O Brasil e suas Eloás: a presença feminina, avanços e desafios
1.
2. ÍNDICE
REPORTAGENS
2 O Brasil e suas Eloás
VIOLÊNCIA
Capa: Simone de Beauvoir em 1949
Foto: Elliot Erwitt / Magnum Photos
7 As Marias da terra
LUTA SOCIAL
EDITORIAL
A presença feminina, Clara Charf
1 12
ENTREVISTA
avanços e desafios Guerreira da Paz
Diretoria Executiva da CNTE
14 A qualidade vem da formação
FORMAÇÃO
ARTIGOS
5 20
O silêncio perverso da violência Rompendo barreiras
SEXUALIDADE
Por: Samantha Buglione
SIMONE
26
10 As mulheres nos movimentos sociais “Não se nasce mulher: torna-se mulher”
DE BEAUVOIR
Por: Claudia Prates
:
A invisibilidade da questão de Os meus, os seus, os nossos:
36
18 NOVAS FAMÍLIAS
gênero entre nós o novo desafio da família
Por: Lúcia Rincon
Espaço cresceu, mas domínio
MULHERES
41
24 Sexualidade: qual o papel da escola?
ainda é dos homens
NA POLÍTICA
Por: Letícia Érica Gonçalves Ribeiro
45
30 A passos lentos
O que é ser mulher? POLÍTICAS PÚBLICAS
Por: Milton B. de Almeida Filho
MULHERES
39 47 Recordistas da vida
A transitoriedade do amor
NO ESPORTE
Por: Jô Moraes
Eleições 2008 CRISE
50
43 Essa crise não é de TPM
Mais mulheres no poder INTERNACIONAL
Por: Raquel Felau Guisoni
53 Ela subiu nas tamancas e o mundo se curvou
HOMENAGEM
Mátria : a emancipação da mulher / Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação
(CNTE) – a. 7, 2009 – Brasília : CNTE, 2003-
60 p. : il. ; color.
Anual
ISSN 1980-8984
1. Direitos da mulher. 2. Gênero. 3. Feminismo. I. Título. II.
52
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).
GIRO PELO MUNDO
CDD 305.42
CDU 396(05)
Esta edição foi fechada em Brasília no dia 11 de fevereiro de 2009.
Confira também a versão eletrônica no site:
www.cnte.org.br
54 INTERAGINDO
A CNTE autoriza a reprodução do conteúdo desta revista com a devida
citação da fonte.
3. EDITORIAL
1
A presença feminina,
avanços e desafios
O destaque da edição é a escritora Simone de Beauvoir, que continua
a grande referência na longa jornada pela igualdade entre mulhe-
res e homens. Com seu exemplo de vida, rompeu preconceitos e
demonstrou a relevância dos intelectuais, mulheres e homens, para a luta
teórica feminista.
Aproveitamos sua história para abordar o amor, o casamento, a fa-
mília, a transitoriedade dos sentimentos, que desafia as relações e impõe
modelos em que o antigo núcleo familiar está em xeque. A participação da
mulher na sociedade é debatida, com base nas eleições de 2008, na perspec-
tiva da ampliação feminina no poder.
A crise econômica e financeira que assola o mundo também atinge
de maneira particular as mulheres, razão pela qual a revista Mátria discute
o tema e procura divisar os problemas conjunturais que agravam a já difícil
condição feminina. E diante das guerras imperialistas e dos massacres a
populações inocentes, Clara Charf destaca, em entrevista, a importância da
luta pela paz e por uma nova sociedade, temas caros ao nosso ideário.
Uma educação não sexista continua no horizonte desta publicação,
daí a importância em debater a sexualidade e a necessidade da visibilidade
de gênero na educação, bem como a diversidade sexual e o tratamento que
lhe dá a escola.
No âmbito das conquistas, há que reconhecer a lenta evolução dos
direitos da mulher no tortuoso caminho pela igualdade de gêneros. Aplau-
sos, portanto, à Lei Maria da Penha, que tem encorajado muitas mulheres a
denunciar a violência doméstica.
As lutas e os avanços revelam-se, também, em detalhes de perso-
nalidades, conhecidas ou anônimas, que transformam diariamente o País.
Seja por meio da irreverência de uma Carmen Miranda, que enfrentou pre-
conceitos ao afirmar o seu lugar na sociedade; das vitórias de desportistas,
que elevam o nome do Brasil no exterior; ou da defesa da terra e do meio
ambiente por centenas de mulheres, que, em pleno século XXI, no Norte do
país, vivem, por isso, sob a ameaça de morte.
A novidade deste número é o encarte teórico sobre a concepção
emancipacionista do que é “ser mulher”, de Milton B. Almeida Filho, psicó-
logo e professor de filosofia, um homem que participa da luta feminista, e
que, como Jean Paul Sartre e tantos outros ao longo da história, dá contri-
Ilustração: Chico Régis
buição expressiva à luta pela emancipação da mulher.
Boa leitura!
Direção Executiva da CNTE
CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação Mátria
Março de 2009
4. vIOLêNCIA
2
Ilustração: Chico Régis
O Brasil
e suas Eloás
As mulheres estão mais conscientes
de seus direitos e reagem mais às
agressões. Mas a caminhada ainda
é longa. Em todo o país, cresceu o
numero de denúncias, reflexo da Lei
Maria da Penha
A história se repete diariamente no Brasil. A diferença, agora, é que as mulheres estão denun-
ciando mais. M., de 24 anos, hesitou muito, antes de procurar ajuda. Mãe de três filhas, morava
em uma cidade satélite do Distrito Federal. Já estava acostumada com as agressões do marido,
que, seguidamente, chegava em casa alcoolizado, “fora de si”, diz ela.
M. era atendente em uma padaria. Era, porque agora está em uma casa-abrigo, com suas filhas, à
espera de uma nova vida. A história dela se confunde com a de centenas de milhares de mulheres, subme-
tidas à violência dentro da própria casa. M. denunciou e está traçando um novo rumo para sua história.
