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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                         
                                                                                                 
                                                                Luciano Marcos Dias Cavalcanti ∗ 
 
 
RESUMO:  Este  ensaio  busca  verificar  como  Chico  Buarque  utiliza  o  motivo  do  carnaval 
brasileiro na elaboração de sua poética. 
Palavras‐Chave: Chico Buarque, carnaval, poética. 
 
 
        A presença  da temática do carnaval é uma constante nas canções de Chico 
Buarque,  situação  que  não  causa  nenhum  estranhamento,  já  que  se  trata  de  um 
compositor  de  Música  Popular  Brasileira  e,  portanto,  de  alguém  que  está 
diretamente ligado à cultura popular, aos sambistas e à própria tradição do samba – 
estilo musical que é a essência do carnaval. Chico Buarque, além de contemplar em 
diversas  composições  a  temática  do  Carnaval,  tem  ainda  um  LP  com  o  nome 
significativo de Quando o carnaval chegar (1965), no qual se dedica especificamente 
ao tema.  
        Para discutir o tema do carnaval nas canções de Chico Buarque analisaremos 
algumas canções do compositor que se referem diretamente à temática do carnaval 
e o contexto cultural brasileiro em que esta festa se insere. 
        A  festividade  do  carnaval  pode  ser  considerada  um  ritual  nacional  por 
excelência,  isso  porque  este  rito  dramatiza  valores  globais  da  nação  brasileira.  No 
Brasil, o carnaval é generalizado, não pertence apenas a uma cidade ou Estado, mas 
a todo o país. Neste ritual, a sociedade está orientada para o evento que centraliza 
toda  a  atividade  nacional,  sendo  decretado  feriado  nacional  na  época  da  festa; 
consequentemente, todos os cidadãos abandonam o trabalho e uma grande parte 
vai “pular” o carnaval.  
        O carnaval apresenta uma particularidade em relação aos demais ritos (como 
o  religioso,  o  da  parada  militar,  o  do  dia  da  independência,  etc.),  ele  se  realiza 
preponderantemente de modo informal, sendo caracterizado por uma situação de 
espontaneidade.  O  cotidiano  massacrante  do  dia‐a‐dia  é  substituído  por  um 
momento  extraordinário,  marcado  por  transformações  no  comportamento  das 
pessoas. A  rotina maçante é trocada por momentos de alegria e descontração, e a 
vida  diária  passa  a  ser  vista  como  negativa,  pois  nesta  sofre‐se,  vive‐se  em  uma 
rotina  maquinal,  em  um  mundo  hierárquico  com  comportamentos  ditados  pelas 
normas morais vigentes.  
        No  desfile  carnavalesco,  quem  participa  ativamente  das  escolas  de  samba 
como  componentes  são  as  pessoas  das  camadas  mais  baixas  e  marginalizadas  da 


∗
     Doutor em Teoria e História Literária UNICAMP/IEL – E‐mail: bavarov@terra.com.br 


                   VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá 
              Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 
                                        www.revistavoos.com.br 
                                                [103–114]
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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                     
                                                                                                          

    sociedade.  Embora  as  escolas  reúnam,  além  de  pobres,  milionários,  astros  do 
    futebol,  da  televisão  e  do  cinema.  Mas  o  que  chama  “atenção,  nesses  desfiles  (a 
    inversão constituída entre o desfilante, um pobre, geralmente negro ou mulato) é a 
    figura  que  ele  representa  no  desfile  (um  nobre,  um  rei,  uma  figura  mitológica)” 
    (DA’MATTA, 1997: 58). 
            O  carnaval  talvez  seja  o  único  momento  em  que  o  pobre  marginalizado  e 
    desrespeitado  pode  se  sentir  importante  e  respeitado  como  os  astros  de  TV  e  as 
    pessoas  ricas.  Neste  momento,  através  do  processo  de  inversão  carnavalesca,  o 
    subalterno  se  iguala  aos  seus  dominadores  e  passa,  mesmo  que  por  um  curto 
    período,  a  não  se  sentir  inferior.  Agora,  os  marginalizados  podem  ocupar  lugares 
    privilegiados,  
                  
                              estão  altamente  conscientes  do  fato  de  que  nos  seus  ensaios  e 
                              durante  o  carnaval  são  eles  os  “doutores”,  os  “professores”.  Com 
                              essa  possibilidade,  podem  inverter  sua  posição  na  estrutura  social, 
                              compensando sua inferioridade social e econômica, com uma visível 
                              e  indiscutível  superioridade  carnavalesca.  Essa  superioridade  se 
                              manifesta  no  modo  “instintivo”  de  dançar  o  samba  que  o  senso 
                              comum  brasileiro  considera  um  privilégio  inato  da  “raça  negra” 
                              como categoria social. (DA’MATTA, 1997: 167) 
             
            Os  pobres  e  os  negros  marginalizados,  que  em  seu  cotidiano  costumam 
    portar‐se de cabeça baixa, receber ordens, sofrer diversos tipos de preconceitos, no 
    carnaval podem se exibir como fazem os ricos com suas roupas, carros importados, 
    etc.,  mas  de  maneira  mais  nobre:  eles  se  exibem  com  sua  capacidade  de  dançar, 
    sambar  com  extrema  habilidade,  sensualidade  e  criatividade.  Como  bem 
    exemplificam os seguintes versos da canção de Chico:   
     
                              E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando 
                              Que eu vou aturar 
                              Tou me guardando pra quando o carnaval chegar 
                              E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar 
                              Tou me guardando pra quando o carnaval chegar 
                                                  (“Quando o carnaval chegar”) 
             
            O  Brasil  é  caracterizado  como  o  país  do  Carnaval.  No  carnaval,  as  posições 
    sociais  são  invertidas.  Em  uma  sociedade,  como  a  brasileira,  marcada  pela 
    desigualdade  social,  pelo  preconceito  racial  velado,  o  carnaval  se  torna  uma  festa 
    nacional de grande importância porque é somente nesta festa popular e, talvez, no 
    futebol  (quando  a  seleção  participa  de  jogos  internacionais)  que  uma  grande 
    parcela  da  nação  brasileira,  pode‐se  dizer,  se  une  em  uma  mesma  “corrente”  de 
    confraternização.  
            A  utilização  do  samba,  uma  forma  musical  vinda  de  “baixo”,  para  o 
    relacionamento social também se mostra muito significativa para se pensar como se 


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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                         
                                                                                                            

    faz  a  união  popular  no  Brasil.  Essa  forma  musical,  que  segundo  nossa  mitologia 
    nasceu  em  áreas  fronteiriças  da  sociedade  brasileira  –  nos  porões  e  senzalas,  nas 
    favelas,  em  meio  à  pobreza  dos  seus  negros  e  miseráveis  habitantes  –  tornou‐se 
    uma  forma  de  unir  pessoas  de  todas  as  classes.  Assim,  a  união  dos  cidadãos 
    brasileiros é significativamente feita por “baixo”, já que 
                      
                                  o  samba,  então,  como  tudo  o  que  vem  de  “baixo”,  adquire  uma 
                                  aura  sedutora  e  abrangente.  Tanto  o  samba  quanto  os  grupos  do 
                                  carnaval  (sobretudo  as  escolas  de  samba)  estão  voltadas  para 
                                  “cima”  na  busca  da  conversão,  aprovação  e  legitimação  dos 
                                  segmentos  superiores  da  sociedade.  Assim,  o  sistema  se  integra 
                                  também  nesse  nível,  quando  a  sociedade  se  individualiza.  Pois 
                                  agora,  dividida  em  grupos  bem  visíveis,  ela  se  integra  novamente 
                                  adotando como forma generalizável  e universal tudo o que nasceu 
                                  “embaixo”. (DA’MATTA, 1997: 143‐4) 
                 
