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A mudança climática em disputa no Amazonas1
Thaís Brianezi2
– jornalista (ECA-USP), mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia
(PPGSCA/UFAM) e doutoranda do Programa de Ciência Ambiental da Universidade
de São Paulo (PROCAM/USP).
Resumo
No Amazonas, maior estado brasileiro, a mudança climática ocupa lugar de destaque na pauta
política. Sob um discurso de aparente consenso, movimento social, Estado e empresas
defendem interesses distintos no campo ambiental. A Aliança dos Povos da Floresta surgiu na
década de 1980, a partir da aproximação entre indígenas e seringueiros, tendo Chico Mendes
como principal líder. O I Encontro Nacional dos Povos da Floresta aconteceu em 1989 e teve
como reivindicação a criação de Reservas Extrativistas. Já o II Encontro Nacional dos Povos da
Floresta ocorreu em 2007 e sua principal bandeira de luta foi o pagamento pelos serviços
ambientais. Também em 2007, o governo do Amazonas criou a primeira lei sobre mudanças
climáticas do Brasil. A face mais visível da referida legislação é o programa “Bolsa Floresta”,
que paga R$ 50 mensais a famílias moradoras de unidades de conservação. A política de
isenção fiscal do Pólo Industrial de Manaus termina em 2023. Na defesa de sua manutenção,
os argumentos econômicos (geração de emprego e renda) deram lugar ao discurso ambiental.
O fato de o percentual de área desmatada no Amazonas não ultrapassar 2% da área total do
estado é creditado por políticos e empresários ao sucesso do modelo Zona Franca de Manaus.
Bruno Latour (2004) afirmou que para lidar com questões globais complexas, como a mudança
climática, é preciso desconstruir a lógica instrumental. No Amazonas, porém, a apropriação do
discurso ambientalista por diferentes sujeitos parece ter em comum a perspectiva utilitarista.
Resumem
En Amazonas, el mayor estado brasileño, el cambio climático tiene un lugar prominente en la
agenda política. En un discurso de aparente consenso, el movimiento social, El Estado e las
empresas defiendem distintos intereses em el campo ambiental. La Alianza de los Pueblos de
las Florestas surgió en la década de 1980, desde el acercamiento entre indígenas y los
extractores de caucho, con Chico Mendes como el líder principal. Su Primer Encuentro
Nacional se produjo en 1989 y fue a reclamar la creación de reservas extractivistas. Ya el
Segundo Encuentro Nacional de los Pueblos de las Florestas se produjo en 2007 y su bandera
de lucha principal era el pago por servicios ambientales. También en 2007, el gobierno de
Amazonas ha creado la primera ley sobre el cambio climático en Brasil. El aspecto más visible
de esta normativa es la "Beca Floresta", que paga R$ 50 mensuales a las familias que viven en
áreas protegidas. La política de exención fiscal del Polo Industrial de Manaus termina en 2023.
En defensa de su mantenimiento, los argumentos económicos (generación de empleo e
ingresos) dio lugar al discurso del medio ambiente. El hecho de que el porcentaje de área
deforestada en la Amazonia no supere el 2% de la superficie total del estado se le atribuye por
parte de políticos y hombres de negocios para el éxito del modelo de la Zona Franca de
Manaus. Bruno Latour (2004) declaró que para hacer frente a los complejos problemas
mundiales como el cambio climático, debemos deconstruir la lógica instrumental. En la
Amazonia, sin embargo, la apropiación del discurso ambientalista por diferentes sujetos parece
tener en común el punto de vista utilitario.
1
Artigo apresentado ao VIII Congresso Latino-Americano de Sociologia Rural, Porto de Galinhas, 2010.
2
A autora possui bolsa de doutorado da SCAPES, a quem agradece o apoio.
Abstract
In Amazonas, the largest Brazilian state, climate change has a prominent place on the political
agenda. Under a discourse of apparent consensus, the social movement, the State and the
companies defend different interests in the environmental field. The Alliance of Forest Peoples,
whose main leader was Chico Mendes, emerged in the 1980s, from the union of Indian peoples
and rubber tappers. The first National Meeting of Forest Peoples came in 1989 and was to claim
the creation of extractive reserves. The second one occurred in 2007 and its main demand was
for the payment for environmental services. Also in 2007, the government of Amazonas has
created the first law on climate change in Brazil. The most visible aspect of that legislation is the
“Bolsa Floresta" (Forest Conservation Grant), which pays R$ 50 a month to families living in
protected areas.The policy of tax exemption of the Industrial Pole of Manaus ends in 2023. In
defense of its maintenance, the economic arguments (such as generation of employment) were
replaced by the environmental ones. The fact that the percentage of area deforested in
Amazonas does not exceed 2% of the state total area is credited by politicians and
businessmen to the success of the Free Trade Zone of Manaus. Bruno Latour (2004) stated that
to deal with complex global issues such as climate change, we must deconstruct the
instrumental logic. In Amazonas, however, the appropriation of environmental discourse by
different social actors seems to have in common a utilitarian perspective.
I. Breve introdução
Este artigo apresenta os resultados preliminares de minha pesquisa de
doutorado, iniciada em julho de 2009, no Programa de Ciência Ambiental da
Universidade de São Paulo (PROCAM/USP). O projeto “A mudança climática
em disputa no Amazonas: análise das práticas de comunicação da Aliança dos
Povos da Floresta, do governo do Amazonas e do Pólo Industrial de Manaus”
tem orientação do professor doutor Marcos Sorrentino (ESALQ/USP).
II. A crise do pensamento instrumental
A ética como relação com o Outro faz reviver o
Ser dos escombros da racionalidade que foi
forjada pelo Mundo Objeto (LEFF, 2006: 337)
A cultura ocidental hegemônica continua presa à armadilha da caverna
platônica, na qual se pressupõe que existe, de um lado, a realidade (as coisas
como elas são) e, de outro, as representações (as coisas como as vemos)
(LATOUR, 2004). No Mito de Platão, o filósofo aparece como o salvador dos
homens, aquele que faz a ponte entre o mundo social e o mundo da verdade.
Desde a Modernidade, este papel foi transferido aos pesquisadores do
chamado núcleo duro das Ciências (do qual a Filosofia e as Humanidades não
fazem parte).
O que mudou, de fato, é que na narrativa platônica o sábio era
assassinado pela horda de ignorantes que não tiveram a capacidade de
compreendê-lo. Já os iluminados de hoje desfrutam de prestígio e poder. A
ruptura entre ontologia e epistemologia, porém, sobreviveu, cumprindo a razão
político-religiosa de se ter uma verdade com a qual legitimar a dominação
(LATOUR, Op.Cit.).
Essa visão bicameral, compartimentada, nos levou à existência de uma
ciência dos objetos e de uma política dos sujeitos, ambas fundamentadas na
razão instrumental, reafirmando cotidianamente a máxima maquiavélica de que
os fins justificam os meios. Na raiz da super exploração que os seres-humanos
praticam nas relações entre si e com seu meio, está o pensamento utilitarista,
conforme destacou Bruno Latour (Op. Cit: 351):
A crise ecológica, lembramos muitas vezes, apresenta-se
antes de tudo como uma revolta generalizada dos meios. Nem
nada, nem ninguém, quer aceitar servir como simples meio
para o exercício de uma vontade qualquer, tida como fim
último
Na mesma linha, Enrique Leff (2006) afirmou que a crise ambiental é,
em última instância, conseqüência da metafísica que produziu a separação
entre o ser e o ente, “que abriu caminho à racionalidade científica e
instrumental da Modernidade, que produziu um mundo fragmentado e
coisificado em seu afã de domínio e controle da natureza” (LEFF, Op. Cit: 288).
Por isso, a racionalidade ambiental emergente questiona os paradigmas do
conhecimento estabelecidos, as formações teóricas e ideológicas que
legitimam a ordem social vigente. O saber ambiental implica a desconstrução
da racionalidade dominante: é fruto de um processo de descolonização e a
emancipação de saberes locais em diálogo permanente.
Para superar a dicotomia entre fatos (ciência dos objetos) e valores
(política dos sujeitos), Bruno Latour (Op. Cit.: 120) propôs “uma ecologia
política de coletivos de humanos e de não-humanos”. Nestes coletivos (ou
assembléias), sempre abertos e dinâmicos, não há sociedade e natureza,
seres e objetos. Existem, sim, as proposições, termo que remete ao caráter de
articulações novas e imprevistas e, também, ao campo da fala. Ou seja, a
constituição dos coletivos traz à tona a problemática dos porta-vozes, que o
sociólogo francês (LATOUR, Op. Cit.: 133-134) chamou de enigma da
representação: “Aquele que diz ´o Estado sou eu`, ´A França decidiu que`, não
é mais fácil de ser decifrado do que aquele que inscreve num artigo a massa
da Terra ou o número do Advogado”. A incerteza e, conseqüentemente, o
diálogo, portanto, são intrínsecos ao conceito de coletivo.
Em 2008 e 2009, respectivamente, o Equador e a Bolívia aprovaram
constituições nacionais em que se afirmam como estados plurinacionais e
destacam o bien vivir (na legislação equatoriana) e vivir bien (no texto
boliviano) como princípios que se contrapõem ao ideal capitalista de
acumulação e progresso. Ambos os termos têm a mesma origem: o suma
qamaña da língua aymara e o sumak kawsay do quéchua – que, em tradução
literal, significam vida em plenitude (MAMANI, 2010). O filósofo aymara
Fernando Huanacuni Mamani (Op. Cit.: 46) revelou quais são os treze
princípios perseguidos por seu povo para alcançar o viver bem: saber comer,
saber beber, saber dançar, saber dormir, saber trabalhar, saber meditar, saber
pensar, saber amar e ser amado, saber escutar, saber falar, saber sonhar,
saber caminhar, saber dar e receber.
Este conceito dos povos originários andinos, revisitado pelo movimento
social latino-americano, pressupõe vida em comunidade e respeito profundo à
Mãe Terra. A comunidade em questão aproxima-se da noção de coletivo
proposta por Bruno Latour (Op. Cit.), porque diz respeito a uma comunidade
ampliada, que inclui não apenas humanos, mas todos os seres vivos
(entendidos aqui como todos os animais, plantas e minerais, em seus
elementos físicos e espirituais). Ela não significa o fim da individualidade, mas
o reconhecimento de um processo de complementação e de interconexão entre
esses seres, de vivência e convivência. No ayllu (sistema tradicional de
organização dos aymara) não há lugar para “recurso”, porque “se todos vivem
o que existe são seres, não objetos” (MAMANI, Op. Cit.: 20).
O sentido político do viver bem está interpolando a modernidade não
para ser hegemônico, mas para fortalecer a pluralidade e a
complementaridade, reconhecendo e celebrando a complexidade. Ele vai além
do ideal ocidental de solidariedade, ligado a um contexto de hierarquia. No seu
lugar, oferece o princípio de reciprocidade, que promove identificação, ligação
e afeto (RONCAL, oral3
).
