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Pedro Marangoni
1
A Era do Não
2
Pedro Marangoni
MARIA DA SILVA E
A ERA DO NÃO
escárnio e maldizer em política, sociedade e religião
pedro marangoni
3
A Era do Não
copyright pedro marangoni
vendas: www.amazon.com
www.clubedeautores.com.br/
4
Pedro Marangoni
APRESENTAÇÃO
A realidade e o escárnio estão divididos nesta
obra, representados respectivamente por Maria da
Silva e A Era do Não. Infelizmente a verdade
também está presente na segunda parte porque o
sarcasmo é apenas uma maneira amarga de
encararmos a realidade com a consciência de que
quase nada podemos fazer.O ser humano é um
material de difícil reciclagem e outras teorias não
passam de hipocrisia.
Após lamentar Maria da Silva, o riso será
amargo com o escárnio de A Era do Não. Depois
fecharemos o livro e seguiremos pisando e sendo
pisados, num Inferno chamado vida, condenados à
eterna esperança...
5
A Era do Não
6
Pedro Marangoni
Sumário
APRESENTAÇÃO...............................................5
MARIA DA SILVA..............................................9
MATRIZ.........................................................27
DEVOTOS.....................................................28
SOCIEDADE.................................................28
SUICIDA........................................................29
DIÓGENES....................................................30
JUDAS...........................................................31
CIRROSE DE ZEUS.....................................32
PROPOSTA INDECENTE............................33
CONTO DE FATOS.......................................34
HOMEM ILHA..............................................35
E O SENHOR OBROU.................................36
ANTIGAS PENAS.........................................37
O SÉCULO PARIDO.....................................37
VERNACULARES DÚVIDAS.....................38
EGO................................................................38
PIADA............................................................39
REEMBOLSO MORTAL..............................40
PONTO DE VISTA........................................41
BIODEGRADANTE......................................42
MARGINAL..................................................43
BOBO POVO.................................................44
7
A Era do Não
NADA............................................................45
REAL DEVANEIO........................................46
CONCEITOS.................................................46
REGOZIJO.....................................................47
PALAVRAS, PALAVRAS.............................48
A CASA LAMENTO.....................................49
EXPLOSÃO...................................................50
CRISTÃOS....................................................51
MALDIÇÃO..................................................52
O DOER DOADO..........................................53
AMOR............................................................54
TEMPERO.....................................................55
RENDIÇÃO...................................................57
8
Pedro Marangoni
MARIA DA SILVA
Não é um despertar,
não se desperta para um pesadelo,
entreabrir os olhos e se ver
entrelaçada, enrolada num novelo...
Novelo no velho colchão mofado,
velado pelos olhos da desgraça,
braços esquálidos aos joelhos abraçados,
feto grande num mundo-ventre que amassa...
Cheiro acre de suor, azedo, seco,
envolve tudo como toque final,
traspassa o barraco, vindo do beco,
é marca sentida de toca animal...
Acorda a velha quase adolescente,
pele e ossos, dupla década é sua idade,
seios caídos, alguns poucos dentes,
nos olhos, apenas uma sombra de dignidade...
Gêmea da fome, da irmã nada separa,
se para nada jogada foi à terra,
aterra a esperança que é cara,
da cara o sorriso desterra...
Acabou-se.Terminou o curto sono.
Como o estômago, seu sono é vazio,
9
A Era do Não
sono sem sonho, sono medonho,
que desemboca num mundo venal e vadio...
Empurra a tábua que se veste de porta,
encara ao longe a riqueza que lhe é cega,
traçado que foi seu destino com linha torta,
sorve o ar, mas é morto o viver a que tudo se nega...
Recebe nos sujos trapos a tepidez do sol,
solitária, estremecida, a si mesmo abraça,
no beco onde a turba palpita está só,
cabeça baixa, principia a caminhar, frouxa, lassa...
Sai em busca da esquiva comida,
garimpeira, felina decadente, bicho,
cambaleante, lambendo a alma ferida,
caçando papéis, garrafas, lixo...
Lixo, garrafas, papéis, seu maná,
única dádiva que o planeta concede,
como ela descartáveis e desprezados,
mas que recolhe silenciosa, não pede...
Meio dia, meia vida,meia morte,
aperta a fome,é hora da permuta,
alguns trocados se tiver sorte,
no depósito que recebe, compra e insulta...
Desfila então pelos restaurantes,
passa sem olhar, ultrajada,
pelas madames nobres, elegantes,
interior podre, bela fachada...
Definidos por essa frase,
estão os restaurantes e as madames,
10
Pedro Marangoni
que no subir social não há quem as atrase,
pisando as Marias que servem de andaime...
Planeta dentro de planeta,
nada lhe diz respeito à sua volta,
o sol que outros bronzeia sua pele greta,
seus lábios seca e seca é a revolta...
No carrinho da esquina é bem recebida,
pelo irmão de desprezo, andaime sobrevivente,
compra pão, carne e bebida,
alívio na sede, estômago quente...
As leves pernas pesadas,
do longo calvário percorrido,
pedem o descanso na sarjeta,
e se estende, prêmio merecido...
As pernas desfalecem, não a consciência,
ferida é pelas palavras alheias,
que vagabunda, que indolência,
está faltando polícia, estão faltando cadeias!
Mas o calor na barriga é paraíso,
nada importa, não há o que assuste,
adormece sorrindo, sem siso,
e acorda de chofre com um forte chute!
De pé,andando vagabunda,
aqui não fica, não é seu lugar,
sua figura de pobre imunda,
espanta fregueses, os faz vomitar!
11
A Era do Não
Cadela escorraçada com gana e maldade,
seu amargor é silencioso, que o torpor ainda retarda,
mas resiste em sua dignidade e desprezo,
aos irmãos em desgraça tornados cães de guarda...
Pé ante pé,robotizada,
no meio-fio, não é para si a calçada,
aborta o dia e se recolhe,
ao útero sombrio que é sua morada...
Enovela-se.
Reconhece os odores, segura de novo,
são seus estes cheiros,é seu este chão,
feto esquecido, seguro no ovo,
casca de trapos, o ninho é o colchão...
Não é o sono que chega,
é o despertar que renega,
recusa o presente da vida,
e nessa falsa morte se queda...
O desfalecer é inteiro, surdo,
como animal que hiberna,
inconsciente é o desejo, escuro, turvo,
de não ressurgir, tornar-se eterna...
Agora já não existe,
agora já não sente,
o sol que a atormentava desiste,
e a vinda das trevas consente...
Meia noite, meia viva, meia morta,
Maria enovelada em seu paraíso,
12
Pedro Marangoni
paraíso enorme que termina na porta,
dormindo não ganha, não tem prejuízo...
Mais uma noite,
menos uma noite,
mais um inferno-dia,
menos um dia-açoite...
E neste arrastado manquejar,
almeja a única recompensa,
dissolver-se, o fim cortejar,
quem morre não come, não pensa...
Acabou-se.Terminou o curto sono.
Não aceita, aceitar não queria...
Teima.Em vão contesta.
Com a testa no vão espia,
queima novamente o sol que detesta...
Tem que enfrentar sua sina,
não é a mente, são estertores que ordenam,
seus famintos vermes de rapina,
que dia após dia, a servi-los condenam...
Contrafeita, sai do ninho,
enfrenta o beco, enfrenta o odor,
depara com um domingo, sem burburinho,
lixo tem, mas não tem comprador...
Apavorada se mete a caminho,
é dia de luta renhida, luta de cão,
se para os filhos é dia de pão e vinho,
13
A Era do Não
aos bastardos de Deus, o que der o lixão!
Urubus, cachorros, criança,
disputam entre cortes, furos, sem medo,
frenesi, chocante esperança,
pão velho! carne podre! leite azedo!
Desta azáfama o ruído,
não atrapalha felizmente a missa,
no templo próximo construído,
padre gordo, fiéis nutridos, divina carniça...
Enquanto lá,Deus ocupado, cai em graça,
no lixão chegam demônios em zombaria,
chafurdando em sujeira, maconha e cachaça,
se acercam rosnando, caçando Maria...
Sempre surpreendente essa vida,
emprestada pelo Construtor Mor,
que mesmo as mais profundas feridas,
consegue aumentar, tornar pior...
Como um bote de serpente,
mão suja lhe segura o pescoço,
e ferida fêmea, sem carne, doente,
torna-se para os cães, indefeso osso...
E vem o nojo
E vai a honra
E vem o sangue
E vai-se a turba...
Lixo de alabastro entre o lixo,
imóvel, urubus atentos em sentinela,
14
Pedro Marangoni
um cão a lambe, solidariedade de bicho,
e a liberta do estupor de cadela...
As lágrimas não são de dor,
enxurrada de ultraje num leito franzino,
pois ao magro corpo doer é rotina,
e rupturas brutais só são seu destino...
