença destas mesmas coisas. Isto é, há em cada coisa algo de muito, muito, raro:
a própria presença delas: uma coisa em si inigualável com qualquer outra. E é exatamente isso
que não se deixa ler ― “es lässt sich nicht lesen” ― o homem da multidão: a vida. O homem
da multidão é o fluxo continuo e aparentemente sem sentido da vida. É exatamente o quê o
difere de um simples observador. Ele não narra nem descreve a vida, ele a “vive”. Já o
observador, afastado da sensação do “que vive”, simplesmente descreve o que vê e o que o
“real” (o descrito, o homem da multidão) parece a ele sentir. Ou seja, o que o flâneur sente é
apenas a sensação de observar a complexa vida lá fora; É sentir tão somente a observação de
uma realidade da qual ele não sente, pois não é a própria. O observador somente vive
2
(experimenta) a observação; tentando achar qualquer similaridade consigo mesmo. Mas
unicamente quem ele observa é que efetivamente sente, seja lá o que este sente. É como alguém,
que nunca perdeu uma coisa amada para a senhora morte, descrever a tristeza da chegada da
morte para outra coisa ― sem a menor importância ao observador. Isto não é mais “viver”, com
sentido de sentir, a presença da morte; É no máximo lembrar ou imaginar uma dor, uma
sensação, que não se faz mais presente e por isso já é uma nova sensação: a sensação de
lembrança, ou imaginação, ou desespero. Não significa, é claro, que o observador não saiba o
que é a dor, mas que o momento da descrição é um momento técnico, uma arte ― como técnica.
Com efeito, disse o poeta Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Pessoa, em meu socorro:
“Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados como para os que o não
são. Sentir é estar distraído.” 1
O mestre de Fernando Pessoa enuncia que “sentir é estar distraído”. Mas o poeta como
construtor de enunciados que deixam adivinhar sentidos, ou ainda, como o construtor de uma
equação que deixa margem apenas para uma sensação x, o poeta que sabe muito bem o que quer
causar e limita de tal modo o perímetro de sensações,e até mesmo de sentido, de sua arte com a
finalidade de evitar a multiplicidade de efeitos e para a glória de sua arte manifestar uma e
apenas uma sensação, seja ela a felicidade, a esperança, a dor ou o desespero do maldito refrão
de um corvo, faz isso metodicamente calculado, mesmo que seja um raciocínio inconsciente:
como o de uma criança que beija (causando lisonjeio, prazer) a mamãe e depois lhe pede alguns
trocadinhos (enfim, evidenciando seu primeiro interesse...). Isto é, ninguém tenta conquistar o
seu prazer enunciando primeiramente o seu prazer antes de tentar causar prazer a quem se
almejou conquistar. Em outras palavras, ninguém diz “Olá, eu quero te comer. Você é linda!”
Mas justamente o contrário: “Você é linda! Eu gosto muito de você! Eu te amo!” e aí, depois de
a receptora acreditar que o enunciador quer o bem dela, ou seja, depois que o enunciador
convenceu a de que está disposto a lutar pelo prazer da própria receptora da mensagem, o
enunciador solta “desinteressadamente”: “Eu quero te comer.” Com efeito, torna-se evidente
que a elaboração de um enunciado é uma arte, pois nem sempre se consegue expressar o que se
pretendeu expressar: Aristóteles não escreveu sua retórica à toa. E, há sempre alguns
fundamentos que se deve levar em consideração. Como, por exemplo, o caráter do receptor da
mensagem, o que se quer causar, e quais sensações a priori são manifestadas quando são
expostas tais coisas (a mensagem) para o receptor. Em linhas gerais, se você pretende defender
a causa de Hitler a um judeu você deve apelar para algo que conhecidamente à ideologia do
povo judeu perdoaria ou então lhe traria algum benefício, como, por exemplo, a terra prometida
conquistada pelo ato da misericórdia. E é claro utilizar argumentos de bom valor naquela cultura
1 PESSOA, F., A. C., parte de “Poemas Inconjuntos.”.
3
específica. Não se trata mais de ganhar pela razão, mas pela comoção ― objetivada, e muito
bem calculada, pela razão. “Pois é óbvio que, se a lei escrita é contrária aos fatos, será
necessário recorrer à lei comum e a argumentação de maior equidade e justiça... Mas, se a lei
escrita favorece a nossa causa, convirá dizer que a fórmula ‘na melhor consciência’ não serve
para o juiz pronunciar sentenças à margem da lei, mas apenas para ele não cometer o perjúrio no
caso de ignorar o que a lei diz;” 2
Isto quer dizer: há uma coisa em si que quando exposta
sempre causa dor. O que é? A falta do prazer. Agora, bastará descobrir em quais coisas está o
prazer, a honra, a dignidade, o orgulho deste receptor e fazer com ele o que se tiver capacidade
para fazer. E, isto é coisa que para a voz de Dupin e o ídolo de Baudelaire parece-me bastante
conhecido. E é claro, isto não significa facilidade. Mas a este momento o leitor pode estar se
perguntando o que tudo isto tem de relação com as duas perspectivas mencionadas no começo
do ensaio. Ora, é muito simples, porque “os campos, afinal, não são tão verdes para os que são
amados como para os que o não são.” Efetivamente, o flâneur não vive ― e nunca poderá senão
representar ― a realidade de estar lá, na multidão. Para chegar-se a tal sensação de “realização”
será necessário trilhar o caminho e ser assim por ele trilhado. A arte, desde seu nascimento, será
sempre um símbolo que está destinado ao fracasso da representação daquilo que ela tenta ― se
tenta ― descrever: a realidade que o homem da multidão está, ou seja, a realidade que ele vive e
que está nela distraído. Significa: ver uma pintura de uma praia não é estar na, ou muito menos
sentir a, praia. Assim como ver, ou ler, a multidão, a “realidade”, não é necessariamente estar
nela. E, bem mais que isso:
Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo. 3
Enfim, depois desta longa introdução podemos nos atentar a primeira perspectiva:
retirar um único significado do conto, o significante, a arte. Isto é, o que Edgar Poe quis dizer
com este conto? Iremos, como não diria Alberto Caeiro, descobrir o mistério das cousas? Não.