III. A comunicação como um direito
A construção da racionalidade ambiental, como explicitada no item
anterior, demanda o diálogo de saberes, requer formas mais democráticas de
produção e de compartilhamento de conhecimentos. No campo da
comunicação, isso implica não apenas maior pluralidade de conteúdos em
relação à monotonia dos discursos hegemônicos, como também processos
mais interativos, que promovam a aprendizagem coletiva. Essas práticas mais
dialógicas inserem-se no contexto da luta pelo direito à comunicação.
Na prática, o movimento de comunicação no Brasil tem se debruçado
sobre as seguintes bandeiras concretas, previstas na Constituição Federal de
1988, mas ainda não regulamentadas: o combate à concentração de mídia; a
defesa das rádios comunitárias; a batalha pelo sistema público de
comunicação, complementar ao sistema estatal e ao privado; a diversidade
cultural, com estímulo à produção e difusão de conteúdos regionais; a
popularização do acesso às tecnologias multimídias; um regime de propriedade
intelectual que estimule a criatividade e o compartilhamento do conhecimento.
Entender a comunicação como um direito humano fundamental, portanto,
significa opor-se à sua transformação em mercadoria, reconhecendo que ela é
imprescindível para a realização plena da cidadania. Implica também ver a
comunicação como campo público, de lutas sociais, em oposição à visão
privada, tecnocrática, de que ela constitui uma arena de proprietários e
3
Palestra proferida por Patrícia Roncal em 21 de abril de 2010, no seminário “A construção social da
sustentabilidade a partir de um novo saber fundado na racionalidade ambiental, no pensamento ambiental
latino-americano e no viver bem”. O referido seminário aconteceu em Cochabamba, na Bolívia, durante a
Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e os Direitos da Madre Terra, como atividade
auto-gestionada promovida pelo Centro de Saberes e Cuidados Socioambientais da Bacia do Prata
especialistas. Neste sentido, o direito à comunicação vai além do direito à
liberdade de expressão e da difusão de informação, englobando também as
esferas do acesso aos meios de produção e compartilhamento de informação.
Ou seja, para que seja garantido pelo Estado, tal direito necessita de políticas
públicas que promovam as condições técnicas e o conhecimento necessário
para que o chamado público (que costuma ser reduzido ao papel de leitores,
ouvintes e telespectadores autômatos) possa estabelecer uma relação
autônoma e independente com os meios de comunicação, sendo ele próprio
também produtor e difusor de conteúdos (INTERVOZES, 2005).
O paradigma mecanicista descreve a comunicação como um processo
unilateral no qual um emissor, através de um meio, passa uma mensagem a
ser decodificada por um receptor. Essa visão reducionista fundamentou a
doutrina do Free Flow of Information, que dominou a Conferência das Nações
Unidas sobre Liberdade de Expressão, realizada em 1948, em Genebra
(MATTELLART, 2009). Não por acaso, neste mesmo ano, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 19, estabeleceu que:
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de
expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas
suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem
consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer
meio de expressão (MATTELLART, Op. Cit: 38).
O direito à comunicação, neste caso, resumiu-se à defesa da liberdade
de opinião e de expressão, conceitos liberais que justificaram a conquista das
Américas e a prática da evangelização. O ideário da suposta igualdade perante
a lei serviu para camuflar as relações de dominação e as desigualdades
econômicas e culturais decorrentes delas. Por isso, seguindo esta perspectiva,
o referido artigo ignorou a necessidade de democratizar os meios de produção
e de difusão de conteúdos.
Duas décadas depois, já nos anos 1970, graças à influência dos
chamados Estudos Culturais, fortaleceu-se um novo paradigma de
Comunicação, um modelo “dialógico e recíproco, no qual o acesso e a
participação tornaram-se fatores essenciais” (MATTELLART, Op. Cit.: 38).
Sobre este pano de fundo, o direito humano à comunicação passou a ser
reconhecido a partir de uma visão mais ampla: em 1977, o relatório MacBride,
fruto do trabalho da comissão criada pelo diretor-geral da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), afirmou
que não há garantia do direito à comunicação sem políticas públicas de
comunicação e cultura. Essa dinâmica de reflexão sobre as relações entre
cultura, comunicação e democracia, porém, esfriou nas décadas de 1980 e
1990, período neoliberal de formação dos conglomerados econômicos
(MATTELLART, Op. Cit).
A crítica ao modelo informacional, visto como ultrapassado, é uma
característica comum dos estudos que analisam campanhas de comunicação
sobre a chamada mudança climática. A visão do público como tábula rasa
esperando para ser preenchido com informações úteis a partir das quais ele
possa agir racionalmente ainda predomina em muitas práticas da chamada
comunicação ambiental. Tanto que Brigitte Nerlich, Nelya Kotekyo e Brian
Brown (2010: 99) afirmaram que “assim como os comunicadores científicos, os
comunicadores da mudança climática precisam urgentemente passar da
comunicação unidirecional para um engajamento mais dialógico e reflexivo4
”.
Gill Ereaut e Nat Segnit (2006) sugeriram que há lições a serem
apreendidas das iniciativas locais de comunicação ambiental, que trabalham
com uma linguagem mais coloquial, com a cultura popular, e por isso, têm
maior potencial de engajamento no plano emocional que os discursos político
ou científico mais amplamente difundidos pelos veículos de massa. Os autores
endossam a tese de que o uso de metáforas ajuda a traduzir o conhecimento
científico ao cidadão comum. Por outro lado, eles reconhecem que esta é uma
manifestação da visão que os cientistas e comunicadores costumam ter do
público, percebido como um grupo de pessoas com pouco conhecimento. Em
outras palavras: a tendência dos comunicadores ambientais tem sido a de
tomar como dado a defasagem entre o conhecimento científico e o
conhecimento leigo, no lugar de tentar estabelecer um diálogo mais criativo que
capacite as pessoas a participar da deliberação e dedução de soluções
independentes (NERLICH et al, Op. Cit.).
4
Tradução livre feita pela autora.
IV. A mudança climática sob a lente ética
Nos últimos 150 anos, o aumento médio da temperatura na Terra foi de
0,7ºC. Esse aquecimento foi diferenciado: enquanto no Ártico, por exemplo,
girou em torno de 2ºC, na Região Tropical ficou em 0,4ºC. A variação não-
uniforme da temperatura implicou em mudanças na pressão e, portanto, alterou
também os padrões de circulação na atmosfera, impactando os fluxos de vapor
d´água e o regime de chuvas (IPCC, 2007).
A causa imediata da chamada mudança climática foi o aumento vertiginoso
na concentração de gases de efeito estufa desde a Revolução Industrial,
especialmente o gás carbônico (CO2), conseqüência da grande utilização de
combustíveis fósseis. Atualmente a concentração de CO2 está na ordem de
387 ppm, valor que já superou o patamar de 350 ppm indicado pelos membros
do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) como
quantidade limite para garantir um aumento médio máximo de 2ºC na
temperatura global. Em outras palavras, isso significa que o compromisso
assumido pelos países membro da Convenção Quadro das Nações Unidas
sobre Clima em sua 15ª Conferência das Partes, em 2009, em Copenhagen, já
não é factível (ARTAXO, apresentação oral5
).
Quando os modelos matemáticos projetam um aumento médio da
temperatura de 2ºC a 3,5ºC até o fim deste século, tendo como ano-base 1750,
eles levam em consideração também os oceanos. Como nos continentes as
temperaturas tendem a ser mais altas, especialmente na região equatorial, isto
leva à previsão de aumento entre 5ºC a 7ºC na temperatura da região
amazônica (ARTAXO, Op. Cit.).
O uso do termo mudança climática em substituição à expressão
aquecimento global, inicialmente mais empregada, foi duramente criticado por
Boaventura de Souza Santos em palestra realizada em 19 de abril de 2010, no
seminário “A construção social da sustentabilidade a partir de um novo saber
5
Palestra “Aspectos científicos recentes e a política da questão das mudanças climáticas globais”,
proferida no dia 9 de abril de 2010, no Instituto de Engenharia Eletrotécnica da Universidade de São
Paulo (IEE-USP), por Paulo Artaxo. Ele é professor do Laboratório de Física Atmosférica da USP,
membro do IPCC e da coordenação do programa FAPESP sobre Mudanças Climáticas.
fundado na racionalidade ambiental, no pensamento ambiental latino-
americano e no viver bem”. O referido seminário aconteceu em Cochabamba,
na Bolívia, durante a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática
e os Direitos da Madre Terra, como atividade auto-gestionada promovida pelo
Centro de Saberes e Cuidados Socioambientais da Bacia do Prata. As críticas
do sociológico português centraram-s no fato de a mudança climática ser um
termo vago, que não explicita as causas estruturantes do problema, fruto do
modelo de produção e de distribuição de bens.
Um broche utilizado por ambientalistas europeus nos anos 1970 dizia:
“Technology is the answer. But what is the question?6
” (LATOUR, 1994: 357). O
debate hegemônico sobre mudança climática tem se restringido a seus
impactos atuais e futuros (e às eventuais formas de mitigação e adaptação),
fugindo da discussão sobre as causas do problema. Ao mesmo tempo, os
movimentos sociais anticapitalistas começaram a se apropriar da discussão
sobre aquecimento global, vista por eles como uma oportunidade política de
mostrar os limites do atual modelo de desenvolvimento. É neste contexto que o
governo da Bolívia, com apoio da Aliança Bolivariana para as Américas7
,
convocou a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e os
Direitos da Madre Terra, quer reuniu aproximadamente 15 mil participantes de
110 países (RAMOS, apresentação oral8
).
Kelly Levin, Benjamin Cashore, Steven Bernstein e Auld Graeme (2009)
retomaram um artigo escrito em 1973 por Horst Rittel e Mellin Webber, no qual
os autores definem os problemas ambientais como wicked problems9
. As duas
características principais que justificam a denominação são: tais problemas não
possuem solução definitiva (logo, só é possível mitigá-los), nem são reversíveis
(por isso, não se pode atacá-los por tentativa e erros). As mudanças climáticas
globais apresentariam, ainda, têm três características adicionais, que as
6
Em tradução literal: “Tecnologia é a resposta. Mas qual a pergunta?”.
7
Plataforma de cooperação internacional baseada na idéia da integração social, política e econômica entre
os países da América Latina e do Caribe. Oito países fazem parte dela: Antígua e Barbuda; Bolívia; Cuba;
Dominica; Equador; Nicarágua; São Vicente e Granadinas; e Venezuela
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Alian%C3%A7a_Bolivariana_para_as_Am%C3%A9ricas#Membros).
8
Palestra de Juan Pablo Ramos, vice-ministro de Meio Ambiente da Bolívia, em 19 de abril de 2010,
como parte da programação da conferência de Cochabamba.