Destino de soçobrar no mar de covardia,
contra ondas amargas desde o alvor da idade,
pequena é a moléstia que fere a carne,
de quem estuprada foi pela Sociedade...
Ressuscita.Recolhe os trapos.
Sacode de si o repugnante fel.
Resiste.Forte fraqueza de contínua despejada,
num mundo que extorque absurdo aluguel...
Esta força é apenas instinto,
de voltar, arrastar para o ninho,
cerrar os olhos implorando,
Morte, me leva, me tira deste caminho!
E a tarde já foi tarde,
com mais uma filha crucificada,
e a criança ferida sem alarde,
se recolhe à toca, ultrajada...
Mais um dia
menos um dia
humilhada, enojada,
dorme-morre nossa Maria...
Há mil, dois mil metros, muito perto,
uma jovem explode em pranto,
15
A Era do Não
seu vestido não combina por certo,
com o novo sapato, cruel desencanto!
Mesmo mundo, mesmo Deus?
Qual é o crime que Maria carrega?
São mil pesos, mil medidas?
Porque criar se depois nega!
Enovela-se Deus, não responde.
Pelas frestas do barraco
o sol se esgueira,
com sorriso amarelo, velhaco,
acha Maria e a esbofeteia.
Acabou-se a doce morte, abre o olhos.
Senta na cama, sente o calor,
no rosto lívido assenta o clarão,
sente umidade, sente dor,
se assusta com o sangue que tinge o colchão...
O susto morre breve,
logo nasce a esperança,
que a dor que vem do seu cerne,
traga junto o fim, a bonança...
Mas é o crescei e ver a desgraça multiplicada,
que o destino mesmo às mais estioladas fêmeas
concerne,
pois na carne podre, dilacerada,
as nojentas moscas depositaram vil berne...
Enquanto no seu âmago prossegue um crime,
16
Pedro Marangoni
ela deixa-se ficar, exangue, morna,
sem compromisso com a vida, de viver se exime,
e deitada lentamente ao torpor retorna...
E vem a morte?
Maria delira...
E vem o sonho
e a vida gira...
A secretária olha pela janela.Suspira...
-Doutor, se não me engano,
jogaram uma indigente no jardim...
-Não atendo Previdência, só se tiver Plano,
é serviço de lixeiro, não para mim!
-Não conheço, só sou vizinho,
ela incomodava o bairro inteiro,
há dias não saia do ninho,
ninguém aguentava o mau cheiro!
É sonho,é real o que escuta?
Onde está seu corpo, não o sente,
onde está o barraco, a mente perscruta,
mas novamente se apaga, inconsciente...
-Como ser humano e sobretudo como médico,
farei o possível, o que é de minha alçada,
tirem-na do jardim para evitar meu descrédito,
chamem uma ambulância, mas a coloquem na
calçada...
17
A Era do Não
Sente-se arrastada, náufrago num rio,
será que vai ser finalmente recolhida?
Sente um odor conhecido,é o meio-fio,
onde foi abandonada, estendida...
Ambulância.
-Não dá para levar,é uma mendiga,
nós somos uma clínica, um hospital,
não precisamos atender, ninguém liga,
isso é obrigação do Serviço Social...
Serviço Social.
-Estou vendo, querida, que é uma indigente,
mas está doente, escutem, ela geme,
precisa de cuidados médicos, não é com a gente,
se a ambulância não levou, chamem a P.M...
P.M.
-Bom dia, Sargento Pereira...
É,é o que faltava para começar bem o dia...
Deve ser droga ou bebedeira,
vamos devolver à favela essa vadia...
No misturar das conversas,
sua mente vai e vem,
cessam então as sensações diversas,
e de repente sente-se bem...
É o cheiro do barraco!
É o cheiro do ninho!
Foi jogada de novo no meio dos trapos,
18
Pedro Marangoni
e sorrindo se enovela, se dando carinho...
Redemoinho.
Acorda sentindo uma carícia,
abre os olhos, recebe um sorriso,
quem é essa velha,é real, fictícia?
Será que está morta,é o paraíso?
Sorriso desdentado, expressão pungente,
rosto sofrido, penado, de dar dó,
lhe estende uma colher de caldo quente,
-beba minha filha, eu sou Maria Só...
Maria Só,nome só conhecido,
de uma velha que no lixão apanha comida,
vida longa mas destino parecido,
desgarrada,sozinha,esquecida...
Nada mais entre si falam,
até soar da colher na lata, o som metálico,
se entreolham, emocionadas se calam,
frente a frente, um corpo seco, outro esquálido...
As lágrimas correm em abundância,
abundância única que a elas não é negada,
Maria Só chora de bondade, quer salvar a criança,
Maria nossa, de se sentir pela primeira vez cuidada...
Torna-se um bebê,estremece, agradecida,
seus vinte anos num corpo de pequena idade,
Maria Só tornada mãe enternecida,
demonstra oitenta, mas tem a metade...
19
A Era do Não
Velha Maria nunca soube sua origem,
enrugada e marcada, silenciosa como uma avó,
solitária, filha do frágil com a coragem,
seu sobrenome ignora, diz apenas, Maria só...
Alimentada de caldo e amor, Maria adormece.
E vão-se os dias
e vem o despertar,
da criança ferida
em busca de um olhar...
Seria pela sopa na pequena lata?
Ou seria pelo toque, pelo amor?
Uma nodosa mão suas feridas trata,
um terno olhar faz esquecer o horror...
E Maria já desperta feliz,
sempre procurando aquele rosto,
esquecida de morrer, se é que quis,
não se lembra, agora de uma mãe sabe o gosto...
E vão-se as semanas,
e vêm as salvadoras latas,
Maria consegue se levantar à espera,
de quem sua fome de comida e amor mata...
Se adotaram irmãs, mãe, filha,
e agora a enferma quase recuperada,
quer cuidar da mãe-irmã, voltar à trilha,
catar papéis, buscar comida para a mãe cansada...
Mas enquanto numa humana primavera,
nossa Maria pensa que floresce,
20
Pedro Marangoni
como num humano outono,
a velha Maria sabe que fenece...
E a criança sonha que pode andar,
temerosa por Maria Só,que está murchando,
seus olhos opacos apenas ao vê-la comer voltam a
brilhar,
cada vez demora mais, chega cansada,
resfolegando...
Ainda é manhã,cambaleia,
empurra a tábua-porta e sente,
sente do sol agora amigo, o beijo quente que enleia,
afirma-se nas pernas, dolorida mas contente...
Decidida, ignora a dor no ventre,
irá em busca de papel e lata,
levará para sua mãe-irmã comida quente,
cuidará dela, o mundo não é mau, nem a vida
ingrata!
Nessa faina sacrifica-se ainda fraca,
quer ganhar dinheiro, se mune de destreza,
e após vender no depósito a mercadoria minguada,
célere compra comida e vai fazer a surpresa...
Barraco no fundo de barraco,
é onde se entoca a mãe-irmã amada.
-Dona, posso ir lá na Maria Só?
-Já levaram tudo, chegou atrasada...
Se queda sem entender e pergunta,
-Maria Só foi roubada?
-Não meu bem, aquela andarilha,
21
A Era do Não
morreu de fome, coitada...
A vida para.
A mulher fala.
-Não incomodava, eu arranjava o que podia,
já que mal andava e o lixão é tão longe,
lhe dava uma lata de sopa por dia,
mas parou de comer e a levava, não sei para onde...
Não! Nem uma lágrima!
Secou, acabou!
Cessaram as rimas.
Maria recolhe uma pequena lata engordurada,
desprezada pelos saqueadores do nada
e a aperta contra o peito descarnado.
Começa a andar, muda.
Sabe onde vai, pisa raivosa o chão,
atravessa a rodovia entre os carros, de medo
desnuda,
entra numa igreja,é hora da comunhão...
Aos gritos quase inumanos,
reagem assustados os fiéis,
e o padre fantasiado em alvos panos,
deixa cair o sagrado cálice aos seus pés...
-Onde está Deus, onde está seu patrão?
Está com medo, por que não me enfrenta?
O que fiz a Ele, para só me dizer não?
22
Pedro Marangoni
Nenhum animal minha vida aguenta!
-Que absurdo, que constrangedor,
como essa gente drogada avança,
ficai tranquilos, nos protege o Senhor,
coroinha, rápido, chame o segurança!
Expulsa do templo pelos vendilhões,
espancada pelo guarda que a Deus ajuda,
rola pela escadaria aos empurrões,
e vem de seu interior a dor aguda.
Nem um gemido.Maria agora é muda.
Morta, com o coração a bater,
mas seu bater já não importa,
bate na porta do inferno sem temer,
uma brisa a quebra, já não entorta...
A pequena lata não mais larga,
alarga os passos, ignora a dor,
nem fel sua boca mais amarga,
nem o mel adoça o sabor...
Caminha com os porquês.