           Após  estas  breves  considerações  a  respeito  do  carnaval  podemos,  então, 
    começar a refletir sobre o tema do carnaval  a partir de algumas canções de Chico 
    Buarque. 
           Uma  canção  que  talvez  se  assemelhe  ao  mesmo  ambiente  de  libertação  e 
    tolerância  quanto  aos  anseios  do  ser  humano,  proporcionado  por  uma  situação 
    utópica  própria  do  carnaval  é  sua  marcha  carnavalesca  intitulada  “Não  existe 
    pecado ao sul do equador”:  
     
                                  Não existe pecado do lado de baixo do equador 
                                  Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor 
                                  (Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor) 1 
                                  Me deixa ser teu escravo, capacho, teu cacho 
                                  Um riacho de amor 
                                  Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo 
                                  Que eu sou professor 
                                                 (grifos nossos) 
                 
    O  primeiro  verso  da  canção  já  nos  revela  o  ambiente  libertário  onde  o  Brasil  está 
    situado:  “do  lado  de  baixo  do  equador”,  espaço  onde  não  existe  pecado.  Esta 
    composição  também  nos  remete  a  uma  espécie  de  paraíso  perdido  ou  Idade  de 
    Ouro nos trópicos, já que nos situa geograficamente abaixo da linha imaginária do 
    equador. Um mundo permissivo, da liberdade sexual, da alegria, por muito tempo 
    acreditado  pelos  viajantes  europeus  que,  provavelmente,  vêem,  até  hoje,  o  Brasil 
    como uma nação exótica de mulheres seminuas prontas para o sexo sem pudor. A 
    exemplo de Pero Vaz de Caminha que há 500 anos descreve o ambiente paradisíaco 
    encontrado  no  Brasil  com  suas  belezas  naturais  e  exuberantes  e  suas  índias  nuas, 
    com suas “vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de 
    1
         Verso original, vetado pela Censura.  


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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                     
                                                                                                  

    muito  bem  olharmos,  não  tínhamos  nenhuma  vergonha.”  (Apud  CORTESÃO, 
    s/d:143).  
           Nesse ambiente paradisíaco não pode haver tristeza.   
     
                              Deixa a tristeza prá lá, vem comer, me jantar 
                              Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá 
                              Vê se me usa, me abusa, lambuza 
                              Que tua cafuza 
                              Não pode esperar 
                              Deixa a tristeza prá lá, vem comer, me jantar 
                              Sarapatel, caruru, tucupi, tacaca 
                              Vê se me esgota, me bota na mesa 
                              Que tua holandesa 
                              Não pode esperar 
             
            Misturado  a  alimentos  estritamente  pertencentes  à  culinária  nacional, 
    alimentos  afrodisíacos  “sarapatel,  caruru,  tucupi,  tacacá”,  portanto  eróticos,  o 
    convidado é chamado a comer o alimento e a mulher; é um ambiente tipicamente 
    semelhante ao bacanal, festa de Baco em que se come, se bebe e se pratica o ato 
    sexual em todas as suas potencialidades. 
            Segundo  José  Miguel  Wisnik,  “a  frase‐título  é  de  um  viajante  renascentista 
    do século XVI (...). Para a Europa colonialista as colônias tropicais podiam ser o cu‐
    do‐mundo, mas eram o lugar utópico onde o corpo se libertava das sanções da cara 
    européia, protestante ou contra‐reformista”. (Apud CARVALHO, 1984: 65)  
            O  erotismo,  portanto,  é  uma  temática  de  extrema  importância  para  a 
    realização do rito dionisíaco que é representado pelo carnaval; nesse ambiente, não 
    há  lugar  para  o  amor  espiritual  e  romântico,  como  diria  Manuel  Bandeira  em  seu 
    poema  Arte de amar: “Se queres sentir a felicidade de amor, esquece a tua alma./A 
    alma é que estraga o amor./ (...) /As almas são incomunicáveis.//Deixa o teu corpo 
    entender‐se com outro corpo/Porque os corpos se entendem, mas as almas não.”   
            Em  “Sonho  de  um  carnaval”,  o  carnaval  é  visto  como  um  momento 
    temporário de libertação e é, por isso, que temos, na primeira estrofe, o significado 
    de carnaval atrelado ao desengano.  
     
                           Carnaval, desengano 
                           Deixei a dor em casa me esperando 
                              E brinquei e gritei e fui vestido de rei 
                              Quarta‐feira sempre desce o pano. 
                                                       (grifos nossos) 
             
           A oposição entre a rua (onde se vai brincar e gritar) e a casa (onde a dor fica 
    esperando)  é  de  fundamental  importância,  podendo  nos  servir  como  instrumento 
    de análise desta canção. Da’Matta chama a atenção para o fato de que  
                  


                     VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá 
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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                      
                                                                                                            

                              a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, 
                              acidentes  e  paixões,  ao  passo  que  a  casa  remete  a  um  universo 
                              controlado,  onde  as  coisas  estão  nos  seus  devidos  lugares  (...).  Na 
                              casa,  temos  associações  rígidas  e  formadas  pelo  parentesco  e 
                              relações de sangue; na rua, as relações têm um caráter indelével de 
                              escolha, ou implicam essa possibilidade. (DA’MATTA, 1997: 90) 
             
            É por isso que somente na rua o folião pode ser feliz. Na rua, o rei é o folião, 
    diferentemente  de  quando  está  em  casa  onde  o  rei  é  o  seu  pai  ou  seus  parentes 
    mais  velhos,  aqueles  que  expressam  maior  autoridade.  Em  casa  as  relações  são 
    regidas pela hierarquia familiar que se ordena seqüencialmente da seguinte forma: 
    o pai (o rei), a mãe (a rainha), o irmão mais velho (o primogênito sucessor do rei), 
    etc. No carnaval de rua, o indivíduo veste a fantasia que quiser, rompendo com essa 
    hierarquia rígida da família.  
            Mas  esse  sonho  de  um  carnaval  é  fugaz,  pois  logo  a  quarta‐feira  de  cinzas 
    chega e o folião está consciente disso. A realização do carnaval brasileiro em quatro 
    dias cria um momento especial, mágico, momento relativamente curto para quem 
    só tem neste período a possibilidade de diversão, de vestir a fantasia e de ser rei. No 
    carnaval tudo pode acontecer, pois a inversão de papéis sociais traz um período de 
    liberdade  que  possibilita  uma  satisfação  muito  grande,  por  isso  muito  eufórica. 
    Como  nos  diz  o  poeta,  na  quarta‐feira  de  cinzas  tudo  acaba,  tudo  morre. 
    Diferentemente do carnaval – que é a festa da vida, na qual os foliões, os bailes de 
    fantasias,  as  escolas  de  samba  abusam  de  enfeites  e  do  colorido  exuberante  das 
    cores  fortes  e  brilhantes,  metaforizando  a  própria  vida  –  a  quarta‐feira  de  cinzas 
    representa o luto, a morte. Inicia‐se o período da quaresma, tempo da abstinência e 
    da contenção. É o rito religioso hierárquico, opressor e dogmático que representa a 
    morte.   
                                    O carnaval  é o rito da vida, da união entre as pessoas, 
                            da transformação da tristeza em alegria, do adulto racional na 
                            criança instintiva. Neste momento, o que se busca é a alegria, 
                            a  música,  a  felicidade,  o  prazer  sexual.  Juntos,  homens  e 
                            mulheres buscam esse momento de libertação; são iguais, sem 
                            distinção  de  classes,  credos  e  raças  eles  realizam  o  sonho  de 
                            união em um único cordão: em que todas as pessoas estejam 
                            irmanadas,  realizando‐se  em  um  mundo  utópico  no  qual  não 
                            existiriam  os  diversos  tipos  de  preconceitos  sociais,  raciais, 
                            sexuais.  E  é  por  isso  que  o  carnaval,  no  primeiro  verso  da 
                            última estrofe da canção, já não é mais ilusão, mas esperança, 
                            pois somente no carnaval é possível esta total união popular: 
                               
                              Carnaval, desengano 
                              Essa morena me deixou sonhando 
                              Mão na mão, pé no chão 



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                Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 
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                                                  [103–114]
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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                     
                                                                                                  

                              E hoje nem lembra não 
                              Quarta‐feira sempre desce o pano. 
                                       
                              Era uma canção, um só cordão 
                              E uma vontade 
                              De tomar a mão 
                              De cada irmão pela cidade. 
                              No carnaval, esperança 
                              Que gente longe viva na lembrança 
                              Que gente triste possa entrar na dança 
                              Que gente grande saiba ser criança. 
                                             (grifos nossos) 
             
           A  canção  “Vai  passar”,  de  Chico,  faz  uma  espécie  de  síntese  do  significado 
    global do carnaval para muitos de seus participantes.  
     