9
Tradução literal: problemas perversos.
transformariam em super wicked problems 10
: está se esgotando o tempo para
que o problema comprometa gravemente as diversas formas de vida na Terra,
especialmente a humana; não há autoridade central responsável por ele;
aqueles que procuram por fim ao fenômeno também contribuem para o seu
agravamento (LEVIN et al. Op. Cit.).
Levin, Cashore, Bernstein e Graeme (Op.Cit.) destacaram que as formas de
enfrentamento dos wicked problems dependem, em grande parte, das visões
de mundo. Enquanto um institucionalista, por exemplo, provavelmente sugeriria
a criação ou redesenho de organização, um construtivista focaria na
transformação de valores e na aprendizagem coletiva. Os autores afirmaram
ainda que no caso da mudança climática, as tentativas de resolução não
podem derivar apenas da ciência popperiana ou de outras verdades
positivistas, mas devem levar em considerações diferentes saberes e crenças
sobre o papel da humanidade no planeta Terra (LEVIN et al, Op. Cit.).
Stephen Gardiner (2010) também defendeu que a análise ética é inerente
ao tratamento de cinco preocupações centrais das políticas climáticas, a saber:
as incertezas científicas; a responsabilidade por emissões passadas; o
estabelecimento de metas de mitigação; as estratégias de adaptação; e o lugar
reengenharia no portfólio político. O autor mostrou que o quarto e mais recente
relatório do IPCC, de 2007, assim como o texto fundador da Convenção
Quadro das Nações Unidas sobre o Clima, de 1992, contém conteúdos éticos.
Enquanto o primeiro reconheceu que a adoção das práticas para combater
mudança climática depende de decisões que são julgamentos de valores, o
segundo falou sobre equidade, responsabilidades comuns, porém
diferenciadas, necessidades especiais e direito ao desenvolvimento.
A maioria das pessoas concorda que temos que limitar as emissões futuras
de gases de efeito estufa, transformando um recurso até então aberto (a
atmosfera) em algo que deve ser distribuído de forma justa. O debate
internacional, porém, tem se focado em metas numéricas, abafando o
julgamento ético. Quando entra em discussão o modo de se atingir as metas
10
Tradução literal: problemas super perversos.
estabelecidas, porém, vêm à tona as diferentes visões de mundo que
sustentam as propostas e suas decorrentes fragilidades (GARDINER, Op. Cit.).
Existem na mesa de negociações das Nações Unidas três propostas
principais sobre como distribuir as emissões futuras. Uma delas estabelece um
mesmo valor per capita para todos os seres-humanos, ignorando as diferentes
necessidades de energia. Outra se apóia na idéia de que as emissões de
subsistência devem ser garantidas e são inalienáveis, mas não explica como
definir o que é necessário à subsistência nem como as emissões excedentes
serão distribuídas. A terceira defende que as nações deveriam compartilhar as
responsabilidades por meio de reduções percentuais em suas emissões, mas
não resolve a problemática das emissões passadas nem da divisão equitativa
das emissões recentes. Enquanto para os Estados Unidos cortar 20% do que
emite anualmente de gás carbônico levaria os norte-americanos a uma
emissão média de 4,26 toneladas de CO2 equivalente, para a Índia significaria
uma emissão de 0,28 toneladas por habitante (GARDINER, Op. Cit.).
Os debates hegemônicos sobre mudança climática partem do pressuposto
de que devemos lidar com os limites do atual sistema geopolítico, sem
reconhecer que a crise climática coloca em xeque, do ponto de vista prático e
filosófico, a sobrevivência deste sistema. A maior parte do trabalho disponível
sobre o assunto tenta construir pontes entre o abismo do que é e o que poderia
ser. Esta é, de fato, uma tarefa essencial, mas é preciso reforçar a pesquisa e
o debate público sobre o que a humanidade busca ser, em termos de melhores
instituições e modos de vida (GARDINER, Op. Cit.).
V – Mudança climática em destaque na agenda do Amazonas
V.1 - A Aliança dos Povos da Floresta
A Aliança dos Povos da Floresta surgiu na década de 80, a partir da
aproximação entre sindicalistas extrativistas (como Chico Mendes) e líderes
indígenas (como Aílton Krenak). Seu nascimento representou uma politização
dos padrões explicativos e ordenadores da Amazônia, historicamente
reduzidos a “umas quantas metáforas, datas canônicas, quadros naturais e
´ciclos` ou a umas tantas construções literárias hiperbolizadas” (ALMEIDA,
2008: 14). Como destacou Alfredo Wagner Berno de Almeida (Op.Cit.:14),
coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia:
Com a emergência de novas identidades coletivas e de
sujeitos sociais organizados, isto é, identidades coletivas
objetivadas em movimentos sociais, estão sendo afastadas de
vez as ficções biologizantes, bem como os sujeitos
biologizados (...).
No I Encontro Nacional dos Povos da Floresta, em 1989, em Brasília, a
principal bandeira de luta era a criação de reservas extrativistas (ALMEIDA,
2004). O II Encontro demorou 18 anos para acontecer: foi realizado em
setembro de 2007, novamente na capital federal, como parte da estratégia
traçada pelo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) para pautar o pagamento
por serviços ambientais no debate nacional e internacional sobre mudança
climática.
O GTA, uma rede que atualmente conta com 623 entidades organizadas
em 18 coletivos regionais, surgiu a partir da mobilização da sociedade civil
durante a Cúpula da Terra das Nações Unidas, realizada no Rio de Janeiro, em
1992. Ela foi concebida como “um espaço de ação coletiva de movimentos
sociais e ONGs na luta pelo desenvolvimento sustentável da Amazônia
Brasileira” (GTA, 2008:211
).
A retomada da Aliança dos Povos da Floresta foi sugerida por um GT
interno da rede GTA (o Grupo de Trabalho Panamazônico), em 2005. A idéia
começou a se concretizar dois anos depois, em abril de 2007, quando
representantes do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS)12
, da
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)13
e
11
Apresentação em Power Point elaborada pelo GTA - Regional Médio Amazonas em 2008 e
disponibilizada à pesquisadora em arquivo digital.
12
O CNS foi juridicamente constituído em 1988 com o objetivo de lutar por uma reforma agrária
adequada aos seringueiros, que respeitasse sua cultura e práticas tradicionais de apropriação do território.
A entidade é fruto da mobilização dos seringueiros do Acre, Amazonas, Pará e Rondônia, que realizaram
seu I Encontro Nacional em 1985, em Brasília (BRIANEZI, 2007).
13
A COIAB foi fundada em 1989, por iniciativa de lideranças de organizações indígenas existentes à
época, num cenário de transformações sociais e políticas ocorridas no Brasil pós-constituinte. Atualmente
é a maior organização indígena do Brasil, com 75 organizações membro, dos nove estados da Amazônia
Brasileira (fonte: www.coiab.com.br).
do GTA se reuniram em Santarém, no Pará, para discutir a proposta. No
mesmo ano, em maio, as três entidades promoveram o I Seminário de
Mudanças Climáticas, em Manaus e, em setembro, o II Encontro dos Povos da
Floresta, em Brasília (QUEIROZ, entrevista14
). A escolha de Manaus para a
realização do referido seminário (que aconteceu em um barco, no Rio Negro),
não se deu por acaso: os coordenadores dessas três grandes organizações
amazônicas, na ocasião, eram do Amazonas (Adilson Vieira, do GTA;
Jecinaldo Sateré-Maué, da Coiab, e Manuel Cunha, do CNS)15
.
A Carta dos Povos da Floresta, resultado público do II Encontro Nacional
da Aliança, reivindicava o ”reconhecimento e desenvolvimento de alternativas
para remunerar os povos das florestas por seus serviços ambientais de
manutenção da floresta em pé prestados ao Brasil e ao mundo” (ALIANÇA,
2007). Neste sentido, em 2010, GTA, CNS e Coiab organizaram três consultas
públicas sobre princípios e critérios dos chamados REDD+ (Redução de
Emissões por Desmatamento e Degradação, incluindo manejo sustentável), um
mecanismo criado para remunerar a conservação da floresta, a partir da lógica
de pagamento por créditos de carbono decorrentes de desmatamento evitado.
Tais consultas públicas aconteceram em Manaus, Porto Velho e Belém, em
março e abril, com apoio técnico das ONGs ambientalistas Instituto de Manejo
e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e Instituto de Pesquisa Ambiental
da Amazônia (IPAM). Além disso, de 1º de dezembro de 2009 a 30 de abril de
2010, pessoas e organizações podiam enviar suas contribuições sobre o tema
por meio do sítio eletrônico www.reddsocioambiental.org.br. Agora, um com
comitê de revisão e elaboração16
irá sistematizar o conteúdo recolhido e
apresentar o resultado consolidado em um seminário a ser realizado em
Brasília, até o fim do ano (QUEIROZ, Op. Cit.).
14
Dados obtidos a partir da entrevista com Aginaldo Queiroz, coordenador do GTA Médio Solimões, em
23 de março de 2010.
15
Desde então, as três organizações já realizaram assembléias gerais, com eleição de diretoria. Os
diretores eleitos, porém, continuam sendo todos do Amazonas: Rubens Gomes, do GTA; Marcos
Apurinã, da Coiab; e Manuel Cunha, reeleito pelo CNS. Tanto Adilson Vieira quanto Jecinaldo Sateré-
Maué passaram a ocupar cargos de confiança no governo estadual.
16
Tal comitê é facilitado pelo Imaflora e tem representantes das seguintes organizações: CNS, GTA,
COIAB, Contag, Rede Povos da Floresta, Biofílica, CNA, PFCA, ICV, ISA, Greenpeace, WWF,
Fundação Avina, Icraf, Imazon, IPAM, Funbio, CI e TNC (fonte: www.reddsocioambiental.org.br).
V.2 – O governo do Amazonas
O I Seminário de Mudanças Climáticas realizado pela Aliança dos Povos
da Floresta em Manaus teve apoio da Secretaria Estadual de Desenvolvimento
Sustentável do Amazonas (SDS). Durante os três dias do evento, os 40
participantes17
navegaram pelo Rio Negro, em um barco que serviu de local de
trabalho e hospedagem. Na primeira noite, a embarcação atracou na praia do
Tupé18
, onde houve uma atividade de confraternização organizada pela
assessoria de Comunicação da SDS: lideranças extrativistas, indígenas,
cientistas e gestores governamentais presentes foram convidados a fazer uma
roda ao redor de uma fogueira e a declarar em seqüência qual o significado da
floresta amazônica para cada um deles. Todos os depoimentos foram
gravados por uma equipe que voltou para Manaus de voadeira19
, fez a edição
durante a madrugada e, já na manhã seguinte, entregou uma cópia do vídeo ao
governador Eduardo Braga (PMDB), que estava de partida para os Estados
Unidos. O motivo da viagem eram reuniões com representantes de ONGs que
financiam projetos ambientais na Amazônia (no caso, WWF e Fundação
Moore).