Provavelmente não iremos. O máximo que faremos é analisar, sumariamente, uma
interpretação, meio que psicótica, do conto do mestre inconteste do terror. E para isto é
necessário supor: Suponhamos que o homem da multidão sente imenso prazer em sentir-se estar
na multidão. É claro, esta suposição não se trata de qualquer tipo de intuição sem fundamento.
2 ARISTÓTELES. Retórica, Livro 1, Provas não técnicas na retórica judicial, 1375b 73.
3 PESSOA, F., poema “Como é por dentro outra pessoa”.
4
Mas uma intuição com método. E, um método um tanto psicótico por procurar nos menores
detalhes da narrativa algum significado implícito como que querendo se explicitar. Refiro-me ao
regular comportamento do homem da multidão, apesar de estranho. Antes de iniciar a leitura do
conto nos deparamos com uma citação, como não é raro nos contos de Poe. E, em geral, estas
citações funcionam, sob certa interpretação, como uma espécie de “moral da história”
antecipada; parecendo até que o conto foi feito para validar a máxima. A máxima que antecipa o
homem da multidão é de La Bruyère. E diz: “Essa grande infelicidade de não poder estar
sozinho.” 4
. E, para causar-nos ainda mais mistério, o narrador na primeira oração do conto diz
que “já se disse com propriedade” de certo livro germânico a seguinte expressão: “es lässt sich
nicht lesen”5
:“Há certos segredos que não consentem ser ditos.” Mais a frente veremos que isso
encaixa como luva customizada ao próprio desfecho do conto. Detenhamo-nos agora a seguir os
curiosos e “desinteressados” passos d’O homem da multidão.
The man of the crowd, resumidamente, é uma pequena história (conto) de um homem
que observa de dentro de um café, em Londres, a movimentação de pessoas do lado “de fora”
dos vidros do café, isto é, na rua. O narrador, o próprio observador, começa a categorizar os
demasiados tipos de caráteres pela simples observação da aparência das pessoas ― o que, hoje,
denominamos, negativamente, preconceito. É exatamente isso o que ele faz: julga o livro pela
capa ― E parece fazer muito bem. Havia passantes, por exemplo, que “seus trajes pertenciam
àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, fidalgos, comerciantes,
procuradores, negociantes, agiotas ― os eupátridas e os lugares-comuns da sociedade ―...” 6
.
Já se passara uma vasta quantidade de gente, e até o momento o narrador tem descoberto
facilmente o significado preciso para cada palavra que passa em sua leitura. Podemos dizer que
estes passantes são apenas e simplesmente texto-comum. Contudo, depois de certa quantidade
de páginas, a noite se espreguiça e sai à rua. A presença da noite junto ao efeito de luz causado
pelos lampiões a gás levam o narrador a observar os morfemas de cada palavra, suas faces. De
súbito depara-se “com um semblante que, de imediato, se impôs fortemente à minha atenção,
dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão;... Enquanto tentava, durante o breve minuto em
que durou esse primeiro exame,analisar o significado que sugeria,nasceram de modo confuso e
paradoxal...” 7
Basta por aqui. Essa é a primeira avaliação do homem da multidão.
Imediatamente observa-se na leitura uma diferença muito clara: Podemos dizer que o homem da
multidão, diferentemente do lugar-comum (do simples texto), é poesia: O narrador diz:
“nasceram de modo confuso e paradoxal”: exatamente como uma poesia, muitas vezes, é a
primeira vista: confusa e paradoxal. Nesse momento, entusiasmado com o verso que o “peito do
4 “Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul.”
5 “Não se deixa ler.”, ou ainda “it does not permit itself to be read.”
6 POE, 2008, p.259.
7 POE, 2008, p.263.
5
velho lhe sugeria”, o narrador veste seu sobretudo e se determina a seguir, a decifrar, a poesia, o
homem da multidão. O narrador segue o homem da multidão durante quase dois dias, e no fim
do segundo, “aborrecido mortalmente” desisti de entendê-lo e diz em pensamentos: “Esse velho
é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será
escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito de seus atos. O mais cruel
coração do mundo é livro mais repulsivo que o Hortulus Animae, e talvez seja uma das mercês
de Deus que es lässt sich nicht lesen.”8
. E assim termina o conto de Poe: sem sentido algum, ou,
o sentido não se deixa ler. Em geral, é assim que se resume O homem da multidão. E, a partir
daí alguns leitores enxergam no conto um ensaio filosófico que avalia a natureza descritiva do
realismo indicando a sua limitação e afirmando que talvez essa limitação seja exatamente uma
mercê. Porém, esta leitura não se atentou a peculiaridade do comportamento das rimas do
homem da multidão, digo, dos seus passos.