                              E um dia, afinal 
                              Tinham direito a uma alegria fugaz 
                              Uma ofegante epidemia 
                              Que se chamava carnaval 
                              O carnaval, o carnaval 
                              (Vai passar) 
                              Palmas pra ala dos barões famintos 
                              O bloco dos napoleões retintos 
                              E os pigmeus no bulevar 
                              Meu Deus, vem olhar 
                              Vem ver de perto uma cidade a cantar 
                              A evolução da liberdade  
                              Até o dia clarear 
                              Ai, que vida boa, olerê 
                              Ai, que vida boa, olará 
                              O estandarte do sanatório geral vai passar 
                              Ai, que vida boa, olerê 
                              Ai, que vida boa, olará 
                              O estandarte do sanatório geral  
                              Vai passar.  
                                                       (grifos nossos) 
             
            Como podemos ver, o carnaval é considerado um direito do povo sofredor, 
    que  pelo  menos  em  um  dia  do  ano  tem  “direito  a  uma  alegria  fugaz”  que  se 
    transforma  em  uma  epidemia  em  que  toda  cidade  vai  cantar  junta  a  conquista  da 
    liberdade. Uma liberdade que dura pouco, até o amanhecer, mas uma liberdade de 
    direito  do  povo  que  comumente  vive  todo  seu  tempo  em  condição  antagônica  à 
    liberdade.  




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O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                     
                                                                                                     

           Outro  tema  relevante  que  podemos  notar  em  relação  ao  carnaval  diz 
    respeito à questão das máscaras utilizadas como fantasia nos bailes carnavalescos e 
    no  carnaval  de  forma  geral.  Como  elementos  que  compõem  a  fantasia,  podemos 
    ver sua presença na canção “Noite dos Mascarados”. Nesta canção, podemos notar 
    um  diálogo  entre  um  mascarado  e  uma  mulher  em  um  baile  de  carnaval,  o  que 
    mostra que a composição se utiliza do fato de as personagens estarem mascaradas 
    como  contexto  para  reflexões  acerca  das  relações  pessoais  fora  do  cenário 
    carnavalesco. 
     
                              Quem é você? 
                              Adivinhe, se gosta de mim 
                              Hoje os dois mascarados 
                              Procuram os seus namorados 
                              Perguntando assim: 
                              Quem é você, diga logo 
                              Que eu quero saber o seu jogo 
                              Que eu quero morrer no seu bloco 
                              Que eu quero me arder no seu fogo. 
                      
            De  acordo com  Bakhtin,  na  época  renascentista  começa  a  desenvolver‐se  a 
    cultura  festivo‐cortês  da  mascarada  que  reúne  em  si  toda  uma  série  de  formas  e 
    símbolos  carnavalescos.  Em  seguida,  começa  a  desenvolver‐se  uma  linha  mais 
    ampla (não mais cortês) de festejos e divertimentos, que o autor denomina de linha 
    mascarada. “Esta conserva algumas liberdades e reflexos distantes da cosmovisão 
    carnavalesca. Muitas formas carnavalescas foram arrancadas de sua base popular e 
    saíram  da  praça  pública  para  essa  linha  camaresca  da  mascarada  que  existe  até 
    hoje”.  (BAKHTIN, 1997: 131)   
            Em torno de 1550 instala‐se a commedia dell’arte que possui uma integridade 
    de  leis  estéticas  especiais,  um  critério  próprio  de  perfeição  não  subordinado  à 
    estética clássica da beleza e do sublime. A função da  commedia dell’arte era servir 
    como  instantes  de  diversão  e  como  fórmula  de  catarse.  “Através  do  riso  e  da 
    caricatura, o pobre podia rir do rico e da autoridade, numa inversão carnavalizante. 
    A  violência  social  se  mistura  à  violência  erótica,  dentro  da  melhor  linha  da  sátira 
    popular.” (SANT’ANNA, 1995: 218)  
            No  carnaval,  a  vestimenta  apropriada  é  a  fantasia,  um  artefato  que  nos 
    revela um duplo sentido, pois tanto se refere às ilusões e idealizações da realidade 
    quanto  aos  paramentos  utilizados  somente  no  carnaval.  Assim,  “a  fantasia 
    carnavalesca  revela  muito  mais  que  oculta,  já  que  uma  fantasia  representa  um 
    desejo escondido, faz uma síntese entre o fantasiado, os papéis que representa e os 
    que gostaria de representar”. (DA’MATTA,1997: 61)  
            Mais  explicitamente,  podemos  ver  nesta  canção  de  Chico  Buarque  a 
    possibilidade  da  multiplicidade  do  “eu”  a  partir  do  ambiente  fantasioso 
    proporcionado pelo carnaval. 
     


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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                      
                                                                                                            

                              Eu sou seresteiro 
                              Poeta, cantor 
                              O meu tempo inteiro 
                              Só zombo do amor 
                              Eu tenho um pandeiro 
                              Só quero um violão 
                              Eu nado em dinheiro 
                              Não tenho um tostão 
                              Fui porta‐estandarte 
                              Não sei mais dançar 
                              Eu modéstia parte 
                              Nasci para sambar 
                              Eu sou tão menina 
                              Meu tempo passou 
                              Eu sou Columbina 
                              Eu sou Pierrot 
                                      (grifos nossos) 
             
           Bakhtin  diz  que  o  motivo  do  uso  da  máscara  é  o  mais  completo,  mais 
    carregado de sentido da cultura popular. 
                  
                              A  máscara  traduz  a  alegria  das  alternâncias  e  das  reencarnações,  a 
                              alegre  relatividade,  a  alegre  negação  da  identidade  e  do  sentido 
                              único,  a  negação  da  coincidência  estúpida  consigo  mesmo;  a 
                              máscara  é  a  expressão  das  transferências,  das  metamorfoses,  das 
                              violações  das  fronteiras  naturais  da  ridicularização,  dos  apelidos;  a 
                              máscara  encarna  o  princípio  do  jogo  da  vida,  está  baseada  numa 
                              peculiar interpretação da realidade e da imagem, característica das 
                              formas mais antigas dos risos e espetáculos.(BAKHTIN,1987: 35)  
             
            No  caso  do  carnaval  brasileiro,  suas  fantasias  carnavalescas  revelam  uma 
    dissolução  dos  papéis  e  posições  sociais,  já  que  são,  freqüentemente,  invertidos, 
    podendo assim, homem se vestir de mulher, um policial de bandido, um homem rico 
    de  mendigo,  os  homens  de  crianças,  etc.  e  vice‐versa.  Revelam  assim,  a  união  da 
    multiplicidade  dos  vários  segmentos  que  geralmente  são  excluídos  na  sociedade 
    brasileira.  Esta  inversão  ocorrida  no  carnaval  propicia  a  quebra  dos 
    posicionamentos  e  das  funções  sociais,  já  que  os  foliões  fantasiados  perdem  as 
    próprias identidades contidas na rigidez do cotidiano e estão na festa da libertação 
    e do excesso. As identidades pessoais e sociais só serão retomadas no final do rito, 
    quando se voltar a viver no cotidiano novamente: 
     
                              Mas é carnaval 
                              Não me diga mais quem é você 
                              Amanhã tudo volta ao normal 
                              Deixe a festa acabar 



                     VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá 
                Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 
                                          www.revistavoos.com.br 
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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                     
                                                                                                    