Em 2007, não foram poucas as viagens internacionais do governador
amazonense motivadas por articulações no campo ambiental. Nesse ano, ele
criou a “Lei Estadual de Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e
Desenvolvimento Sustentável”, rapidamente aprovada pela Assembléia
Legislativa, e foi homenageado pela revista “Isto É” como um dos cinco
“Brasileiros do Ano”. A face mais visível dessa lei é a implantação do programa
“Bolsa Floresta”, que, entre outras três linhas de crédito comunitário, paga R$
50 mensais a famílias moradoras de unidades de conservação de uso
sustentável20
. Além disso, o governo estadual também apoiou a criação da
Fundação Amazonas Sustentável (FAS), uma instituição privada de caráter
público, sobre a qual ele detém 25% do controle. A FAS administra um fundo
17
A autora participou do seminário a convite da rede GTA.
18
Esta praia, localizada a 25 quilômetros do porto de Manaus, fica dentro da Reserva de
Desenvolvimento Sustentável do Tupé. Uma das regras a ser seguida pelos visitantes que acampam no
local é a proibição de se fazer fogueira.
19
Canoa de metal motorizada, meio de transporte comum na região amazônica.
20
Até outubro de 2009, 6,8 mil famílias recebiam o benefício (http://www.fas-
amazonas.org/pt/secao/programa-bolsa-floresta).
de R$ 40 milhões, R$ 20 milhões deles doados pelo banco Bradesco, que
financia o programa “Bolsa Floresta”. Na última edição dominical de novembro
de 2007, o jornal “Estado de São Paulo” encartou a revista “Grandes
Reportagens”, dedicada à Amazônia. O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto21
observou que, não por mera coincidência, 95% das 124 páginas do encarte
diziam respeito ao Amazonas e que o referido banco foi o principal anunciante
da revista (ocupando cinco páginas com conteúdo publicitário).
O Bradesco também ganhou destaque na peça institucional de
divulgação do programa Bolsa Floresta, produzido pela FAS22
. Logo aos 1:15
minutos do vídeo (que totaliza 10:11 minutos), a voz da narradora afirma:
Especialistas em mudanças climáticas querem reduzir as
emissões de carbono, fazendo parceria com quem vive
diretamente da floresta, nos mananciais de água. Para
enfrentar esse desafio, o governo do Amazonas criou no dia
20 de dezembro de 2007, em parceria com o Banco Bradesco,
o banco do planeta, a Fundação Amazonas Sustentável.
Mais para frente, transcorridos 7h13 minutos de imagem e som,
descobre-se que a “Casa de Saber na Floresta”, inaugurada na Reserva de
Desenvolvimento Sustentável do Juma em outubro de 2008, ironicamente,
recebeu o nome de “Escola J. W. Marriot Jr”. A RDS do Juma, localizada no sul
do Amazonas, às margens do rio Aripuanã, é a unidade de conservação vitrine
do programa Bolsa Floresta. Lá, a FAS está implantando um projeto REDD que
obteve padrão ouro da certificadora alemã Tüv Süd, seguindo os critérios de
certificação da Aliança Clima, Comunidade e Biodiversidade (CCBA, na sigla
em inglês). A implementação do projeto, com custos anuais de US$ 500 mil
(durante quatro anos), tem financiamento da rede de hotéis Marriot
International (FAS, 2009), cujo fundador se chama J. W. Marriot Jr.
V.3 – O Pólo Industrial de Manaus
A apropriação do discurso ambiental por parte das empresas está
presente também no Pólo Industrial de Manaus. A política de isenção fiscal
21
No artigo “A Amazônia do Amazonas, do Estadão e do Bradesco”, publicado na edição 406 do “Jornal
Pessoal” (dezembro de 2007).
22
A FAS postou este vídeo no canal que possui no YouTube: http://www.youtube.com/watch?
v=BcKHWQM0C0M.
criada pelo governo militar em 1967 tem data para terminar: 2023. Na defesa
de sua manutenção, os aspectos econômicos (geração de emprego e renda)
cederam lugar a argumentos ecológicos: o fato de o percentual de área
desmatada no Amazonas não ultrapassar 2% da área total do estado é
creditado por políticos e empresários ao sucesso do modelo Zona Franca de
Manaus, que estaria inibindo a destruição da floresta por meio da geração de
empregos urbanos.
A Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), com
financiamento da empresa Nokia, que possui uma fábrica de celulares em
Manaus, encomendou ao Instituto Piatam uma pesquisa para medir “o impacto
virtuoso do Pólo Industrial de Manaus sobre a proteção da floresta amazônica”
(RIVAS et al: 3). Os primeiros resultados, divulgados em 2009, apontam que
em 1997 as indústrias de Manaus teriam contribuído com a redução de 85% no
desmatamento do Amazonas. Além disso, entre 2000 e 2006, “o PIM
proporcionou a capacidade de atenuar o desmatamento do Amazonas no
intervalo de 70 a 77% em relação ao que poderia ter ocorrido com a ausência
do Pólo” (RIVAS et al, Op. Cit.: 20). O valor deste “desmatamento evitado” foi
calculado pelos pesquisadores como sendo algo entre US$ 1 e US$ 10 bilhões.
A pesquisa em questão comparou a evolução das taxas de
desmatamento do Amazonas e do Pará, entre 1985 e 2003, e concluiu que no
primeiro estado a perda da floresta é menor porque existe o Pólo Industrial de
Manaus como alternativa econômica sustentável (RIVAS et al, Op. Cit.). O
estudo não levou em consideração o conhecido papel das estradas como
indutoras do desmatamento: no Amazonas, o acesso terrestre é bem mais
restrito do que no Pará. Esse quadro de relativo isolamento, porém, deve ser
modificado em breve, com o asfaltamento da rodovia Manaus-Porto Velho, a
BR-319. As obras de reabertura e pavimentação já estão em curso e atendem
ao lobby do Pólo Industrial de Manaus, interessado em reduzir o tempo e o
custo de escoamento da produção ao Centro-Sul do país (FEARNSIDE e
GRAÇA, 2005).
Outra conclusão dos pesquisadores do Instituto Piatam contratados pela
Suframa é que o Pólo Industrial de Manaus deveria se organizar em
ecoparques e criar um processo de certificação que agregasse valor aos
produtos. Tal selo substituiria a atual rotulagem obrigatória por lei: uma garça
estilizada, acompanhada da frase “Produzido no Pólo Industrial de Manaus”23
.
Esta proposta foi defendida pela superintendente da Suframa, Flávia Grosso,
no Fórum Internacional de Sustentabilidade que reuniu 300 líderes
empresariais em Manaus, nos dias 26 e 27 de março de 201024
.
VI. Considerações finais
O Amazonas parece ter assumido no cenário ambiental brasileiro o lugar de
destaque já ocupado pelo Acre nas décadas de 1980 e 1990, tornando-se
referência para a mídia nacional e estrangeira no tema mudança climática e
conservação florestal. Esta problemática está inserida de forma privilegiada na
agenda política dos movimentos sociais, do Estado e das empresas. Sob um
discurso de aparente consenso, mas com trajetórias históricas diferentes e
interesses conflitantes, a Aliança dos Povos da Floresta, a Fundação
Amazonas Sustentável e o Pólo Industrial de Manaus incorporaram a
discussão sobre mudança climática como oportunidade de obtenção de renda.
Em um campo polarizado entre a comunicação mecanicista e o direito à
comunicação, essas três organizações parecem distantes das práticas mais
dialógicas. As estratégias de comunicação baseadas na difusão de massa e no
convencimento cumprem um papel importante na sociedade, tanto no campo
do marketing comercial e político, quanto no da propaganda pública. Elas,
porém, reforçam a racionalidade instrumental, em um momento em que a
sociedade é chamada a fazer o movimento contrário: desconstruir o utilitarismo
e fortalecer o diálogo de saberes e as formas coletivas de construção de
conhecimentos.
O filósofo aymara Fernando Huanacuni Mamani (2010: 8) destacou a
contradição de se enfrentar a crise climática a partir da mesma lógica que o
causou: “La solución que nos plantean es la misma: hay que seguir haciendo
23
Até 2006, a frase era “Produzido na Zona Franca de Manaus”.
24
A autora participou do Fórum Internacional de Sustentabilidade a convite do jornal A Crítica.
negocio de la Pachamama. La hemos destruído haciendo negocio y hay que
hacer negocio para salvarla25
”. Esse parece estar sendo o perigoso caminho
que tanto o governo estadual, quanto as organizações sociais e as empresas
do Amazonas estão seguindo.
VII. Referências bibliográficas
ALIANÇA DOS POVOS DA FLORESTA (2007). Carta da Aliança dos Povos da
Floresta. Documento eletrônico resultante do II Encontro Nacional dos Povos
da Floresta. Brasília.
ALMEIDA, Alfredo W. B. (2008). Antropologia dos archivos da Amazônia. Rio
de Janeiro: Casa 8 / FUA.
ALMEIDA, Mauro N. B. (2004). Direito à Floresta e ambientalismo – os
seringueiros e suas lutas. Revista RBCS, vol. 19, nº 55, junho. São Paulo:
ANPOCS.
BRIANEZI, Thaís (2007). A Reforma Agrária Ecológica na Floresta Nacional de
Tefé. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graducação em Sociedade e
Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Manaus: Ufam.
EREAUT, Gill.; SEGNIT, Nat. (2006). Warm Words: How Are We Telling the
Climate Story and Can We Tell it Better? London: Institute for Public Policy
Research.
FUNDAÇÃO AMAZOANS SUSTENTÁVEL (2009). Relatório de gestão da
Fundação Amazonas Sustentável – 2009. Manaus: FAS.
FEARNSIDE, Philip; GRAÇA, Paulo M. L. A. (2005). BR-319: a rodovia
Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de
desmatamento à Amazônia Central. Manaus: Inpa.
GARDINER, Stephen M. (2010). Ethics and climate change: an introduction.
WIREs Climate Change John Wiley & Sons Ltd. Volume !, jan/fev, p. 54-66.
25
Tradução literal: “A solução que nos oferecem é a mesma: há que seguir fazendo negócio com a
Pachamama. Nós a destruímos fazendo negócio e temos que fazer negócio para salvá-la”.
INTERVOZES (2005). Direito à Comunicação no Brasil: base constitucional e
legal, o papel dos diferentes atores e tendências atuais e futuras. Relatório do
projeto de Governança Global. São Paulo: Campanha Cris.
IPCC (2007). Climate Change 2007: Shyntesis Report. World Meteorological
Organization and Unite Nations Environment Programme.
LATOUR, Bruno (1994). A profissão de pesquisador: olhar de um antropólogo.
Paris: Instituto Nacional de Pesquisas Agronômicas.
________ (2004). Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia.
São Paulo: Edusc.
LEFF, Enrique (2006). Racionalidade ambiental: a reapropriação social da
natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
LEVIN, Kelly; CASHORE, Benjamin; BERNSTEIN, Steven; AULD, Graeme
(2009). Playing it forward: path dependency, progressive incrementalism and
the “the super wicked” problem of climate change. Paper prepared for
presentation to the Climate Change Global Risks, Challenges and Decisions
Congress. Denmark.