Disse anteriormente que o obscuro comportamento do velho decrépito, o homem da
multidão, é um comportamento regular, ainda que incomum. E, obviamente, pode ser visto com
certo tipo de lógica. Qual é esta lógica? Vamos ao texto.
... Como nunca voltou a cabeça para trás”, o homem da multidão,
“não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma
travessa, que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto
a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu
procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente
do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a
atravessar a rua, repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era
ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem
de perto. A rua era longa e apertada, e ele caminhou por ela cerca de uma
hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente
decrescido... Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente
iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho
voltaram a aparecer... Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circuito
da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar.
Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes;...
Nesse exercício gastou mais uma hora... o ar tornou-se frio; os passantes se
retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho
ingressou numa travessa comparativamente deserta. Caminhou apressado
por cerca de quatrocentos metros, comuma disposição que eu jamais sonhara
ver em pessoa tão idosa; ” Entramos numa feira cheia de gente, “e ali
retomou ele suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá,
8 POE, 2008, p.267.
6
sem propósito definido,... Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira
começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu
um esbarrão no velho e, no mesmo instante, vi um estremecimento percorrer-
lhe o corpo. Saiu apressadamente para a rua.” Enfim, voltamos para a
avenida onde ficava situado o Hotel D... “esta, no entanto, já não apresentava
o mesmo aspecto. As luzes ainda brilhavam, mas a chuva caía pesadamente e
havia poucas pessoas à vista. O estranho empalideceu. ... chegou por fim
diante de um dos teatros principais da cidade. Estava prestes a fechar, os
espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por
falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa
agonia de seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe
sobre o peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei
que seguia agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de
modo geral, não conseguia compreender a inconstância de suas ações.
Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga
inquietude e vacilação voltarama aparecer... (POE, 2008, p.264-266).
Perdoe-me a longa citação, mas ainda seria melhor mais. Porém, não façamos. A
questão principal é: O narrador diz não compreender a inconstância das ações do velho. Mas a
palavra ‘inconstância’ é uma tradução optada, neste caso, por José Paulo Paes, o tradutor desta
versão. No original a palavra usada é ‘waywardness’ que etimologicamente sofreu um
encurtamento de ‘aweiward’ “turned away,” de away + -ward.9
Este termo pode ser traduzido
também como ‘descaminhos’. À fins de tradução, as duas são válidas e suficientes. Mas o erro
está em pensar que o comportamento do homem da multidão é inconstante. Não é. Seu
procedimento é o mesmo desde o início. Suas rimas são muito bem pautadas, e foram
destacadas na citação pelo modo itálico. Sua ação é constante e tem uma frequência muito
exata: Ele foge da pavorosa solidão e procura, como a morte o fim da vida, a companhia; e a
descrição do observador nos auxilia a pensar, por relação a nós mesmos, que o moribundo sente
amor à multidão, consequentemente horror à solidão. Algumas linhas atrás disse que o homem
da multidão, o sujeito mesmo e não o conto, pode ser encarado como poesia: Não há melhor
hora para citar uma poesia; mais uma vez, Alberto Caeiro:
“O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.”
É inconteste a proximidade do homem da multidão com o poema acima. Se considerarmos que
o amor é um prazer, podemos entender e dar razão ao aparente desinteresse do velho. Já dissera
9 Fonte: http://www.etymonline.com/index.php?term=wayward
7
Aristóteles que “ninguém quer algo senão quando crê que é bom.” 10
E aparentemente o pobre
diabo sente uma angústia pavorosa em estar só. O narrador nos conta: “I saw the old man gasp
as if for breath while he threw himself amid the crowd; but I thought that the intense agony of
his countenance had, in some measure, abated.” A multidão está para o velho assim como o ar
está para a vida humana. O homem da multidão meio que busca na multidão o seu ar, o seu
prazer ― , o que ultimamente, tem-se nomeado a vida propriamente dita. O decrépito não se
alimentara nem dormira por duas noites seguidas. Apenas se nutria com o estranho e quase
essencial prazer, seu alimento basal, de mergulhar na multidão; como um peixe que procura
água, pois não tem vida fora dela. É uma realidade estranha ao observador. Sem nada de
semelhante a sua. Será? Decerto não. Se valorarmos a presença da multidão como sua própria
satisfação de prazer, semelhança que não é muito longínqua de se avistar devido ao
comportamento do velho, notamos que por mais estranha que se pareça esse prazer, e ainda que
tolamente considerado um prazer insignificante, temos muito em comum com o homem da
multidão: a própria vida. Responda-se o que procuramos nestas curtas alamedas da existência,
independente de fazer ou não sentido a quem observa, senão exatamente o que o homem da
multidão procura: o alívio. Quantos circuitos já não repetimos e repetiremos incessantemente e
incansável vezes a procura de nossa paz? Quantas guerras ou caminhos repulsivos e putrefatos
repletos da mais baixa e viva imoralidade não nos dispomos a rastejar em busca da satisfação de
prazer dos nossos amores e nosso consequente prazer? Pois agrada agradar a quem amamos. O
homem da multidão não é senão a estranheza de nos olharmos, e nos desconhecermos. O
homem da multidão somos nós a nós mesmos: um estranho, uma palavra que ainda não se
significou, um espelho que mostra-nos como não queremos nos convencer que somos.