                              Deixe o barco correr 
                              Deixe o dia raiar 
                              Que hoje eu sou 
                                      
                              Da maneira que você me quer  
                              O que você pedir 
                              Eu lhe dou 
                              Seja você quem for 
                              Seja o que Deus quiser 
                              Seja você quem for 
                              Seja o que Deus quiser. 
                                      (grifos nossos) 
             
            O  carnaval,  como  pudemos  notar,  é  uma  festa  de  extrema  euforia  e  se 
    realiza  em  um  momento  muito  curto  para  quem  durante  o  ano  todo  espera 
    ansiosamente este momento de libertação. O término do carnaval faz com que as 
    pessoas sintam‐se angustiadas por terem deixado um mundo sonhado e festejado 
    com tanta exaltação. Deixamos de ser meros cidadãos, com suas vidas banais, para 
    vivermos plenamente um momento de utopia; uma utopia tão grande que até uma 
    das maiores arbitrariedades construídas pela razão humana, o tempo cronológico,  
    pode se render à magia do carnaval:       
     
                              Não chore ainda não 
                              Que eu tenho a impressão 
                              Que o samba vem aí 
                              E um samba tão imenso 
                              Que eu às vezes penso  
                              Que o próprio tempo 
                              Vai parar prá ouvir 
                                      (“Ole, Olá” – grifos nossos) 
             
             Se até uma convenção abstrata como a do tempo, que controla as pessoas 
    ditando‐lhes  a  hora  de  acordar,  de  trabalhar,  regressar  ao  lar,  dormir,  pode  sofrer 
    uma  mudança  enlouquecedora  –  que  transferiria  as  pessoas  para  uma  espécie  de 
    tempo utópico, um paraíso eterno de libertação, alegria, igualdade, etc. –, como o 
    homem simples suportaria o término do carnaval? Certamente com muita angústia, 
    chegando  alguns  a  enlouquecer,  não  suportando  mais  o  cotidiano  maquinal  e 
    infeliz, como acontece na canção “Ela desatinou”:  
     
                              Ela desatinou 
                              Viu chegar a Quarta‐feira 
                              Acabar a brincadeira 
                              Bandeira se desmanchando 
                              E ela inda está sambando 
                                        


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                Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 
                                          www.revistavoos.com.br 
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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                    
                                                                                                 

                             Ela desatinou 
                             Viu morrer alegrias 
                             Rasgar fantasias 
                             Os dias sem sol raiando 
                             E ela inda está sambando 
                             Ela não vê que toda gente 
                             Já está sofrendo normalmente 
                             Toda a cidade anda esquecida 
                             Da falsa vida da avenida onde 
                                       
                             Ela desatinou 
                             Viu morrer alegrias 
                             Rasgar fantasias 
                             Os dias sem sol raiando 
                             Ela inda está sambando 
                                       
                             Quem não inveja a infeliz 
                             Feliz no seu mundo de cetim 
                             Assim debochando 
                             Da dor, do pecado 
                             Do tempo perdido 
                             Do jogo acabado 
                                              
            Diante disso,  Da’Matta reforça que somos obrigados a abrir mão de todos os 
    papéis  tradicionais.  “Deixamos  de  ser  e  passamos  a  existir  e  viver  o  momento  de 
    ‘communitas’.  No  carnaval,  no  seu  espaço  típico,  o  instante  supera  o  tempo  e  o 
    evento passa a ser maior que o sistema que o classifica e lhe empresta um sentindo 
    normativo”. (DA’MATTA, 1997: 117‐8)  
            Após  o  momento  de  extrema  euforia,  uma  mulher  enlouquece  com  a 
    chegada  da  quarta‐feira  de  cinzas,  momento  que  inicia  o  término  do  carnaval,  e 
    como  dissemos  anteriormente,  representa  o  rito  da  abstenção  e  da  morte,  vê 
    “morrer as alegrias, rasgar as fantasias”, as pessoas “sofrendo normalmente”.   
            A  presença  da  temática  do  carnaval  é  constante  nas  canções  de  Chico 
    Buarque. Esta presença se faz de maneira explícita, tratando especificadamente do 
    tema, como por exemplo, quando o compositor fala do carnaval de maneira geral, 
    nos  bailes  carnavalescos,  de  personagens  típicos  como  Arlequim,  Columbina, 
    Pierrot,  Baco,  Momo,  Vênus,  a  mascarada,  fantasias,  escolas  de  samba,  blocos, 
    Quarta‐feira  de  cinzas,  etc.  Mas  também  existem  referências  ao  carnaval,  ou  pelo 
    menos  ao  espírito  carnavalesco,  quando  o  compositor  se  refere  a  situações 
    proporcionadas pelo carnaval: quando é explorado o amor erótico e carnal, a união 
    das  pessoas  através  do  rito  aglutinador,  da  utopia  vista  como  momento  de 
    igualdade e libertação do ser humano para o mundo melhor do que o vivido no dia‐
    a‐dia, etc. 




                    VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá 
               Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 
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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                    
                                                                                                 

           Em síntese, o carnaval é trabalhado por Chico Buarque principalmente como 
    um  rito  de  libertação  popular,  catarse,  um  momento  de  purgação  das  emoções 
    populares. Desse modo, a festa carnavalesca é identificada como um momento de 
    fuga  do  cotidiano.  Esta  situação  também  revela,  nas  entrelinhas,  o  caráter  crítico 
    apontado pelo compositor já que este período de libertação pode também ser visto 
    como um momento de alienação geral e que, neste sentido, pode ser utilizado pelo 
    “poder institucionalizado” como um instrumento de controle ideológico. 
           Quer  como  festa  tradicional  popular,  quer  como  processo  de  elaboração 
    poética com elementos característicos da carnavalização como a intertextualidade, 
    a  utopia,  a  profanação,  evidencia‐se  o  caráter  dionisíaco  do  ritual  carnavalesco. 
    Elementos  que  contribuem  para  a  criação  de  uma  “cosmovisão”  carnavalizadora 
    dotada  de  poderosa  força  vivificante  e  transformadora  de  uma  vitalidade 
    indestrutível, como nos diz Bakhtin, são plenamente representados, como pudemos 
    notar, em algumas canções de Chico Buarque. Situação que reforça a valorização da 
    cultura popular e de seu povo, características que entendemos serem marcantes na 
    obra do compositor.         
     
    BIBLIOGRAFIA: 
     
    BANDEIRA,  Estrela  da  vida  inteira:  poesias  reunidas  e  poemas  traduzidos.  Rio  de 
    Janeiro: José Olympio, 1991. 
     
    BAKTHIN,  M.  M.  Problemas  da  poética  de  Dostoievski.  Trad.  Paulo  Bezerra.  2.  ed. 
    Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.  
     
    BAKTHIN, M. M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de 
    François Rabelais.  Trad.  Yara  Frateschi  Vieira. São  Paulo: HUCITEC,  Brasília:  Editora 
    da UNB, 1987.  
     
    CARVALHO,  Gilberto  de.  Chico  Buarque:  análise  poético  musical.  2.ed.  Rio  de 
    Janeiro: Codecri, 1982. 
     
    CAVALCANTI, Luciano Marcos Dias. Música Popular Brasileira e Poesia: a valorização 
    do “pequeno” em Chico Buarque e Manuel Bandeira. Belém – Pará: Paka‐Tatu, 2007. 
     
    CORTESÃO,  J.  A  carta  de  Pero  Vaz  de  Caminha.  Rio  de  Janeiro:  Ed.  Livros  de 
    Portugal, s/d. 143: 209 
     
    DA’MATTA,  Roberto  da.  O  carnaval  como  um  mito  de  passagem.  In:  Ensaios  de                
    antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973.             
     




                    VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá 
               Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 
                                         www.revistavoos.com.br 
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Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE. 
                                                    
                                                                                                      

    DA’MATTA,  Roberto  da.  Carnavais,  malandros  e  heróis:  para  uma  sociologia  do 
    dilema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 
     
    GALVÃO, Walnice Nogueira. Uma análise ideológica da MPB.  Saco de gatos: ensaios 
    críticos. São Paulo: Duas Cidades, 1976. 
     