Ela é um dos 269.977 atendimentos realizados no ano de 2008 pela Central de Atendimento à Mulher
- o de número 180. Um aumento de 30% em relação ao mesmo período em 2007 (janeiro a dezembro).
“A Lei Maria da Penha tem ajudado muito nesse processo. As mulheres estão denunciando mais, em-
bora o número seja ainda pequeno - um levantamento da Fundação Perseu Abramo revela que o total de
mulheres espancadas no país deve chegar a 2 milhões por ano”, revela Myllena Calazans, assessora técnica
do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfêmea).
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Março de 2009
Mátria
5. vIOLêNCIA
3
Eloá
[ Central de Atendimento à Mulher – Disque 180 ]
O ano de 2008 teve como pano
269.977 atendimentos realizados em 2008
de fundo histórias de violência con-
O Distrito Federal foi o campeão com 351,9 atendimentos para cada 50 mil mulheres.
tra a mulher, que o público acom-
Em segundo lugar, está São Paulo (220,8) e Goiás em terceiro (162,8).
panhou de perto. O Caso Eloá (Eloá
» PerFil Das usuárias
Cristina Pimentel, 15 anos), em San-
to André (SP), “foi emblemático”, se- a maior parte das mulheres que entrou em contato com o Disque 180 é negra
(39,2%), tem entre 20 e 40 anos (53,2%), é casada (24,8%), cursou parte ou todo o ensino
gundo Myllena. A tragédia da jovem
fundamental (33,3%) e não possui dependência financeira do agressor (47,7%).
mobilizou o país. A adolescente mor-
reu assassinada pelo namorado Lin- » PerFil Dos agressores
demberg Alves, depois que a polícia A maioria das agressões sofridas é doméstica (94,1%) e partiu dos cônjuges (63,2%),
resolveu invadir o cárcere privado que fazem uso de álcool e/ou drogas (57,2%).
de Eloá e, em uma ação “de despre-
paro, não conseguiu evitar a mor-
Brasil acompanhou em tempo real forma a desculpar o criminoso,
te da jovem”, lamenta a assessora.
minimizando suas ações e tratan-
Eloá “morreu previsivelmen- o drama da menina e sua amiga
do-o como um jovem trabalhador
te por estar recusando uma rela- Nayara, que a acompanhou no cár-
em crise amorosa”, escreveu, no
ção de poder e dominação. Morreu cere. “A cobertura da mídia, entre-
site Observatório da Imprensa.
por ser mulher e por ser vítima de tanto, não observou o caso como
Segundo ela, cabe uma críti-
uma relação de desigualdade, ba- um exemplo de violência contra a
ca aos meios de comunicação, que
seada em uma cultura machista e mulher e tratou-o de forma sensa-
tiveram um comportamento de
patriarcal”, avaliou a Ministra Nil- cionalista, revelando a insensibili-
“subversão de todos os valores que
céa Freire, da Secretaria de Políti- dade nos casos em que as vítimas
cas para as Mulheres. devem reger a comunicação so-
são mulheres. A verdade é que
Especialistas consideram cial, especialmente a dignidade da
Lindemberg manteve as duas em
que Eloá foi vítima de sua atitude pessoa humana e a não-discrimi-
cárcere privado porque estava in-
de transgressão a uma chamada nação. Programas de televisão não
conformado com o fim do relacio-
“ordem social”, quando se recusou respeitaram sequer a situação de-
namento”, observa Myllena.
a continuar o namoro com Lindem- licada das vítimas e interferiram,
O assassinato de Eloá, por-
berg. “Ela teve coragem de romper ao vivo, conversando com alguém
tanto, “não pode ser tratado como
com ele e sustentar a separação por que estava cometendo um crime”.
um ato passional apenas”, explica
um mês. Uma atitude que colocou
Myllena. “Ela demonstrou um ato
em xeque a posse dele sobre ela”,
Foto: Elza Fiuza
de coragem e rompeu uma ordem
analisa Myllena.
social, apesar de todo o histórico
De acordo com a ministra, “a
de violência que sofria dentro da
sua recusa, a sua escolha por não
própria família, com o próprio pai
estar mais com ele, a sua opção
acusado de violência contra a ex-
pelo fim da relação foram sua sen-
mulher.”
tença: o ‘lugar’ da jovem Eloá na or-
Para Cynthia Semíramis
denação tácita da sociedade não é o
Machado Vianna, professora uni-
de rechaçar o macho e, sim, o de, ao
versitária e mestre em Direito pela
ser escolhida por ele, aceitá-lo, aca-
PUC-MG, “no caso de Santo André,
tando a vontade dele”.
tanto as autoridades quanto os
O caso assumiu proporções
midiáticas e durante cinco dias o meios de comunicação agiram de Nilcéa Freire: Eloá é vítima de relação de desigualdade
CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação Mátria
Março de 2009
6. vIOLêNCIA
4
Campanha para os homens de), Fundo de Desenvolvimento meio do site: www.homenspelofi-
das Nações Unidas para a Mulher mdaviolencia.com.br
Em 2008, o governo federal,
(Unifem) e o Fundo de População “Ainda há muitos desafios
por meio da Secretaria Especial de
das Nações Unidas (UNFPA). no campo da violência contra
Políticas para as Mulheres (SPM),
Governadores, ministros, a mulher. Por isso, nós decidi-
lançou a campanha “Homens
representantes de classe e de en- mos dialogar diretamente com
unidos pelo fim da violência tidades, jornalistas, escritores e o os homens. A sociedade precisa
contra as Mulheres”. A iniciativa presidente Luiz Inácio Lula da Sil- enten-der que a violência con-
conta com a parceria do Instituto va já aderiram a campanha, que tra a mulher não é um problema
Papai, Instituto Promundo, Ações em janeiro contava com quase 35 das mulheres”, afirma a minis-
em Gênero e Cidadania (Agen- mil assinaturas - todas feitas por tra Nilcéa.