Antes de anunciar o fim da primeira perspectiva, a extração do mero significado do
conto como umreflexo da estranha condição humana da fuga da dor e a infatigável busca do
prazer; o que é, evidente, uma perspectiva muito geral, cabe ressaltar que não é qualquer
literatura que apresenta tal densidade que permite nos afundar em tal sentimento profundo de
similaridade com o velho decrépito homem da multidão. Uma coisa é identificar-nos com os
bons moços, os heróis, ou os guerreiros ― da paz. Outra é identificar-nos com o Lobo Mau, ou
Brás Cubas, ou, ainda, o homem subterrâneo, e, é claro, o absurdo homem da multidão.
Contudo, talvez ainda falte ao leitor a relação de Aristóteles e o conto. Não se trata do conto,
mas do tipo de leitura. Acredito que Sherlock Holmes disse que “não há nada mais ilusório que
o óbvio.” E, Aristóteles trata o óbvio com muito carinho. Isto é, esta interpretação do conto
toma como base que a multidão é um prazer, um “amor”, e talvez a própria essência, ao homem
da multidão. E, Aristóteles, em sua Retórica, evidencia, ou deixa-nos adivinhar, o que é, em
alguns casos, o amor: Um desinteressado interesse. Repito: “não há nada mais ilusório que o
10 ARISTÓTELES. Retórica, Livro 1, Retórica judicial: a injustiça e suas coisas, 1369a 53.
8
óbvio.” Com efeito, se amar é um prazer, significa que o outro (a quem se ama) é o seu próprio
bem, e por isso se ama, e por isso se faz bem ao outro, porque é o seu próprio bem; ou seja, o
amor, aparentemente,um desinteressado querer bem ao outro não passa de um interessado fazer
bem a si mesmo, uma ação ordinária que Leibniz, por exemplo, faz nos pensar que é uma
atitude nobre: fazer bem a si mesmo. Aludo à célebre frase de Leibniz, o delírio de alguns
românticos: “Amar é encontrar na felicidade do outro a própria felicidade.” Isso explica a
necessidade dos dois longos exemplos anteriores: do garoto e da mãe, e, o proceder com a lei e
o juiz: há sempre um interesse. Para esclarecer, cabe aqui uma citação a Nietzsche:
...; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao “bom”
valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção,
utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do
homem). E se o contrário fosse a verdade? E se no “bom” houvesse um
sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um
narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do
futuro? (NIETZSCHE, 2009, p.12).
Portanto: E se o “amor” fosse na realidade um “ódio” embelezado de prazer? Não cabe aqui a
resposta, mas quando se toma “o valor desses “valores” como dado, como efetivo, como além
de qualquer questionamento” 11
apenas nos restará um espaço para analisar estes símbolos por
outros ângulos; por exemplo, o esclarecimento do óbvio: É o que se tentou fazer aqui. E, assim
se justifica a longa passagem por Aristóteles com conceitos, aparentemente, puramente judiciais
sem a menor relação. Caso contrário, não faria o menor sentido supor que o homem da multidão
é um peixe a procura de água: Enfim, este é o fim da primeira perspectiva do conto de Poe.
A segunda perspectiva é ― como disse, no primeiro parágrafo, ― uma tentativa de
conter a pluralidade de significados que surge do conto. Como seria absurdo ― e não é
pretensão do ensaio ― analisar todas as célebres interpretações do conto de Poe, limitar-nos-
emos à apenas uma: o homem da multidão é o próprio narrador. Isto é, o homem da multidão é a
segunda face do narrador. Em outras palavras, o narrador narra seus descaminhos em terceira
pessoa.
[Poesia que, a partir de certo ponto de vista, funciona como que uma espécie de resumo do
conto de Edgar Poe. Isso se tivermos em mente que o conto de Poe, ou melhor, o homem da
multidão apresenta-nos apenas um sentido: o medo e a angústia de estar só. Por outro lado,
11 NIETZSCHE. Genealogia da moral, Prólogo, p.12.
9
Alberto Caeiro, ainda no mesmo poema, diz: “... Nem achei que houvesse mais explicação que a
palavra explicação não ter sentido nenhum.”]
10
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena. ― São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
CRUZ, Tarso do Amaral de Souza. Edgar Allan Poe e a problemática natureza do realismo.
2013. 13f. Ensaio ― Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
NIETZSCHE,Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução,notas e posfácio Paulo
César de Souza. ― São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caeiro. Edição Fernando Cabral Martins,
Richard Zenith. ― São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Seleção,apresentação e tradução José Paulo Paes.