    HOLANDA, Chico Buarque de.  Chico Buarque: letra e música. (Humberto Werneck, 
    org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (Songbook) 
     
    NAVES,  Santuza  Cambraia.  O  violão  azul:  modernismo  e  música  popular.  Rio  de 
    Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.  
     
    PERRONE, Charles A. Letras e letras da MPB. Rio de Janeiro: ELO, 1988. 
     
    SANT’ANNA,  Afonso  Romano  de.  Música  popular  e  moderna  poesia  brasileira. 
    Petrópolis: Vozes, 1980. 
     
    SANT’ANNA,  Afonso  Romano  de.  O  canibalismo  amoroso.  São  Paulo:  Brasiliense, 
    1995. 
     
    VIANNA,  Hermano.  O  mistério  do  samba.  Rio  de  Janeiro:  Jorge  Zahar/Ed.  UFRJ, 
    1995. 
     
    WISNIK, José Miguel. Anos 70 – música popular. Rio de Janeiro: Europa, 1979/80. 
     
     
     
                        THE CARNIVAL IN THE SONGS OF THE CHICO BUARQUE. 
     
    ABSTRACT:  This  essay  aims  at  verifying  how  Chico  Buarque  making  use  of  the  brazilian 
    carnival theme the elaboration of its poetry.  
    Keywords: Chico Buarque, carnival, poetry. 
     
     
    Recebido em 11 de maio de 2009; aprovado em 30 de junho de 2009. 
     
      
     