MAMANI, Fernando H. (2010). Vivir Bien / Bien Vivir: filosofia, políticas,
estratégias y experiencias regionales. La Paz: Instituto Internacional de
Integración.
MATTELLART, Armand (2009). A construção social do direito à comunicação
como parte integrante dos direitos humanos. Intercom – Revista Brasileira de
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NERLICH, Brigitte; KOTEYKO, Nelya; BROWN, Brian (2010). Theory and
language of climate change communication. WIREs Climate Change. John
Wiley & Sons. Volume !, jan/fev, p. 97-100.
RIVAS, Alexandre A. F.; MOTA, José A.; MACHADO, José A. C. (2009).
Impacto virtuoso do Pólo Industrial de Manaus sobre a proteção da floresta
amazônica: discurso ou fato? Manaus: Instituto Piatam.

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A mudança climática em disputa no Amazonas: interesses conflitantes em debate

  • 1. A mudança climática em disputa no Amazonas1 Thaís Brianezi2 – jornalista (ECA-USP), mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM) e doutoranda do Programa de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (PROCAM/USP). Resumo No Amazonas, maior estado brasileiro, a mudança climática ocupa lugar de destaque na pauta política. Sob um discurso de aparente consenso, movimento social, Estado e empresas defendem interesses distintos no campo ambiental. A Aliança dos Povos da Floresta surgiu na década de 1980, a partir da aproximação entre indígenas e seringueiros, tendo Chico Mendes como principal líder. O I Encontro Nacional dos Povos da Floresta aconteceu em 1989 e teve como reivindicação a criação de Reservas Extrativistas. Já o II Encontro Nacional dos Povos da Floresta ocorreu em 2007 e sua principal bandeira de luta foi o pagamento pelos serviços ambientais. Também em 2007, o governo do Amazonas criou a primeira lei sobre mudanças climáticas do Brasil. A face mais visível da referida legislação é o programa “Bolsa Floresta”, que paga R$ 50 mensais a famílias moradoras de unidades de conservação. A política de isenção fiscal do Pólo Industrial de Manaus termina em 2023. Na defesa de sua manutenção, os argumentos econômicos (geração de emprego e renda) deram lugar ao discurso ambiental. O fato de o percentual de área desmatada no Amazonas não ultrapassar 2% da área total do estado é creditado por políticos e empresários ao sucesso do modelo Zona Franca de Manaus. Bruno Latour (2004) afirmou que para lidar com questões globais complexas, como a mudança climática, é preciso desconstruir a lógica instrumental. No Amazonas, porém, a apropriação do discurso ambientalista por diferentes sujeitos parece ter em comum a perspectiva utilitarista. Resumem En Amazonas, el mayor estado brasileño, el cambio climático tiene un lugar prominente en la agenda política. En un discurso de aparente consenso, el movimiento social, El Estado e las empresas defiendem distintos intereses em el campo ambiental. La Alianza de los Pueblos de las Florestas surgió en la década de 1980, desde el acercamiento entre indígenas y los extractores de caucho, con Chico Mendes como el líder principal. Su Primer Encuentro Nacional se produjo en 1989 y fue a reclamar la creación de reservas extractivistas. Ya el Segundo Encuentro Nacional de los Pueblos de las Florestas se produjo en 2007 y su bandera de lucha principal era el pago por servicios ambientales. También en 2007, el gobierno de Amazonas ha creado la primera ley sobre el cambio climático en Brasil. El aspecto más visible de esta normativa es la "Beca Floresta", que paga R$ 50 mensuales a las familias que viven en áreas protegidas. La política de exención fiscal del Polo Industrial de Manaus termina en 2023. En defensa de su mantenimiento, los argumentos económicos (generación de empleo e ingresos) dio lugar al discurso del medio ambiente. El hecho de que el porcentaje de área deforestada en la Amazonia no supere el 2% de la superficie total del estado se le atribuye por parte de políticos y hombres de negocios para el éxito del modelo de la Zona Franca de Manaus. Bruno Latour (2004) declaró que para hacer frente a los complejos problemas mundiales como el cambio climático, debemos deconstruir la lógica instrumental. En la Amazonia, sin embargo, la apropiación del discurso ambientalista por diferentes sujetos parece tener en común el punto de vista utilitario. 1 Artigo apresentado ao VIII Congresso Latino-Americano de Sociologia Rural, Porto de Galinhas, 2010. 2 A autora possui bolsa de doutorado da SCAPES, a quem agradece o apoio.
  • 2. Abstract In Amazonas, the largest Brazilian state, climate change has a prominent place on the political agenda. Under a discourse of apparent consensus, the social movement, the State and the companies defend different interests in the environmental field. The Alliance of Forest Peoples, whose main leader was Chico Mendes, emerged in the 1980s, from the union of Indian peoples and rubber tappers. The first National Meeting of Forest Peoples came in 1989 and was to claim the creation of extractive reserves. The second one occurred in 2007 and its main demand was for the payment for environmental services. Also in 2007, the government of Amazonas has created the first law on climate change in Brazil. The most visible aspect of that legislation is the “Bolsa Floresta" (Forest Conservation Grant), which pays R$ 50 a month to families living in protected areas.The policy of tax exemption of the Industrial Pole of Manaus ends in 2023. In defense of its maintenance, the economic arguments (such as generation of employment) were replaced by the environmental ones. The fact that the percentage of area deforested in Amazonas does not exceed 2% of the state total area is credited by politicians and businessmen to the success of the Free Trade Zone of Manaus. Bruno Latour (2004) stated that to deal with complex global issues such as climate change, we must deconstruct the instrumental logic. In Amazonas, however, the appropriation of environmental discourse by different social actors seems to have in common a utilitarian perspective. I. Breve introdução Este artigo apresenta os resultados preliminares de minha pesquisa de doutorado, iniciada em julho de 2009, no Programa de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (PROCAM/USP). O projeto “A mudança climática em disputa no Amazonas: análise das práticas de comunicação da Aliança dos Povos da Floresta, do governo do Amazonas e do Pólo Industrial de Manaus” tem orientação do professor doutor Marcos Sorrentino (ESALQ/USP). II. A crise do pensamento instrumental A ética como relação com o Outro faz reviver o Ser dos escombros da racionalidade que foi forjada pelo Mundo Objeto (LEFF, 2006: 337) A cultura ocidental hegemônica continua presa à armadilha da caverna platônica, na qual se pressupõe que existe, de um lado, a realidade (as coisas como elas são) e, de outro, as representações (as coisas como as vemos) (LATOUR, 2004). No Mito de Platão, o filósofo aparece como o salvador dos homens, aquele que faz a ponte entre o mundo social e o mundo da verdade. Desde a Modernidade, este papel foi transferido aos pesquisadores do
  • 3. chamado núcleo duro das Ciências (do qual a Filosofia e as Humanidades não fazem parte). O que mudou, de fato, é que na narrativa platônica o sábio era assassinado pela horda de ignorantes que não tiveram a capacidade de compreendê-lo. Já os iluminados de hoje desfrutam de prestígio e poder. A ruptura entre ontologia e epistemologia, porém, sobreviveu, cumprindo a razão político-religiosa de se ter uma verdade com a qual legitimar a dominação (LATOUR, Op.Cit.). Essa visão bicameral, compartimentada, nos levou à existência de uma ciência dos objetos e de uma política dos sujeitos, ambas fundamentadas na razão instrumental, reafirmando cotidianamente a máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios. Na raiz da super exploração que os seres-humanos praticam nas relações entre si e com seu meio, está o pensamento utilitarista, conforme destacou Bruno Latour (Op. Cit: 351): A crise ecológica, lembramos muitas vezes, apresenta-se antes de tudo como uma revolta generalizada dos meios. Nem nada, nem ninguém, quer aceitar servir como simples meio para o exercício de uma vontade qualquer, tida como fim último Na mesma linha, Enrique Leff (2006) afirmou que a crise ambiental é, em última instância, conseqüência da metafísica que produziu a separação entre o ser e o ente, “que abriu caminho à racionalidade científica e instrumental da Modernidade, que produziu um mundo fragmentado e coisificado em seu afã de domínio e controle da natureza” (LEFF, Op. Cit: 288). Por isso, a racionalidade ambiental emergente questiona os paradigmas do conhecimento estabelecidos, as formações teóricas e ideológicas que legitimam a ordem social vigente. O saber ambiental implica a desconstrução da racionalidade dominante: é fruto de um processo de descolonização e a emancipação de saberes locais em diálogo permanente. Para superar a dicotomia entre fatos (ciência dos objetos) e valores (política dos sujeitos), Bruno Latour (Op. Cit.: 120) propôs “uma ecologia política de coletivos de humanos e de não-humanos”. Nestes coletivos (ou
  • 4. assembléias), sempre abertos e dinâmicos, não há sociedade e natureza, seres e objetos. Existem, sim, as proposições, termo que remete ao caráter de articulações novas e imprevistas e, também, ao campo da fala. Ou seja, a constituição dos coletivos traz à tona a problemática dos porta-vozes, que o sociólogo francês (LATOUR, Op. Cit.: 133-134) chamou de enigma da representação: “Aquele que diz ´o Estado sou eu`, ´A França decidiu que`, não é mais fácil de ser decifrado do que aquele que inscreve num artigo a massa da Terra ou o número do Advogado”. A incerteza e, conseqüentemente, o diálogo, portanto, são intrínsecos ao conceito de coletivo. Em 2008 e 2009, respectivamente, o Equador e a Bolívia aprovaram constituições nacionais em que se afirmam como estados plurinacionais e destacam o bien vivir (na legislação equatoriana) e vivir bien (no texto boliviano) como princípios que se contrapõem ao ideal capitalista de acumulação e progresso. Ambos os termos têm a mesma origem: o suma qamaña da língua aymara e o sumak kawsay do quéchua – que, em tradução literal, significam vida em plenitude (MAMANI, 2010). O filósofo aymara Fernando Huanacuni Mamani (Op. Cit.: 46) revelou quais são os treze princípios perseguidos por seu povo para alcançar o viver bem: saber comer, saber beber, saber dançar, saber dormir, saber trabalhar, saber meditar, saber pensar, saber amar e ser amado, saber escutar, saber falar, saber sonhar, saber caminhar, saber dar e receber. Este conceito dos povos originários andinos, revisitado pelo movimento social latino-americano, pressupõe vida em comunidade e respeito profundo à Mãe Terra. A comunidade em questão aproxima-se da noção de coletivo proposta por Bruno Latour (Op. Cit.), porque diz respeito a uma comunidade ampliada, que inclui não apenas humanos, mas todos os seres vivos (entendidos aqui como todos os animais, plantas e minerais, em seus elementos físicos e espirituais). Ela não significa o fim da individualidade, mas o reconhecimento de um processo de complementação e de interconexão entre esses seres, de vivência e convivência. No ayllu (sistema tradicional de organização dos aymara) não há lugar para “recurso”, porque “se todos vivem o que existe são seres, não objetos” (MAMANI, Op. Cit.: 20).
