(1) O documento descreve a história da culinária brasileira e como os sabores se espalharam pelo país através dos tropeiros que transportavam mercadorias. (2) Os tropeiros ajudaram a misturar ingredientes e criar pratos como o virado paulista ao levar produtos de uma região para outra. (3) Alimentos como a mandioca, o milho, o feijão e a carne de porco se tornaram bases da culinária brasileira graças ao trabalho dos tropeiros.
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Caminho dos sabores
1. João Rural
Os caminhos
dos sabores
Sabores do Brasil 71
2. A Com suas andanças, os
comida típica paulista ainda existe em
muitos fundões do Vale do Paraíba.
Ela é simples e saborosa, além de ter tropeiros foram levando
“sustança”, como se diz na cultura caipira. Nas-
sabores, trocando
ceu com a chegada dos europeus e dos negros
que, juntamente com os indígenas, criaram boa produtos e fazendo
parte dos pratos nacionais. Durante os séculos,
a mistura que hoje
muitas receitas foram modificadas, com a inclu-
são de novos ingredientes. Em muitos casos, o praticamos em nossa
prato melhorou, mas, em outros, perdeu a tradi-
cozinha. Muitos pratos,
ção histórica.
A contribuição de diversos povos propi- como o virado de feijão
ciou variadas receitas, destacando-se as prepara-
das com mandioca, milho, cana-de-açúcar e car-
– ou virado paulista –
ne de porco. Surgiram, dessa maneira, o virado, nasceram nesse tempo.
ou feijão-tropeiro, as paçocas, as doçarias e qui-
tandas, o uso das pimentas e o “fogado”, típico A tropa era composta geralmente de dez
do Vale do Paraíba, em São Paulo. animais. À frente ia um menino a cavalo, quase
E como esses sabores viajaram de norte a sempre o cozinheiro da tropa. O primeiro animal
sul no Brasil, há pelo menos quatro séculos? Le- era chamado de “madrinha” ou “frenteira”, que
vados pelos condutores de tropas, mais conhe- carregava no peito cincerros, que tilintavam cha-
cidos como tropeiros, que, no século XVII, pela mando a tropa. Alguns pesquisadores afirmam
necessidade de transporte das cargas, eram obri- que os animais ouviam os badalos como som de
gados a cortar as trilhas em meio à mata. água e, assim, iam atrás. Depois vinham os ani-
Com o comércio de produtos da Europa e mais de carga, sempre com uma cangalha, car-
do ouro entre Minas Gerais e os portos brasileiros, regando malas, canastras, jacás de bambu, sacos
a tropa se transformou no transporte vital para a ou bruacas, grandes bolsas de couro, para carre-
economia. De início, a maioria dos burros e mu- gar mantimentos. Cada animal chegava a levar
las vinham dos criatórios localizados na região 120 kg. No meio, encontrava-se o dono da tropa
Sul do Brasil, onde se dominava a técnica do cru- a cavalo. No final, vinha o animal chamado de
zamento de eqüinos com asininos, que nasciam “coice” e atrás um homem, sempre a pé, tocando
híbridos. Foi significativo o comércio de muares os animais.
entre o Rio Grande do Sul e a cidade de Soroca- Com suas andanças, os tropeiros foram
ba, em São Paulo. Por volta de 1850, chegou-se a levando sabores, trocando produtos e fazendo a
comercializar cerca de cinqüenta mil animais em mistura que hoje praticamos em nossa cozinha.
um ano. Com a chegada do ciclo do café, o tro- Muitos pratos, como o virado-de-feijão – ou vi-
peiro passou a transportar esse produto para os rado paulista – nasceram nesse tempo. Nas en-
portos. Dados do Porto de Ubatuba revelam que, tradas e bandeiras, que saíam de São Paulo para
por volta de 1860, pelo menos dois mil animais desbravar o sertão, parte do pessoal plantava,
chegavam diariamente para descarregar café. de trecho em trecho, alimentos que poderiam ser
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3. Distrito da Chapada. Junho 1827. Aimé-Adrien Taunay.
colhidos em apenas três meses. Em alguns casos, (2 km) por jornada ou por dia. Nasceram, as-
homens ficavam vigiando a plantação de milho, sim, nossas cidades, pois, nos pousos, surgiam
feijão e mandioca, para, depois da colheita, segui- ranchos, com os atendimentos necessários. Em
rem o rastro da comitiva e levarem os alimentos; pouco tempo, transformavam-se em vilas e, de-
em outros, esse grupo saía na frente e esperava a pois, em cidades, afastadas, em média, 25 km
comitiva, já com a colheita feita. Com a chegada umas das outras.