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               Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305 
                                         www.revistavoos.com.br 
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  • 1. O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      Luciano Marcos Dias Cavalcanti ∗      RESUMO:  Este  ensaio  busca  verificar  como  Chico  Buarque  utiliza  o  motivo  do  carnaval  brasileiro na elaboração de sua poética.  Palavras‐Chave: Chico Buarque, carnaval, poética.      A presença  da temática do carnaval é uma constante nas canções de Chico  Buarque,  situação  que  não  causa  nenhum  estranhamento,  já  que  se  trata  de  um  compositor  de  Música  Popular  Brasileira  e,  portanto,  de  alguém  que  está  diretamente ligado à cultura popular, aos sambistas e à própria tradição do samba –  estilo musical que é a essência do carnaval. Chico Buarque, além de contemplar em  diversas  composições  a  temática  do  Carnaval,  tem  ainda  um  LP  com  o  nome  significativo de Quando o carnaval chegar (1965), no qual se dedica especificamente  ao tema.   Para discutir o tema do carnaval nas canções de Chico Buarque analisaremos  algumas canções do compositor que se referem diretamente à temática do carnaval  e o contexto cultural brasileiro em que esta festa se insere.  A  festividade  do  carnaval  pode  ser  considerada  um  ritual  nacional  por  excelência,  isso  porque  este  rito  dramatiza  valores  globais  da  nação  brasileira.  No  Brasil, o carnaval é generalizado, não pertence apenas a uma cidade ou Estado, mas  a todo o país. Neste ritual, a sociedade está orientada para o evento que centraliza  toda  a  atividade  nacional,  sendo  decretado  feriado  nacional  na  época  da  festa;  consequentemente, todos os cidadãos abandonam o trabalho e uma grande parte  vai “pular” o carnaval.   O carnaval apresenta uma particularidade em relação aos demais ritos (como  o  religioso,  o  da  parada  militar,  o  do  dia  da  independência,  etc.),  ele  se  realiza  preponderantemente de modo informal, sendo caracterizado por uma situação de  espontaneidade.  O  cotidiano  massacrante  do  dia‐a‐dia  é  substituído  por  um  momento  extraordinário,  marcado  por  transformações  no  comportamento  das  pessoas. A  rotina maçante é trocada por momentos de alegria e descontração, e a  vida  diária  passa  a  ser  vista  como  negativa,  pois  nesta  sofre‐se,  vive‐se  em  uma  rotina  maquinal,  em  um  mundo  hierárquico  com  comportamentos  ditados  pelas  normas morais vigentes.   No  desfile  carnavalesco,  quem  participa  ativamente  das  escolas  de  samba  como  componentes  são  as  pessoas  das  camadas  mais  baixas  e  marginalizadas  da  ∗  Doutor em Teoria e História Literária UNICAMP/IEL – E‐mail: bavarov@terra.com.br  VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 2. Página | 104 Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      sociedade.  Embora  as  escolas  reúnam,  além  de  pobres,  milionários,  astros  do  futebol,  da  televisão  e  do  cinema.  Mas  o  que  chama  “atenção,  nesses  desfiles  (a  inversão constituída entre o desfilante, um pobre, geralmente negro ou mulato) é a  figura  que  ele  representa  no  desfile  (um  nobre,  um  rei,  uma  figura  mitológica)”  (DA’MATTA, 1997: 58).  O  carnaval  talvez  seja  o  único  momento  em  que  o  pobre  marginalizado  e  desrespeitado  pode  se  sentir  importante  e  respeitado  como  os  astros  de  TV  e  as  pessoas  ricas.  Neste  momento,  através  do  processo  de  inversão  carnavalesca,  o  subalterno  se  iguala  aos  seus  dominadores  e  passa,  mesmo  que  por  um  curto  período,  a  não  se  sentir  inferior.  Agora,  os  marginalizados  podem  ocupar  lugares  privilegiados,     estão  altamente  conscientes  do  fato  de  que  nos  seus  ensaios  e  durante  o  carnaval  são  eles  os  “doutores”,  os  “professores”.  Com  essa  possibilidade,  podem  inverter  sua  posição  na  estrutura  social,  compensando sua inferioridade social e econômica, com uma visível  e  indiscutível  superioridade  carnavalesca.  Essa  superioridade  se  manifesta  no  modo  “instintivo”  de  dançar  o  samba  que  o  senso  comum  brasileiro  considera  um  privilégio  inato  da  “raça  negra”  como categoria social. (DA’MATTA, 1997: 167)    Os  pobres  e  os  negros  marginalizados,  que  em  seu  cotidiano  costumam  portar‐se de cabeça baixa, receber ordens, sofrer diversos tipos de preconceitos, no  carnaval podem se exibir como fazem os ricos com suas roupas, carros importados,  etc.,  mas  de  maneira  mais  nobre:  eles  se  exibem  com  sua  capacidade  de  dançar,  sambar  com  extrema  habilidade,  sensualidade  e  criatividade.  Como  bem  exemplificam os seguintes versos da canção de Chico:      E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando  Que eu vou aturar  Tou me guardando pra quando o carnaval chegar  E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar  Tou me guardando pra quando o carnaval chegar      (“Quando o carnaval chegar”)    O  Brasil  é  caracterizado  como  o  país  do  Carnaval.  No  carnaval,  as  posições  sociais  são  invertidas.  Em  uma  sociedade,  como  a  brasileira,  marcada  pela  desigualdade  social,  pelo  preconceito  racial  velado,  o  carnaval  se  torna  uma  festa  nacional de grande importância porque é somente nesta festa popular e, talvez, no  futebol  (quando  a  seleção  participa  de  jogos  internacionais)  que  uma  grande  parcela  da  nação  brasileira,  pode‐se  dizer,  se  une  em  uma  mesma  “corrente”  de  confraternização.   A  utilização  do  samba,  uma  forma  musical  vinda  de  “baixo”,  para  o  relacionamento social também se mostra muito significativa para se pensar como se  VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 3. Página | 105  Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      faz  a  união  popular  no  Brasil.  Essa  forma  musical,  que  segundo  nossa  mitologia  nasceu  em  áreas  fronteiriças  da  sociedade  brasileira  –  nos  porões  e  senzalas,  nas  favelas,  em  meio  à  pobreza  dos  seus  negros  e  miseráveis  habitantes  –  tornou‐se  uma  forma  de  unir  pessoas  de  todas  as  classes.  Assim,  a  união  dos  cidadãos  brasileiros é significativamente feita por “baixo”, já que    o  samba,  então,  como  tudo  o  que  vem  de  “baixo”,  adquire  uma  aura  sedutora  e  abrangente.  Tanto  o  samba  quanto  os  grupos  do  carnaval  (sobretudo  as  escolas  de  samba)  estão  voltadas  para  “cima”  na  busca  da  conversão,  aprovação  e  legitimação  dos  segmentos  superiores  da  sociedade.  Assim,  o  sistema  se  integra  também  nesse  nível,  quando  a  sociedade  se  individualiza.  Pois  agora,  dividida  em  grupos  bem  visíveis,  ela  se  integra  novamente  adotando como forma generalizável  e universal tudo o que nasceu  “embaixo”. (DA’MATTA, 1997: 143‐4)    Após  estas  breves  considerações  a  respeito  do  carnaval  podemos,  então,  começar a refletir sobre o tema do carnaval  a partir de algumas canções de Chico  Buarque.  Uma  canção  que  talvez  se  assemelhe  ao  mesmo  ambiente  de  libertação  e  tolerância  quanto  aos  anseios  do  ser  humano,  proporcionado  por  uma  situação  utópica  própria  do  carnaval  é  sua  marcha  carnavalesca  intitulada  “Não  existe  pecado ao sul do equador”:     Não existe pecado do lado de baixo do equador  Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor  (Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor) 1  Me deixa ser teu escravo, capacho, teu cacho  Um riacho de amor  Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo  Que eu sou professor    (grifos nossos)    O  primeiro  verso  da  canção  já  nos  revela  o  ambiente  libertário  onde  o  Brasil  está  situado:  “do  lado  de  baixo  do  equador”,  espaço  onde  não  existe  pecado.  Esta  composição  também  nos  remete  a  uma  espécie  de  paraíso  perdido  ou  Idade  de  Ouro nos trópicos, já que nos situa geograficamente abaixo da linha imaginária do  equador. Um mundo permissivo, da liberdade sexual, da alegria, por muito tempo  acreditado  pelos  viajantes  europeus  que,  provavelmente,  vêem,  até  hoje,  o  Brasil  como uma nação exótica de mulheres seminuas prontas para o sexo sem pudor. A  exemplo de Pero Vaz de Caminha que há 500 anos descreve o ambiente paradisíaco  encontrado  no  Brasil  com  suas  belezas  naturais  e  exuberantes  e  suas  índias  nuas,  com suas “vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de  1  Verso original, vetado pela Censura.   VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 4. Página | 106  Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      muito  bem  olharmos,  não  tínhamos  nenhuma  vergonha.”  (Apud  CORTESÃO,  s/d:143).   Nesse ambiente paradisíaco não pode haver tristeza.      Deixa a tristeza prá lá, vem comer, me jantar  Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá  Vê se me usa, me abusa, lambuza  Que tua cafuza  Não pode esperar  Deixa a tristeza prá lá, vem comer, me jantar  Sarapatel, caruru, tucupi, tacaca  Vê se me esgota, me bota na mesa  Que tua holandesa  Não pode esperar    Misturado  a  alimentos  estritamente  pertencentes  à  culinária  nacional,  alimentos  afrodisíacos  “sarapatel,  caruru,  tucupi,  tacacá”,  portanto  eróticos,  o  convidado é chamado a comer o alimento e a mulher; é um ambiente tipicamente  semelhante ao bacanal, festa de Baco em que se come, se bebe e se pratica o ato  sexual em todas as suas potencialidades.  