SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 14
Joaquim Maria Machado de
Assis, nascido em 1839, é
considerado o maior nome da
literatura nacional. Foi poeta,
cronista, dramaturgo,
contista, folhetinista,
jornalista e crítico literário.
Sua obra constitui-se em
nove romances e peças
teatrais, 200 contos, cinco
coletâneas de poemas e
sonetos e mais de 600
crônicas. Veio a falecer em
1908, aos 79 anos de idade.
A Carteira
Machado de Assis
...DE REPENTE, Honório olhou para o chão e viu
uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra
de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que
estava à porta
de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:
-- Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.
-- É verdade, concordou Honório envergonhado.
Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso
saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida,
quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo
recheado.
A dívida não parece grande para um homem da posição
de Honório, que advoga; mas todas as quantias são
grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as
dele não podiam ser piores. Gastos de família
excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois
por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão;
baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa
mais, que não havia remédio senão ir descontando o
futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e
armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um,
trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer,
e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um
turbilhão perpétuo, uma voragem.
-- Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o
Gustavo C..., advogado e familiar da casa.
-- Agora vou, mentiu o Honório.
A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena
monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera
ultimamente um processo, cm que fundara grandes
esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece
que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica;
em todo caso, andavam mofinas nos jornais.
D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à
mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a
ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um
mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas
as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele
respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os
trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito
bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível
prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de
política.
Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à
filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos
molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que
era.
-- Nada, nada.
Compreende-se que era o medo do futuro e o
horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com
facilidade. A ideia de que os dias melhores tinham de
vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e
quatro anos; era o princípio da carreira: todos os
princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a
gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar
mal, e a más horas.
A dívida urgente de hoje são uns malditos
quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca
demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como
agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos
peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com
um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje
mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se
lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar
pedir nada. Ao enfiar pela Rua. da Assembleia é que
viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e
foi andando.
Durante os primeiros minutos, Honório não pensou
nada; foi andando, andando, andando, até o Largo
da Carioca. No Largo parou alguns instantes, -enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo,
e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como,
achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de
Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café.
Pediu alguma cousa e encostou-se à parede,
olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira;
podia não achar nada, apenas papéis e sem valor
para ele.
Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das
reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia
utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava
com o ar de quem não sabe, mas antes com uma
expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do
dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A
consciência acabou por lhe dizer que não podia, que
devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão
depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros
da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir
pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se
fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregarlha; insinuação que lhe deu ânimo.
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso,
finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriua, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não
contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis,
algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos
mil- réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a
dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes.
Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à
cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus;
reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com
medo de a perder, tornou a guardá-la.
Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com
vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era
dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e
trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu,
ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua
boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos
anjos... Mas por que não havia de crer neles?
E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos;
depois, resolvia o contrário, não usar do acha- do,
restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na
carteira algum sinal.
"Se houver um nome, uma indicação qualquer, não
posso utilizar- me do dinheiro," pensou ele.
Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que
não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por
fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo.
Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e
pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao
interior; achou mais dois cartões, mais três, mais
cinco. Não havia duvidar; era dele. A descoberta
entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem
praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao
seu coração porque era em dano de um amigo. Todo
o castelo levantado esboroou-se como se fosse de
cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que
estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase
noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade
ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.
"Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso
fazer." Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco
preocupado e a própria D. Amélia o parecia também.
Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma
cousa.
-- Nada.
-- Nada?
-- Por quê?
-- Mete a mão no bolso; não te falta nada?
-- Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão
no bolso. Sabes se alguém a achou? -- Achei-a eu, disse
Honório entregando-lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado
para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe
de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um
triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro
lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações
precisas.
-- Mas conheceste-a?
-- Não; achei os teus bilhetes de visita.
Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o
jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira,
abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos,
que o outro
não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que,
ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta
mil pedaços: era um bilhetinho de amor.

Weitere ähnliche Inhalte

Was ist angesagt?