da bandeira no local do plantio, o feijão era co- Toda comitiva de viagem dispunha de um
zido junto com as carnes de animais caçados no pilão. A paçoca era a alimentação principal, pois
caminho e o milho, transformado em quirera fina levava-se carregamento de farinha de mandioca
e misturado ao feijão. Fazia-se, assim, um prato ou de milho. No caminho, matavam-se os animais
forte que era apreciado pelos viajantes. Veio daí a do mato ou pescava-se. O produto conseguido era
frase e o conselho para quem ia viajar pelas ma- “moqueado” (assado), à moda dos índios, que,
tas do Brasil: “Para comer, vai se virando como os na época, trabalhavam como carregadores. Eram
paulistas”. “Se virando” transformou-se, com o eles que ensinavam os segredos da caça e da pes-
tempo, em “virado paulista”, atualmente prepa- ca pelas matas. Depois de secas, essas carnes eram
rado com farinha de milho, torresmo e lingüiça. jogadas no pilão junto com a farinha e socadas até
Também desse período é o feijão-tropei- formar uma massa grossa. Assim, a carne assada
ro, feito com carne-seca, lingüiça, torresmo fri- ficava seca e podia ser transportada por muitos
to e farinha de milho. Era calórico dessa forma dias. Dois quilos de carne-seca e dez de farinha
para proporcionar energia aos homens durante alimentavam muita gente. A paçoca era colocada
as grandes jornadas Brasil afora. Mas o tropeiro nas patronas. Mesmo caminhando ou montando
era sábio, visto que viajava apenas quatro léguas em animais, os homens podiam alimentar-se. Para
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4. Fogado antigo. Foto: João Rural
completar, consumiam um pedaço de rapadura. Com base nesse movimento, certos estu-
Comer somente a carne – como, às vezes, vemos diosos da alimentação no Brasil consideram que
em filmes – era impensável, pois não se podia pa- a comida mineira é um desdobramento da que
rar muito tempo para caçar. Era preciso caminhar foi levada de São Paulo, já com os pratos forma-
constantemente. Se um homem roubasse carne, tados. Ocorreram algumas mudanças, como o
sua morte era certa. Na região do Vale do Paraíba virado-de-feijão transformando-se em tutu. Edu-
e nas serras gaúchas, o pinhão foi o grande ali- ardo Frieiro, em seu livro “Feijão, Angu e Cou-
mento dos viajantes, já que essa castanha demora ve”, afirma que “há uma comida típica mineira,
até quatro meses para estragar. Também no Vale, por reconhecer uma constante nas preferências
a tradição de comer içá foi destacada por Montei- alimentares”, mas, em contrapartida, ressalta
ro Lobato, que não abdicava dessa iguaria. que “essas preferências não são exclusivas dessa
No século XVIII, durante o ciclo do ouro, mesma população”. É de se considerar, portanto,
a comida ficou ainda mais valiosa. Pela quanti- que, quando Minas se expandiu, o Vale do Para-
dade de pessoas que se deslocou para as minas, íba e outras regiões paulistas já eram movimen-
a produção agropecuária naquela região tornou- tadas há pelo menos 200 anos. Destaca-se, nesse
se escassa. Nesse contexto, entraram os tropeiros contexto, o papel de nosso tropeiro, que ia lan-
paulistas, transportando tudo o que fosse possí- çando seus costumes e tradições pelas trilhas em
vel e ganhando muito dinheiro com isso. Alguns que passava.
produtos, como o sal e o açúcar, chegavam a valer Trouxe mandioca, levou o milho, plantou
até quatro vezes o preço de São Paulo. Boa par- a cana-de-açúcar, conservou a carne de porco,
te desses viajantes buscavam as mercadorias no plantou feijões, descobriu o arroz e mostrou as
Vale do Paraíba, em São Paulo. Muitos homens frutas tropicais. O tropeiro foi o responsável por
dessa região foram responsáveis pela fundação essa “misturança”, formando a base da alimenta-
de várias cidades do Sul de Minas Gerais. ção brasileira por vários séculos. Naturalmente,
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5. aos poucos, novos produtos foram incorpora- milho, faziam a farinha de mandioca e comiam
dos, com a chegada de imigrantes, mas essa base em separado, jogando o alimento direto na boca.
continua até hoje, em qualquer cozinha que se Existem ainda pelos sertões os caipiras que con-
preze. Não há como falar em comida brasileira seguem colocar um punhado de farinha na boca,
sem considerar-se paçoca, farofa, torresmo, fari- sem derrubar nada.