Foto: Arquivo CNTE
Violência presente nas escolas
A violência nas escolas atinge tins, as questões sociais e as difi-
a cada dia um milhão de crianças e culdades familiares são alguns dos
adolescentes no mundo inteiro. A fatores que contribuem para a violên-
estimativa é da Organização Não-Go- cia. Mas não é por falta de leis que a
vernamental Plan, entidade sem fins violência escolar não é resolvida. “A
lucrativos que há 70 anos atua em 66 Constituição Federal, em seu Artigo
5o, coloca os direitos individuais e
países em defesa dos direitos da in-
coletivos. Nós temos também a Con-
fância e da juventude. Um ambiente Roberto F. Leão: “O medo tem que ficar fora da escola“
venção dos Direitos Humanos, a Lei
que deveria ser tranqüilo e seguro
de Diretrizes e Bases (LDB) e o Esta-
transforma-se em palco de agressões, escolas tomou um outro rumo: a en-
tuto da Criança e do Adolescente. Só
xingamentos e discriminação. trada das meninas em vários confli-
está faltando passar da teoria à prá-
O pedagogo Charles Martins, tos. Elas vão para a escola com revol-
tica”, diz.
assessor de Educação da Plan Brasil, veres, estiletes e facas e usam essas
E foi a prática que mudou a
diz que a necessidade de policiamen- armas por qualquer motivo: ciúmes
Escola Parque de Ceilândia, cidade
to é um sintoma de que a violência do namorado, inveja ou até mesmo
do Distrito Federal, que chegou a ser
chegou ao extremo. “Por que temos para assustar professores.
considerada uma das mais violen-
que ter uma intervenção punitiva? Para Roberto Leão, presidente
tas da região. A comunidade escolar
Porque a questão educacional e a re- da Confederação Nacional dos Tra-
seguiu à risca as orientações do Mi-
lação com a família e com a comuni- balhadores em Educação (CNTE), que
nistério Público, criou o Conselho
dade não conseguiram restaurar na acompanha as denúncias de casos
de Segurança Escolar e a mudança
escola um clima de paz”, questiona e de violência contra professores nas
aconteceu com reuniões semanais e
responde Charles Martins. escolas públicas por meio das entida-
atividades em grupo.
Um caso de violência contra des filiadas à Confederação em todo
A socióloga e antropóloga Mi-
professor chocou o Distrito Federal o país, “o medo tem que ficar do lado
riam Abramoway defende que a es-
em 2008. O diretor do Centro de Ensi- de fora da escola. A escola é uma das
cola deve ser aberta para que os jo-
no Fundamental do Lago Oeste, Car- bases da sociedade, cuidar para que
vens expressem suas opiniões, além
los Ramos Mota, foi assassinado no o ambiente escolar seja produtivo,
de inserir as famílias no contexto
quintal de sua casa porque combatia harmonioso e seguro é um papel que
escolar. Ao mesmo tempo lamenta
o tráfico de drogas dentro do colégio. deve ser dividido entre governo, edu-
a constatação de que a violência nas
Para o pedagogo Charles Mar- cadores, pais e alunos”, ressalta.
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Mátria
7. ARTIgO
5
O silêncio perverso
da violência
Samantha Buglione
Professora de Direito e Bioética, doutora em Ciências Humanas, coordenadora do CLADEM-Brasil
(www.cladem.org) e do Instituto Antígona (www.antigona.org.br) / buglione@antigona.org.br
A direitos de ordem pública quanto
violência doméstica é a vida do outro - como propriedade
silenciosa e brutal. A privada. Ou seja, os direitos, que - ficam subsumidos ao interesse do
Organização Mundial se realizam no âmbito privado, são mais forte.
da Saúde relata que quase 50% das valores públicos cuja realização Nesse sentido, a violência
mulheres assassinadas são mortas se dá em espaço específico (o do- contra a mulher é sintomática de
pelo marido ou namorado (atual méstico, por exemplo). Isto implica uma forma de compreender a pro-
ou ex); o Banco Interamericano de perceber que a paz doméstica não priedade privada e a relação com
Desenvolvimento aponta que, na pode ser de exclusiva preocupação os seres vivos em geral. Primeiro,
América Latina e no Caribe, a vio- dos atores privados, mas interessa acha-se possível ter a propriedade
lência doméstica incide sobre 25% a a toda a coletividade. de outro ser vivo; depois, acredita-
50% das mulheres.
O interesse público está ex- se que se tem domínio e arbítrio
posto nas normas constitucionais de vida e morte sobre ele. Ao con-
Direito privado como bem comum e no modelo vigente de democra- trário do que possa parecer, a vio-
cia constitucional. Quando é difícil
A separação entre público e lência doméstica contra a mulher
compreender que o campo público
privado, presente na forma de se não é conseqüência da cultura do
é de todos, acha-se que o privado é
pensar a violência contra as mu- pátrio poder dos romanos, porque,
o lugar de total arbítrio, sem qual-
lheres, evidencia muito da cultura mesmo lá, havia regras e limites
quer ligação entre eles - ligação,
brasileira. No Brasil, a privatiza- para o seu exercício.
esta, que ocorre do ponto de vista
ção do espaço público, em parte,
dos direitos e não dos interesses.