5 PAU - OU, 15 PILA DE CONTO
5 PAU - OU, 15 PILA DE CONTO5 PAU - OU, 15 PILA DE CONTO
5 PAU - OU, 15 PILA DE CONTOUmberto Neves
 
Jornal de Negócios de São João del-Rei – Acontece no Pátio Libertas
Jornal de Negócios de São João del-Rei – Acontece no Pátio LibertasJornal de Negócios de São João del-Rei – Acontece no Pátio Libertas
Jornal de Negócios de São João del-Rei – Acontece no Pátio Libertasjornaldenegocios
 

Was ist angesagt? (6)

Crônicas
CrônicasCrônicas
Crônicas
 
O elemento vital
O elemento vitalO elemento vital
O elemento vital
 
5 PAU - OU, 15 PILA DE CONTO
5 PAU - OU, 15 PILA DE CONTO5 PAU - OU, 15 PILA DE CONTO
5 PAU - OU, 15 PILA DE CONTO
 
A causa secreta machado de assis
A causa secreta machado de assisA causa secreta machado de assis
A causa secreta machado de assis
 
Uma aventura no velho oeste
Uma aventura no velho oesteUma aventura no velho oeste
Uma aventura no velho oeste
 
Jornal de Negócios de São João del-Rei – Acontece no Pátio Libertas
Jornal de Negócios de São João del-Rei – Acontece no Pátio LibertasJornal de Negócios de São João del-Rei – Acontece no Pátio Libertas
Jornal de Negócios de São João del-Rei – Acontece no Pátio Libertas
 

Andere mochten auch

Etapas del dibujo infantil - Nerea Azuara
Etapas del dibujo infantil - Nerea Azuara Etapas del dibujo infantil - Nerea Azuara
Etapas del dibujo infantil - Nerea Azuara nereaazuara
 
Creación de cuentas
Creación de cuentasCreación de cuentas
Creación de cuentasDyllanSanchez
 
Evaporation effects on jetting performance
Evaporation effects on jetting performanceEvaporation effects on jetting performance
Evaporation effects on jetting performanceRobert Cornell
 

Andere mochten auch (6)

8. tip#15
8. tip#158. tip#15
8. tip#15
 
Presentation.deck
Presentation.deckPresentation.deck
Presentation.deck
 
4 probability
4 probability4 probability
4 probability
 
Etapas del dibujo infantil - Nerea Azuara
Etapas del dibujo infantil - Nerea Azuara Etapas del dibujo infantil - Nerea Azuara
Etapas del dibujo infantil - Nerea Azuara
 
Creación de cuentas
Creación de cuentasCreación de cuentas
Creación de cuentas
 
Evaporation effects on jetting performance
Evaporation effects on jetting performanceEvaporation effects on jetting performance
Evaporation effects on jetting performance
 

Ähnlich wie Machado de Assis e a carteira perdida (20)

Machado de Assis - A Carteira
Machado de Assis - A CarteiraMachado de Assis - A Carteira
Machado de Assis - A Carteira
 
7
77
7
 
Machado de assis a carteira
Machado de assis   a carteiraMachado de assis   a carteira
Machado de assis a carteira
 
Conto.ppt
Conto.pptConto.ppt
Conto.ppt
 
1 a carteira
1 a carteira1 a carteira
1 a carteira
 
108
108108
108
 
O bilhete premiado
O bilhete premiadoO bilhete premiado
O bilhete premiado
 
Fiodor dostoievski crime e castigo
Fiodor dostoievski   crime e castigoFiodor dostoievski   crime e castigo
Fiodor dostoievski crime e castigo
 
A tentacao
A tentacaoA tentacao
A tentacao
 
Artur azevedo cavação
Artur azevedo   cavaçãoArtur azevedo   cavação
Artur azevedo cavação
 
O homem que matou mona
O homem que matou monaO homem que matou mona
O homem que matou mona
 
A cartomante
A cartomanteA cartomante
A cartomante
 
Pgrecolhidas
PgrecolhidasPgrecolhidas
Pgrecolhidas
 
Artur azevedo 345
Artur azevedo   345Artur azevedo   345
Artur azevedo 345
 
Rei Arthur
Rei ArthurRei Arthur
Rei Arthur
 
Lidia jorge assalto
Lidia jorge   assaltoLidia jorge   assalto
Lidia jorge assalto
 
MULATA NOTA DEZ
MULATA NOTA DEZMULATA NOTA DEZ
MULATA NOTA DEZ
 
A CARTOMANTE_MACHADO DE ASSIS.PDF
A CARTOMANTE_MACHADO DE ASSIS.PDFA CARTOMANTE_MACHADO DE ASSIS.PDF
A CARTOMANTE_MACHADO DE ASSIS.PDF
 