  • 5. O sentido político do viver bem está interpolando a modernidade não para ser hegemônico, mas para fortalecer a pluralidade e a complementaridade, reconhecendo e celebrando a complexidade. Ele vai além do ideal ocidental de solidariedade, ligado a um contexto de hierarquia. No seu lugar, oferece o princípio de reciprocidade, que promove identificação, ligação e afeto (RONCAL, oral3 ). III. A comunicação como um direito A construção da racionalidade ambiental, como explicitada no item anterior, demanda o diálogo de saberes, requer formas mais democráticas de produção e de compartilhamento de conhecimentos. No campo da comunicação, isso implica não apenas maior pluralidade de conteúdos em relação à monotonia dos discursos hegemônicos, como também processos mais interativos, que promovam a aprendizagem coletiva. Essas práticas mais dialógicas inserem-se no contexto da luta pelo direito à comunicação. Na prática, o movimento de comunicação no Brasil tem se debruçado sobre as seguintes bandeiras concretas, previstas na Constituição Federal de 1988, mas ainda não regulamentadas: o combate à concentração de mídia; a defesa das rádios comunitárias; a batalha pelo sistema público de comunicação, complementar ao sistema estatal e ao privado; a diversidade cultural, com estímulo à produção e difusão de conteúdos regionais; a popularização do acesso às tecnologias multimídias; um regime de propriedade intelectual que estimule a criatividade e o compartilhamento do conhecimento. Entender a comunicação como um direito humano fundamental, portanto, significa opor-se à sua transformação em mercadoria, reconhecendo que ela é imprescindível para a realização plena da cidadania. Implica também ver a comunicação como campo público, de lutas sociais, em oposição à visão privada, tecnocrática, de que ela constitui uma arena de proprietários e 3 Palestra proferida por Patrícia Roncal em 21 de abril de 2010, no seminário “A construção social da sustentabilidade a partir de um novo saber fundado na racionalidade ambiental, no pensamento ambiental latino-americano e no viver bem”. O referido seminário aconteceu em Cochabamba, na Bolívia, durante a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e os Direitos da Madre Terra, como atividade auto-gestionada promovida pelo Centro de Saberes e Cuidados Socioambientais da Bacia do Prata
  • 6. especialistas. Neste sentido, o direito à comunicação vai além do direito à liberdade de expressão e da difusão de informação, englobando também as esferas do acesso aos meios de produção e compartilhamento de informação. Ou seja, para que seja garantido pelo Estado, tal direito necessita de políticas públicas que promovam as condições técnicas e o conhecimento necessário para que o chamado público (que costuma ser reduzido ao papel de leitores, ouvintes e telespectadores autômatos) possa estabelecer uma relação autônoma e independente com os meios de comunicação, sendo ele próprio também produtor e difusor de conteúdos (INTERVOZES, 2005). O paradigma mecanicista descreve a comunicação como um processo unilateral no qual um emissor, através de um meio, passa uma mensagem a ser decodificada por um receptor. Essa visão reducionista fundamentou a doutrina do Free Flow of Information, que dominou a Conferência das Nações Unidas sobre Liberdade de Expressão, realizada em 1948, em Genebra (MATTELLART, 2009). Não por acaso, neste mesmo ano, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 19, estabeleceu que: Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão (MATTELLART, Op. Cit: 38). O direito à comunicação, neste caso, resumiu-se à defesa da liberdade de opinião e de expressão, conceitos liberais que justificaram a conquista das Américas e a prática da evangelização. O ideário da suposta igualdade perante a lei serviu para camuflar as relações de dominação e as desigualdades econômicas e culturais decorrentes delas. Por isso, seguindo esta perspectiva, o referido artigo ignorou a necessidade de democratizar os meios de produção e de difusão de conteúdos. Duas décadas depois, já nos anos 1970, graças à influência dos chamados Estudos Culturais, fortaleceu-se um novo paradigma de Comunicação, um modelo “dialógico e recíproco, no qual o acesso e a participação tornaram-se fatores essenciais” (MATTELLART, Op. Cit.: 38). Sobre este pano de fundo, o direito humano à comunicação passou a ser
  • 7. reconhecido a partir de uma visão mais ampla: em 1977, o relatório MacBride, fruto do trabalho da comissão criada pelo diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), afirmou que não há garantia do direito à comunicação sem políticas públicas de comunicação e cultura. Essa dinâmica de reflexão sobre as relações entre cultura, comunicação e democracia, porém, esfriou nas décadas de 1980 e 1990, período neoliberal de formação dos conglomerados econômicos (MATTELLART, Op. Cit). A crítica ao modelo informacional, visto como ultrapassado, é uma característica comum dos estudos que analisam campanhas de comunicação sobre a chamada mudança climática. A visão do público como tábula rasa esperando para ser preenchido com informações úteis a partir das quais ele possa agir racionalmente ainda predomina em muitas práticas da chamada comunicação ambiental. Tanto que Brigitte Nerlich, Nelya Kotekyo e Brian Brown (2010: 99) afirmaram que “assim como os comunicadores científicos, os comunicadores da mudança climática precisam urgentemente passar da comunicação unidirecional para um engajamento mais dialógico e reflexivo4 ”. Gill Ereaut e Nat Segnit (2006) sugeriram que há lições a serem apreendidas das iniciativas locais de comunicação ambiental, que trabalham com uma linguagem mais coloquial, com a cultura popular, e por isso, têm maior potencial de engajamento no plano emocional que os discursos político ou científico mais amplamente difundidos pelos veículos de massa. Os autores endossam a tese de que o uso de metáforas ajuda a traduzir o conhecimento científico ao cidadão comum. Por outro lado, eles reconhecem que esta é uma manifestação da visão que os cientistas e comunicadores costumam ter do público, percebido como um grupo de pessoas com pouco conhecimento. Em outras palavras: a tendência dos comunicadores ambientais tem sido a de tomar como dado a defasagem entre o conhecimento científico e o conhecimento leigo, no lugar de tentar estabelecer um diálogo mais criativo que capacite as pessoas a participar da deliberação e dedução de soluções independentes (NERLICH et al, Op. Cit.). 4 Tradução livre feita pela autora.
  • 8. IV. A mudança climática sob a lente ética Nos últimos 150 anos, o aumento médio da temperatura na Terra foi de 0,7ºC. Esse aquecimento foi diferenciado: enquanto no Ártico, por exemplo, girou em torno de 2ºC, na Região Tropical ficou em 0,4ºC. A variação não- uniforme da temperatura implicou em mudanças na pressão e, portanto, alterou também os padrões de circulação na atmosfera, impactando os fluxos de vapor d´água e o regime de chuvas (IPCC, 2007). A causa imediata da chamada mudança climática foi o aumento vertiginoso na concentração de gases de efeito estufa desde a Revolução Industrial, especialmente o gás carbônico (CO2), conseqüência da grande utilização de combustíveis fósseis. Atualmente a concentração de CO2 está na ordem de 387 ppm, valor que já superou o patamar de 350 ppm indicado pelos membros do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) como quantidade limite para garantir um aumento médio máximo de 2ºC na temperatura global. Em outras palavras, isso significa que o compromisso assumido pelos países membro da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Clima em sua 15ª Conferência das Partes, em 2009, em Copenhagen, já não é factível (ARTAXO, apresentação oral5 ). Quando os modelos matemáticos projetam um aumento médio da temperatura de 2ºC a 3,5ºC até o fim deste século, tendo como ano-base 1750, eles levam em consideração também os oceanos. Como nos continentes as temperaturas tendem a ser mais altas, especialmente na região equatorial, isto leva à previsão de aumento entre 5ºC a 7ºC na temperatura da região amazônica (ARTAXO, Op. Cit.). O uso do termo mudança climática em substituição à expressão aquecimento global, inicialmente mais empregada, foi duramente criticado por Boaventura de Souza Santos em palestra realizada em 19 de abril de 2010, no seminário “A construção social da sustentabilidade a partir de um novo saber 5 Palestra “Aspectos científicos recentes e a política da questão das mudanças climáticas globais”, proferida no dia 9 de abril de 2010, no Instituto de Engenharia Eletrotécnica da Universidade de São Paulo (IEE-USP), por Paulo Artaxo. Ele é professor do Laboratório de Física Atmosférica da USP, membro do IPCC e da coordenação do programa FAPESP sobre Mudanças Climáticas.
  • 9. fundado na racionalidade ambiental, no pensamento ambiental latino- americano e no viver bem”. O referido seminário aconteceu em Cochabamba, na Bolívia, durante a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e os Direitos da Madre Terra, como atividade auto-gestionada promovida pelo Centro de Saberes e Cuidados Socioambientais da Bacia do Prata. As críticas do sociológico português centraram-s no fato de a mudança climática ser um termo vago, que não explicita as causas estruturantes do problema, fruto do modelo de produção e de distribuição de bens. Um broche utilizado por ambientalistas europeus nos anos 1970 dizia: “Technology is the answer. But what is the question?6 ” (LATOUR, 1994: 357). O debate hegemônico sobre mudança climática tem se restringido a seus impactos atuais e futuros (e às eventuais formas de mitigação e adaptação), fugindo da discussão sobre as causas do problema. Ao mesmo tempo, os movimentos sociais anticapitalistas começaram a se apropriar da discussão sobre aquecimento global, vista por eles como uma oportunidade política de mostrar os limites do atual modelo de desenvolvimento. É neste contexto que o governo da Bolívia, com apoio da Aliança Bolivariana para as Américas7 , convocou a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e os Direitos da Madre Terra, quer reuniu aproximadamente 15 mil participantes de 110 países (RAMOS, apresentação oral8 ). Kelly Levin, Benjamin Cashore, Steven Bernstein e Auld Graeme (2009) retomaram um artigo escrito em 1973 por Horst Rittel e Mellin Webber, no qual os autores definem os problemas ambientais como wicked problems9 . As duas características principais que justificam a denominação são: tais problemas não possuem solução definitiva (logo, só é possível mitigá-los), nem são reversíveis (por isso, não se pode atacá-los por tentativa e erros). As mudanças climáticas globais apresentariam, ainda, têm três características adicionais, que as 6 Em tradução literal: “Tecnologia é a resposta. Mas qual a pergunta?”. 7 Plataforma de cooperação internacional baseada na idéia da integração social, política e econômica entre os países da América Latina e do Caribe. Oito países fazem parte dela: Antígua e Barbuda; Bolívia; Cuba; Dominica; Equador; Nicarágua; São Vicente e Granadinas; e Venezuela (http://pt.wikipedia.org/wiki/Alian%C3%A7a_Bolivariana_para_as_Am%C3%A9ricas#Membros). 8 Palestra de Juan Pablo Ramos, vice-ministro de Meio Ambiente da Bolívia, em 19 de abril de 2010, como parte da programação da conferência de Cochabamba. 9 Tradução literal: problemas perversos.