Porque a quem nada tinha, nada de mal fez,
se dá e deixa experimentar o gosto da felicidade,
para depois arrancar, tomar de uma vez?
Porque o Diabo faz o que quer,
se Deus se diz poderoso,
deixa morrer em vida uma mulher,
23
A Era do Não
punida sem culpa num mundo asqueroso?
Porque, se não lhe dá vida de gente,
e Deus que tudo pode, pode dar a prova,
não a leva desta vida indecente,
e lhe deixe descansar numa cova?
E vem a noite
e Maria caminha,
e vem a madrugada
Maria delira...
Está caída mas imagina andar,
febril, uma chama queima o ventre,
esgotada mas não quer parar,
se parar enlouquece, se torna demente...
Vêm as contrações e o líquido quente,
desliza numa massa fétida, escura,
expulsa do seu corpo a vil semente,
feto suicida que recusa a mistura...
Mistura de Deus e o Diabo,
este fez o outro consentiu,
lamentam raivosos, enganados,
mais um corpo que deles fugiu...
Nossa Maria, Maria de ninguém,
já não sabe se é real, se está sonhando,
dor não sente, desespero também,
vê uma luz, será Deus chamando?
Cerra os lábios, ignora,
irreal ou não, está confusa,
mas se for Deus pode ir embora,
não aceita Seu remorso, Sua mão recusa!
24
Pedro Marangoni
Esvai-se Maria.
Chega a escuridão só sua e o alívio.
Sorri Maria.
E vem o nada.
Acabou-se.Terminou a curta vida.
O sol nasce exatamente como nas outras manhãs.
-Bom dia, pai, como foi o plantão?
-Tranquilo, nada de importante, apenas um corpo de
uma indigente.
-Café?
25
A Era do Não
26
Pedro Marangoni
A ERA DO NÃO
27
A Era do Não
28
Pedro Marangoni
A ERA DO NÃO
Sem honra
sem paz
frustrados
desesperados
cercados
pelo bandido
pelo bastardo
pelo político
pela polícia
pela malícia
sem esperança
sem amor
voltamos ao pó
chegamos ao chão
chegamos à ERA DO NÃO!
29
A Era do Não
MATRIZ
Pobre Deus,
imperfeito Deus,
se é nossa imagem e semelhança...
Se é adulto
e nos fez criança;
-também tem pança?
Miopia?
Desesperança?
Tortura o próprio filho
e o perfura com uma lança?
Se cópias perfeitas
à Sua estampa feitas,
caminhando à beira
da certa falência,
somos apenas um atestado
de Sua Santa incompetência...
30
Pedro Marangoni
DEVOTOS
Caríssimos:
creem piamente que acredito
no Pai, no Filho, no Espírito Santo?
Se vivo num mundo maldito,
se vivo uma vida sem encanto?
SOCIEDADE
Uma forma
uma fôrma
que nos toma
que nos torna
ferro dúctil na bigorna
e nos malha
nos transforma
nos trabalha
nos transtorna!
31
A Era do Não
SUICIDA
Ao partir definitivamente, afinal,
quero me desculpar, envergonhado confesso,
de ter tanto tempo deixado correr,
para descobrir que desejo meu regresso...
Debaixo de minha inferioridade alienígena,
não consegui ser um terráqueo nobre:
mentiroso, ladrão, falso, hipócrita!
Pequei por não ficar rico, apenas pobre...
Nunca consegui rir quando estava triste,
nunca fui amável quando irado...
Como sois perfeitos na arte de dissimular,
e sempre por um Deus amparados...
Eu, vulgar, só a mim tenho,
meu corpo físico sem alma,
minha mente química, perecível,
fenecendo sem alarde, calma...
Ao partir, extingo-me; vós não,
terão eterna vida! Ciência?
Exasperante minha ignorância! Demência?
Por que se apegais tanto então,
à terráquea existência?
32
Pedro Marangoni
DIÓGENES
Não saia do tonel
empunhando a lanterna;
a busca será eterna,
infinita como o céu,
infinita como o seu
crédulo saber
de ser
e não viver por querer
formar
criar
tecer
o verdadeiro homem a nascer.
33
A Era do Não
JUDAS
Meretriz
Mercenário
Missionário
Uma atriz
Um ordinário
Um salafrário
Juntar uma pitada de canalha
Leva-se ao povo
Deixe por uma eleição
Retire o político antes que se queime
desencante-se depois de frio...
34
Pedro Marangoni
CIRROSE DE ZEUS
Ah!,Prometeu,
essa dor lancinante,
em seu fígado exposto,
não foi causado pelo hidromel,
mas ordenada por Zeus, que desgosto!
Brincar com terra e água,
para um Titã,que ingenuidade,
brincou com fogo em verdade,
criou, que insano, a Humanidade!
E por sua criação, o reles homem,
sua mão no fogo colocou,
e se foi por eles que roubastes,
Hércules apenas uma parte pagou.
O porquê,infeliz Prometeu,
que os homens ainda lhe devem em verdade,
é que a águia que lhe devorou,
tem por nome...Humanidade!
35
A Era do Não
PROPOSTA INDECENTE
Prostíbulo.
Prostrada
a prostituta pensa,
na vida de patíbulo,
na corda suspensa...
Da profissão nada espera,
mas ao penar se exaspera,
porque muito tenta,
até regenera,
mas volta e volta e meia erra.
Deus está longe, muito acima,
a Polícia muito perto, logo atrás,
e carne abandonada pelos céus,
é presa do fero Satanás.
Ah!,bons tempos da colega Madalena,
que tinha divino alvará,
afortunada que ao Deus dava,
não ficando ao deus-dará.
E ingênua, reza à colega,
apelando, das putas a confraria,
se me livrasse do deus-dará,
também ao bom Deus daria...
36
Pedro Marangoni
CONTO DE FATOS
Jesus, Maria, José,
Raimundo, Nonato, Nazaré...
Todos têm Belém na história,
um, verde tropical, outro seco,árido,
história de miséria ou de glória,
história de um rei e de um criado.
Jesus, suposto rei cristão do mundo inteiro,
Raimundo, simples garçom dum puteiro.
Jesus teve pai carpinteiro,
sem dinheiro...
Raimundo tem pai seringueiro,
sem dinheiro...
Mas Jesus tinha um parente que fazia chover maná;
Raimundo, só um parente que vende tacacá.
Vende.Não faz chover...
E aí,Raimundo tem que pagar se quiser comer.
Abandonou o pai e com marmita garantida,
Jesus saiu para correr o mundo e conhecer a vida.
Há quem duvida...
Raimundo com o pai, de malária internado,
passa fome e trabalha dobrado.
É para ser acreditado...
Raimundo reza, implora, tudo é negado.
Mas continua com fé num velho conto mal contado,
Jesus poderoso, que pregou e foi pregado...
37
A Era do Não
HOMEM ILHA
Sem escolha numa vida
de escolhos lançado,
escolho tocar a vida
sem amar, sem ser tocado.
Preso ao trilho do destino,
destino à que comigo trilha,
tripudiando, déspota ferino,
o desatino que me torna ilha.
38
Pedro Marangoni
E O SENHOR OBROU...
Lendo os épicos sinto inveja
por querer cantar em prosa e verso,
gloriosa perfeição que a Humanidade almeja,
não só do homem mas do próprio Universo...
Olho, procuro, não encontro,
giro, busco, quedo-me tonto...
No mundo, por toda a parte há um cheiro podre,
se o dito Deus perfeito fez, não fez o que pôde...
Sofrem os homens, sofrem os animais,
perfeição não existe, não consta dos anais;
se um bom padeiro, um vero virtuoso,
não amassa um pão feio, um pão defeituoso,
como então Deus, perfeição por excelência,
produz o homem que contesta Sua própria
existência?
Para quê o inseto, para quê a rã,para quê a cobra,
para quê a tal cadeia alimentar,
para quê complicar tanto uma obra,
por que não se alimentar de ar?
Grande Construtor, que plano fabuloso,
garganta, traqueia, estômago, intestino grosso!
Criar animais para serem imolados,
boca adentro, esôfago, intestino delgado!
Por isso então esse mundo, de cheiro podre
dominado, não é senão Sua obra, no estado
mais refinado...
39
A Era do Não
ANTIGAS PENAS
No transportar da mente
ao pálido e silencioso papel,
palavras que se calam quando escritas,
gritos que a leitura não consente...
Ah! Saudades da velha pena,
engasgada, afogada no tinteiro,
que gemia, rangia e chorava,
acompanhando das ideias o devaneio...
O SÉCULO PARIDO
Chegastes, mas da tua pele o rosado,
não é por recém-nascido ser,
já é o refletir do crepúsculo,
de quem não irá crescer...
Seque século tuas lágrimas,
não comoveras um sequer,
porque és filho do Caos,
que tem Miséria como mulher...