Acartomante
AcartomanteAcartomante
Acartomante
 
Machado de Assis - PAI CONTRA MÃE (1).pdf
Machado de Assis - PAI CONTRA MÃE (1).pdfMachado de Assis - PAI CONTRA MÃE (1).pdf
Machado de Assis - PAI CONTRA MÃE (1).pdf
 

Kürzlich hochgeladen

AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptxAD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptxkarinedarozabatista
 
Cultura e Literatura indígenas: uma análise do poema “O silêncio”, de Kent Ne...
Cultura e Literatura indígenas: uma análise do poema “O silêncio”, de Kent Ne...Cultura e Literatura indígenas: uma análise do poema “O silêncio”, de Kent Ne...
Cultura e Literatura indígenas: uma análise do poema “O silêncio”, de Kent Ne...ArianeLima50
 
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029Centro Jacques Delors
 
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdfWilliam J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdfAdrianaCunha84
 
Governo Provisório Era Vargas 1930-1934 Brasil
Governo Provisório Era Vargas 1930-1934 BrasilGoverno Provisório Era Vargas 1930-1934 Brasil
Governo Provisório Era Vargas 1930-1934 Brasillucasp132400
 
Slides Lição 03, Central Gospel, O Arrebatamento, 1Tr24.pptx
Slides Lição 03, Central Gospel, O Arrebatamento, 1Tr24.pptxSlides Lição 03, Central Gospel, O Arrebatamento, 1Tr24.pptx
Slides Lição 03, Central Gospel, O Arrebatamento, 1Tr24.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptxATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptxOsnilReis1
 
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptxthaisamaral9365923
 
ELETIVA TEXTOS MULTIMODAIS LINGUAGEM VER
ELETIVA TEXTOS MULTIMODAIS LINGUAGEM VERELETIVA TEXTOS MULTIMODAIS LINGUAGEM VER
ELETIVA TEXTOS MULTIMODAIS LINGUAGEM VERDeiciane Chaves
 
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptxD9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptxRonys4
 
Simulado 1 Etapa - 2024 Proximo Passo.pdf
Simulado 1 Etapa - 2024 Proximo Passo.pdfSimulado 1 Etapa - 2024 Proximo Passo.pdf
Simulado 1 Etapa - 2024 Proximo Passo.pdfEditoraEnovus
 
activIDADES CUENTO lobo esta CUENTO CUARTO GRADO
activIDADES CUENTO  lobo esta  CUENTO CUARTO GRADOactivIDADES CUENTO  lobo esta  CUENTO CUARTO GRADO
activIDADES CUENTO lobo esta CUENTO CUARTO GRADOcarolinacespedes23
 
Programa de Intervenção com Habilidades Motoras
Programa de Intervenção com Habilidades MotorasPrograma de Intervenção com Habilidades Motoras
Programa de Intervenção com Habilidades MotorasCassio Meira Jr.
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManuais Formação
 
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicasCenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicasRosalina Simão Nunes
 
CRÔNICAS DE UMA TURMA - TURMA DE 9ºANO - EASB
CRÔNICAS DE UMA TURMA - TURMA DE 9ºANO - EASBCRÔNICAS DE UMA TURMA - TURMA DE 9ºANO - EASB
CRÔNICAS DE UMA TURMA - TURMA DE 9ºANO - EASBAline Santana
 
Música Meu Abrigo - Texto e atividade
Música   Meu   Abrigo  -   Texto e atividadeMúsica   Meu   Abrigo  -   Texto e atividade
Música Meu Abrigo - Texto e atividadeMary Alvarenga
 
Slides 1 - O gênero textual entrevista.pptx
Slides 1 - O gênero textual entrevista.pptxSlides 1 - O gênero textual entrevista.pptx
Slides 1 - O gênero textual entrevista.pptxSilvana Silva
 
trabalho wanda rocha ditadura
trabalho wanda rocha ditaduratrabalho wanda rocha ditadura
trabalho wanda rocha ditaduraAdryan Luiz
 

Kürzlich hochgeladen (20)

AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptxAD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
 
Cultura e Literatura indígenas: uma análise do poema “O silêncio”, de Kent Ne...
Cultura e Literatura indígenas: uma análise do poema “O silêncio”, de Kent Ne...Cultura e Literatura indígenas: uma análise do poema “O silêncio”, de Kent Ne...
Cultura e Literatura indígenas: uma análise do poema “O silêncio”, de Kent Ne...
 