  • 10. transformariam em super wicked problems 10 : está se esgotando o tempo para que o problema comprometa gravemente as diversas formas de vida na Terra, especialmente a humana; não há autoridade central responsável por ele; aqueles que procuram por fim ao fenômeno também contribuem para o seu agravamento (LEVIN et al. Op. Cit.). Levin, Cashore, Bernstein e Graeme (Op.Cit.) destacaram que as formas de enfrentamento dos wicked problems dependem, em grande parte, das visões de mundo. Enquanto um institucionalista, por exemplo, provavelmente sugeriria a criação ou redesenho de organização, um construtivista focaria na transformação de valores e na aprendizagem coletiva. Os autores afirmaram ainda que no caso da mudança climática, as tentativas de resolução não podem derivar apenas da ciência popperiana ou de outras verdades positivistas, mas devem levar em considerações diferentes saberes e crenças sobre o papel da humanidade no planeta Terra (LEVIN et al, Op. Cit.). Stephen Gardiner (2010) também defendeu que a análise ética é inerente ao tratamento de cinco preocupações centrais das políticas climáticas, a saber: as incertezas científicas; a responsabilidade por emissões passadas; o estabelecimento de metas de mitigação; as estratégias de adaptação; e o lugar reengenharia no portfólio político. O autor mostrou que o quarto e mais recente relatório do IPCC, de 2007, assim como o texto fundador da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre o Clima, de 1992, contém conteúdos éticos. Enquanto o primeiro reconheceu que a adoção das práticas para combater mudança climática depende de decisões que são julgamentos de valores, o segundo falou sobre equidade, responsabilidades comuns, porém diferenciadas, necessidades especiais e direito ao desenvolvimento. A maioria das pessoas concorda que temos que limitar as emissões futuras de gases de efeito estufa, transformando um recurso até então aberto (a atmosfera) em algo que deve ser distribuído de forma justa. O debate internacional, porém, tem se focado em metas numéricas, abafando o julgamento ético. Quando entra em discussão o modo de se atingir as metas 10 Tradução literal: problemas super perversos.
  • 11. estabelecidas, porém, vêm à tona as diferentes visões de mundo que sustentam as propostas e suas decorrentes fragilidades (GARDINER, Op. Cit.). Existem na mesa de negociações das Nações Unidas três propostas principais sobre como distribuir as emissões futuras. Uma delas estabelece um mesmo valor per capita para todos os seres-humanos, ignorando as diferentes necessidades de energia. Outra se apóia na idéia de que as emissões de subsistência devem ser garantidas e são inalienáveis, mas não explica como definir o que é necessário à subsistência nem como as emissões excedentes serão distribuídas. A terceira defende que as nações deveriam compartilhar as responsabilidades por meio de reduções percentuais em suas emissões, mas não resolve a problemática das emissões passadas nem da divisão equitativa das emissões recentes. Enquanto para os Estados Unidos cortar 20% do que emite anualmente de gás carbônico levaria os norte-americanos a uma emissão média de 4,26 toneladas de CO2 equivalente, para a Índia significaria uma emissão de 0,28 toneladas por habitante (GARDINER, Op. Cit.). Os debates hegemônicos sobre mudança climática partem do pressuposto de que devemos lidar com os limites do atual sistema geopolítico, sem reconhecer que a crise climática coloca em xeque, do ponto de vista prático e filosófico, a sobrevivência deste sistema. A maior parte do trabalho disponível sobre o assunto tenta construir pontes entre o abismo do que é e o que poderia ser. Esta é, de fato, uma tarefa essencial, mas é preciso reforçar a pesquisa e o debate público sobre o que a humanidade busca ser, em termos de melhores instituições e modos de vida (GARDINER, Op. Cit.). V – Mudança climática em destaque na agenda do Amazonas V.1 - A Aliança dos Povos da Floresta A Aliança dos Povos da Floresta surgiu na década de 80, a partir da aproximação entre sindicalistas extrativistas (como Chico Mendes) e líderes indígenas (como Aílton Krenak). Seu nascimento representou uma politização dos padrões explicativos e ordenadores da Amazônia, historicamente
  • 12. reduzidos a “umas quantas metáforas, datas canônicas, quadros naturais e ´ciclos` ou a umas tantas construções literárias hiperbolizadas” (ALMEIDA, 2008: 14). Como destacou Alfredo Wagner Berno de Almeida (Op.Cit.:14), coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia: Com a emergência de novas identidades coletivas e de sujeitos sociais organizados, isto é, identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais, estão sendo afastadas de vez as ficções biologizantes, bem como os sujeitos biologizados (...). No I Encontro Nacional dos Povos da Floresta, em 1989, em Brasília, a principal bandeira de luta era a criação de reservas extrativistas (ALMEIDA, 2004). O II Encontro demorou 18 anos para acontecer: foi realizado em setembro de 2007, novamente na capital federal, como parte da estratégia traçada pelo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) para pautar o pagamento por serviços ambientais no debate nacional e internacional sobre mudança climática. O GTA, uma rede que atualmente conta com 623 entidades organizadas em 18 coletivos regionais, surgiu a partir da mobilização da sociedade civil durante a Cúpula da Terra das Nações Unidas, realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Ela foi concebida como “um espaço de ação coletiva de movimentos sociais e ONGs na luta pelo desenvolvimento sustentável da Amazônia Brasileira” (GTA, 2008:211 ). A retomada da Aliança dos Povos da Floresta foi sugerida por um GT interno da rede GTA (o Grupo de Trabalho Panamazônico), em 2005. A idéia começou a se concretizar dois anos depois, em abril de 2007, quando representantes do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS)12 , da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)13 e 11 Apresentação em Power Point elaborada pelo GTA - Regional Médio Amazonas em 2008 e disponibilizada à pesquisadora em arquivo digital. 12 O CNS foi juridicamente constituído em 1988 com o objetivo de lutar por uma reforma agrária adequada aos seringueiros, que respeitasse sua cultura e práticas tradicionais de apropriação do território. A entidade é fruto da mobilização dos seringueiros do Acre, Amazonas, Pará e Rondônia, que realizaram seu I Encontro Nacional em 1985, em Brasília (BRIANEZI, 2007). 13 A COIAB foi fundada em 1989, por iniciativa de lideranças de organizações indígenas existentes à época, num cenário de transformações sociais e políticas ocorridas no Brasil pós-constituinte. Atualmente é a maior organização indígena do Brasil, com 75 organizações membro, dos nove estados da Amazônia Brasileira (fonte: www.coiab.com.br).
  • 13. do GTA se reuniram em Santarém, no Pará, para discutir a proposta. No mesmo ano, em maio, as três entidades promoveram o I Seminário de Mudanças Climáticas, em Manaus e, em setembro, o II Encontro dos Povos da Floresta, em Brasília (QUEIROZ, entrevista14 ). A escolha de Manaus para a realização do referido seminário (que aconteceu em um barco, no Rio Negro), não se deu por acaso: os coordenadores dessas três grandes organizações amazônicas, na ocasião, eram do Amazonas (Adilson Vieira, do GTA; Jecinaldo Sateré-Maué, da Coiab, e Manuel Cunha, do CNS)15 . A Carta dos Povos da Floresta, resultado público do II Encontro Nacional da Aliança, reivindicava o ”reconhecimento e desenvolvimento de alternativas para remunerar os povos das florestas por seus serviços ambientais de manutenção da floresta em pé prestados ao Brasil e ao mundo” (ALIANÇA, 2007). Neste sentido, em 2010, GTA, CNS e Coiab organizaram três consultas públicas sobre princípios e critérios dos chamados REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação, incluindo manejo sustentável), um mecanismo criado para remunerar a conservação da floresta, a partir da lógica de pagamento por créditos de carbono decorrentes de desmatamento evitado. Tais consultas públicas aconteceram em Manaus, Porto Velho e Belém, em março e abril, com apoio técnico das ONGs ambientalistas Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Além disso, de 1º de dezembro de 2009 a 30 de abril de 2010, pessoas e organizações podiam enviar suas contribuições sobre o tema por meio do sítio eletrônico www.reddsocioambiental.org.br. Agora, um com comitê de revisão e elaboração16 irá sistematizar o conteúdo recolhido e apresentar o resultado consolidado em um seminário a ser realizado em Brasília, até o fim do ano (QUEIROZ, Op. Cit.). 14 Dados obtidos a partir da entrevista com Aginaldo Queiroz, coordenador do GTA Médio Solimões, em 23 de março de 2010. 15 Desde então, as três organizações já realizaram assembléias gerais, com eleição de diretoria. Os diretores eleitos, porém, continuam sendo todos do Amazonas: Rubens Gomes, do GTA; Marcos Apurinã, da Coiab; e Manuel Cunha, reeleito pelo CNS. Tanto Adilson Vieira quanto Jecinaldo Sateré- Maué passaram a ocupar cargos de confiança no governo estadual. 16 Tal comitê é facilitado pelo Imaflora e tem representantes das seguintes organizações: CNS, GTA, COIAB, Contag, Rede Povos da Floresta, Biofílica, CNA, PFCA, ICV, ISA, Greenpeace, WWF, Fundação Avina, Icraf, Imazon, IPAM, Funbio, CI e TNC (fonte: www.reddsocioambiental.org.br).
  • 14. V.2 – O governo do Amazonas O I Seminário de Mudanças Climáticas realizado pela Aliança dos Povos da Floresta em Manaus teve apoio da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS). Durante os três dias do evento, os 40 participantes17 navegaram pelo Rio Negro, em um barco que serviu de local de trabalho e hospedagem. Na primeira noite, a embarcação atracou na praia do Tupé18 , onde houve uma atividade de confraternização organizada pela assessoria de Comunicação da SDS: lideranças extrativistas, indígenas, cientistas e gestores governamentais presentes foram convidados a fazer uma roda ao redor de uma fogueira e a declarar em seqüência qual o significado da floresta amazônica para cada um deles. Todos os depoimentos foram gravados por uma equipe que voltou para Manaus de voadeira19 , fez a edição durante a madrugada e, já na manhã seguinte, entregou uma cópia do vídeo ao governador Eduardo Braga (PMDB), que estava de partida para os Estados Unidos. O motivo da viagem eram reuniões com representantes de ONGs que financiam projetos ambientais na Amazônia (no caso, WWF e Fundação Moore). Em 2007, não foram poucas as viagens internacionais do governador amazonense motivadas por articulações no campo ambiental. Nesse ano, ele criou a “Lei Estadual de Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável”, rapidamente aprovada pela Assembléia Legislativa, e foi homenageado pela revista “Isto É” como um dos cinco “Brasileiros do Ano”. A face mais visível dessa lei é a implantação do programa “Bolsa Floresta”, que, entre outras três linhas de crédito comunitário, paga R$ 50 mensais a famílias moradoras de unidades de conservação de uso sustentável20 . Além disso, o governo estadual também apoiou a criação da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), uma instituição privada de caráter público, sobre a qual ele detém 25% do controle. A FAS administra um fundo 17 A autora participou do seminário a convite da rede GTA. 18 Esta praia, localizada a 25 quilômetros do porto de Manaus, fica dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Tupé. Uma das regras a ser seguida pelos visitantes que acampam no local é a proibição de se fazer fogueira. 19 Canoa de metal motorizada, meio de transporte comum na região amazônica. 20 Até outubro de 2009, 6,8 mil famílias recebiam o benefício (http://www.fas- amazonas.org/pt/secao/programa-bolsa-floresta).