Segundo  José  Miguel  Wisnik,  “a  frase‐título  é  de  um  viajante  renascentista  do século XVI (...). Para a Europa colonialista as colônias tropicais podiam ser o cu‐ do‐mundo, mas eram o lugar utópico onde o corpo se libertava das sanções da cara  européia, protestante ou contra‐reformista”. (Apud CARVALHO, 1984: 65)   O  erotismo,  portanto,  é  uma  temática  de  extrema  importância  para  a  realização do rito dionisíaco que é representado pelo carnaval; nesse ambiente, não  há  lugar  para  o  amor  espiritual  e  romântico,  como  diria  Manuel  Bandeira  em  seu  poema  Arte de amar: “Se queres sentir a felicidade de amor, esquece a tua alma./A  alma é que estraga o amor./ (...) /As almas são incomunicáveis.//Deixa o teu corpo  entender‐se com outro corpo/Porque os corpos se entendem, mas as almas não.”    Em  “Sonho  de  um  carnaval”,  o  carnaval  é  visto  como  um  momento  temporário de libertação e é, por isso, que temos, na primeira estrofe, o significado  de carnaval atrelado ao desengano.     Carnaval, desengano  Deixei a dor em casa me esperando  E brinquei e gritei e fui vestido de rei  Quarta‐feira sempre desce o pano.      (grifos nossos)    A oposição entre a rua (onde se vai brincar e gritar) e a casa (onde a dor fica  esperando)  é  de  fundamental  importância,  podendo  nos  servir  como  instrumento  de análise desta canção. Da’Matta chama a atenção para o fato de que     VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 5. Página | 107  Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos,  acidentes  e  paixões,  ao  passo  que  a  casa  remete  a  um  universo  controlado,  onde  as  coisas  estão  nos  seus  devidos  lugares  (...).  Na  casa,  temos  associações  rígidas  e  formadas  pelo  parentesco  e  relações de sangue; na rua, as relações têm um caráter indelével de  escolha, ou implicam essa possibilidade. (DA’MATTA, 1997: 90)    É por isso que somente na rua o folião pode ser feliz. Na rua, o rei é o folião,  diferentemente  de  quando  está  em  casa  onde  o  rei  é  o  seu  pai  ou  seus  parentes  mais  velhos,  aqueles  que  expressam  maior  autoridade.  Em  casa  as  relações  são  regidas pela hierarquia familiar que se ordena seqüencialmente da seguinte forma:  o pai (o rei), a mãe (a rainha), o irmão mais velho (o primogênito sucessor do rei),  etc. No carnaval de rua, o indivíduo veste a fantasia que quiser, rompendo com essa  hierarquia rígida da família.   Mas  esse  sonho  de  um  carnaval  é  fugaz,  pois  logo  a  quarta‐feira  de  cinzas  chega e o folião está consciente disso. A realização do carnaval brasileiro em quatro  dias cria um momento especial, mágico, momento relativamente curto para quem  só tem neste período a possibilidade de diversão, de vestir a fantasia e de ser rei. No  carnaval tudo pode acontecer, pois a inversão de papéis sociais traz um período de  liberdade  que  possibilita  uma  satisfação  muito  grande,  por  isso  muito  eufórica.  Como  nos  diz  o  poeta,  na  quarta‐feira  de  cinzas  tudo  acaba,  tudo  morre.  Diferentemente do carnaval – que é a festa da vida, na qual os foliões, os bailes de  fantasias,  as  escolas  de  samba  abusam  de  enfeites  e  do  colorido  exuberante  das  cores  fortes  e  brilhantes,  metaforizando  a  própria  vida  –  a  quarta‐feira  de  cinzas  representa o luto, a morte. Inicia‐se o período da quaresma, tempo da abstinência e  da contenção. É o rito religioso hierárquico, opressor e dogmático que representa a  morte.    O carnaval  é o rito da vida, da união entre as pessoas,  da transformação da tristeza em alegria, do adulto racional na  criança instintiva. Neste momento, o que se busca é a alegria,  a  música,  a  felicidade,  o  prazer  sexual.  Juntos,  homens  e  mulheres buscam esse momento de libertação; são iguais, sem  distinção  de  classes,  credos  e  raças  eles  realizam  o  sonho  de  união em um único cordão: em que todas as pessoas estejam  irmanadas,  realizando‐se  em  um  mundo  utópico  no  qual  não  existiriam  os  diversos  tipos  de  preconceitos  sociais,  raciais,  sexuais.  E  é  por  isso  que  o  carnaval,  no  primeiro  verso  da  última estrofe da canção, já não é mais ilusão, mas esperança,  pois somente no carnaval é possível esta total união popular:    Carnaval, desengano  Essa morena me deixou sonhando  Mão na mão, pé no chão  VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 6. Página | 108 Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      E hoje nem lembra não  Quarta‐feira sempre desce o pano.    Era uma canção, um só cordão  E uma vontade  De tomar a mão  De cada irmão pela cidade.  No carnaval, esperança  Que gente longe viva na lembrança  Que gente triste possa entrar na dança  Que gente grande saiba ser criança.      (grifos nossos)    A  canção  “Vai  passar”,  de  Chico,  faz  uma  espécie  de  síntese  do  significado  global do carnaval para muitos de seus participantes.     E um dia, afinal  Tinham direito a uma alegria fugaz  Uma ofegante epidemia  Que se chamava carnaval  O carnaval, o carnaval  (Vai passar)  Palmas pra ala dos barões famintos  O bloco dos napoleões retintos  E os pigmeus no bulevar  Meu Deus, vem olhar  Vem ver de perto uma cidade a cantar  A evolução da liberdade   Até o dia clarear  Ai, que vida boa, olerê  Ai, que vida boa, olará  O estandarte do sanatório geral vai passar  Ai, que vida boa, olerê  Ai, que vida boa, olará  O estandarte do sanatório geral   Vai passar.       (grifos nossos)    Como podemos ver, o carnaval é considerado um direito do povo sofredor,  que  pelo  menos  em  um  dia  do  ano  tem  “direito  a  uma  alegria  fugaz”  que  se  transforma  em  uma  epidemia  em  que  toda  cidade  vai  cantar  junta  a  conquista  da  liberdade. Uma liberdade que dura pouco, até o amanhecer, mas uma liberdade de  direito  do  povo  que  comumente  vive  todo  seu  tempo  em  condição  antagônica  à  liberdade.   VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 7. Página | 109  Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      Outro  tema  relevante  que  podemos  notar  em  relação  ao  carnaval  diz  respeito à questão das máscaras utilizadas como fantasia nos bailes carnavalescos e  no  carnaval  de  forma  geral.  Como  elementos  que  compõem  a  fantasia,  podemos  ver sua presença na canção “Noite dos Mascarados”. Nesta canção, podemos notar  um  diálogo  entre  um  mascarado  e  uma  mulher  em  um  baile  de  carnaval,  o  que  mostra que a composição se utiliza do fato de as personagens estarem mascaradas  como  contexto  para  reflexões  acerca  das  relações  pessoais  fora  do  cenário  carnavalesco.    Quem é você?  Adivinhe, se gosta de mim  Hoje os dois mascarados  Procuram os seus namorados  Perguntando assim:  Quem é você, diga logo  Que eu quero saber o seu jogo  Que eu quero morrer no seu bloco  Que eu quero me arder no seu fogo.      De  acordo com  Bakhtin,  na  época  renascentista  começa  a  desenvolver‐se  a  cultura  festivo‐cortês  da  mascarada  que  reúne  em  si  toda  uma  série  de  formas  e  símbolos  carnavalescos.  Em  seguida,  começa  a  desenvolver‐se  uma  linha  mais  ampla (não mais cortês) de festejos e divertimentos, que o autor denomina de linha  mascarada. “Esta conserva algumas liberdades e reflexos distantes da cosmovisão  carnavalesca. Muitas formas carnavalescas foram arrancadas de sua base popular e  saíram  da  praça  pública  para  essa  linha  camaresca  da  mascarada  que  existe  até  hoje”.  (BAKHTIN, 1997: 131)    Em torno de 1550 instala‐se a commedia dell’arte que possui uma integridade  de  leis  estéticas  especiais,  um  critério  próprio  de  perfeição  não  subordinado  à  estética clássica da beleza e do sublime. A função da  commedia dell’arte era servir  como  instantes  de  diversão  e  como  fórmula  de  catarse.  “Através  do  riso  e  da  caricatura, o pobre podia rir do rico e da autoridade, numa inversão carnavalizante.  A  violência  social  se  mistura  à  violência  erótica,  dentro  da  melhor  linha  da  sátira  popular.” (SANT’ANNA, 1995: 218)   No  carnaval,  a  vestimenta  apropriada  é  a  fantasia,  um  artefato  que  nos  revela um duplo sentido, pois tanto se refere às ilusões e idealizações da realidade  quanto  aos  paramentos  utilizados  somente  no  carnaval.  Assim,  “a  fantasia  carnavalesca  revela  muito  mais  que  oculta,  já  que  uma  fantasia  representa  um  desejo escondido, faz uma síntese entre o fantasiado, os papéis que representa e os  que gostaria de representar”. (DA’MATTA,1997: 61)   Mais  explicitamente,  podemos  ver  nesta  canção  de  Chico  Buarque  a  possibilidade  da  multiplicidade  do  “eu”  a  partir  do  ambiente  fantasioso  proporcionado pelo carnaval.    VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 8. Página | 110  Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      Eu sou seresteiro  Poeta, cantor  O meu tempo inteiro  Só zombo do amor  Eu tenho um pandeiro  Só quero um violão  Eu nado em dinheiro  Não tenho um tostão  Fui porta‐estandarte  Não sei mais dançar  Eu modéstia parte  Nasci para sambar  Eu sou tão menina  Meu tempo passou  Eu sou Columbina  Eu sou Pierrot  (grifos nossos)    Bakhtin  diz  que  o  motivo  do  uso  da  máscara  é  o  mais  completo,  mais  carregado de sentido da cultura popular.    