SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 5
Downloaden Sie, um offline zu lesen
LOUISE­MICHEL1
Filme da dupla Delépine­Kervern é uma comédia  dramática com um fundo ideológico anarquista, 
uma sátira simultaneamente incrível e muito plausível.
Agora que sabemos
Que os ricos são gatunos
Se o nosso pai, a nossa mãe
Não conseguiram varrê­los da terra
Nós, quando crescermos,
Faremos deles carne picada.
1 Lousie­Michel, nascida em Vroncourt­la­Côte a 29 de Maio de 1830, professora, militante anarquista de ideais feministas e uma das figuras mais importantes 
da Comuna de Paris, participou tanto na linha de frente nas barricadas, como em funções de apoio até ser capturada e deportada para a Nova Caledônia.
Foi a primeira a empunhar a bandeira preta popularizando­a no seio do movimento anarquista. 
Morreu em Marselha, a 9 de Janeiro de 1905 com 74 anos.
LOUISE-MICHEL
Uma história aparentemente
simples de um grupo de trabalhadoras que
decidem matar o patrão depois da falência
da fábrica sem aviso prévio, torna-se uma
autêntica epopeia que nos leva muito acima
na cadeia de comando.
Apesar do seu lado surreal,
povoado de cenas absurdas, ainda assim
podemos colocar o filme nos contornos da
nossa realidade. E se muitas vezes as cenas
cómicas de uma hiper-realidade gelada e
cínica nos fazem duvidar do nosso próprio
riso, esse lado cómico do filme é bem
compensado com a sua lentidão, que
acentua toda a gravidade da situação. A
questão é, aliás, central na sociedade – o
que fazer com o desespero e quem culpar?
O humor negro do filme aplica-se a
todas as personagens sem exceção mas
consegue vestir de diferentes roupagens os
miseráveis e os impiedosos – ao mesmo
tempo que torna ainda mais analfabeta
Louise, sensibilizando-nos para o seu
desespero, torna ainda mais supérfluo o
lugar do grande empresário no mundo,
isolado na sua mansão, indiferente a
qualquer resquício de humanidade e
destinado a correr na passadeira do seu
ginásio negociando ações na bolsa.
Aquilo que aproxima a realidade e
o filme é que cada personagem é uma
caricatura e a caricatura é sempre feita
sobre um fundo real – um exagero daquilo
que realmente é. Assim Louise poderia
existir como no filme, uma senhora
analfabeta de meia-idade, que perde o seu
trabalho com uma indeminização ridícula,
e que provavelmente não conseguirá
qualquer outro emprego. É uma inapta da
sociedade, uma marginal. Mas no fundo
somos todos humanos, e cada um tem
direito ao seu lugar no mundo. Neste
sentido, a desumanização do grande
empresário funciona perfeitamente – o seu
egoísmo espelho do negócio, como se fosse
o lugar da sua personalidade, como se o
capital o invadisse não deixando lugar para
qualquer relação afetiva humana.
Mas a questão é também uma
afirmação – a de que o problema não reside
apenas no pequeno patrão mas numa
cadeia muito maior – de que vai muito
mais fundo do que nós imaginamos mas
não tão fundo que seja intocável – afinal de
contas, o grande empresário na sua mansão
divina isolada acaba por ser morto como
humano que é.
O filme acaba por ser uma
constatação revoltada da situação social a
que o capitalismo globalizado nos reduz.
Uma espécie de chamada de atenção que
diz que o sistema (que não funciona) nos
entala na miséria mas não é por isso que
devemos deixar que goze com a nossa cara.
E no fundo a solução parece-nos
viável. Matar o patrão… Eu própria
levantaria a mão aquando da pequena
assembleia.
Para além de um retrato da sociedade, o filme mostra-nos
bem o que é um filme: uma sucessão de cenas aparentemente
desligadas mas que fazem sentido no seu conjunto.
É deste modo que apresenta cenas e personagens
aparentemente dispensáveis ou redundantes - digo aparentemente
porque estes elementos fazem mais do que enriquecer o universo
fictício do filme: alargam a sátira para a sociedade inteira através
de personagens-tipo e alargam a compreensão quando
percebemos o sentido de uma cena através de uma que lhe
sucede, colocando a questão num âmbito mais alargado do que
aquela que toca aos dois protagonistas.
Assim, mais para além da situação
em que se encontram os protagonistas,
existem pistas que apontam noutros
sentidos. Temos o vizinho de Michel,
maníaco das conspirações, com um
magnífico plano filmado de cima que nos
mostra uma troca de chapéu-de-chuva uma
camuflagem para a câmara e para o céu,
antes de o ouvirmos gritar para cima “Boa
tentativa! Nunca me apanharás! Nunca!”
sem sabermos se é para Deus ou para uns
quaisquer satélites que ele fala. Também o
casal pseudoecológico retrata tão bem o
