António Torrado escreve há 40 anos em diversos gêneros literários, como contos, peças de teatro e argumentos. Ele não planejava ser escritor, mas acabou seguindo essa carreira após tentar outros caminhos. Apesar de ter publicado dezenas de livros, Torrado ainda sente insegurança e deseja explorar novos gêneros literários.
Apresentação ISBET Jovem Aprendiz e Estágio 2023.pdf
Homenagem aos 40 anos de carreira de António Torrado
1. miúdos
António Torrado
“Já escrevi sobre tudo e m
D
eve haver
sempre uma
ANDré LETrIA
estante fechada,
mas de fácil
acesso. Pode
até escrever-
se “livros proibidos” na
prateleira mais alta da estante
e deixar ficar uma escada por
perto. Ideias e memórias de
António Torrado: “Eu sacava da
biblioteca do meu pai os livros
proibidos. Tinha uma chave.
Abrir abria-se bem, para fechar
é que tinha mais dificuldade. Li
muita coisa sem perceber o que
estava a ler.”
Mas também leu livros que
entendia e de que gostava:
“História de Dona Redonda e
de Sua Gente, de Virgínia de
Castro e Almeida; as obras de
Erich Kästner; A Biblioteca dos
Rapazes; Jack London; Júlio
Verne.” O seu fascínio por
romances de capa e espada
fê-lo querer praticar esgrima.
Mas foi traído pela vista e pelos
óculos. “Sou um desportista
falhado”, diz, entre o resignado
e o divertido.
Não estava previsto tornar-
se escritor, mas aconteceu.
Depois de uma tentativa de
O retrato de estudar Ciências Económicas
António Torrado para dar seguimento à empresa
desenhado por comercial do pai, percebeu que
André Letria “não tinha jeito nenhum para
para oferecer ao aquilo”. Foi então para Direito.
escritor nos 40 Mas adormecia nas aulas: “Dava-
anos de carreira me muito sono.” Um dia, um
2. mais alguma coisa”
Divertido mas tímido, António Torrado escreve há 40 anos. Não era esse o
plano. Seguiria Ciências Económicas, para ajudar o pai, mas não teve jeito.
Tentou Direito, mas fez-lhe sono. Estudou Filosofia e diz que não a pratica.
Quem o lê pensa o contrário e quem o escuta também.
Rita Pimenta
professor disse-lhe: ‘Quando recebeu “cem paus” (100$, trabalha, as crianças, “é muito gosta de queixumes e sente-se
estiver com sono, não venha €0,50). “Dava para almoçar generosa. Quando gostam, são acarinhado pelos seus leitores:
à aula. é que me desmotiva com a namorada, lanchar com a sistemáticas. Querem ler tudo “Não me queixo de ser mal
muito’.” Compreendeu, mas namorada e levá-la ao cinema.” do mesmo autor e têm o gosto amado, como quase todos os
envergonhou-se tanto que foi da colecção.” autores portugueses: ursos mal
para a Faculdade de Letras. E Alguém que diga mal E dá o exemplo do filho lambidos. E acho que os meus
estudou Filosofia. O conto curto é a sua forma ideal mais velho, que prometeu que colegas desta área também não
Acabou por se tornar de expressão. “é o meu modelo não leria outros livros sem se queixam, porque o público
escritor e, segundo Leonor de escrita: insinuar mais do antes ter lido todos os de Jack roda muito depressa. Chega aos
riscado, professora de que dizer; sugerir mais do que London. O próprio Torrado 11, 12 anos, já passou. Mas até lá,
Literatura para a Infância e declarar.” António Torrado, 71 manteve-se fiel a Erich Kästner quando são aplicados à leitura,
Juventude na Escola Superior anos, já escreveu “perto de mil enquanto pôde. E já adulto gostam de ler e de reler. E depois
de Educação de Coimbra, histórias”. Mas também criou ainda descobriu um livro (A Ala temos sempre novas camadas.
“um criador de primeiríssima peças de teatro, letras de fados, Volante) deste primeiro autor a Os meus livros já foram lidos por
água. Sherazade dos tempos argumentos para filmes e séries receber o prémio Hans Christian várias gerações.”
modernos, alia à sólida cultura de televisão, escreveu textos Andersen. E até já fez uma dedicatória
do filósofo a prodigiosa para a rádio e poesia. “Já escrevi é isso que espera dos seus para uma criança que ainda
imaginação de um Andersen. sobre tudo e mais alguma coisa.” leitores? “Já tenho tido provas vai nascer, “neta de alguém
A capacidade única de criar Os seus 40 anos de vida de fidelidade que me comovem. que leu livros meus”. Foi “uma
enredos surpreendentes literária foram o pretexto para Ditas pelos pais ou pelos situação embaraçante, a criança
— de preferência para as uma homenagem na abertura miúdos. Também há aqueles que ainda nem tinha nome, fazer
crianças, mas também para da XI Edição das Palavras querem ouvir sempre a mesma uma dedicatória a um ser
os adultos — é sustentada por Andarilhas em Beja, na quinta- história.” António Torrado não fantasmático, virtual”. c
palavras enxutas, envoltas feira.