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
Apresentação | Eleições Europeias 2024-2029
 
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdfWilliam J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
 
Governo Provisório Era Vargas 1930-1934 Brasil
Governo Provisório Era Vargas 1930-1934 BrasilGoverno Provisório Era Vargas 1930-1934 Brasil
Governo Provisório Era Vargas 1930-1934 Brasil
 
Slides Lição 03, Central Gospel, O Arrebatamento, 1Tr24.pptx
Slides Lição 03, Central Gospel, O Arrebatamento, 1Tr24.pptxSlides Lição 03, Central Gospel, O Arrebatamento, 1Tr24.pptx
Slides Lição 03, Central Gospel, O Arrebatamento, 1Tr24.pptx
 
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptxATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
 
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
 
ELETIVA TEXTOS MULTIMODAIS LINGUAGEM VER
ELETIVA TEXTOS MULTIMODAIS LINGUAGEM VERELETIVA TEXTOS MULTIMODAIS LINGUAGEM VER
ELETIVA TEXTOS MULTIMODAIS LINGUAGEM VER
 
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptxD9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
D9 RECONHECER GENERO DISCURSIVO SPA.pptx
 
Simulado 1 Etapa - 2024 Proximo Passo.pdf
Simulado 1 Etapa - 2024 Proximo Passo.pdfSimulado 1 Etapa - 2024 Proximo Passo.pdf
Simulado 1 Etapa - 2024 Proximo Passo.pdf
 
activIDADES CUENTO lobo esta CUENTO CUARTO GRADO
activIDADES CUENTO  lobo esta  CUENTO CUARTO GRADOactivIDADES CUENTO  lobo esta  CUENTO CUARTO GRADO
activIDADES CUENTO lobo esta CUENTO CUARTO GRADO
 
Programa de Intervenção com Habilidades Motoras
Programa de Intervenção com Habilidades MotorasPrograma de Intervenção com Habilidades Motoras
Programa de Intervenção com Habilidades Motoras
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
 
Bullying, sai pra lá
Bullying,  sai pra láBullying,  sai pra lá
Bullying, sai pra lá
 
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicasCenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
Cenários de Aprendizagem - Estratégia para implementação de práticas pedagógicas
 
CRÔNICAS DE UMA TURMA - TURMA DE 9ºANO - EASB
CRÔNICAS DE UMA TURMA - TURMA DE 9ºANO - EASBCRÔNICAS DE UMA TURMA - TURMA DE 9ºANO - EASB
CRÔNICAS DE UMA TURMA - TURMA DE 9ºANO - EASB
 
Música Meu Abrigo - Texto e atividade
Música   Meu   Abrigo  -   Texto e atividadeMúsica   Meu   Abrigo  -   Texto e atividade
Música Meu Abrigo - Texto e atividade
 
Slides 1 - O gênero textual entrevista.pptx
Slides 1 - O gênero textual entrevista.pptxSlides 1 - O gênero textual entrevista.pptx
Slides 1 - O gênero textual entrevista.pptx
 
trabalho wanda rocha ditadura
trabalho wanda rocha ditaduratrabalho wanda rocha ditadura
trabalho wanda rocha ditadura
 

Machado de Assis e a carteira perdida

  • 1. Joaquim Maria Machado de Assis, nascido em 1839, é considerado o maior nome da literatura nacional. Foi poeta, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário. Sua obra constitui-se em nove romances e peças teatrais, 200 contos, cinco coletâneas de poemas e sonetos e mais de 600 crônicas. Veio a falecer em 1908, aos 79 anos de idade.
  • 2. A Carteira Machado de Assis ...DE REPENTE, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo: -- Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez. -- É verdade, concordou Honório envergonhado. Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado.
  • 3. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um
  • 4. turbilhão perpétuo, uma voragem. -- Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa. -- Agora vou, mentiu o Honório. A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, cm que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.
  • 5. D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.
  • 6. Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era. -- Nada, nada. Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A ideia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas.
  • 7. A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua. da Assembleia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando.
  • 8. Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, -enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele.
  • 9. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregarlha; insinuação que lhe deu ânimo.
  • 10. Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriua, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos mil- réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.
  • 11. Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do acha- do, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal. "Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar- me do dinheiro," pensou ele.
  • 12. Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele. A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.
  • 13. "Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer." Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa. -- Nada. -- Nada? -- Por quê? -- Mete a mão no bolso; não te falta nada? -- Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou? -- Achei-a eu, disse Honório entregando-lha. Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um
  • 14. triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas. -- Mas conheceste-a? -- Não; achei os teus bilhetes de visita. Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.