40
Pedro Marangoni
VERNACULARES DÚVIDAS
Sim, sim,é proxeneta,
o próxeno de Deus desvirtuado,
o padre, cônsul dos céus,
em missão terrena enviado...
Sacerdote que de antemão,
ao vender o amor de Deus pede esmola,
é êmulo do rufião,
que vende amor e a prostituta esfola...
EGO
Poemas,
poesias,
poetas.
Rimas, versos, artistas,
efêmeras janelas de vaidades,
iluminadas,
esventradas,
oferecidas aos que já os têm dentro de si,
perenes,
mas que a alma mantém a casa
na doce e perpétua penumbra dos humildes...
41
A Era do Não
PIADA
Se foi realmente o Soberano Pontífice,
me diga lá,oh pouco ingênuo Pacelli,
dos doze, quantos pios deu,
sobre a matança dos judeus?
Não, não me diga Santidade
que foi por Roma, cidade aberta,
ser poupada para a humanidade,
é uma desculpa pouco esperta,
mas uma dúvida desperta,
aqui no íntimo meu,
será que para se ouvir o cristão pio,
devesse calar o grito judeu?
42
Pedro Marangoni
REEMBOLSO MORTAL
Qual a diferença, amigo defunto?
É que estou aqui enfadado,
com fome, suado,
e você neste belo sono profundo...
Ridículos, comemoramos o nascimento,
ridículos, lamentamos a morte,
para que viver em tormento,
se morrer é uma dádiva da sorte?
Um belo sono pesado,
nada melhor nesta vida,
é o morrer demonstrado,
indicando a saída...
O nada pode se alegrar?
O nada pode ser triste?
Nem bom nem ruim não nascer,
o nada simplesmente não existe.
Neste reembolso mortal,
pagamos porque dementes,
podemos recusar vil natal
e devolver-nos ao remetente...
43
A Era do Não
PONTO DE VISTA
Excelências, consciência!
Não temos pão nem leite,
nem onde mais se arroche...
Se não têm pão nem leite,
que comam brioche!
Excelências, consciência!
Acabou nosso dinheiro,
há uma revolta em surdina...
Que se dane o País,
que esmolem nas esquinas!
Excelências, consciência!
Esmolar é pilhéria,
nós queremos trabalho, não miséria...
Não atendemos no recesso,
vamos à Paris de férias!
Pois então cuidado,
seremos mil em cada esquina,
sonhem com Paris,
acordarão na guilhotina!
44
Pedro Marangoni
BIODEGRADANTE
Filhote, dos mais frágeis,
engatinha da vida um terço,
é notório que ainda aos vinte,
mama, chora e cheira a berço.
Confuso produto da natureza,
pequena boca que quer tudo à mesa,
começa correndo à própria frente
e quando dá por si vem a surpresa,
deixou-se para trás, já não aguenta...
Está se acabando, nada mais pode,
mas agora define o que a vida esconde:
-mocidade, muita sede para pouco pote
-velhice, um cântaro que foi demais à fonte...
45
A Era do Não
MARGINAL
Como um raio
rasgou o espaço da vida
com choque,
com estrondo.
Mas como um raio
só procurava o equilíbrio
entre o positivo
e o negativo.
Como um raio,
iluminado.
Como um raio,
incompreendido.
Como um raio,
temido.
Só procurava o equilíbrio
entre o bem e o mal;
bem ou mal, social.
Antinatural.
Era um homem normal...
46
Pedro Marangoni
BOBO POVO
Espero sentado
manietado
pobre coitado
de dias contados.
Espero sorrindo
amordaçado
num riso forçado
se esvaindo.
Espero com fé
um pouco curvado
o corpo doído
de um pontapé.
Espero clemência
um pouco assustado
quase esmagado
por esta demência.
Espero justiça
onde estará?
Chamo de novo,
sou eu...o Povo!
47
A Era do Não
NADA
Que vida?
Que futuro?
Existência?
Devaneios, não ciência...
O futuro, impalpável,
o presente, inexistente,
já passou.
Estas palavras já são passado.
Nós somos passado.
E o passado,
passado,
passou.
Impalpável agora como o futuro...
Não somos então.
Somos apenas,
...ilusão.
48
Pedro Marangoni
REAL DEVANEIO
Por quem os juros dobram...
Eles não dobram por ti,
operário que tece,
mas ao nababo que fia,
e, enquanto tu fenece,
ele em todo esplendor,
permanece...
CONCEITOS
Um inútil na vida?
A vida é inútil!
Uma sucessão de tropeços
buscando a experiência,
e quando esta chega
cruzamos com ela,
estamos partindo...
Um inútil na vida?
A vida é inútil!
49
A Era do Não
REGOZIJO
Mas que lindo,é Natal!
Flores à mesa,
velas acesas,
sorriem as crianças,
crescem esperanças...
Mas flores não se comem,
velas não vos aquecem,
regozijar estúpidos homens,
quando os deuses vos esquecem?
Olhai os sorrisos infantis – sem dentes,
os estômagos vazios – gementes,
as crenças cretinas – crescentes...
– Sois porcos, imbecis, indecentes!
50
Pedro Marangoni
PALAVRAS, PALAVRAS
Crescei,
multiplicai-vos!
Assim terão companhia
na fome, na desgraça...
Poesia!
Não peça ajuda na igreja,
aos padres de mesa vasta,
peça só o que mais almeja,
peça a Deus um basta!
51
A Era do Não
A CASA LAMENTO
A solidão de estar junto,
dia após dia,
com um corpo sem cérebro,
com uma alma vazia.
Para quê um corpo,
para quê o sexo,
se o elo da razão
está solto, sem nexo?
Namore a solidão,
case-se consigo,
congele o coração,
não durma com o inimigo.
52
Pedro Marangoni
EXPLOSÃO
Por que procura por versos,
para preencher seu vazio,
se cada coração, mesmo perverso,
busca alguém, como a um leito busca um rio?
Esqueça regras, tabus, destino ou azar,
deixe-se brilhar, não tema o desvario,
entregue-se ao próximo sem pensar,
deixe em seu leito correr um rio...
53
A Era do Não
CRISTÃOS
Não me importa
se sobre minha mortalha
repousem bandeiras, flores
ou medalhas...
Que carpideiras,
viúvas ou amantes,
deixem rolar de seus olhos
gotas de falsos brilhantes...
Não mais existo e nisto insisto.
Mas não resisto
e aos crédulos malditos
eu registro,
num
ápice de vida,
o nada infinito!
54
Pedro Marangoni
MALDIÇÃO
Maldição...
Ah! Negras asas de anjos infernais que me roçam...
Vosso trabalho é em vão, atirado que estou nos
porões da vida desde que à luz vim,à revelia de
Deus, este vingador!
Arrastai anjos negros suas asas sobre fugidias
vítimas; deixai-me relegado que amarrado estou a
um corpo cujo coração palpita mas a alma nunca
abraçou...
Vítima vossa não sou!
Faço sim, parte desgarrada do reto e direto
Inferno e para lá obediente voltarei.
Aliviado. Estarei entre meus pares sem lei...
Lá não há olhos doces que escondem tiranias...
Lá não há sorrisos que escondem covardias...
E sobretudo, lá não há um Rei ausente e covarde,
filho infecundo de Maria...
55
A Era do Não
O DOER DOADO
Dor perene, herdada,
dor esquecida, guardada
em páginas mudas estocada,
é a dor do poema em papéis lançada.
Gestação solitária, parto doído,
maldade de poeta que perpetua a dor,
latente bote armado, pronto para o ataque,
quando abre o livro um pobre pensador...
É a desgraça sofrida,é a perda de um amor,
é o chorar desvairado embrulhado para presente,
é o egoísmo de um desalmado autor
que lamentar sozinho não consente...
Que se calem as páginas, que o tempo passe,
que a dor se ensone e durma na estante esquecida,
não permita lágrimas alheias em sua face,
não sofra mais que a punição merecida...
56
Pedro Marangoni
AMOR
Guardadas não ficam na mente,
as mágoas, as decepções.
Na mente não ficam.
Elas pesam.
Pesam demais.
Descem rumo ao chão,
espessam nosso espaço, prendendo-nos,
sem força, sem vontade.
Sem vontade para seguir,
para ver à frente,
locomover, buscar, encontrar.
Nossa pequenez se acentua,
nosso raio de vida ao dobrar-se
não alcança o diâmetro da esperança.
Os passos temem o repetir do tropeço
na inesperada pedra da decepção...
57
A Era do Não
TEMPERO
Deixe-me ser o fator que descarrila
que faz saltar
que desvia.
Nos trilhos sua vida desliza;
em boa velocidade
ganha, vence o espaço.
Mas o correr contínuo,
o seguir dos trilhos,
a nada leva senão
à rotina de estar vivo.
Você precisa de mim.
Para ser seu interromper,
seu descarrilar, seu desvario,
seu verdadeiro viver!
58
Pedro Marangoni
RENDIÇÃO
Cansei-me das rimas, dos fáceis elos.