  • 15. de R$ 40 milhões, R$ 20 milhões deles doados pelo banco Bradesco, que financia o programa “Bolsa Floresta”. Na última edição dominical de novembro de 2007, o jornal “Estado de São Paulo” encartou a revista “Grandes Reportagens”, dedicada à Amazônia. O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto21 observou que, não por mera coincidência, 95% das 124 páginas do encarte diziam respeito ao Amazonas e que o referido banco foi o principal anunciante da revista (ocupando cinco páginas com conteúdo publicitário). O Bradesco também ganhou destaque na peça institucional de divulgação do programa Bolsa Floresta, produzido pela FAS22 . Logo aos 1:15 minutos do vídeo (que totaliza 10:11 minutos), a voz da narradora afirma: Especialistas em mudanças climáticas querem reduzir as emissões de carbono, fazendo parceria com quem vive diretamente da floresta, nos mananciais de água. Para enfrentar esse desafio, o governo do Amazonas criou no dia 20 de dezembro de 2007, em parceria com o Banco Bradesco, o banco do planeta, a Fundação Amazonas Sustentável. Mais para frente, transcorridos 7h13 minutos de imagem e som, descobre-se que a “Casa de Saber na Floresta”, inaugurada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Juma em outubro de 2008, ironicamente, recebeu o nome de “Escola J. W. Marriot Jr”. A RDS do Juma, localizada no sul do Amazonas, às margens do rio Aripuanã, é a unidade de conservação vitrine do programa Bolsa Floresta. Lá, a FAS está implantando um projeto REDD que obteve padrão ouro da certificadora alemã Tüv Süd, seguindo os critérios de certificação da Aliança Clima, Comunidade e Biodiversidade (CCBA, na sigla em inglês). A implementação do projeto, com custos anuais de US$ 500 mil (durante quatro anos), tem financiamento da rede de hotéis Marriot International (FAS, 2009), cujo fundador se chama J. W. Marriot Jr. V.3 – O Pólo Industrial de Manaus A apropriação do discurso ambiental por parte das empresas está presente também no Pólo Industrial de Manaus. A política de isenção fiscal 21 No artigo “A Amazônia do Amazonas, do Estadão e do Bradesco”, publicado na edição 406 do “Jornal Pessoal” (dezembro de 2007). 22 A FAS postou este vídeo no canal que possui no YouTube: http://www.youtube.com/watch? v=BcKHWQM0C0M.
  • 16. criada pelo governo militar em 1967 tem data para terminar: 2023. Na defesa de sua manutenção, os aspectos econômicos (geração de emprego e renda) cederam lugar a argumentos ecológicos: o fato de o percentual de área desmatada no Amazonas não ultrapassar 2% da área total do estado é creditado por políticos e empresários ao sucesso do modelo Zona Franca de Manaus, que estaria inibindo a destruição da floresta por meio da geração de empregos urbanos. A Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), com financiamento da empresa Nokia, que possui uma fábrica de celulares em Manaus, encomendou ao Instituto Piatam uma pesquisa para medir “o impacto virtuoso do Pólo Industrial de Manaus sobre a proteção da floresta amazônica” (RIVAS et al: 3). Os primeiros resultados, divulgados em 2009, apontam que em 1997 as indústrias de Manaus teriam contribuído com a redução de 85% no desmatamento do Amazonas. Além disso, entre 2000 e 2006, “o PIM proporcionou a capacidade de atenuar o desmatamento do Amazonas no intervalo de 70 a 77% em relação ao que poderia ter ocorrido com a ausência do Pólo” (RIVAS et al, Op. Cit.: 20). O valor deste “desmatamento evitado” foi calculado pelos pesquisadores como sendo algo entre US$ 1 e US$ 10 bilhões. A pesquisa em questão comparou a evolução das taxas de desmatamento do Amazonas e do Pará, entre 1985 e 2003, e concluiu que no primeiro estado a perda da floresta é menor porque existe o Pólo Industrial de Manaus como alternativa econômica sustentável (RIVAS et al, Op. Cit.). O estudo não levou em consideração o conhecido papel das estradas como indutoras do desmatamento: no Amazonas, o acesso terrestre é bem mais restrito do que no Pará. Esse quadro de relativo isolamento, porém, deve ser modificado em breve, com o asfaltamento da rodovia Manaus-Porto Velho, a BR-319. As obras de reabertura e pavimentação já estão em curso e atendem ao lobby do Pólo Industrial de Manaus, interessado em reduzir o tempo e o custo de escoamento da produção ao Centro-Sul do país (FEARNSIDE e GRAÇA, 2005). Outra conclusão dos pesquisadores do Instituto Piatam contratados pela Suframa é que o Pólo Industrial de Manaus deveria se organizar em
  • 17. ecoparques e criar um processo de certificação que agregasse valor aos produtos. Tal selo substituiria a atual rotulagem obrigatória por lei: uma garça estilizada, acompanhada da frase “Produzido no Pólo Industrial de Manaus”23 . Esta proposta foi defendida pela superintendente da Suframa, Flávia Grosso, no Fórum Internacional de Sustentabilidade que reuniu 300 líderes empresariais em Manaus, nos dias 26 e 27 de março de 201024 . VI. Considerações finais O Amazonas parece ter assumido no cenário ambiental brasileiro o lugar de destaque já ocupado pelo Acre nas décadas de 1980 e 1990, tornando-se referência para a mídia nacional e estrangeira no tema mudança climática e conservação florestal. Esta problemática está inserida de forma privilegiada na agenda política dos movimentos sociais, do Estado e das empresas. Sob um discurso de aparente consenso, mas com trajetórias históricas diferentes e interesses conflitantes, a Aliança dos Povos da Floresta, a Fundação Amazonas Sustentável e o Pólo Industrial de Manaus incorporaram a discussão sobre mudança climática como oportunidade de obtenção de renda. Em um campo polarizado entre a comunicação mecanicista e o direito à comunicação, essas três organizações parecem distantes das práticas mais dialógicas. As estratégias de comunicação baseadas na difusão de massa e no convencimento cumprem um papel importante na sociedade, tanto no campo do marketing comercial e político, quanto no da propaganda pública. Elas, porém, reforçam a racionalidade instrumental, em um momento em que a sociedade é chamada a fazer o movimento contrário: desconstruir o utilitarismo e fortalecer o diálogo de saberes e as formas coletivas de construção de conhecimentos. O filósofo aymara Fernando Huanacuni Mamani (2010: 8) destacou a contradição de se enfrentar a crise climática a partir da mesma lógica que o causou: “La solución que nos plantean es la misma: hay que seguir haciendo 23 Até 2006, a frase era “Produzido na Zona Franca de Manaus”. 24 A autora participou do Fórum Internacional de Sustentabilidade a convite do jornal A Crítica.
  • 18. negocio de la Pachamama. La hemos destruído haciendo negocio y hay que hacer negocio para salvarla25 ”. Esse parece estar sendo o perigoso caminho que tanto o governo estadual, quanto as organizações sociais e as empresas do Amazonas estão seguindo. VII. Referências bibliográficas ALIANÇA DOS POVOS DA FLORESTA (2007). Carta da Aliança dos Povos da Floresta. Documento eletrônico resultante do II Encontro Nacional dos Povos da Floresta. Brasília. ALMEIDA, Alfredo W. B. (2008). Antropologia dos archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8 / FUA. ALMEIDA, Mauro N. B. (2004). Direito à Floresta e ambientalismo – os seringueiros e suas lutas. Revista RBCS, vol. 19, nº 55, junho. São Paulo: ANPOCS. BRIANEZI, Thaís (2007). A Reforma Agrária Ecológica na Floresta Nacional de Tefé. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graducação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Manaus: Ufam. EREAUT, Gill.; SEGNIT, Nat. (2006). Warm Words: How Are We Telling the Climate Story and Can We Tell it Better? London: Institute for Public Policy Research. FUNDAÇÃO AMAZOANS SUSTENTÁVEL (2009). Relatório de gestão da Fundação Amazonas Sustentável – 2009. Manaus: FAS. FEARNSIDE, Philip; GRAÇA, Paulo M. L. A. (2005). BR-319: a rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia Central. Manaus: Inpa. GARDINER, Stephen M. (2010). Ethics and climate change: an introduction. WIREs Climate Change John Wiley & Sons Ltd. Volume !, jan/fev, p. 54-66. 25 Tradução literal: “A solução que nos oferecem é a mesma: há que seguir fazendo negócio com a Pachamama. Nós a destruímos fazendo negócio e temos que fazer negócio para salvá-la”.
  • 19. INTERVOZES (2005). Direito à Comunicação no Brasil: base constitucional e legal, o papel dos diferentes atores e tendências atuais e futuras. Relatório do projeto de Governança Global. São Paulo: Campanha Cris. IPCC (2007). Climate Change 2007: Shyntesis Report. World Meteorological Organization and Unite Nations Environment Programme. LATOUR, Bruno (1994). A profissão de pesquisador: olhar de um antropólogo. Paris: Instituto Nacional de Pesquisas Agronômicas. ________ (2004). Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. São Paulo: Edusc. LEFF, Enrique (2006). Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. LEVIN, Kelly; CASHORE, Benjamin; BERNSTEIN, Steven; AULD, Graeme (2009). Playing it forward: path dependency, progressive incrementalism and the “the super wicked” problem of climate change. Paper prepared for presentation to the Climate Change Global Risks, Challenges and Decisions Congress. Denmark. MAMANI, Fernando H. (2010). Vivir Bien / Bien Vivir: filosofia, políticas, estratégias y experiencias regionales. La Paz: Instituto Internacional de Integración. MATTELLART, Armand (2009). A construção social do direito à comunicação como parte integrante dos direitos humanos. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v. 32, nº 1, p. 33-50, jan./jun, p. 33-49. NERLICH, Brigitte; KOTEYKO, Nelya; BROWN, Brian (2010). Theory and language of climate change communication. WIREs Climate Change. John Wiley & Sons. Volume !, jan/fev, p. 97-100. RIVAS, Alexandre A. F.; MOTA, José A.; MACHADO, José A. C. (2009). Impacto virtuoso do Pólo Industrial de Manaus sobre a proteção da floresta amazônica: discurso ou fato? Manaus: Instituto Piatam.