A  máscara  traduz  a  alegria  das  alternâncias  e  das  reencarnações,  a  alegre  relatividade,  a  alegre  negação  da  identidade  e  do  sentido  único,  a  negação  da  coincidência  estúpida  consigo  mesmo;  a  máscara  é  a  expressão  das  transferências,  das  metamorfoses,  das  violações  das  fronteiras  naturais  da  ridicularização,  dos  apelidos;  a  máscara  encarna  o  princípio  do  jogo  da  vida,  está  baseada  numa  peculiar interpretação da realidade e da imagem, característica das  formas mais antigas dos risos e espetáculos.(BAKHTIN,1987: 35)     No  caso  do  carnaval  brasileiro,  suas  fantasias  carnavalescas  revelam  uma  dissolução  dos  papéis  e  posições  sociais,  já  que  são,  freqüentemente,  invertidos,  podendo assim, homem se vestir de mulher, um policial de bandido, um homem rico  de  mendigo,  os  homens  de  crianças,  etc.  e  vice‐versa.  Revelam  assim,  a  união  da  multiplicidade  dos  vários  segmentos  que  geralmente  são  excluídos  na  sociedade  brasileira.  Esta  inversão  ocorrida  no  carnaval  propicia  a  quebra  dos  posicionamentos  e  das  funções  sociais,  já  que  os  foliões  fantasiados  perdem  as  próprias identidades contidas na rigidez do cotidiano e estão na festa da libertação  e do excesso. As identidades pessoais e sociais só serão retomadas no final do rito,  quando se voltar a viver no cotidiano novamente:    Mas é carnaval  Não me diga mais quem é você  Amanhã tudo volta ao normal  Deixe a festa acabar  VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 9. Página | 111 Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      Deixe o barco correr  Deixe o dia raiar  Que hoje eu sou    Da maneira que você me quer   O que você pedir  Eu lhe dou  Seja você quem for  Seja o que Deus quiser  Seja você quem for  Seja o que Deus quiser.  (grifos nossos)    O  carnaval,  como  pudemos  notar,  é  uma  festa  de  extrema  euforia  e  se  realiza  em  um  momento  muito  curto  para  quem  durante  o  ano  todo  espera  ansiosamente este momento de libertação. O término do carnaval faz com que as  pessoas sintam‐se angustiadas por terem deixado um mundo sonhado e festejado  com tanta exaltação. Deixamos de ser meros cidadãos, com suas vidas banais, para  vivermos plenamente um momento de utopia; uma utopia tão grande que até uma  das maiores arbitrariedades construídas pela razão humana, o tempo cronológico,   pode se render à magia do carnaval:       Não chore ainda não  Que eu tenho a impressão  Que o samba vem aí  E um samba tão imenso  Que eu às vezes penso   Que o próprio tempo  Vai parar prá ouvir  (“Ole, Olá” – grifos nossos)    Se até uma convenção abstrata como a do tempo, que controla as pessoas  ditando‐lhes  a  hora  de  acordar,  de  trabalhar,  regressar  ao  lar,  dormir,  pode  sofrer  uma  mudança  enlouquecedora  –  que  transferiria  as  pessoas  para  uma  espécie  de  tempo utópico, um paraíso eterno de libertação, alegria, igualdade, etc. –, como o  homem simples suportaria o término do carnaval? Certamente com muita angústia,  chegando  alguns  a  enlouquecer,  não  suportando  mais  o  cotidiano  maquinal  e  infeliz, como acontece na canção “Ela desatinou”:     Ela desatinou  Viu chegar a Quarta‐feira  Acabar a brincadeira  Bandeira se desmanchando  E ela inda está sambando    VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 10. Página | 112 Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      Ela desatinou  Viu morrer alegrias  Rasgar fantasias  Os dias sem sol raiando  E ela inda está sambando  Ela não vê que toda gente  Já está sofrendo normalmente  Toda a cidade anda esquecida  Da falsa vida da avenida onde    Ela desatinou  Viu morrer alegrias  Rasgar fantasias  Os dias sem sol raiando  Ela inda está sambando    Quem não inveja a infeliz  Feliz no seu mundo de cetim  Assim debochando  Da dor, do pecado  Do tempo perdido  Do jogo acabado    Diante disso,  Da’Matta reforça que somos obrigados a abrir mão de todos os  papéis  tradicionais.  “Deixamos  de  ser  e  passamos  a  existir  e  viver  o  momento  de  ‘communitas’.  No  carnaval,  no  seu  espaço  típico,  o  instante  supera  o  tempo  e  o  evento passa a ser maior que o sistema que o classifica e lhe empresta um sentindo  normativo”. (DA’MATTA, 1997: 117‐8)   Após  o  momento  de  extrema  euforia,  uma  mulher  enlouquece  com  a  chegada  da  quarta‐feira  de  cinzas,  momento  que  inicia  o  término  do  carnaval,  e  como  dissemos  anteriormente,  representa  o  rito  da  abstenção  e  da  morte,  vê  “morrer as alegrias, rasgar as fantasias”, as pessoas “sofrendo normalmente”.    A  presença  da  temática  do  carnaval  é  constante  nas  canções  de  Chico  Buarque. Esta presença se faz de maneira explícita, tratando especificadamente do  tema, como por exemplo, quando o compositor fala do carnaval de maneira geral,  nos  bailes  carnavalescos,  de  personagens  típicos  como  Arlequim,  Columbina,  Pierrot,  Baco,  Momo,  Vênus,  a  mascarada,  fantasias,  escolas  de  samba,  blocos,  Quarta‐feira  de  cinzas,  etc.  Mas  também  existem  referências  ao  carnaval,  ou  pelo  menos  ao  espírito  carnavalesco,  quando  o  compositor  se  refere  a  situações  proporcionadas pelo carnaval: quando é explorado o amor erótico e carnal, a união  das  pessoas  através  do  rito  aglutinador,  da  utopia  vista  como  momento  de  igualdade e libertação do ser humano para o mundo melhor do que o vivido no dia‐ a‐dia, etc.  VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 11. Página | 113 Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      Em síntese, o carnaval é trabalhado por Chico Buarque principalmente como  um  rito  de  libertação  popular,  catarse,  um  momento  de  purgação  das  emoções  populares. Desse modo, a festa carnavalesca é identificada como um momento de  fuga  do  cotidiano.  Esta  situação  também  revela,  nas  entrelinhas,  o  caráter  crítico  apontado pelo compositor já que este período de libertação pode também ser visto  como um momento de alienação geral e que, neste sentido, pode ser utilizado pelo  “poder institucionalizado” como um instrumento de controle ideológico.  Quer  como  festa  tradicional  popular,  quer  como  processo  de  elaboração  poética com elementos característicos da carnavalização como a intertextualidade,  a  utopia,  a  profanação,  evidencia‐se  o  caráter  dionisíaco  do  ritual  carnavalesco.  Elementos  que  contribuem  para  a  criação  de  uma  “cosmovisão”  carnavalizadora  dotada  de  poderosa  força  vivificante  e  transformadora  de  uma  vitalidade  indestrutível, como nos diz Bakhtin, são plenamente representados, como pudemos  notar, em algumas canções de Chico Buarque. Situação que reforça a valorização da  cultura popular e de seu povo, características que entendemos serem marcantes na  obra do compositor.            BIBLIOGRAFIA:    BANDEIRA,  Estrela  da  vida  inteira:  poesias  reunidas  e  poemas  traduzidos.  Rio  de  Janeiro: José Olympio, 1991.    BAKTHIN,  M.  M.  Problemas  da  poética  de  Dostoievski.  Trad.  Paulo  Bezerra.  2.  ed.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.     BAKTHIN, M. M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de  François Rabelais.  Trad.  Yara  Frateschi  Vieira. São  Paulo: HUCITEC,  Brasília:  Editora  da UNB, 1987.     CARVALHO,  Gilberto  de.  Chico  Buarque:  análise  poético  musical.  2.ed.  Rio  de  Janeiro: Codecri, 1982.    CAVALCANTI, Luciano Marcos Dias. Música Popular Brasileira e Poesia: a valorização  do “pequeno” em Chico Buarque e Manuel Bandeira. Belém – Pará: Paka‐Tatu, 2007.    CORTESÃO,  J.  A  carta  de  Pero  Vaz  de  Caminha.  Rio  de  Janeiro:  Ed.  Livros  de  Portugal, s/d. 143: 209    DA’MATTA,  Roberto  da.  O  carnaval  como  um  mito  de  passagem.  In:  Ensaios  de                 antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973.        VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]
  • 12. Página | 114 Luciano Marcos Dias Cavalcanti O MOTIVO DO CARNAVAL NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE.      DA’MATTA,  Roberto  da.  Carnavais,  malandros  e  heróis:  para  uma  sociologia  do  dilema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.    GALVÃO, Walnice Nogueira. Uma análise ideológica da MPB.  Saco de gatos: ensaios  críticos. São Paulo: Duas Cidades, 1976.    HOLANDA, Chico Buarque de.  Chico Buarque: letra e música. (Humberto Werneck,  org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (Songbook)    NAVES,  Santuza  Cambraia.  O  violão  azul:  modernismo  e  música  popular.  Rio  de  Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.     PERRONE, Charles A. Letras e letras da MPB. Rio de Janeiro: ELO, 1988.    SANT’ANNA,  Afonso  Romano  de.  Música  popular  e  moderna  poesia  brasileira.  Petrópolis: Vozes, 1980.    SANT’ANNA,  Afonso  Romano  de.  O  canibalismo  amoroso.  São  Paulo:  Brasiliense,  1995.    VIANNA,  Hermano.  O  mistério  do  samba.  Rio  de  Janeiro:  Jorge  Zahar/Ed.  UFRJ,  1995.    WISNIK, José Miguel. Anos 70 – música popular. Rio de Janeiro: Europa, 1979/80.        THE CARNIVAL IN THE SONGS OF THE CHICO BUARQUE.    ABSTRACT:  This  essay  aims  at  verifying  how  Chico  Buarque  making  use  of  the  brazilian  carnival theme the elaboration of its poetry.   Keywords: Chico Buarque, carnival, poetry.      Recebido em 11 de maio de 2009; aprovado em 30 de junho de 2009.         VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá  Volume 01 (Jul. 2009) Caderno de Letras – Estudos Literários – ISSN 1808‐9305  www.revistavoos.com.br   [103–114]