1) O documento discute as especificidades da produção e recepção do discurso lexicográfico em dicionários.
2) Há arbitrariedades na seleção de palavras-entrada e definições por motivações técnicas e ideológicas.
3) Exemplos e citações produzem efeitos de sentido e realidade, orientando a interpretação do leitor de forma implícita.
1. A enunciação do dicionário e os efeitos de sentido produzidos Sonia Mariza Martuscelli
2. Condições de produção-recepção específicas do discurso lexicográfico O engendramento do discurso do dicionário é presidido por questões específicas de produção/recepção sobre as quais é importante tecer considerações. Dentre as características específicas da enunciação da obra lexicográfica, destaca-se o fato de que – como reconhecem pesquisadores de linhas diversas – o dicionário é um produto pautado por arbitrariedades. Em metalexicografia, encontram-se observações sobre arbitrariedades relacionadas à gramática do dicionário, do ponto de vista estritamente técnico, atinentes às palavras-entradas selecionadas para compor a obra lexicográfica, ao número de verbetes, e às referências das palavras-entrada. Outros estudos apontam arbitrariedades de caráter ideológico, como as ligadas às representações ideológicas dominantes em determinada época e à subjetividade dos lexicógrafos. Ainda, encontram-se referências a arbitrariedades da técnica lexicográfica conjugadas com motivações de ordem ideológicas, tais como as relacionadas à escolha das palavras-entrada em função do caráter didático do dicionário e das pressões sociais a que ele está sujeito.
3. Do ponto de vista da análise do discurso, as últimas apreciações correspondem às indicações mais preciosas sobre as especificidades da enunciação do dicionário, vindo ao encontro da concepção do mecanismo da enunciação como ato no qual se inscreve a intencionalidade, isto é, como instância de mediação, encarregada de colocar, em enunciado-discurso, as estruturas semióticas virtuais. O enunciatário-lexicógrafo, diante das virtualidades atinentes à técnica e ao ideário de mundo, atualiza aquelas que, ao passo em que criam o discurso lexicográfico (discurso criatura), conferem a este o atributo de intérprete das realidades da língua e das representações do mundo (discurso criador). Do ponto de vista da desembreagem actancial, ou seja, do mecanismo pelo qual a enunciação projeta para fora de si os actantes (as categorias da pessoa) observamos que o discurso do dicionário examinado é construído segundo três perspectivas preponderantes: sob a forma de definições, de exemplos e de citações. A opção de narrar a história de acordo com cada uma dessas perspectivas produz efeitos de sentido diversificados.
4. A ilusão fabricada pela desembreagemenunciva,ou seja, a de que a enunciação está afastada do discurso, garante a imparcialidade do sujeito da enunciação, ocultando-se, desse modo, que este, na verdade, filtrou toda a história narrada, imprimindo-lhe, em face das opções que efetuou, um determinado sentido. Por outro lado, essa mesma ilusão funciona como expediente para persuadir o enunciatário (destinatário sócio-histórico do discurso) de que ele está diante da verdade inconteste: os fatos irrecusáveis que o dicionário comunica-lhe neutramente, através de um saber que transcende o indivíduo (o autor da obra lexicográfica) e que se embasa na ciência da Lexicografia. Essa pretensa neutralidade não resiste diante da constatação de determinadas opções do enunciador-lexicógrafo no que diz respeito colocar em enunciado discurso virtualidades da macro- e da microestrutura do dicionário. Nesse sentido, registram-se no Novo Dicionário, com muita notoriedade, a discriminação de gênero, a discriminação etária, a discriminação racial, a discriminação de classe social e a discriminação religiosa.
5. No verbete a seguir, a abonação das diferentes acepções da palavra-entrada é feita através de um conjunto de exemplos nos quais está patente a opção implícita do enunciador por narrar a história da supremacia do homem em relação à mulher: Gênio 3.Atíssimo grau, ou o mais alto, de capacidade mental criadora, em qualquer sentido: Dante é um poeta de gênio. 5. Indivíduo de extraordinária potência intelectual: Einstein é um gênio; Beethoven é um gênio da música. 6. Índole, temperamento: Impossível viver com ela: tem um gênio muito difícil. Nos exemplos arrolados, subentende-se que o ator do gênero feminino (ela, uma mulher qualquer) pauta-se por um reprovável comportamento irracional, em contraposição aos atores do gênero masculino (Dante, Einstein, Beethoven, personagens históricos), de raciocínio superior. Barata1. 2. Mulher velha; carocha. Capoeirão. Diz-se de, ou homem idoso que, por efeito da idade, é pacato. Cerne. 6. Pessoa velha, que não morre facilmente. Xoroca. Velha ridícula, desfrutável.