― São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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Ensaio man of the crowd

  • 1. Duas interpretações para O homem da multidão O presente ensaio pretende analisar duas e diferentes perspectivas relacionadas ao significado extraído do conto The man of the crowd ― O homemda multidão ― de Edgar Allan Poe. Quais são os dois caminhos? O primeiro é retirar um único significado do conto, o significante, a obra ― de arte. O segundo é a árdua tentativa de conter a pluralidade de significados que pinga deste significante, o conto. É sabido que o conto de Edgar Poe é muitas vezes tomado como uma altiva crítica à arte ― e à todo o movimento ― dito realista e seu vício descritivo. Mais do que isso: a sempre insatisfeita ideia de achar que uma palavra tem um sentido inerente a ela e o leitor retira dela exatamente o seu único sentido, por assim dizer, a priori. Decerto conclui-se que há nestas duas visões modos de pensamentos diferentes: o primeiro acredita que o signo é a fusão do significante mais o seu significado: o que lembra a filosofia de Saussure. Já o segundo acredita que o signo é e apenas é significante, ou seja, um manifestador de significados. Em outros termos, um mero símbolo: o que na filosofia de Kant dizer-se ia: o fenômeno; E, isto já estaria mais para a filosofia de Lacan, que diverge símbolo de real e de imaginário, ou imaginativo ― mesmo apesar de Lacan se fundamentar na corrente estruturalista. Entretanto, o que tem o homem da multidão com isso? Ora, efetivamente, tudo. O homem da multidão é, assim como qualquer coisa, uma palavra, um significante, um símbolo. Mas o que isso quer dizer? Pois o que adianta-nos saber que o homem da multidão é uma palavra senão sabemos o que é a palavra? A palavra é, sumariamente, uma obra de arte: Arte no sentido clássico; no sentido de artista como artesão: aquele que manufatura uma coisa, um vaso, uma pintura, escultura, prosa e poesia. Isto quer dizer: há ― o que é evidente ― alguns métodos (uns caminhos) para construir uma palavra; Há métodos para a construção de uma frase; Há métodos para a construção de uma oração, de um conto, um romance, uma poesia. E, métodos diferentes para cada um deles. Desde o soneto até a epopeia clássica. Pois cada coisa há em si mesma uma singularidade única e própria: a presença destas mesmas coisas. Isto é, há em cada coisa algo de muito, muito, raro: a própria presença delas: uma coisa em si inigualável com qualquer outra. E é exatamente isso que não se deixa ler ― “es lässt sich nicht lesen” ― o homem da multidão: a vida. O homem da multidão é o fluxo continuo e aparentemente sem sentido da vida. É exatamente o quê o difere de um simples observador. Ele não narra nem descreve a vida, ele a “vive”. Já o observador, afastado da sensação do “que vive”, simplesmente descreve o que vê e o que o “real” (o descrito, o homem da multidão) parece a ele sentir. Ou seja, o que o flâneur sente é apenas a sensação de observar a complexa vida lá fora; É sentir tão somente a observação de uma realidade da qual ele não sente, pois não é a própria. O observador somente vive
  • 2. 2 (experimenta) a observação; tentando achar qualquer similaridade consigo mesmo. Mas unicamente quem ele observa é que efetivamente sente, seja lá o que este sente. É como alguém, que nunca perdeu uma coisa amada para a senhora morte, descrever a tristeza da chegada da morte para outra coisa ― sem a menor importância ao observador. Isto não é mais “viver”, com sentido de sentir, a presença da morte; É no máximo lembrar ou imaginar uma dor, uma sensação, que não se faz mais presente e por isso já é uma nova sensação: a sensação de lembrança, ou imaginação, ou desespero. Não significa, é claro, que o observador não saiba o que é a dor, mas que o momento da descrição é um momento técnico, uma arte ― como técnica. Com efeito, disse o poeta Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Pessoa, em meu socorro: “Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados como para os que o não são. Sentir é estar distraído.” 1 O mestre de Fernando Pessoa enuncia que “sentir é estar distraído”. Mas o poeta como construtor de enunciados que deixam adivinhar sentidos, ou ainda, como o construtor de uma equação que deixa margem apenas para uma sensação x, o poeta que sabe muito bem o que quer causar e limita de tal modo o perímetro de sensações,e até mesmo de sentido, de sua arte com a finalidade de evitar a multiplicidade de efeitos e para a glória de sua arte manifestar uma e apenas uma sensação, seja ela a felicidade, a esperança, a dor ou o desespero do maldito refrão de um corvo, faz isso metodicamente calculado, mesmo que seja um raciocínio inconsciente: como o de uma criança que beija (causando lisonjeio, prazer) a mamãe e depois lhe pede alguns trocadinhos (enfim, evidenciando seu primeiro interesse...). Isto é, ninguém tenta conquistar o seu prazer enunciando primeiramente o seu prazer antes de tentar causar prazer a quem se almejou conquistar. Em outras palavras, ninguém diz “Olá, eu quero te comer. Você é linda!” Mas justamente o contrário: “Você é linda! Eu gosto muito de você! Eu te amo!” e aí, depois de a receptora acreditar que o enunciador quer o bem dela, ou seja, depois que o enunciador convenceu a de que está disposto a lutar pelo prazer da própria receptora da mensagem, o enunciador solta “desinteressadamente”: “Eu quero te comer.” Com efeito, torna-se evidente que a elaboração de um enunciado é uma arte, pois nem sempre se consegue expressar o que se pretendeu expressar: Aristóteles não escreveu sua retórica à toa. E, há sempre alguns fundamentos que se deve levar em consideração. Como, por exemplo, o caráter do receptor da mensagem, o que se quer causar, e quais sensações a priori são manifestadas quando são expostas tais coisas (a mensagem) para o receptor. Em linhas gerais, se você pretende defender a causa de Hitler a um judeu você deve apelar para algo que conhecidamente à ideologia do povo judeu perdoaria ou então lhe traria algum benefício, como, por exemplo, a terra prometida conquistada pelo ato da misericórdia. E é claro utilizar argumentos de bom valor naquela cultura 1 PESSOA, F., A. C., parte de “Poemas Inconjuntos.”.