Cansei-me assim que a doença razão
em minha mente se instalou.
Que fado, que enfado,
que negras fadas nos envolvem
no fado de viver na amargura,
no amargo de ver os animais superiores
a correrem livres,
sem os grilhões do pensamento,
sem o siso do destino,
sem o ciente norteio para a morte.
Ganhamos a vida para sofrer
a angústia de sua perda?
Ganhamos um corpo nu
para escondê-lo com trapos?
Ganhamos um corpo sem lã
num frio planeta?
Um estômago para sofrer a fome?
E a sede? E a sede de tudo?
Tudo se faz tão claro agora...
O Juízo Final há muito ocorreu!
Não fomos os chamados, não fomos os escolhidos.
Somos os pecadores de outrora!
Estamos no Inferno, condenados à eterna esperança...
fim
59
A Era do Não
60

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Maria da Silva e a Era do Não

  • 2. A Era do Não 2
  • 3. Pedro Marangoni MARIA DA SILVA E A ERA DO NÃO escárnio e maldizer em política, sociedade e religião pedro marangoni 3
  • 4. A Era do Não copyright pedro marangoni vendas: www.amazon.com www.clubedeautores.com.br/ 4
  • 5. Pedro Marangoni APRESENTAÇÃO A realidade e o escárnio estão divididos nesta obra, representados respectivamente por Maria da Silva e A Era do Não. Infelizmente a verdade também está presente na segunda parte porque o sarcasmo é apenas uma maneira amarga de encararmos a realidade com a consciência de que quase nada podemos fazer.O ser humano é um material de difícil reciclagem e outras teorias não passam de hipocrisia. Após lamentar Maria da Silva, o riso será amargo com o escárnio de A Era do Não. Depois fecharemos o livro e seguiremos pisando e sendo pisados, num Inferno chamado vida, condenados à eterna esperança... 5
  • 6. A Era do Não 6
  • 7. Pedro Marangoni Sumário APRESENTAÇÃO...............................................5 MARIA DA SILVA..............................................9 MATRIZ.........................................................27 DEVOTOS.....................................................28 SOCIEDADE.................................................28 SUICIDA........................................................29 DIÓGENES....................................................30 JUDAS...........................................................31 CIRROSE DE ZEUS.....................................32 PROPOSTA INDECENTE............................33 CONTO DE FATOS.......................................34 HOMEM ILHA..............................................35 E O SENHOR OBROU.................................36 ANTIGAS PENAS.........................................37 O SÉCULO PARIDO.....................................37 VERNACULARES DÚVIDAS.....................38 EGO................................................................38 PIADA............................................................39 REEMBOLSO MORTAL..............................40 PONTO DE VISTA........................................41 BIODEGRADANTE......................................42 MARGINAL..................................................43 BOBO POVO.................................................44 7
  • 8. A Era do Não NADA............................................................45 REAL DEVANEIO........................................46 CONCEITOS.................................................46 REGOZIJO.....................................................47 PALAVRAS, PALAVRAS.............................48 A CASA LAMENTO.....................................49 EXPLOSÃO...................................................50 CRISTÃOS....................................................51 MALDIÇÃO..................................................52 O DOER DOADO..........................................53 AMOR............................................................54 TEMPERO.....................................................55 RENDIÇÃO...................................................57 8
  • 9. Pedro Marangoni MARIA DA SILVA Não é um despertar, não se desperta para um pesadelo, entreabrir os olhos e se ver entrelaçada, enrolada num novelo... Novelo no velho colchão mofado, velado pelos olhos da desgraça, braços esquálidos aos joelhos abraçados, feto grande num mundo-ventre que amassa... Cheiro acre de suor, azedo, seco, envolve tudo como toque final, traspassa o barraco, vindo do beco, é marca sentida de toca animal... Acorda a velha quase adolescente, pele e ossos, dupla década é sua idade, seios caídos, alguns poucos dentes, nos olhos, apenas uma sombra de dignidade... Gêmea da fome, da irmã nada separa, se para nada jogada foi à terra, aterra a esperança que é cara, da cara o sorriso desterra... Acabou-se.Terminou o curto sono. Como o estômago, seu sono é vazio, 9
  • 10. A Era do Não sono sem sonho, sono medonho, que desemboca num mundo venal e vadio... Empurra a tábua que se veste de porta, encara ao longe a riqueza que lhe é cega, traçado que foi seu destino com linha torta, sorve o ar, mas é morto o viver a que tudo se nega... Recebe nos sujos trapos a tepidez do sol, solitária, estremecida, a si mesmo abraça, no beco onde a turba palpita está só, cabeça baixa, principia a caminhar, frouxa, lassa... Sai em busca da esquiva comida, garimpeira, felina decadente, bicho, cambaleante, lambendo a alma ferida, caçando papéis, garrafas, lixo... Lixo, garrafas, papéis, seu maná, única dádiva que o planeta concede, como ela descartáveis e desprezados, mas que recolhe silenciosa, não pede... Meio dia, meia vida,meia morte, aperta a fome,é hora da permuta, alguns trocados se tiver sorte, no depósito que recebe, compra e insulta... Desfila então pelos restaurantes, passa sem olhar, ultrajada, pelas madames nobres, elegantes, interior podre, bela fachada... Definidos por essa frase, estão os restaurantes e as madames, 10
  • 11. Pedro Marangoni que no subir social não há quem as atrase, pisando as Marias que servem de andaime... Planeta dentro de planeta, nada lhe diz respeito à sua volta, o sol que outros bronzeia sua pele greta, seus lábios seca e seca é a revolta... No carrinho da esquina é bem recebida, pelo irmão de desprezo, andaime sobrevivente, compra pão, carne e bebida, alívio na sede, estômago quente... As leves pernas pesadas, do longo calvário percorrido, pedem o descanso na sarjeta, e se estende, prêmio merecido... As pernas desfalecem, não a consciência, ferida é pelas palavras alheias, que vagabunda, que indolência, está faltando polícia, estão faltando cadeias! Mas o calor na barriga é paraíso, nada importa, não há o que assuste, adormece sorrindo, sem siso, e acorda de chofre com um forte chute! De pé,andando vagabunda, aqui não fica, não é seu lugar, sua figura de pobre imunda, espanta fregueses, os faz vomitar! 11
  • 12. A Era do Não Cadela escorraçada com gana e maldade, seu amargor é silencioso, que o torpor ainda retarda, mas resiste em sua dignidade e desprezo, aos irmãos em desgraça tornados cães de guarda... Pé ante pé,robotizada, no meio-fio, não é para si a calçada, aborta o dia e se recolhe, ao útero sombrio que é sua morada... Enovela-se. Reconhece os odores, segura de novo, são seus estes cheiros,é seu este chão, feto esquecido, seguro no ovo, casca de trapos, o ninho é o colchão... Não é o sono que chega, é o despertar que renega, recusa o presente da vida, e nessa falsa morte se queda... O desfalecer é inteiro, surdo, como animal que hiberna, inconsciente é o desejo, escuro, turvo, de não ressurgir, tornar-se eterna... Agora já não existe, agora já não sente, o sol que a atormentava desiste, e a vinda das trevas consente... Meia noite, meia viva, meia morta, Maria enovelada em seu paraíso, 12
  • 13. Pedro Marangoni paraíso enorme que termina na porta, dormindo não ganha, não tem prejuízo... Mais uma noite, menos uma noite, mais um inferno-dia, menos um dia-açoite... E neste arrastado manquejar, almeja a única recompensa, dissolver-se, o fim cortejar, quem morre não come, não pensa... Acabou-se.Terminou o curto sono. Não aceita, aceitar não queria... Teima.Em vão contesta. Com a testa no vão espia, queima novamente o sol que detesta... Tem que enfrentar sua sina, não é a mente, são estertores que ordenam, seus famintos vermes de rapina, que dia após dia, a servi-los condenam... Contrafeita, sai do ninho, enfrenta o beco, enfrenta o odor, depara com um domingo, sem burburinho, lixo tem, mas não tem comprador... Apavorada se mete a caminho, é dia de luta renhida, luta de cão, se para os filhos é dia de pão e vinho, 13