cinismo e a falta de informação, a forma
como somos tão bem enganados com a
subversão das palavras, e a forma como o
mercado nos manipula com estratégias de
consumo, impingindo termos que não
significam absolutamente nada “café com
ómega 3… adoçante biológico”. Temos
também a forma como Michel põe os
moribundos a assassinar no seu lugar,
presenteando-os assim com uma maneira
de morrer com sentido – que não é tanto o
de matar alguém por um prazer mórbido
mas a de morrer sabendo que se participou
de alguma maneira na mudança e na
justiça. Até o discurso de Michel sobre a
segurança faz sentido se tomarmos em
conta o panorama atual, toda a
monitorização e vigilância a que somos
sujeitos quer tenhamos ou não
conhecimento disso. Isto rematado pelo
alarme instalado por Michel em casa dos
pais, completamente inútil naquele
condomínio virado para o interior, que toca
com qualquer movimento da vida
quotidiana. “Ah, é o gato. (…) É uma
mosca.”
FEMININO-MASCULINO
“O HOMEM É UMA MULHER QUE EM VEZ DE TER UMA CONA TEM UMA PIÇA, O QUE EM NADA
PREJUDICA O NORMAL ANDAMENTO DAS COISAS E ACRESCENTA UM TIC DELICIOSO À DIVERSIDADE DA
ESPÉCIE. MAS O HOMEM É UMA MULHER QUE NUNCA SE COMPORTOU COMO MULHER, E QUIS
DIFERENCIAR-SE, FAZER CHIC, NÃO CONSEGUINDO COM ISSO SENÃO PRODUZIR MONSTRUOSIDADES
COMO ESTA FAMOSA "CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL" SOB A QUAL SUFOCAMOS MAS QUE, FELIZMENTE, VAI
DESAPARECER EM BREVE.
PELO CONTRÁRIO, A MULHER, QUE É UM HOMEM, SOUBE SEMPRE GUARDAR AS DISTÂNCIAS E
NUNCA PRETENDEU SUBSTITUIR-SE À VIDA SISTEMATIZANDO PUERILIDADES, COMO FILOSOFIA,
AVIAÇÃO, CIÊNCIA, MÚSICA (SINFÓNICA), GUERRAS, ETC. ALGUNS PEDANTES QUE SE TOMAM POR
LIBERTADORES DIZEM-NA "ESCRAVA DO HOMEM" E ELA RI ÀS ESCÂNCARAS, COM A SUA CONA, QUE É
UM HOMEM.”
(…)
“O regresso de Ulisses”
in Pena Capital de Mário Cesariny
Existe uma confusão crescente dos
géneros ao longo do filme que, mais para
além daquilo que traz ao universo fictício
do filme, toca também na questão humana.
Somos para o sistema bens
materiais, mão-de-obra, ferramentas de
lucro, antes de sermos humanos ou mesmo
antes de sermos homens ou mulheres.
É assim que o subdiretor se dá ao
luxo de identificar a bata de Louise com
um nome masculino. É essa confusão,
propositadamente banalizada no filme, que
transforma Louise em Jean-Pierre e Michel
em Cathy para nos mostrar que a nossa
humanidade partilhada, aquela pela qual
devemos lutar, transcende o nosso género.
E afinal de contas, Louise-Michel é
Louise que é uma mulher que é um homem
e Michel que é um homem que é uma
mulher.
E Louise-Michel é uma mulher e é
Homem para mostrar que a luta é de todos.
DA MORTE AO NASCIMENTO
O filme explora a inversão de conceitos fixados no
tempo, mas que podem ser subvertidos - o homem é mulher,
a mulher é homem e o próprio ciclo da vida está invertido:
começa com uma morte e acaba com um nascimento.
De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da ideia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra.
Mas cortai o mal bem pelo fundo!
De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo,
Sejamos tudo, oh produtores!
Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Duma Terra sem amos
A Internacional.
Tudo começa com uma cremação.
Percebemos logo que vai ser um filme
cómico através de toda a incompetência do
serviço (“Alguém tem… lume?”) mas não
conseguimos bem perceber a relevância da
cena para a intriga principal.
Esta sequência consegue tomar, no
entanto, um sentido gigantesco com a
Internacional que passa no rádio e com o
paralelismo que podemos estabelecer com
a sequência do nascimento final. Morre um
homem que deseja uma mudança, e, na sua
luta final ele deseja a terra sem amos.
E no final nasce alguém – uma
criança sem género: os patrões decidir-lhe-
ão o sexo porque ainda têm poder para
isso.
Mas «Agora que sabemos que os
ricos são gatunos, se o nosso pai, a nossa
mãe não conseguiram varrê-los da terra,
nós, quando crescermos, faremos deles
carne picada. ». A mensagem é límpida e
constitui uma boa forma de dizer que a luta
é contínua, é transgeracional e renasce.
Morreu um homem e o seu lema era
uma luta, uma guerra única e final onde a
terra se une na luta contra os patrões – o
seu lema era acordar as pessoas para a
injustiça. Mas o ser humano novo que
nasce já conhece a injustiça, como nós as
vamos conhecendo cada vez melhor, e o
culminar é assumir a luta e continuar,
conseguindo efetivamente aquilo que antes
não se conseguiu.
Ana da Palma Kennerly

