Após o acidente nuclear que levou a uma evacuação (quase) total, dois homens decidiram ficar para trás e tomar conta de todos os animais que foram subitamente abandonados. https://www.mundodosanimais.pt/
6. MUNDO DOS ANIMAIS
OS GUARDIÕES
DOS ANIMAIS
EM FUKUSHIMA
por Sara Bastos
N
aoto Matsumura e Kei-
go Sakamoto provavel-
mente não se conhe-
cem, mas têm muito em
comum: são os guardiões dos
animais de Fukushima, a pro-
víncia japonesa vítima do maior
acidente nuclear desde Cher-
nobil e onde ninguém quer – ou
pode – viver.
De onde os animais não tiveram
como fugir. Muitos foram dei-
xados para trás acorrentados e
morreram de fome.
Com a missão de salvar o má-
ximo número de animais possí-
vel, Naoto Matsumura, agricul-
tor, recusou ser evacuado da
cidade de Tomioka (situada a
Naoto Matsumura
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menos de 20 quilómetros da
central nuclear de Fukushima) e
é agora o único habitante des-
sa cidade fantasma, juntamente
com dezenas de vacas, porcos,
gatos, cães e até um pónei e
duas avestruzes.
Keigo Sakamoto, que trabalha-
va em instituições de apoio a
deficientes mentais, também re-
cusou ser evacuado após o aci-
dente nuclear e permaneceu na
cidade de Naraha, a sul de Fu-
kushima, onde cuida e alimenta
mais de 500 animais abandona-
dos, incluindo os seus 21 cães.
8. MUNDO DOS ANIMAIS
Para além do risco de vida que ambos
enfrentam, ao habitar zonas altamente
radioativas, não têm electricidade ou
água potável e tiveram de improvisar
com painéis solares e geradores para
conseguirem iluminação, refrigeração
dos alimentos, cozinhar e acesso à In-
ternet.
Naoto tem uma página no Facebook e
Keigo conseguiu um pequeno subsídio
estatal para o ajudar na tarefa de cui-
dar dos animais: todas as segundas e
sextas viaja até à cidade de Iwaki onde
se abastece. Para conseguir alimentar
todos os animais necessita de cerca
de uma tonelada de comida por mês.
A maioria dos cães que Keigo alimen-
ta afastaram-se do contacto humano
e ficaram pouco sociáveis. Mas há um
“especial”, a quem Keigo chamou de
Atom (“Átomo” em português), por ter
nascido pouco tempo antes do desas-
tre nuclear.
Quando Naoto recusou ser evacuado
e ficou para trás, fê-lo principalmente
pelos seus animais. Mas cedo se aper-
cebeu que existiam muitos mais ani-
mais a precisar de ajuda, vários deles
fechados e sem acesso a comida ou
água. Centenas de vacas morreram
desta forma.
Keigo Sakamoto fotografado por David Guttenfeld
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Naoto conta que uma das cenas mais tristes que presenciou foi
de uma vaca, que estava pele e osso, a afastar o seu bezerro que
queria desesperadamente amamentar-se. Atordoado pela fome, o
bezerro afastou-se a chorar e agarrou-se a um pedaço de palha,
como se fosse uma teta da mãe. Morreram os dois.
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Naoto chegou a salvar um cão que se en-
contrava preso dentro de um celeiro há qua-
se ano e meio. Durante todo esse tempo
alimentou-se da carne apodrecida do gado
que tinha morrido à fome. Sobreviveu, sabe
Deus como, até Naoto o encontrar no Ve-
rão de 2012, como se imagina num estado
lastimoso. Naoto resgatou-o e assim que
o cachorro começou a recuperar, chamou-
-lhe Kiseki (“Milagre” em português).
“Quando fui alimentar os meus cães, os
cães da vizinhança ficaram doidos. Fui ve-
rificar e encontrei-os acorrentados. Toda a
gente foi embora a pensar que iriam voltar
em poucos dias, penso eu. A partir desse
momento comecei a alimentar todos os
cães e gatos. Não podiam esperar, come-
çavam logo a latir quando ouviam a minha
carrinha. Para todo o lado que eu fui havia
algum cão a latir. Como se dissessem ‘te-
nho sede’ ou ‘não temos comida’. Comecei
então as minhas rotinas diárias.”
es
14. MUNDO DOS ANIMAIS
“Não há vizinhos.
Sou o único aqui e
estou para ficar.”
Keigo Sakamoto
Damir Sakoji / Reuters
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“Disseram-me que não
devo ficar doente nos
próximos 30 ou 40 anos.
Provavelmente já estarei
morto nessa altura de
qualquer das formas,
então não me podia
importar menos com
isso.”
Naoto Matsumura
18. MUNDO DOS ANIMAIS
O
governo japonês começou a eva-
cuação de todos os residentes
próximos da Central Nuclear de
Fukushima dia 11 de Março de
2011, expandindo a área nos dias seguintes
até 45 quilómetros de distância.
Para acalmar a população, o governo pas-
sou a mensagem de que seria uma evacua-
ção temporária e dentro de dias estariam
de volta. Muitos animais ficaram assim para
trás, com reservas de comida e água que
os donos acreditaram ser suficientes.
Aqueles que se recusaram a deixar os ani-
mais para trás, enfrentaram diversos proble-
mas. As autoridades recusaram-se a alojar
animais até cerca de 3 meses depois, quan-
do criaram um abrigo para o efeito. Muitos
dos refugiados tiveram de esconder os seus
animais dentro de carros e até mesmo ficar
com eles nas viaturas, pois não podiam en-
trar nos abrigos.
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Grupos de proteção animal começaram
inicialmente a tentar alimentar os animais
que foram deixados para trás, até serem
impedidos de voltarem a aceder aos locais
afetados pela radiação. Ainda assim, con-
seguiram salvar cerca de 1.500 cães e ga-
tos enquanto tiveram acesso.
Após algumas filmagens perturbadoras te-
rem escapado para os media, o governo
japonês proibiu definitivamente qualquer
acesso por partes dos grupos de defesa
animal e chegou mesmo a prender dois
voluntários, Hiroshi e Leo Hoshi, a 28 de
Janeiro de 2012. A família Hoshi, ás suas
custas, já tinha salvo cerca de 200 animais.
Keigo Sakamoto e Naoto Matsumura são
os “desordeiros” que ficaram e os salva-
-vidas de todos os animais que não tiveram
como sair das cidades. São os guardiões
dos animais de Fukushima.
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