  • 14. A Era do Não aos bastardos de Deus, o que der o lixão! Urubus, cachorros, criança, disputam entre cortes, furos, sem medo, frenesi, chocante esperança, pão velho! carne podre! leite azedo! Desta azáfama o ruído, não atrapalha felizmente a missa, no templo próximo construído, padre gordo, fiéis nutridos, divina carniça... Enquanto lá,Deus ocupado, cai em graça, no lixão chegam demônios em zombaria, chafurdando em sujeira, maconha e cachaça, se acercam rosnando, caçando Maria... Sempre surpreendente essa vida, emprestada pelo Construtor Mor, que mesmo as mais profundas feridas, consegue aumentar, tornar pior... Como um bote de serpente, mão suja lhe segura o pescoço, e ferida fêmea, sem carne, doente, torna-se para os cães, indefeso osso... E vem o nojo E vai a honra E vem o sangue E vai-se a turba... Lixo de alabastro entre o lixo, imóvel, urubus atentos em sentinela, 14
  • 15. Pedro Marangoni um cão a lambe, solidariedade de bicho, e a liberta do estupor de cadela... As lágrimas não são de dor, enxurrada de ultraje num leito franzino, pois ao magro corpo doer é rotina, e rupturas brutais só são seu destino... Destino de soçobrar no mar de covardia, contra ondas amargas desde o alvor da idade, pequena é a moléstia que fere a carne, de quem estuprada foi pela Sociedade... Ressuscita.Recolhe os trapos. Sacode de si o repugnante fel. Resiste.Forte fraqueza de contínua despejada, num mundo que extorque absurdo aluguel... Esta força é apenas instinto, de voltar, arrastar para o ninho, cerrar os olhos implorando, Morte, me leva, me tira deste caminho! E a tarde já foi tarde, com mais uma filha crucificada, e a criança ferida sem alarde, se recolhe à toca, ultrajada... Mais um dia menos um dia humilhada, enojada, dorme-morre nossa Maria... Há mil, dois mil metros, muito perto, uma jovem explode em pranto, 15
  • 16. A Era do Não seu vestido não combina por certo, com o novo sapato, cruel desencanto! Mesmo mundo, mesmo Deus? Qual é o crime que Maria carrega? São mil pesos, mil medidas? Porque criar se depois nega! Enovela-se Deus, não responde. Pelas frestas do barraco o sol se esgueira, com sorriso amarelo, velhaco, acha Maria e a esbofeteia. Acabou-se a doce morte, abre o olhos. Senta na cama, sente o calor, no rosto lívido assenta o clarão, sente umidade, sente dor, se assusta com o sangue que tinge o colchão... O susto morre breve, logo nasce a esperança, que a dor que vem do seu cerne, traga junto o fim, a bonança... Mas é o crescei e ver a desgraça multiplicada, que o destino mesmo às mais estioladas fêmeas concerne, pois na carne podre, dilacerada, as nojentas moscas depositaram vil berne... Enquanto no seu âmago prossegue um crime, 16
  • 17. Pedro Marangoni ela deixa-se ficar, exangue, morna, sem compromisso com a vida, de viver se exime, e deitada lentamente ao torpor retorna... E vem a morte? Maria delira... E vem o sonho e a vida gira... A secretária olha pela janela.Suspira... -Doutor, se não me engano, jogaram uma indigente no jardim... -Não atendo Previdência, só se tiver Plano, é serviço de lixeiro, não para mim! -Não conheço, só sou vizinho, ela incomodava o bairro inteiro, há dias não saia do ninho, ninguém aguentava o mau cheiro! É sonho,é real o que escuta? Onde está seu corpo, não o sente, onde está o barraco, a mente perscruta, mas novamente se apaga, inconsciente... -Como ser humano e sobretudo como médico, farei o possível, o que é de minha alçada, tirem-na do jardim para evitar meu descrédito, chamem uma ambulância, mas a coloquem na calçada... 17
  • 18. A Era do Não Sente-se arrastada, náufrago num rio, será que vai ser finalmente recolhida? Sente um odor conhecido,é o meio-fio, onde foi abandonada, estendida... Ambulância. -Não dá para levar,é uma mendiga, nós somos uma clínica, um hospital, não precisamos atender, ninguém liga, isso é obrigação do Serviço Social... Serviço Social. -Estou vendo, querida, que é uma indigente, mas está doente, escutem, ela geme, precisa de cuidados médicos, não é com a gente, se a ambulância não levou, chamem a P.M... P.M. -Bom dia, Sargento Pereira... É,é o que faltava para começar bem o dia... Deve ser droga ou bebedeira, vamos devolver à favela essa vadia... No misturar das conversas, sua mente vai e vem, cessam então as sensações diversas, e de repente sente-se bem... É o cheiro do barraco! É o cheiro do ninho! Foi jogada de novo no meio dos trapos, 18
  • 19. Pedro Marangoni e sorrindo se enovela, se dando carinho... Redemoinho. Acorda sentindo uma carícia, abre os olhos, recebe um sorriso, quem é essa velha,é real, fictícia? Será que está morta,é o paraíso? Sorriso desdentado, expressão pungente, rosto sofrido, penado, de dar dó, lhe estende uma colher de caldo quente, -beba minha filha, eu sou Maria Só... Maria Só,nome só conhecido, de uma velha que no lixão apanha comida, vida longa mas destino parecido, desgarrada,sozinha,esquecida... Nada mais entre si falam, até soar da colher na lata, o som metálico, se entreolham, emocionadas se calam, frente a frente, um corpo seco, outro esquálido... As lágrimas correm em abundância, abundância única que a elas não é negada, Maria Só chora de bondade, quer salvar a criança, Maria nossa, de se sentir pela primeira vez cuidada... Torna-se um bebê,estremece, agradecida, seus vinte anos num corpo de pequena idade, Maria Só tornada mãe enternecida, demonstra oitenta, mas tem a metade... 19
  • 20. A Era do Não Velha Maria nunca soube sua origem, enrugada e marcada, silenciosa como uma avó, solitária, filha do frágil com a coragem, seu sobrenome ignora, diz apenas, Maria só... Alimentada de caldo e amor, Maria adormece. E vão-se os dias e vem o despertar, da criança ferida em busca de um olhar... Seria pela sopa na pequena lata? Ou seria pelo toque, pelo amor? Uma nodosa mão suas feridas trata, um terno olhar faz esquecer o horror... E Maria já desperta feliz, sempre procurando aquele rosto, esquecida de morrer, se é que quis, não se lembra, agora de uma mãe sabe o gosto... E vão-se as semanas, e vêm as salvadoras latas, Maria consegue se levantar à espera, de quem sua fome de comida e amor mata... Se adotaram irmãs, mãe, filha, e agora a enferma quase recuperada, quer cuidar da mãe-irmã, voltar à trilha, catar papéis, buscar comida para a mãe cansada... Mas enquanto numa humana primavera, nossa Maria pensa que floresce, 20
  • 21. Pedro Marangoni como num humano outono, a velha Maria sabe que fenece... E a criança sonha que pode andar, temerosa por Maria Só,que está murchando, seus olhos opacos apenas ao vê-la comer voltam a brilhar, cada vez demora mais, chega cansada, resfolegando... Ainda é manhã,cambaleia, empurra a tábua-porta e sente, sente do sol agora amigo, o beijo quente que enleia, afirma-se nas pernas, dolorida mas contente... Decidida, ignora a dor no ventre, irá em busca de papel e lata, levará para sua mãe-irmã comida quente, cuidará dela, o mundo não é mau, nem a vida ingrata! Nessa faina sacrifica-se ainda fraca, quer ganhar dinheiro, se mune de destreza, e após vender no depósito a mercadoria minguada, célere compra comida e vai fazer a surpresa... Barraco no fundo de barraco, é onde se entoca a mãe-irmã amada. -Dona, posso ir lá na Maria Só? -Já levaram tudo, chegou atrasada... Se queda sem entender e pergunta, -Maria Só foi roubada? -Não meu bem, aquela andarilha, 21
  • 22. A Era do Não morreu de fome, coitada... A vida para. A mulher fala. -Não incomodava, eu arranjava o que podia, já que mal andava e o lixão é tão longe, lhe dava uma lata de sopa por dia, mas parou de comer e a levava, não sei para onde... Não! Nem uma lágrima! Secou, acabou! Cessaram as rimas. Maria recolhe uma pequena lata engordurada, desprezada pelos saqueadores do nada e a aperta contra o peito descarnado. Começa a andar, muda. Sabe onde vai, pisa raivosa o chão, atravessa a rodovia entre os carros, de medo desnuda, entra numa igreja,é hora da comunhão... Aos gritos quase inumanos, reagem assustados os fiéis, e o padre fantasiado em alvos panos, deixa cair o sagrado cálice aos seus pés... -Onde está Deus, onde está seu patrão? Está com medo, por que não me enfrenta? O que fiz a Ele, para só me dizer não? 22