  • 3. 3 específica. Não se trata mais de ganhar pela razão, mas pela comoção ― objetivada, e muito bem calculada, pela razão. “Pois é óbvio que, se a lei escrita é contrária aos fatos, será necessário recorrer à lei comum e a argumentação de maior equidade e justiça... Mas, se a lei escrita favorece a nossa causa, convirá dizer que a fórmula ‘na melhor consciência’ não serve para o juiz pronunciar sentenças à margem da lei, mas apenas para ele não cometer o perjúrio no caso de ignorar o que a lei diz;” 2 Isto quer dizer: há uma coisa em si que quando exposta sempre causa dor. O que é? A falta do prazer. Agora, bastará descobrir em quais coisas está o prazer, a honra, a dignidade, o orgulho deste receptor e fazer com ele o que se tiver capacidade para fazer. E, isto é coisa que para a voz de Dupin e o ídolo de Baudelaire parece-me bastante conhecido. E é claro, isto não significa facilidade. Mas a este momento o leitor pode estar se perguntando o que tudo isto tem de relação com as duas perspectivas mencionadas no começo do ensaio. Ora, é muito simples, porque “os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados como para os que o não são.” Efetivamente, o flâneur não vive ― e nunca poderá senão representar ― a realidade de estar lá, na multidão. Para chegar-se a tal sensação de “realização” será necessário trilhar o caminho e ser assim por ele trilhado. A arte, desde seu nascimento, será sempre um símbolo que está destinado ao fracasso da representação daquilo que ela tenta ― se tenta ― descrever: a realidade que o homem da multidão está, ou seja, a realidade que ele vive e que está nela distraído. Significa: ver uma pintura de uma praia não é estar na, ou muito menos sentir a, praia. Assim como ver, ou ler, a multidão, a “realidade”, não é necessariamente estar nela. E, bem mais que isso: Como é por dentro outra pessoa Quem é que o saberá sonhar? A alma de outrem é outro universo Com que não há comunicação possível, Com que não há verdadeiro entendimento. Nada sabemos da alma Senão da nossa; As dos outros são olhares, São gestos, são palavras, Com a suposição de qualquer semelhança No fundo. 3 Enfim, depois desta longa introdução podemos nos atentar a primeira perspectiva: retirar um único significado do conto, o significante, a arte. Isto é, o que Edgar Poe quis dizer com este conto? Iremos, como não diria Alberto Caeiro, descobrir o mistério das cousas? Não. Provavelmente não iremos. O máximo que faremos é analisar, sumariamente, uma interpretação, meio que psicótica, do conto do mestre inconteste do terror. E para isto é necessário supor: Suponhamos que o homem da multidão sente imenso prazer em sentir-se estar na multidão. É claro, esta suposição não se trata de qualquer tipo de intuição sem fundamento. 2 ARISTÓTELES. Retórica, Livro 1, Provas não técnicas na retórica judicial, 1375b 73. 3 PESSOA, F., poema “Como é por dentro outra pessoa”.
  • 4. 4 Mas uma intuição com método. E, um método um tanto psicótico por procurar nos menores detalhes da narrativa algum significado implícito como que querendo se explicitar. Refiro-me ao regular comportamento do homem da multidão, apesar de estranho. Antes de iniciar a leitura do conto nos deparamos com uma citação, como não é raro nos contos de Poe. E, em geral, estas citações funcionam, sob certa interpretação, como uma espécie de “moral da história” antecipada; parecendo até que o conto foi feito para validar a máxima. A máxima que antecipa o homem da multidão é de La Bruyère. E diz: “Essa grande infelicidade de não poder estar sozinho.” 4 . E, para causar-nos ainda mais mistério, o narrador na primeira oração do conto diz que “já se disse com propriedade” de certo livro germânico a seguinte expressão: “es lässt sich nicht lesen”5 :“Há certos segredos que não consentem ser ditos.” Mais a frente veremos que isso encaixa como luva customizada ao próprio desfecho do conto. Detenhamo-nos agora a seguir os curiosos e “desinteressados” passos d’O homem da multidão. The man of the crowd, resumidamente, é uma pequena história (conto) de um homem que observa de dentro de um café, em Londres, a movimentação de pessoas do lado “de fora” dos vidros do café, isto é, na rua. O narrador, o próprio observador, começa a categorizar os demasiados tipos de caráteres pela simples observação da aparência das pessoas ― o que, hoje, denominamos, negativamente, preconceito. É exatamente isso o que ele faz: julga o livro pela capa ― E parece fazer muito bem. Havia passantes, por exemplo, que “seus trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, fidalgos, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas ― os eupátridas e os lugares-comuns da sociedade ―...” 6 . Já se passara uma vasta quantidade de gente, e até o momento o narrador tem descoberto facilmente o significado preciso para cada palavra que passa em sua leitura. Podemos dizer que estes passantes são apenas e simplesmente texto-comum. Contudo, depois de certa quantidade de páginas, a noite se espreguiça e sai à rua. A presença da noite junto ao efeito de luz causado pelos lampiões a gás levam o narrador a observar os morfemas de cada palavra, suas faces. De súbito depara-se “com um semblante que, de imediato, se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão;... Enquanto tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame,analisar o significado que sugeria,nasceram de modo confuso e paradoxal...” 7 Basta por aqui. Essa é a primeira avaliação do homem da multidão. Imediatamente observa-se na leitura uma diferença muito clara: Podemos dizer que o homem da multidão, diferentemente do lugar-comum (do simples texto), é poesia: O narrador diz: “nasceram de modo confuso e paradoxal”: exatamente como uma poesia, muitas vezes, é a primeira vista: confusa e paradoxal. Nesse momento, entusiasmado com o verso que o “peito do 4 “Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul.” 5 “Não se deixa ler.”, ou ainda “it does not permit itself to be read.” 6 POE, 2008, p.259. 7 POE, 2008, p.263.