é sintoma da nossa limitação para Usando medidas compensatórias
Tal distinção é um desafio
compor politicamente o interesse
A violência, de modo geral,
porque, via de regra, a conexão en-
público e, principalmente, respei-
caracteriza-se pela lógica do domí-
tre público e privado é vista como
tá-lo. Roberto da Matta explicou
nio de um sujeito sobre o outro. A
favorecimento a alguém e não
esse viés, presente na lógica do
violência contra a mulher é exem-
como garantia - no campo privado
compadrio e dos favorecimentos,
plar: tira, do outro, o movimento,
- da realização de direitos, como à
- o famoso “jeitinho”, comum en-
o poder, a ação, a dignidade e, em
saúde. A desatenção para com isto
tre amigos. Usa-se o público para
alguns casos, a integridade física e
contribui para a permissividade,
satisfazer interesses privados e, no
a vida. Ela reduz o outro a objeto
prevalecendo o arbítrio do mais
privado, acredita-se poder tudo.
de deleite de quem domina - uma
forte cujo fundamento é a satisfa-
Por implicar a dimensão pú-
arbitrariedade, como afirma Han-
ção exclusiva do interesse de um
blica dos próprios direitos priva-
nah Arendt. Seja resultante de in-
dos sujeitos da relação (seja a que
dos, o interesse público refere-se
teresses econômicos ou morais,
evidencia tensão entre interesses
ao bem comum, agregado à so-
viola, ao mesmo tempo, a liberda-
ciedade edificada juridicamente privados e públicos, seja a de vio-
no Estado, englobando tanto os de e a igualdade.
lência doméstica). O corpo, a casa,
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Março de 2009
8. ARTIgO
6
igualitária de interesses. Sem es-
Não é possível considerar a Para que isso ocorra, é necessária
ses mecanismos, não se constroi
situação de violência como uma a consideração equitativa, através
uma sociedade capaz de respeitar
simples relação de poder: nesta de mecanismos capazes de com-
o direito à igualdade e eliminar
há a tensão, a influência mútua pensar diferenças e vulnerabilida-
relações de domínio. Tratar de for-
de um sujeito sobre o outro, onde des reais. A Lei Maria da Penha é
ma igual (formal e materialmente)
ambos tentam se persuadir, o que um exemplo paradigmático. Afir-
pressupõe igual consideração de
não ocorre na situação de domínio mar que esta lei viola a igualdade
interesses, o que, em algumas situ-
em que um dos personagens vê seu é desqualificar o sentido de demo-
ações, exige tratamento diferencia-
poder anulado, como nas histórias cracia e atesta uma incrível limi-
do, para se realizar.
de violência doméstica. Maria da tação sobre o que se entende por
Penha e a jovem Eloá são exemplos igualdade jurídica.
“Leis como a Maria
do que acontece, via de regra, no si- Em democracias constitu-
lêncio da casa. cionais, as normas fundamentais
da Penha, que
Se ignoramos que o sujeito são expressão de um ethos tanto
passivo da ação, aquele que a sofre objetivo quanto intersubjetivo, ex-
tratam da violência
(seja humano ou não), é sujeito de plícitas no projeto de justiça social
doméstica contra a
direitos, reproduzimos, em alguma nelas prescrito: a igualdade e uma
medida, o eixo central que justifica vida sem violência o exemplifi-
mulher, não violam
as práticas brutais de violência. A cam. É esta a conexão aceitável
incapacidade de perceber o outro entre público e privado.
a igualdade entre
como um ser com vontade, capaz Ao Direito cabe dar condi-
de sentir dor, prazer e viver a vida ções para o livre desenvolvimento
homens e mulheres,
com singularidade, contribui para das potencialidades do sujeito, só
pois permitem a
a estruturação da matriz cogniti- possível com a eliminação de pri-
va da violência. Quando o poder é vações de liberdade e a garantia da
realização igualitária
exercido com fins de dominação, igualdade.
acaba por anular qualquer equilí- Como sistema político, a
de interesses”
brio em uma relação. É por isso que democracia não prescinde de
‘estar vítima’ de violência não sig- isonomia e imparcialidade para
nifica ‘ser vítima’ ou ‘ser’ um sujei- se realizar. Este é o grande desa-
Pela equidade e o fim da violência
to sem poder. fio, porque na democracia todo e
Por derivar de matriz própria, qualquer cidadão deve ter direito
Não é possível uma políti-
a violência exige tratamento espe- de expressão para participar do
ca justa e de respeito aos direitos
cífico. Ou seja, para cuidar do su- processo decisório. E participar do
fundamentais se violência urbana
jeito que a sofre, é preciso respeitar processo decisório exige que as re-
e violência doméstica forem trata-
o principio da igualdade. Trata-se lações não sejam pautadas por prá-
das da mesma forma, como tam-
de criar mecanismos de equidade ticas de domínio e violência mas
bém não é possível, ao menos no
para os interesses de sujeitos com que sejam equilibradas, resguar-
contexto moral atual da sociedade
singularidades, vulnerabilidades e dado o direito de livre e equipa-
brasileira, tratar da mesma forma
histórias específicas. rada influência entre os sujeitos.
a violência contra homens e a vio-
Leis como a Maria da Penha, A igualdade só é garantida
lência contra mulheres, principal-
que tratam da violência domésti- se o sujeito está livre da sujeição
mente no âmbito doméstico.
ca contra a mulher, não violam a e da violência. Até que isso ocor-
O igual reconhecimento de
igualdade entre homens e mulhe- ra, leis como a Maria da Penha
interesses dos diferentes sujei-
tos morais pressupõe equilíbrio.
res, pois permitem a realização são necessárias.
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Março de 2009
Mátria
9. LUTA SOCIAL
7
As Marias da terra
Duas décadas nos separam do assassinato do líder
seringueiro Chico Mendes mas os defensores da
terra e da reforma agrária, dentre eles dezenas de
mulheres, continuam, ainda hoje, ameaçados de morte
A luta pela terra e a defesa do meio ambiente motivaram a
inclusão de 200 nomes na lista de marcados para morrer no
Norte do país. Destes, calcula-se em 20% o número de mulhe-
res. O movimento social, que teve grande repercussão na década de 1990
com a luta do seringueiro Chico Mendes, persiste na Região Norte do
país graças a milhares de ‘Marias’, que, anônimas, lutam por um Brasil
melhor e mais igualitário.
Maria Joel Dias da Costa e Maria Ivete Bastos dos Santos, brasi-
leiras, com mais de 40 anos. Duas Marias que têm em comum muito
mais do que o mesmo nome. São trabalhadoras rurais e líderes sindi-
cais. Mulheres que, mais do que por escolha própria, tinham já traçado
o caminho da luta e da defesa dos direitos dos que vivem na terra e da
terra. Uma causa social e de sobrevivência. Ambas têm o nome inscrito
na lista de mais de 200 pessoas marcadas para morrer na Região Norte
do país. Vivem com escolta policial e já enfrentaram atentados.