  • 23. Pedro Marangoni Nenhum animal minha vida aguenta! -Que absurdo, que constrangedor, como essa gente drogada avança, ficai tranquilos, nos protege o Senhor, coroinha, rápido, chame o segurança! Expulsa do templo pelos vendilhões, espancada pelo guarda que a Deus ajuda, rola pela escadaria aos empurrões, e vem de seu interior a dor aguda. Nem um gemido.Maria agora é muda. Morta, com o coração a bater, mas seu bater já não importa, bate na porta do inferno sem temer, uma brisa a quebra, já não entorta... A pequena lata não mais larga, alarga os passos, ignora a dor, nem fel sua boca mais amarga, nem o mel adoça o sabor... Caminha com os porquês. Porque a quem nada tinha, nada de mal fez, se dá e deixa experimentar o gosto da felicidade, para depois arrancar, tomar de uma vez? Porque o Diabo faz o que quer, se Deus se diz poderoso, deixa morrer em vida uma mulher, 23
  • 24. A Era do Não punida sem culpa num mundo asqueroso? Porque, se não lhe dá vida de gente, e Deus que tudo pode, pode dar a prova, não a leva desta vida indecente, e lhe deixe descansar numa cova? E vem a noite e Maria caminha, e vem a madrugada Maria delira... Está caída mas imagina andar, febril, uma chama queima o ventre, esgotada mas não quer parar, se parar enlouquece, se torna demente... Vêm as contrações e o líquido quente, desliza numa massa fétida, escura, expulsa do seu corpo a vil semente, feto suicida que recusa a mistura... Mistura de Deus e o Diabo, este fez o outro consentiu, lamentam raivosos, enganados, mais um corpo que deles fugiu... Nossa Maria, Maria de ninguém, já não sabe se é real, se está sonhando, dor não sente, desespero também, vê uma luz, será Deus chamando? Cerra os lábios, ignora, irreal ou não, está confusa, mas se for Deus pode ir embora, não aceita Seu remorso, Sua mão recusa! 24
  • 25. Pedro Marangoni Esvai-se Maria. Chega a escuridão só sua e o alívio. Sorri Maria. E vem o nada. Acabou-se.Terminou a curta vida. O sol nasce exatamente como nas outras manhãs. -Bom dia, pai, como foi o plantão? -Tranquilo, nada de importante, apenas um corpo de uma indigente. -Café? 25
  • 26. A Era do Não 26
  • 27. Pedro Marangoni A ERA DO NÃO 27
  • 28. A Era do Não 28
  • 29. Pedro Marangoni A ERA DO NÃO Sem honra sem paz frustrados desesperados cercados pelo bandido pelo bastardo pelo político pela polícia pela malícia sem esperança sem amor voltamos ao pó chegamos ao chão chegamos à ERA DO NÃO! 29
  • 30. A Era do Não MATRIZ Pobre Deus, imperfeito Deus, se é nossa imagem e semelhança... Se é adulto e nos fez criança; -também tem pança? Miopia? Desesperança? Tortura o próprio filho e o perfura com uma lança? Se cópias perfeitas à Sua estampa feitas, caminhando à beira da certa falência, somos apenas um atestado de Sua Santa incompetência... 30
  • 31. Pedro Marangoni DEVOTOS Caríssimos: creem piamente que acredito no Pai, no Filho, no Espírito Santo? Se vivo num mundo maldito, se vivo uma vida sem encanto? SOCIEDADE Uma forma uma fôrma que nos toma que nos torna ferro dúctil na bigorna e nos malha nos transforma nos trabalha nos transtorna! 31
  • 32. A Era do Não SUICIDA Ao partir definitivamente, afinal, quero me desculpar, envergonhado confesso, de ter tanto tempo deixado correr, para descobrir que desejo meu regresso... Debaixo de minha inferioridade alienígena, não consegui ser um terráqueo nobre: mentiroso, ladrão, falso, hipócrita! Pequei por não ficar rico, apenas pobre... Nunca consegui rir quando estava triste, nunca fui amável quando irado... Como sois perfeitos na arte de dissimular, e sempre por um Deus amparados... Eu, vulgar, só a mim tenho, meu corpo físico sem alma, minha mente química, perecível, fenecendo sem alarde, calma... Ao partir, extingo-me; vós não, terão eterna vida! Ciência? Exasperante minha ignorância! Demência? Por que se apegais tanto então, à terráquea existência? 32
  • 33. Pedro Marangoni DIÓGENES Não saia do tonel empunhando a lanterna; a busca será eterna, infinita como o céu, infinita como o seu crédulo saber de ser e não viver por querer formar criar tecer o verdadeiro homem a nascer. 33
  • 34. A Era do Não JUDAS Meretriz Mercenário Missionário Uma atriz Um ordinário Um salafrário Juntar uma pitada de canalha Leva-se ao povo Deixe por uma eleição Retire o político antes que se queime desencante-se depois de frio... 34
  • 35. Pedro Marangoni CIRROSE DE ZEUS Ah!,Prometeu, essa dor lancinante, em seu fígado exposto, não foi causado pelo hidromel, mas ordenada por Zeus, que desgosto! Brincar com terra e água, para um Titã,que ingenuidade, brincou com fogo em verdade, criou, que insano, a Humanidade! E por sua criação, o reles homem, sua mão no fogo colocou, e se foi por eles que roubastes, Hércules apenas uma parte pagou. O porquê,infeliz Prometeu, que os homens ainda lhe devem em verdade, é que a águia que lhe devorou, tem por nome...Humanidade! 35
  • 36. A Era do Não PROPOSTA INDECENTE Prostíbulo. Prostrada a prostituta pensa, na vida de patíbulo, na corda suspensa... Da profissão nada espera, mas ao penar se exaspera, porque muito tenta, até regenera, mas volta e volta e meia erra. Deus está longe, muito acima, a Polícia muito perto, logo atrás, e carne abandonada pelos céus, é presa do fero Satanás. Ah!,bons tempos da colega Madalena, que tinha divino alvará, afortunada que ao Deus dava, não ficando ao deus-dará. E ingênua, reza à colega, apelando, das putas a confraria, se me livrasse do deus-dará, também ao bom Deus daria... 36
  • 37. Pedro Marangoni CONTO DE FATOS Jesus, Maria, José, Raimundo, Nonato, Nazaré... Todos têm Belém na história, um, verde tropical, outro seco,árido, história de miséria ou de glória, história de um rei e de um criado. Jesus, suposto rei cristão do mundo inteiro, Raimundo, simples garçom dum puteiro. Jesus teve pai carpinteiro, sem dinheiro... Raimundo tem pai seringueiro, sem dinheiro... Mas Jesus tinha um parente que fazia chover maná; Raimundo, só um parente que vende tacacá. Vende.Não faz chover... E aí,Raimundo tem que pagar se quiser comer. Abandonou o pai e com marmita garantida, Jesus saiu para correr o mundo e conhecer a vida. Há quem duvida... Raimundo com o pai, de malária internado, passa fome e trabalha dobrado. É para ser acreditado... Raimundo reza, implora, tudo é negado. Mas continua com fé num velho conto mal contado, Jesus poderoso, que pregou e foi pregado... 37
  • 38. A Era do Não HOMEM ILHA Sem escolha numa vida de escolhos lançado, escolho tocar a vida sem amar, sem ser tocado. Preso ao trilho do destino, destino à que comigo trilha, tripudiando, déspota ferino, o desatino que me torna ilha. 38
  • 39. Pedro Marangoni E O SENHOR OBROU... Lendo os épicos sinto inveja por querer cantar em prosa e verso, gloriosa perfeição que a Humanidade almeja, não só do homem mas do próprio Universo... Olho, procuro, não encontro, giro, busco, quedo-me tonto... No mundo, por toda a parte há um cheiro podre, se o dito Deus perfeito fez, não fez o que pôde... Sofrem os homens, sofrem os animais, perfeição não existe, não consta dos anais; se um bom padeiro, um vero virtuoso, não amassa um pão feio, um pão defeituoso, como então Deus, perfeição por excelência, produz o homem que contesta Sua própria existência? Para quê o inseto, para quê a rã,para quê a cobra, para quê a tal cadeia alimentar, para quê complicar tanto uma obra, por que não se alimentar de ar? Grande Construtor, que plano fabuloso, garganta, traqueia, estômago, intestino grosso! Criar animais para serem imolados, boca adentro, esôfago, intestino delgado! Por isso então esse mundo, de cheiro podre dominado, não é senão Sua obra, no estado mais refinado... 39
  • 40. A Era do Não ANTIGAS PENAS No transportar da mente ao pálido e silencioso papel, palavras que se calam quando escritas, gritos que a leitura não consente... Ah! Saudades da velha pena, engasgada, afogada no tinteiro, que gemia, rangia e chorava, acompanhando das ideias o devaneio... O SÉCULO PARIDO Chegastes, mas da tua pele o rosado, não é por recém-nascido ser, já é o refletir do crepúsculo, de quem não irá crescer... Seque século tuas lágrimas, não comoveras um sequer, porque és filho do Caos, que tem Miséria como mulher... 40