  • 5. 5 velho lhe sugeria”, o narrador veste seu sobretudo e se determina a seguir, a decifrar, a poesia, o homem da multidão. O narrador segue o homem da multidão durante quase dois dias, e no fim do segundo, “aborrecido mortalmente” desisti de entendê-lo e diz em pensamentos: “Esse velho é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito de seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais repulsivo que o Hortulus Animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que es lässt sich nicht lesen.”8 . E assim termina o conto de Poe: sem sentido algum, ou, o sentido não se deixa ler. Em geral, é assim que se resume O homem da multidão. E, a partir daí alguns leitores enxergam no conto um ensaio filosófico que avalia a natureza descritiva do realismo indicando a sua limitação e afirmando que talvez essa limitação seja exatamente uma mercê. Porém, esta leitura não se atentou a peculiaridade do comportamento das rimas do homem da multidão, digo, dos seus passos. Disse anteriormente que o obscuro comportamento do velho decrépito, o homem da multidão, é um comportamento regular, ainda que incomum. E, obviamente, pode ser visto com certo tipo de lógica. Qual é esta lógica? Vamos ao texto. ... Como nunca voltou a cabeça para trás”, o homem da multidão, “não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa, que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua, repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido... Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer... Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circuito da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes;... Nesse exercício gastou mais uma hora... o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou numa travessa comparativamente deserta. Caminhou apressado por cerca de quatrocentos metros, comuma disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; ” Entramos numa feira cheia de gente, “e ali retomou ele suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, 8 POE, 2008, p.267.
  • 6. 6 sem propósito definido,... Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho e, no mesmo instante, vi um estremecimento percorrer- lhe o corpo. Saiu apressadamente para a rua.” Enfim, voltamos para a avenida onde ficava situado o Hotel D... “esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. As luzes ainda brilhavam, mas a chuva caía pesadamente e havia poucas pessoas à vista. O estranho empalideceu. ... chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade. Estava prestes a fechar, os espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia de seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstância de suas ações. Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação voltarama aparecer... (POE, 2008, p.264-266). Perdoe-me a longa citação, mas ainda seria melhor mais. Porém, não façamos. A questão principal é: O narrador diz não compreender a inconstância das ações do velho. Mas a palavra ‘inconstância’ é uma tradução optada, neste caso, por José Paulo Paes, o tradutor desta versão. No original a palavra usada é ‘waywardness’ que etimologicamente sofreu um encurtamento de ‘aweiward’ “turned away,” de away + -ward.9 Este termo pode ser traduzido também como ‘descaminhos’. À fins de tradução, as duas são válidas e suficientes. Mas o erro está em pensar que o comportamento do homem da multidão é inconstante. Não é. Seu procedimento é o mesmo desde o início. Suas rimas são muito bem pautadas, e foram destacadas na citação pelo modo itálico. Sua ação é constante e tem uma frequência muito exata: Ele foge da pavorosa solidão e procura, como a morte o fim da vida, a companhia; e a descrição do observador nos auxilia a pensar, por relação a nós mesmos, que o moribundo sente amor à multidão, consequentemente horror à solidão. Algumas linhas atrás disse que o homem da multidão, o sujeito mesmo e não o conto, pode ser encarado como poesia: Não há melhor hora para citar uma poesia; mais uma vez, Alberto Caeiro: “O amor é uma companhia. Já não sei andar só pelos caminhos, Porque já não posso andar só.” É inconteste a proximidade do homem da multidão com o poema acima. Se considerarmos que o amor é um prazer, podemos entender e dar razão ao aparente desinteresse do velho. Já dissera 9 Fonte: http://www.etymonline.com/index.php?term=wayward
  • 7. 7 Aristóteles que “ninguém quer algo senão quando crê que é bom.” 10 E aparentemente o pobre diabo sente uma angústia pavorosa em estar só. O narrador nos conta: “I saw the old man gasp as if for breath while he threw himself amid the crowd; but I thought that the intense agony of his countenance had, in some measure, abated.” A multidão está para o velho assim como o ar está para a vida humana. O homem da multidão meio que busca na multidão o seu ar, o seu prazer ― , o que ultimamente, tem-se nomeado a vida propriamente dita. O decrépito não se alimentara nem dormira por duas noites seguidas. Apenas se nutria com o estranho e quase essencial prazer, seu alimento basal, de mergulhar na multidão; como um peixe que procura água, pois não tem vida fora dela. É uma realidade estranha ao observador. Sem nada de semelhante a sua. Será? Decerto não. Se valorarmos a presença da multidão como sua própria satisfação de prazer, semelhança que não é muito longínqua de se avistar devido ao comportamento do velho, notamos que por mais estranha que se pareça