A lista de pessoas ameaçadas de morte naquela região, apurada
pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), abrange desde lideranças sindi-
cais – como as Marias – até religiosos, índios, ribeirinhos e ambienta-
listas. Todos, defensores da preservação da Amazônia, seja na luta pela
sobrevivência dos povos, das florestas, pela manutenção do emprego e
da renda. Pessoas anônimas, que se dedicam a uma causa e muitas vezes
acabam pagando com a própria vida.
O caso mais emblemático dos últimos anos sobre a violência con-
tra os defensores da região aconteceu em 2004, com o assassinato da
missionária Dorothy Stang. O crime ganhou repercussão nacional e in-
ternacional. Uma história típica de engajamento, pela manutenção de
um modelo extrativista baseado na agricultura familiar e de baixo im-
pacto ambiental, que mais uma vez alimentou a ira dos fazendeiros e
grileiros contra a missionária.
Dorothy Stang morreu. Assim como Chico Mendes, seringueiro
assassinado há 20 anos em Xapuri, no Acre. Mas estas mortes deixa-
ram pelo caminho uma série de ativistas, que hoje lutam pela defesa da
causa na região. “A maior parte das lideranças sociais não é muito co-
Fotos: Divulgação
nhecida do país em geral”, explica Marco Apolo Santana Leão, da Socie-
dade de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). Ele destaca que a própria
Dorothy Stang só tornou-se conhecida em todo o Brasil após seu assas-
Mátria
Março de 2009
10. LUTA SOCIAL
8
sinato. “O que não significa dizer Joel, que após ter seu marido – o não teria a coragem de fazer Refor-
que não há liderança. Há, sim. São líder sindical José Dutra da Costa ma Agrária para os pobres e comu-
milhares de pessoas que aqui de- (Dezinho) – assassinado, assumiu nidades tradicionais”, diz. Maria
senvolvem um trabalho junto aos a liderança do Sindicato dos Tra- Ivete explica que a parceria que há
trabalhadores rurais e ribeirinhos, balhadores Rurais. Uma missão com o governo na região se refle-
extrativistas etc”, diz. que hoje lhe custa a liberdade. te na criação de assentamentos,
Os conflitos no Norte do Maria Joel vive há quatro na discussão sobre a questão da
país não são recentes. Estão liga- anos com escolta policial e já so- propriedade da terra e no comba-
dos ao embate entre agricultu- freu uma tentativa de assassinato te às queimadas. E lamenta a área
ra familiar e extrativismo versus dentro do próprio sindicato: “Meu do seu município ter mudado de
grandes plantações de monocul- esposo foi uma liderança que não perfil com a chegada da soja. “Nos
turas e extração da madeira. Em mediu esforços para defender a últimos 15 anos, a população da-
Santarém, no Oeste do Pará, terra vida dos outros. Pagou um preço qui era de 80% na área rural. Com
de Maria Ivete Bastos dos Santos, muito alto” . a soja, 70% vivem agora na cidade”,
os conflitos sempre ocorreram, Embora a luta seja árdua e in- avalia Maria Ivete”.
mas se agravaram a partir do ano termitente, tanto as Marias quanto Marco Apolo destaca que a
2000, “até uma década após a che- os representantes de movimentos região conta agora com varas agrá-
gada da soja na região, que trouxe sociais da Região Norte comungam rias e com o fortalecimento da
com ela vários projetos de infraes- da mesma opinião em relação aos Ouvidoria e Corregedoria da Polí-
trutura, com a criação de portos, avanços alcançados junto aos go- cia. Apesar de tudo, “no Estado, já
dando início a um novo ciclo de vernos estaduais e federal na defe- contamos com números bons de
produção, que antes era ocupado sa pela terra e pela floresta. “Tive- redução de homicídios ligados à
pela agricultura familiar e extrati- mos um avanço e reconhecimento terra - resultado do trabalho dos
vismo”, relembra Maria Ivete. grande nos acessos sociais com o movimentos sociais, em parceria
governo do presidente Lula, embo- com o poder público”. Ele, entre-
Marcadas para morrer ra a gente perceba que há também tanto, alerta: “o problema é que o
da parte dele um olhar para o agro- Estado não é apenas o governo. Há
Maria Ivete explica que a soja
negócio”, avalia Maria Ivete. toda uma estrutura que ainda pre-
levou a Santarém muitos impactos
Para ela, “outro presidente cisa ser aprimorada”, diz.
sociais e a cultura do grão se insta-
lou em áreas de comunidades ru-
Foto: www.ndnu.edudorothystang
rais. “Os produtores familiares tive-
ram que vender suas terras por um
preço bem barato e muitos foram
obrigados a sair. Isto porque a terra
não era legalizada, 90% só tinham
a posse, o que não era suficiente”.
A luta pela terra e a conse-
quente expulsão da área são os
principais fatores geradores de
ameaças, que têm como alvo, mui-
tas vezes, as mulheres da região.
De acordo com Marco Apolo, pelo
menos 20% dos nomes na lista de
marcados para morrer são mulhe-
res. Ele destaca a história de Maria Morte de Dorothy Stang chamou a atenção para a luta pelo meio ambiente
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Mátria
11. LUTA SOCIAL
9
Histórias que se repetem
Foto: Fabio Rodrigues Pozebon
Foto: www.greenpeace.org.br
Maria Joel Maria Ivete
Dias da Bastos dos
Costa Santos
Idade: 42 anos
Idade: 45 anos
Presidente do Sindicato de Trabalhadores e
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Trabalhadoras Rurais de Santarém/PA
Rurais de Rondon do Pará/PA
Estado civil: Casada
Estado civil: Viúva
Filhos: Três
Filhos: Quatro
Assumiu a liderança dos trabalhadores rurais
Assumiu a liderança do Sindicato depois que teve
na região em 1997. Vive hoje com escolta
o marido assasinado. Vive há quatro anos com
policial. Está ameaçada de morte. Faz parte do
escolta policial. Já sofreu um atentado dentro do
Conselho Nacional de Seringueiros. Nascida
próprio sindicato e enfrenta constantes ameaças
em comunidade tradicional ribeirinha onde
verbais e por carta contra a sua vida. Nasceu no
permaneceu até os 35 anos de idade. Trabalhou
Maranhão, mas está no Pará há 25 anos.
no seringal e na fruticultura.