em marcas de oralidade. Na
sua escrita, gerida com mão
Quando falou com a Pública,
o escritor ainda não sabia das “É velho, mas é assim como nós”,
hábil de um dramaturgo
residente, as contas do colar
surpresas que lhe estavam
reservadas no encontro, mas
disse um miúdo sobre António
vão-se juntando no fio com já dizia, bem-disposto: “Vai ser Torrado. E ele gostou
que constrói contos, poemas uma chumbada, todos a dizerem
e textos dramáticos. O olhar bem. Se houvesse alguém que
de António Torrado sobre as tivesse a coragem de dizer mal.
pequenas e grandes coisas, Acho que vou fazer esse apelo.”
as pessoas, o mundo, afinado
pelo registo da ironia, do Leitores fiéis
humor ou da ternura abre António Torrado sabe que “se
o apetite dos leitores, que escreve para o efémero, para
saboreiam o delicioso mil- o transitório. Os leitores estão
folhas que é a sua obra”. em trânsito para outros livros”.
Pelo primeiro texto que No entanto, reconhece que a
escreveu para o Diário Popular, faixa de público com que mais
3. E agora? gerações e gerações. Era a
Pouco ligado a formalidades de nossa figura tutelar. Deixou-
homenagens, diz que até tem nos uma responsabilidade
“medo de datas redondas”. E maior, já não temos fada-
lembra a história de Aquilino madrinha, estamos por nós.
ribeiro, que tinha publicado Logo aconteceu esta coisa dos
Quando os Lobos Uivam e ia ser 40 anos. Agora, parece que o
julgado “por ter dito coisas que patriarca sou eu, ou outro que
A Casa da Lenha soariam aos ouvidos do poder tal. Embora haja pessoas mais
Campo das Letras, 2007 como aleivosias”. Aos 79 anos, velhas, como a Luísa Dacosta,
“como era considerado uma por exemplo.”
figura perseguida, andaram a Fizeram-no pensar “no
Zaca-Zaca, O Homem Sem Sombra, homenageá-lo por todo o país. peso da responsabilidade”.
Teatro às Três Pancadas Passados uns meses, ‘puff ’, E continua: “Já fiz tudo, já
Editorial Caminho, 1987, 2005, 1995 morreu”. encantei gente. Tenho razões
Mas não é esse o seu medo. E para me sentir feliz e realizado,
vai pensando em voz alta o que mas, por outro lado, penso: e
lhe suscitou este assinalar dos agora? O que é que me resta?
40 anos de escrita: “Achei que Se isto é o resumo do que fiz,
o ter passado de jovem escritor parece que é quase uma notícia
inseguro para velho escritor necrológica, e eu não quero que
inseguro aconteceu seja. Não é por causa do medo
muito depressa. Foi a da morte. Se ela viesse de um
morte da Matilde [rosa dia para o outro, não me custava
Araújo] que marcou essa nada. Ficar incapaz é que é
diferença. A chato, morrer não.”
Matilde era a No entanto, diz, não ter
patrona e “aquele sentimento de alegria
paraninfou de ‘40 anos já cá cantam’”, nem
a “sensação de tempo perdido”.
E compara a quantidade de
livros que escreveu, 130 a 140,
com o espaço que ocupam.
Como Quem Diz “Os meus livros todos, os que
Assírio e Alvim, 2005 tenho nas prateleiras que me
são dedicadas, por conjunto,
dá o meu tamanho deitado. Ou
O Elefante Não Entra na Jogada a minha altura.” Ou seja, 1,76m
Edições Asa, 1985 de literatura? “De uma forma
leviana, pode dizer-se que sim.
Alguns são livrinhos, outros
Como se Faz Cor de Laranja têm 100 histórias. Como um
Edições Asa, 1979 (Prémio Gulbenkian) que vai sair, 100 Histórias
à Janela. São calhamaços.
Mas, sim, tudo literatura.”
Trinta por Uma Linha Gostava agora de dedicar-
Civilização Editora, 2008 se mais “a uma faixa que tem
ficado oculta, a da literatura
para adultos”. Também
O Mercador de Coisa Nenhuma sente necessidade de
Paulinas, 2009 alimentar áreas “como o
teatro e o argumentismo”.
Porque já escreveu muita
coisa para crianças. “Pensei
até em fechar a loja, mas
continuo a ter encomendas.
E não sei fazer mais nada.
Sou péssimo em tudo. Nem
guio sequer, por causa da
vista. Não meço as distâncias.”
Nem as físicas nem as outras,
agrada-lhe pensar.
“é velho, mas é assim como
O Pajem Não Se Cala, As Estrelas — nós”, disse um miúdo sobre o
Quando os Três Reis Eram Príncipes, autor. E ele gostou. a
O Veado Florido
Civilização Editora, 1981, 1998, 1995 rpimenta@publico.pt