nhas, feijões, açúcar ou arroz. Trata-se, portanto,
de uma cozinha em que as aventuras do tropeiro cana-de-açúcar
ajudaram a temperar. Pela necessidade, os europeus trouxeram a
cana e a técnica de fazer o açúcar. Em pouco tem-
O cardápio tropeiro po, a produção de rapaduras, açúcar mascavo e
melado tornou-se o grande negócio, principal-
mandioca mente nos engenhos do Nordeste, cuja produção
Os primeiros viajantes que chegaram ao era enviada para o Sul. Aos poucos, os engenhos
Brasil descreveram muitas belezas e curiosida- alastraram-se, de modo que cada região tinha
des desta terra. Um item que chamava a atenção sua produção. Com o açúcar abundante, a doça-
era a alimentação dos silvícolas. Por isso, em ria, regalia dos senhorios, ficou popular. Nessas
vários escritos, mencionam que os índios se ali- circunstâncias, bastou pegar as frutas tropicais
mentavam de uma raiz branca, chamada inhame abundantes, colocar num tacho e deitar açúcar:
ou cará, que eram os nomes que eles conheciam. estava inventado mais um sabor brasileiro. Outra
Mas logo observou-se que não era bem isso. Na inovação foi a cachaça, que fez a fortuna de mui-
realidade, o índio chamava a essa raiz de manioca, tos engenhos, e que ganha cada vez mais espaço
hoje conhecida como mandioca. Desse tubérculo em mercados estrangeiros.
eles faziam farinha, mingaus e até uma bebida al-
coólica, que os europeus aprenderam a saborear. porco
Com a chegada dos equipamentos e da sabedoria Os colonizadores trouxeram consigo suas
dos europeus, sua lida foi melhorada, transfor- criações, incluindo carneiros, cabritos, galinhas,
mando-se na famosa farinha que conhecemos até gansos, cavalos e gado. Mas o animal que mais se
hoje em um dos tripés básicos da alimentação no adaptou, devido ao clima úmido e à falta de pas-
Brasil. tagens, foi o porco. Bastava soltá-lo numa peque-
na mata que ele se virava, revolvendo pântanos e
milho comendo raízes. Desse modo, o porco se tornou,
Junto com a mandioca, os exploradores em pouco tempo, a fonte principal de gordura
descobriram outra novidade: o milho, alimento para a alimentação diária. Esse nutriente, aliás, os
milenar descrito pelos viajantes que se encanta- índios já o retiravam dos porcos-do-mato, antas e
ram principalmente com o de pipoca, que virava outros grandes animais. A banha de porco, além
“flor”, quando jogado no fogo. O milho moído de tempero, tornou-se “geladeira” dos alimentos,
nas famosas “pedras de ralar” virava quirera pois era utilizada para conservar todo tipo de car-
ou fubá grosso. Assim, era cozido e saboreado. ne. Por isso, há a famosa “carne na banha”, prato
Os índios não tinham o hábito de misturar os encontrado em muitas pequenas cidades do in-
alimentos. Moqueavam a carne, cozinhavam o terior.
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6. Tropeiro prepara almoço na trempe. Foto: João Rural
feijão de o tropeiro que possuía o mantimento ser con-
Os índios tinham seus feijões tropicais. Os siderado rico. Eram os tropeiros de tropas de
portugueses, por sua vez, sempre apreciaram fazenda. Os outros, que trabalhavam por conta
feijão, principalmente o branco. Os negros já própria, eram os jornadeiros e raramente tinham
adoravam o feijão-preto. Isso tudo foi chegando essa vantagem. Por isso, para dizer que se estava
e entrando porta adentro das nossas cozinhas, bem, usava-se essa expressão.
formando muitos pratos apreciados até hoje.
Adicionando-se o arroz, vindo com os europeus, fogado secular
formou-se o prato mais famoso do Brasil: o arroz Um dos pratos mais característicos da re-
com feijão. gião do Vale do Paraíba é o afogado, mais co-
nhecido como ”fogado”. Sua história remonta há
carne-seca mais de um século. De acordo com antigos co-
O tropeiro levava sempre carnes e tou- zinheiros, fazendeiros e pesquisadores, o prato
cinho salgados para agüentar a viagem. O que nasceu de forma muito simples. Consta que os
muita gente não sabe é que, para tirar o sal do fazendeiros matavam as vacas mais velhas para
toucinho, o cozinheiro usava um artifício muito fazer carne-seca, cujo modo de preparo ajuda a
simples. Cortava o alimento em pedaços, coloca- conservar e amolecer a carne endurecida pela
va numa panela e adicionava mais um punhado idade dos animais. As patas eram rejeitadas pe-
de sal. Quando a água estava começando a fer- los senhores, mas aproveitadas pelos escravos e,
ver, ele mexia bem e eliminava todo o líquido, posteriormente, empregados das fazendas. Essas
deixando o toucinho sem sal. partes eram cortadas e colocadas em grandes pa-
É conhecida a expressão “estou por cima nelas, apenas com água e sal, por uma noite intei-
da carne-seca”, cuja origem relaciona-se ao fato ra, “afogando” em fogo brando, para amolecer.