Medo: “Tenho certeza que Deus deu a vida e só
Medo: “Temo pela minha família. Se alguém
ele tem o direito de tirar. Não tenho medo de
tiver que pagar pelo que faz, que seja com a
morrer”.
minha vida. Também tenho medo do avanço
tecnológico. A globalização não globalizou o ser
humano para melhor. Há uma perda de valores,
Sonho: “Ver o meu país como um lugar onde
apesar do acesso a mais coisas”.
todos têm o direito de viver com suas famílias
livremente”.
Sonho: “Ver as desigualdades sociais superadas
em um mundo mais solidário e mais humano. É
preciso acreditar. Tenho esperança”.
CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação Mátria
Março de 2009
12. ARTIgO
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Foto: Tania Meinerz
As mulheres nos
movimentos sociais
Marchamos até que todas sejam livres!
Claudia Prates
Coordenadora da Marcha Mundial de Mulheres no Rio Grande do Sul, Secretária de
Mulheres PT/Porto Alegre e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
A lando suas características à biologia.
feministas foi desqualificando sua
bordar a relação das
Essa questão é emblemática
prática, sua expressão, ao mesmo
mulheres com os movi-
para o debate sobre a participação
tempo em que dissimulava a incor-
mentos sociais implica
feminina nos movimentos sociais.
poração de suas propostas.
refletir sobre sua participação polí-
E no movimento de mulheres há
Isso se deu por meio da visão
tica em geral. Para isto, o primeiro
setores que guardam a mesma con-
liberal de direitos, com ênfase no in-
desafio é retirar a invisibilidade de
cepção e restringem suas propostas
dividualismo (e não na autonomia
sua presença ao longo da história.
a alterações legais e normativas e ao
individual), ao mesmo tempo em
Quanto mais se recupera a partici-
acesso aos espaços de poder, sem
que o mercado organizava a vida das
pação das mulheres nos processos
questionar o modelo tradicional.
mulheres. E foi interpretado como
de luta, mais cai por terra a visão
O fato é que é muito mais
um paradoxo: de um lado, crescia
corriqueira da acomodação. Ou
complexa a situação feminina sob a
nos espaços institucionais o discur-
seja, recuperar a experiência das
globalização neoliberal. Há a persis-
so da equidade de gênero, enquan-
mulheres é, também, recuperar a
tência de uma espécie de dualidade:
to na vida concreta a grande maio-
história de rebeldia, indignação e
um pequeno número de mulheres
ria das mulheres perdia direitos.
a persistente luta por liberdade e
tem inclusive acesso direto ao ca-
Nesse processo, que em parte
igualdade. Sem dúvida, a mulher
pital, não mais apenas mediado por
dura até hoje, predominou a visão
esteve presente em todas as lutas e
suas relações familiares e de heran-
de que a vida das mulheres já mu-
resistências dos povos oprimidos.
ça, enquanto um enorme contingen-
dou muito, que são mais escolariza-
As análises atuais partem do
te arca com os custos da expansão
das, estão em postos executivos e
que significou nas últimas décadas
capitalista, complementando ações
de direção etc. Recuperou-se a con-
a emergência da onda feminista
que deveriam estar a cargo do Esta-
cepção de que as mulheres são mais
surgida nos anos 1960. Em todos os
do, sob o jugo de empregos precários
protetoras, acolhedoras, cuidadosas,
momentos de grandes mobilizações
de longas jornadas, muitas vezes no
éticas - usada como argumento para
e disputas por projetos na sociedade
domicílio. Faz parte desse processo a
sustentar a noção de que a mulher é
também fortaleceu a presença polí-
migração das mulheres do Sul para
eficiente ou superior, à primeira vista
tica das mulheres. O mesmo ocorre
o Norte, onde são incorporadas so-
um valor positivo, em contraponto à
em relação aos períodos de fortale-
bretudo nos serviços de cuidados e
misoginia que cultiva o ódio e a des-
cimento do conservadorismo e de
na indústria do entretenimento, que
valorização do feminino. Essa visão
práticas retrógradas em que se incre-
inclui a prostituição.
vincula à maternidade as habilida-
menta o machismo e a desigualda-
A mercantilização operada
des construídas pela mulher, refor-
de de gênero. Por isso, é necessário
pelo neoliberalismo em defesa do
çando a ideia de “essência” e os pa-
olhar com cuidado o que se passou
capital ameaça as bases da vida,
péis tradicionais. Portanto, segue não
durante a hegemonia neoliberal, no
suscitando novos desafios para o
reconhecendo a inteligência e razão
país, nos anos 90. A forma como os
movimento de mulheres e para as
enquanto atributo feminino, vincu-
conservadores atacaram as ideias
CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
Março de 2009
Mátria
13. ARTIgO
11
que estão engajadas nos movimen- articulação, expressou o seu envol-
mulher é sujeito ativo na luta para
mudar radicalmente esse modelo -
tos sociais. Na verdade, ampliou-se vimento e o seu compromisso com
que também é patriarcal, racista, ho-
uma questão antes restrita a alguns o movimento antiglobalização e
mofóbico/lesbofóbico e depredador
setores: o movimento de mulheres permitiu ampliar e intensificar os
do meio ambiente.
deve atuar com uma agenda mais debates, como, por exemplo, o da
abrangente. Isso implica construir mercantilização do corpo e da vida
um projeto global de mudança para das mulheres.