  • 41. Pedro Marangoni VERNACULARES DÚVIDAS Sim, sim,é proxeneta, o próxeno de Deus desvirtuado, o padre, cônsul dos céus, em missão terrena enviado... Sacerdote que de antemão, ao vender o amor de Deus pede esmola, é êmulo do rufião, que vende amor e a prostituta esfola... EGO Poemas, poesias, poetas. Rimas, versos, artistas, efêmeras janelas de vaidades, iluminadas, esventradas, oferecidas aos que já os têm dentro de si, perenes, mas que a alma mantém a casa na doce e perpétua penumbra dos humildes... 41
  • 42. A Era do Não PIADA Se foi realmente o Soberano Pontífice, me diga lá,oh pouco ingênuo Pacelli, dos doze, quantos pios deu, sobre a matança dos judeus? Não, não me diga Santidade que foi por Roma, cidade aberta, ser poupada para a humanidade, é uma desculpa pouco esperta, mas uma dúvida desperta, aqui no íntimo meu, será que para se ouvir o cristão pio, devesse calar o grito judeu? 42
  • 43. Pedro Marangoni REEMBOLSO MORTAL Qual a diferença, amigo defunto? É que estou aqui enfadado, com fome, suado, e você neste belo sono profundo... Ridículos, comemoramos o nascimento, ridículos, lamentamos a morte, para que viver em tormento, se morrer é uma dádiva da sorte? Um belo sono pesado, nada melhor nesta vida, é o morrer demonstrado, indicando a saída... O nada pode se alegrar? O nada pode ser triste? Nem bom nem ruim não nascer, o nada simplesmente não existe. Neste reembolso mortal, pagamos porque dementes, podemos recusar vil natal e devolver-nos ao remetente... 43
  • 44. A Era do Não PONTO DE VISTA Excelências, consciência! Não temos pão nem leite, nem onde mais se arroche... Se não têm pão nem leite, que comam brioche! Excelências, consciência! Acabou nosso dinheiro, há uma revolta em surdina... Que se dane o País, que esmolem nas esquinas! Excelências, consciência! Esmolar é pilhéria, nós queremos trabalho, não miséria... Não atendemos no recesso, vamos à Paris de férias! Pois então cuidado, seremos mil em cada esquina, sonhem com Paris, acordarão na guilhotina! 44
  • 45. Pedro Marangoni BIODEGRADANTE Filhote, dos mais frágeis, engatinha da vida um terço, é notório que ainda aos vinte, mama, chora e cheira a berço. Confuso produto da natureza, pequena boca que quer tudo à mesa, começa correndo à própria frente e quando dá por si vem a surpresa, deixou-se para trás, já não aguenta... Está se acabando, nada mais pode, mas agora define o que a vida esconde: -mocidade, muita sede para pouco pote -velhice, um cântaro que foi demais à fonte... 45
  • 46. A Era do Não MARGINAL Como um raio rasgou o espaço da vida com choque, com estrondo. Mas como um raio só procurava o equilíbrio entre o positivo e o negativo. Como um raio, iluminado. Como um raio, incompreendido. Como um raio, temido. Só procurava o equilíbrio entre o bem e o mal; bem ou mal, social. Antinatural. Era um homem normal... 46
  • 47. Pedro Marangoni BOBO POVO Espero sentado manietado pobre coitado de dias contados. Espero sorrindo amordaçado num riso forçado se esvaindo. Espero com fé um pouco curvado o corpo doído de um pontapé. Espero clemência um pouco assustado quase esmagado por esta demência. Espero justiça onde estará? Chamo de novo, sou eu...o Povo! 47
  • 48. A Era do Não NADA Que vida? Que futuro? Existência? Devaneios, não ciência... O futuro, impalpável, o presente, inexistente, já passou. Estas palavras já são passado. Nós somos passado. E o passado, passado, passou. Impalpável agora como o futuro... Não somos então. Somos apenas, ...ilusão. 48
  • 49. Pedro Marangoni REAL DEVANEIO Por quem os juros dobram... Eles não dobram por ti, operário que tece, mas ao nababo que fia, e, enquanto tu fenece, ele em todo esplendor, permanece... CONCEITOS Um inútil na vida? A vida é inútil! Uma sucessão de tropeços buscando a experiência, e quando esta chega cruzamos com ela, estamos partindo... Um inútil na vida? A vida é inútil! 49
  • 50. A Era do Não REGOZIJO Mas que lindo,é Natal! Flores à mesa, velas acesas, sorriem as crianças, crescem esperanças... Mas flores não se comem, velas não vos aquecem, regozijar estúpidos homens, quando os deuses vos esquecem? Olhai os sorrisos infantis – sem dentes, os estômagos vazios – gementes, as crenças cretinas – crescentes... – Sois porcos, imbecis, indecentes! 50
  • 51. Pedro Marangoni PALAVRAS, PALAVRAS Crescei, multiplicai-vos! Assim terão companhia na fome, na desgraça... Poesia! Não peça ajuda na igreja, aos padres de mesa vasta, peça só o que mais almeja, peça a Deus um basta! 51
  • 52. A Era do Não A CASA LAMENTO A solidão de estar junto, dia após dia, com um corpo sem cérebro, com uma alma vazia. Para quê um corpo, para quê o sexo, se o elo da razão está solto, sem nexo? Namore a solidão, case-se consigo, congele o coração, não durma com o inimigo. 52
  • 53. Pedro Marangoni EXPLOSÃO Por que procura por versos, para preencher seu vazio, se cada coração, mesmo perverso, busca alguém, como a um leito busca um rio? Esqueça regras, tabus, destino ou azar, deixe-se brilhar, não tema o desvario, entregue-se ao próximo sem pensar, deixe em seu leito correr um rio... 53
  • 54. A Era do Não CRISTÃOS Não me importa se sobre minha mortalha repousem bandeiras, flores ou medalhas... Que carpideiras, viúvas ou amantes, deixem rolar de seus olhos gotas de falsos brilhantes... Não mais existo e nisto insisto. Mas não resisto e aos crédulos malditos eu registro, num ápice de vida, o nada infinito! 54
  • 55. Pedro Marangoni MALDIÇÃO Maldição... Ah! Negras asas de anjos infernais que me roçam... Vosso trabalho é em vão, atirado que estou nos porões da vida desde que à luz vim,à revelia de Deus, este vingador! Arrastai anjos negros suas asas sobre fugidias vítimas; deixai-me relegado que amarrado estou a um corpo cujo coração palpita mas a alma nunca abraçou... Vítima vossa não sou! Faço sim, parte desgarrada do reto e direto Inferno e para lá obediente voltarei. Aliviado. Estarei entre meus pares sem lei... Lá não há olhos doces que escondem tiranias... Lá não há sorrisos que escondem covardias... E sobretudo, lá não há um Rei ausente e covarde, filho infecundo de Maria... 55
  • 56. A Era do Não O DOER DOADO Dor perene, herdada, dor esquecida, guardada em páginas mudas estocada, é a dor do poema em papéis lançada. Gestação solitária, parto doído, maldade de poeta que perpetua a dor, latente bote armado, pronto para o ataque, quando abre o livro um pobre pensador... É a desgraça sofrida,é a perda de um amor, é o chorar desvairado embrulhado para presente, é o egoísmo de um desalmado autor que lamentar sozinho não consente... Que se calem as páginas, que o tempo passe, que a dor se ensone e durma na estante esquecida, não permita lágrimas alheias em sua face, não sofra mais que a punição merecida... 56
  • 57. Pedro Marangoni AMOR Guardadas não ficam na mente, as mágoas, as decepções. Na mente não ficam. Elas pesam. Pesam demais. Descem rumo ao chão, espessam nosso espaço, prendendo-nos, sem força, sem vontade. Sem vontade para seguir, para ver à frente, locomover, buscar, encontrar. Nossa pequenez se acentua, nosso raio de vida ao dobrar-se não alcança o diâmetro da esperança. Os passos temem o repetir do tropeço na inesperada pedra da decepção... 57
  • 58. A Era do Não TEMPERO Deixe-me ser o fator que descarrila que faz saltar que desvia. Nos trilhos sua vida desliza; em boa velocidade ganha, vence o espaço. Mas o correr contínuo, o seguir dos trilhos, a nada leva senão à rotina de estar vivo. Você precisa de mim. Para ser seu interromper, seu descarrilar, seu desvario, seu verdadeiro viver! 58
  • 59. Pedro Marangoni RENDIÇÃO Cansei-me das rimas, dos fáceis elos. Cansei-me assim que a doença razão em minha mente se instalou. Que fado, que enfado, que negras fadas nos envolvem no fado de viver na amargura, no amargo de ver os animais superiores a correrem livres, sem os grilhões do pensamento, sem o siso do destino, sem o ciente norteio para a morte. Ganhamos a vida para sofrer a angústia de sua perda? Ganhamos um corpo nu para escondê-lo com trapos? Ganhamos um corpo sem lã num frio planeta? Um estômago para sofrer a fome? E a sede? E a sede de tudo? Tudo se faz tão claro agora... O Juízo Final há muito ocorreu! Não fomos os chamados, não fomos os escolhidos. Somos os pecadores de outrora! Estamos no Inferno, condenados à eterna esperança... fim 59
  • 60. A Era do Não 60