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7. Com certeza vem daí o nome “afogado” ou, po- o café da manhã. O resto do feijão cozido, sem
pularmente, “fogado”. Um detalhe é que o prato tempero, era colocado num caldeirão e levado no
não tinha gordura, somente o mocotó e o tutano “saco de trem” para o almoço do caminho. Na
do osso, que lhe davam um sabor especial. O mo- parada, o madrinheiro fritava mais torresmo, ti-
lho era à base de urucum, alho, cheiros-verdes, rando o excesso de gordura. Juntava, então, o fei-
alfavaca, e hortelã-pimenta. Esses dois últimos jão já cozido aos temperos e à farinha de milho,
ingredientes ajudariam na digestão, segundo os fazendo, novamente, o feijão-tropeiro. Os mais
negros, responsáveis pela adição à receita. O de- abastados acresciam carne-seca e lingüiça defu-
poimento do ‘Seu’ Sebastião Benjamim, que fale- mada ao feijão. O arroz podia tanto ser simples
ceu com 103 anos, confirma as informações sobre como misturado com pedaços de torresmo frito,
o surgimento do prato: “Meu pai, José Antonio fazendo, assim, o arroz tropeiro. Para completar,
Cassiano, pegava as pernas do boi, queimava e fazia-se o café, fervendo a água e adicionando o
raspava bem o couro, tirando os pêlos. Retirava o pó e o açúcar. Retirava-se a bebida do fogo e colo-
casco e cortava em pedaços. Colocava num pane- cavam-se dois pedaços de carvão, com o propósi-
lão de ferro, com água e sal, e deixava afogando to de decantar o pó, de modo que nem o coador
a noite toda. No outro dia, retirava os pedaços de era necessário.
ossos e temperava com o colorau, alho, hortelã e O tropeiro tinha um equipamento básico
alfavaca. Tava pronto pra comer, fazendo no pra- de cozinha, o “jacá de caldeirão”, feito de bambu.
to, um pirão com farinha de mandioca, que era Nele, eram colocados um casal de panelas (cal-
feita em casa mesmo”. deirão e panelinha) de ferro, pratos, canecas, co-
lheres e uma ciculateira. Nesse conjunto, ia tam-
bém a trempe, que consistia em três ferros: dois
A comida do tropeiro para fincar e um para servir como travessa, onde
eram penduradas as panelas. Em alguns casos,
Apesar de ter à disposição imensa varie- esse equipamento era improvisado com madei-
dade de alimentos, quer na natureza, quer nos ra verde e usado uma só vez. Havia, ademais, o
pousos e fazendas em que parava, o tropeiro ali- “saco de trem”, que consistia em um saco branco
mentava-se no dia-a-dia com uma comida que, com mais saquinhos dentro, nos quais se guarda-
embora simples e prática, tinha muita “sustan- va feijão, arroz, farinha de mandioca, sal, açúcar,
ça”, como eles mesmos diziam. A alimentação alho, toucinho salgado e pó de café. Como se vê,
básica em sua jornada era feijão, arroz, carne-seca apesar de não haver nada sofisticado, a alimen-
e toucinho. Havia, também, os acompanhamen- tação atendia as necessidades da pesada jornada
tos, como farinhas de milho e de mandioca, sal, de caminhada. Desde São Paulo até o Rio de Ja-
alho, açúcar e pó de café. Logo de madrugada, neiro, por exemplo, levavam-se até 15 dias.
o madrinheiro, um jovem, acordava e colocava
o feijão para cozinhar, enquanto os outros arrea-
vam a tropa e colocavam as cargas nos animais. João Rural
Depois de cozinhar o feijão, fritava-se o toucinho, Jornalista. Autor do livro de receitas “Sabores do tempo
completando-o com farinha de milho, de forma a dos tropeiros”.
preparar um feijão-tropeiro bem gordo. Esse era
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