6. Embora sejam raros os verbetes relacionados a idoso, justamente o enunciador-lexicógrafo optou por arrolar e definir palavras-entrada, em desuso, nas quais o idoso é ridicularizado. Os exemplos e as citações que abonam as palavras-entrada, enquanto desembreagens internas, produzem, ainda, efeitos de realidade ou de referente, isto é, fazem crer que o discurso do dicionário copia a realidade: as vozes dos interlocutores na sociedade na qual se desenrola a história narrada. Relações Enunciador-Enunciatário Entre enunciador e enunciatário, estabelecem-se as seguintes relações: o enunciador, enquanto destinatário-manipulador da história da narração, exerce um fazer persuasivo (fazer-crer) sobre o enunciatário, visando a convencê-lo da verdade de seu discurso e a estimulá-lo para a ação (fazer-fazer); o enunciatário, enquanto destinatário da história da narração, deve ler a história narrada, interpretando-a, em conformidade com a orientação que o enunciador nela imprimiu, e cumprindo sua parte no contrato que entre ambos se estabelece implicitamente.
7. Entre os meios de persuasão e de fazer-saber (interpretar) de que o enunciador do dicionário dispõe, destacam-se os exemplos e as citações que abonam as palavras entrada dos verbetes. Graficamente já se diferenciam definições, exemplos e citações: as definições são grafadas em tipos ditos redondos, marcando a voz implícita do enunciador; os exemplos são impressos em itálico, como se proferidos por outrem que não o enunciador – como uma espécie de voxpopuli –; as citações, em tipo redondo, grafadas entre aspas, são transcrições de autores arrolados entre as fontes do dicionário e citados entre parênteses, após os trechos transcritos. Homem. 7. Homem (4) dotado das chamadas qualidades viris, como coragem, força, vigor sexual, etc.; macho: Homem que é homem, não leva desaforo para casa. Vingar. 15. Tirar vingança de ofensa recebida, ou de algo que é como uma ofensa; desforrar-se, desforçar-se, despicar-se: Não descansará enquanto não se vingar da derrota. Vingar. 1. Tirar desforço ou desforra de; desforrar, desafrontar: Soube vingar a honra ultrajada.
8. Já as citações dizem ser verdadeiro o discurso, com base no argumento de uma autoridade delegada, o autor do fragmento de texto transcrito – este, por sua vez, concede voz a interlocutores diversificados, sempre se corroborando o efeito de sentido de verdade do discurso lexicográfico. Há que se observar, neste ponto, que os trechos citados são extraídos de seu contexto primitivo, adquirindo, pois, no contexto do dicionário, um sentido diferente do que possuíam no discurso originário. A análise interna das citações, descontextualizadas e contextualizadas num outro texto, deixa entrever o que se passa na produção histórica dos discursos: um destinador sócio-histórico, determinando previamente os valores, delega o fazer narrativo ao sujeito da enunciação.
9. Concupiscência. 2. Apetite sexual: “Quem me livrará (coitado de mim) da concupiscência, raiz e seminário de todos os males humanos?” Ele. 1. Designa a 3ª pess. do masc. sing.: “o sangue de Xavier com ímpetos de mais acelerado, e ardente, e como .... mais adelgaçado no fogo do amor, ele por si se desfechou das veias.” Fiar. 8. Depositar confiança; acreditar: “Se fiamos num bem, que a mente cria, / Que outro remédio há aí senão ser triste?” Indulgente. 1. Pronto a perdoar; tolerante: “Somos excessivamente indulgentes para com as nossas franquezas e concedemo-nos, no amor, todas as liberdades.” Mentido. Falso, ilusório, vão, enganoso, mentiroso: “O desejo, abismo onde agonizam traiçoeiras ambições, mentidas esperanças, negras asas diabólicas!” Tremedal. 2. Degradação moral; torpeza: “os outros rebalsaram-se no tremedal das sensações brutais, e endeusaram o celebato, escoltado de escândalos, e o amor material com todas as suas impuridades.”
10. Na verdade, o jogo de exemplos e citações, entretecendo uma teia de pressupostos e subentendidos, informa ao destinatário como interpretar o discurso do sujeito da enunciação. Mentir. 2. Errar no que diz ou conceitua: Os provérbios, em geral, não mentem. Dizer. 7. Ensinar, preceituar: Os provérbios dizem, não raro, grandes verdades. Colher. 22. Ter o que colher : Só colhe quem semeia. Convelir. 1. Deslocar o que estava firme; subverter, abalar: Tais costumes podem convelir a estrutura social. Velar3. 9. Interessar-se, preocupar-se, zelar: Velar pela manutenção da ordem. Amoldar. 3. Ajustar, adaptar, harmonizar: Amoldou sua ideologia às conveniências da época.
11. Aconselhar. 5. Procurar convencer da necessidade ou conveniência de; procurar induzir, persuadir: Aconselhou-os a estudar. Assentar. 13. Fundar, fundamentar, basear: Sua cultura assenta em boas leituras. Valer. 2. Ter merecimento, valor ou aplicação: Na República de Platão os sábios eram os cidadãos que mais valiam. Valer. 3. Ter proveito; ser proveitoso; aproveitar: O estudo muito vale. Versado. Bom conhecedor; perito, prático, experimentado: “O aristocrata, muito versado em história natural, ensinou ao companheiro rudimentos de entomologia, geologia e botânica.” Tratar. 20. Ter conhecimento; manter relações; conviver: Trata com a elite intelectual do país. Convencer. 3. Adquirir certeza ; ficar persuadido; persuadir-se: “Cada vez me convenço mais do que assegura Anatole France: são as idéias que governam o mundo.”