esse prazer, e ainda que tolamente considerado um prazer insignificante, temos muito em comum com o homem da multidão: a própria vida. Responda-se o que procuramos nestas curtas alamedas da existência, independente de fazer ou não sentido a quem observa, senão exatamente o que o homem da multidão procura: o alívio. Quantos circuitos já não repetimos e repetiremos incessantemente e incansável vezes a procura de nossa paz? Quantas guerras ou caminhos repulsivos e putrefatos repletos da mais baixa e viva imoralidade não nos dispomos a rastejar em busca da satisfação de prazer dos nossos amores e nosso consequente prazer? Pois agrada agradar a quem amamos. O homem da multidão não é senão a estranheza de nos olharmos, e nos desconhecermos. O homem da multidão somos nós a nós mesmos: um estranho, uma palavra que ainda não se significou, um espelho que mostra-nos como não queremos nos convencer que somos. Antes de anunciar o fim da primeira perspectiva, a extração do mero significado do conto como umreflexo da estranha condição humana da fuga da dor e a infatigável busca do prazer; o que é, evidente, uma perspectiva muito geral, cabe ressaltar que não é qualquer literatura que apresenta tal densidade que permite nos afundar em tal sentimento profundo de similaridade com o velho decrépito homem da multidão. Uma coisa é identificar-nos com os bons moços, os heróis, ou os guerreiros ― da paz. Outra é identificar-nos com o Lobo Mau, ou Brás Cubas, ou, ainda, o homem subterrâneo, e, é claro, o absurdo homem da multidão. Contudo, talvez ainda falte ao leitor a relação de Aristóteles e o conto. Não se trata do conto, mas do tipo de leitura. Acredito que Sherlock Holmes disse que “não há nada mais ilusório que o óbvio.” E, Aristóteles trata o óbvio com muito carinho. Isto é, esta interpretação do conto toma como base que a multidão é um prazer, um “amor”, e talvez a própria essência, ao homem da multidão. E, Aristóteles, em sua Retórica, evidencia, ou deixa-nos adivinhar, o que é, em alguns casos, o amor: Um desinteressado interesse. Repito: “não há nada mais ilusório que o 10 ARISTÓTELES. Retórica, Livro 1, Retórica judicial: a injustiça e suas coisas, 1369a 53.
  • 8. 8 óbvio.” Com efeito, se amar é um prazer, significa que o outro (a quem se ama) é o seu próprio bem, e por isso se ama, e por isso se faz bem ao outro, porque é o seu próprio bem; ou seja, o amor, aparentemente,um desinteressado querer bem ao outro não passa de um interessado fazer bem a si mesmo, uma ação ordinária que Leibniz, por exemplo, faz nos pensar que é uma atitude nobre: fazer bem a si mesmo. Aludo à célebre frase de Leibniz, o delírio de alguns românticos: “Amar é encontrar na felicidade do outro a própria felicidade.” Isso explica a necessidade dos dois longos exemplos anteriores: do garoto e da mãe, e, o proceder com a lei e o juiz: há sempre um interesse. Para esclarecer, cabe aqui uma citação a Nietzsche: ...; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do homem). E se o contrário fosse a verdade? E se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro? (NIETZSCHE, 2009, p.12). Portanto: E se o “amor” fosse na realidade um “ódio” embelezado de prazer? Não cabe aqui a resposta, mas quando se toma “o valor desses “valores” como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento” 11 apenas nos restará um espaço para analisar estes símbolos por outros ângulos; por exemplo, o esclarecimento do óbvio: É o que se tentou fazer aqui. E, assim se justifica a longa passagem por Aristóteles com conceitos, aparentemente, puramente judiciais sem a menor relação. Caso contrário, não faria o menor sentido supor que o homem da multidão é um peixe a procura de água: Enfim, este é o fim da primeira perspectiva do conto de Poe. A segunda perspectiva é ― como disse, no primeiro parágrafo, ― uma tentativa de conter a pluralidade de significados que surge do conto. Como seria absurdo ― e não é pretensão do ensaio ― analisar todas as célebres interpretações do conto de Poe, limitar-nos- emos à apenas uma: o homem da multidão é o próprio narrador. Isto é, o homem da multidão é a segunda face do narrador. Em outras palavras, o narrador narra seus descaminhos em terceira pessoa. [Poesia que, a partir de certo ponto de vista, funciona como que uma espécie de resumo do conto de Edgar Poe. Isso se tivermos em mente que o conto de Poe, ou melhor, o homem da multidão apresenta-nos apenas um sentido: o medo e a angústia de estar só. Por outro lado, 11 NIETZSCHE. Genealogia da moral, Prólogo, p.12.
  • 9. 9 Alberto Caeiro, ainda no mesmo poema, diz: “... Nem achei que houvesse mais explicação que a palavra explicação não ter sentido nenhum.”]
  • 10. 10 Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. ― São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. CRUZ, Tarso do Amaral de Souza. Edgar Allan Poe e a problemática natureza do realismo. 2013. 13f. Ensaio ― Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. NIETZSCHE,Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução,notas e posfácio Paulo César de Souza. ― São Paulo: Companhia das Letras, 2009. PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caeiro. Edição Fernando Cabral Martins, Richard Zenith. ― São Paulo: Companhia das Letras, 2005. POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Seleção,apresentação e tradução José Paulo Paes. ― São Paulo: Companhia das Letras, 2008.