“Os movimentos
a sociedade, em conjunto com os Afirmamos o direito à autono-
demais movimentos sociais. Ao mia e autodeterminação femininas
mistos precisam
mesmo tempo, os movimentos mis- e reivindicamos a igualdade como
tos precisam assumir o tema do fe- princípio organizador do mundo
assumir o tema do
minismo em seu programa, o que que queremos construir.
feminismo em seu
só será plenamente possível com a Atualmente, em todo o mun-
auto-organização das mulheres – o do e em particular na América Lati-
programa, o que só
que significa que cada vez mais o na, os principais movimentos têm a
movimento de mulheres tem que se participação expressiva das mulhe-
será plenamente
auto-organizar nos espaços mistos. res. A resistência feminina expressa
forte dinamismo e cada vez mais or-
possível com a auto-
Nova dinâmica contra o ganiza lutas que conectam as várias
neoliberalismo dimensões. Ou seja, a luta da mulher
organização das não é apenas uma agenda específica
No bojo da luta contra o ne-
mulheres” a ser agregada a uma agenda macro:
oliberalismo deu-se nova dinâmica
trata-se de uma luta de transforma-
ao movimento de mulheres, com
ção integral da sociedade. Entende-
a recomposição da postura crítica,
Mobilização e visibilidade se por isso que não se mudará a vida
minoritária nos anos 90, quando da
de cada uma, enquanto não mudar a
institucionalização e perda de radi- Do ponto de vista organizati- vida de todas.
calidade da maioria do movimento. vo, a MMM atua com dupla estraté- Nossa luta, portanto, é pela
Um dos marcos desse processo foi o gia: de auto-organização das mulhe- superação da sociedade capitalista
surgimento da Marcha Mundial das res e de articulação com os movi- e machista e pela construção da so-
Mulheres (MMM), a partir da cam- mentos sociais mistos. E tem como ciedade socialista, capaz de romper
panha mundial contra a pobreza e ponto principal de sua identidade a com todas as formas de exploração,
a violência, com a crítica global ao ação militante e de mobilização. Por
opressão e discriminação. Isso faz
neoliberalismo e ao capitalismo. Foi isso, deu contribuição efetiva para a
com que o movimento de mulheres
uma ação importante, recolocando retomada da mobilização nas ruas,
atue com uma agenda ampla, incor-
de forma ampla o debate sobre gêne- a partir da ampla organização das
porando todos os temas relaciona-
ro e classe. A MMM, em vários paí- mulheres desde a base, que se arti-
dos ao modelo de desenvolvimento.
ses, foi a alternativa à institucionali- cula do nível local ao internacional.
Em 2010, a MMM organizará
Construiu e reforçou alianças com
zação e à perda de radicalidade, reto-
sua terceira Ação Mundial e mais
vários movimentos sociais. Houve,
mando a idéia de auto-organização,
uma vez nos uniremos às mulheres
assim, mais legitimidade diante de
de mobilização e educação popular,
do mundo inteiro para ecoar nossas
outros movimentos mistos, na cam-
do feminismo vinculado à luta an-
vozes por igualdade, liberdade, justi-
panha contra a ALCA.
ticapitalista, portanto, recolocando
ça, solidariedade e paz.
A participação em processos
a questão de classe, sem abandonar
amplos, como o Fórum Social Mun- A nossa luta é todo o dia.
as questões de etnia, orientação se-
dial, aumentou sua visibilidade e Somos mulheres e não mercadorias!
xual, juventude etc. Para a MMM, a
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Março de 2009
14. ENTREvISTA
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Guerreira da Paz
Escritora e ativista, Clara Charf foi
companheira do fundador da Aliança
Libertadora Nacional (ALN), Carlos
Marighella (1911-1969), durante 21
anos. Trilhou um caminho árduo em
defesa da paz. Participou dos protes-
tos contra a bomba atômica, durante
a Guerra Fria, e de vários Congressos
em prol da paz. Na década de 1950,
lutou contra o envio de soldados bra-
sileiros para a Guerra da Coreia.
Com o Golpe Militar de 1964, teve seus
direitos políticos cassados, conheceu
a clandestinidade, perdeu o compa-
nheiro Carlos Marighella, assassinado
em 1969. Viveu no exílio por quase
dez anos e só pôde retornar ao Bra-
sil com a Anistia. Em 2005, recebeu o
prestigioso Prêmio Bertha Lutz.
Hoje, aos 80 anos, sua luta por um
mundo mais justo permanece. Partici-
pa da Comissão de Mortos e Desapa-
pação de bases como Guantána-
Mátria: Como defensora da paz,
recidos Políticos. Integra a Secretaria
mo, crise econômica, problemas
como a senhora definiria hoje a
de Relações Internacionais do Partido raciais em vários países da África.
situação mundial, os conflitos e a
dos Trabalhadores. Também atua no Por outro lado, o crescimento da
constante luta pelos direitos huma-
Conselho Nacional dos Direitos da luta dos povos em todos os conti-
nos? A paz é possível? A luta pela
Mulher (CNDM), vinculado à Secreta- nentes por direitos humanos, por
paz é uma luta globalizada?
independência, liberdade e demo-
ria Especial de Políticas para Mulheres
cracia. Exemplos como no nosso
Clara: A situação mundial é mui-
da Presidência da República.
continente: Brasil, Bolívia, Equa-
to preocupante em vários senti-
dor, Venezuela, Chile, Argentina,
dos: focos de guerra, ocupação de
Autora do livro “Brasileiras Guerreiras
Uruguai. A paz é uma conquista
países como o Iraque por parte
da Paz” (Contexto, 2006), Clara Charf
decisiva, é a luta do cotidiano con-
dos Estados Unidos, Afeganistão,
é uma unanimidade quando o assun- tra a violência, por direitos políti-
guerras nos Oriente Médio, o dra-
to é cidadania. Nesta entrevista, Cla- cos e sociais, por educação, habita-
ma do povo palestino, tentativas
ra atesta: “só se conquistam direitos ção, cultura. A luta pela paz é uma
de dominação econômica em di-
com respeito mútuo e solidariedade”. luta globalizada.
ferentes regiões do mundo, ocu-
CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
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Mátria
15. ENTREvISTA
13
Mátria: Como a senhora avalia o
ção política: poucas mulheres nos
Mátria: Como a senhora enxerga o
engajamento das mulheres nos mo-
parlamentos e nos executivos com
Brasil de hoje, 45 anos depois da di-
vimentos sindical e social ? Por que
voz e vez. Mas é bom lembrar da
tadura?
há tão poucas lideranças do sexo fe-
participação de muitas mulheres,
minino? O que falta para aumentar
hoje, em diferentes organizações,
Clara: Depois de 45 anos de dita-
a participação das mulheres?
seja em sindicatos ou em gru-
dura, responsável pela perda de
pos contra a violência doméstica.
tantas vidas valiosas de jovens,
Clara: Cresceu, mas ainda é peque-
Atualmente, todas elas são re-
mulheres e homens, idosos - a
no. Para exercer a liderança, é pre-
presentadas pela figura de Maria
quem devemos honrar -, o Brasil
ciso facilitar as condições práticas.
da Penha. E também de nossas
é muito diferente. É o que se con-
Como ser uma dirigente sindical,
pioneiras, desde Nísia Floresta,
quistou até agora: poder falar, or-
por exemplo, se ao sair do traba-
passando pelas mulheres que lu-
ganizar, propor, dar vez e voz aos
lho o homem vai para o sindicato
taram pelo direito ao voto, como
índios, negros, às mulheres, aos
e a mulher vai fazer as coisas em
Berta Lutz, as que enfrentaram
jovens, aos idosos; estreitar as
casa? E muitos outros exemplos.
ditaduras durante a II Segunda
relações entre os povos de nosso
Guerra Mundial, como Eneida Mo-
continente e fazer cada vez mais o
Mátria: A senhora foi companheira
rais, Olga Benário, parlamentares,
intercâmbio de experiências.
do guerrilheiro Carlos Marighella,
como Zuleika Alambert, Adalgisa
durante 21 anos. Como definiria o
Cavalcanti, e, na ditadura de 64, a
Mátria: As lutas sociais do mundo
trabalho dele e o legado que ficou
luta das mulheres do Araguaya e a
de hoje, do Brasil de hoje são as mes-
dos tempos de luta pela democracia
luta pela anistia.
mas da década de 1960. A essência
no Brasil?
permanece?
Mátria: Como a senhora enxerga o
Clara: Marighella, o poeta, o luta-
trabalho do governo Lula na área
Clara: As lutas sociais são, hoje,
dor, sempre trabalhou pela justiça,
social?
mais avançadas, mas dependem
a liberdade, a igualdade entre to-
dos acontecimentos. Na década
das as raças, usou todas as tribu-
Clara: Aumentou muito o traba-
de 60, no mundo, a grande mobi-
nas para defender suas posições
lho do governo Lula na área so-
lização foi contra a invasão norte-
no Parlamento, nas ruas, nos mo-
cial, inclusive o reconhecimento
americana no Vietnam e a inter-
vimentos sociais ou, diretamente,
e o respeito pela organização das
venção norte-americana nos paí-
contra a ditadura militar que o
mulheres, o que ficou claro nas
ses do nosso continente, como foi
assassinou no dia 4 de novembro
duas grandes conferências nacio-
o golpe militar no nosso país, em
de 1969. Ele foi um grande defen-
nais de mulheres e na Marcha das
1964, com a derrubada do governo
sor dos direitos da mulher e, en-
Margaridas.
de João Goulart, e nos demais paí-
tre os dirigentes de esquerda de
ses da nossa América.
sua época, um “feminista”, talvez
Mátria: A mulher, hoje, tem mais
sem conhecer o significado dessa
oportunidade?
Mátria: Como conselheira do
categoria. Abriu todos os espaços
CNDM, como a senhora define a
para a participação da mulher nas
Clara: Sim, mas ainda enfrenta
situação da mulher brasileira, hoje,
diferentes formas de luta no Bra-
muitos preconceitos, não tem salá-
em relação às políticas públicas?
sil. O legado que ficou daquelas
rio igual, não ocupa devidamente
lutas pela democracia é que só se
postos de mando, faltam serviços
Clara: Cresceu a participação da
conquistam direitos, liberdade e
sociais para facilitar sua participa-
mulher no nosso país, em todas as
igualdade com o respeito mútuo
ção na ação diária, de acordo com
áreas, na vida econômica e social,
e muita solidariedade.
sua capacidade e sensibilidade.
mas ainda é pequena a participa-
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16. fORmAçãO
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A qualidade vem da formação
Foto: Divulgação MEC
Sistema Nacional de Formação de Professores tem o desafío de quadruplicar o número de vagas nas instituições públicas de ensino superior
O A educadora Helena Frei-
Atualmente, do universo de
ano de 2009 começou
tas, coordenadora do Programa
um milhão de professores da educa-
com boas notícias para
de Formação e Capacitação de
ção básica, cerca de 700 mil não têm
professores e professo-
Docentes, da Coordenação de
formação adequada para o nível em
ras. No final de janeiro, o Ministério
Aperfeiçoamento de Pessoal de
que atuam. A falta de formação ain-
da Educação deu inicio à política na-
Nível Superior (Capes), espera que
da é um entrave para a qualidade da
cional de formação de profissionais
o Sistema Nacional Público de
educação. Quem faz o curso de licen-
do magistério. Com isso, a partir de
Formação mude essa realidade.
ciatura em pedagogia, com duração
agora, União, estados, municípios e
“O nosso sonho de futuro é ver
de quatro anos, sai com nenhuma
Distrito Federal deverão trabalhar
o país enfrentar o desafio de ter
habilitação específica. E não é raro
juntos na formação inicial e conti-
100% dos professores, em exercí-
muitos professores se formarem,
nuada de 360 mil educadores e edu-
cio na escola pública, formados
sem saber o que e como ensinar.
cadores da rede pública de ensino.
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Março de 2009
Mátria