Weitere ähnliche Inhalte

Ähnlich wie Louise michel

Verdade inesperada 1
Verdade inesperada 1Verdade inesperada 1
Verdade inesperada 1VideoNewEye
 
Pós-modernismo slide
Pós-modernismo slidePós-modernismo slide
Pós-modernismo slideMarietamorais
 
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)Emerson Campos
 
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)Emerson Campos
 
Lembras-te de Mohammed Bouazizi ?
Lembras-te de Mohammed Bouazizi ?Lembras-te de Mohammed Bouazizi ?
Lembras-te de Mohammed Bouazizi ?GRAZIA TANTA
 
Estamosno Inferno
Estamosno InfernoEstamosno Inferno
Estamosno InfernoQSEJAETERNO
 
Crítica revolução da américa do sul de augusto boal
Crítica revolução da américa do sul de augusto boalCrítica revolução da américa do sul de augusto boal
Crítica revolução da américa do sul de augusto boalP.P.F. Simões
 
Vidioeteca CAPSI
Vidioeteca CAPSIVidioeteca CAPSI
Vidioeteca CAPSICAPSI-UFAL
 
Aroeira I
Aroeira IAroeira I
Aroeira IMANE
 
Luis de sttau monteiro – vida e obra
Luis de sttau monteiro – vida e obraLuis de sttau monteiro – vida e obra
Luis de sttau monteiro – vida e obraMaria Batista
 
No limiar da imaginação
No limiar da imaginaçãoNo limiar da imaginação
No limiar da imaginaçãoROBERTO MIRANDA
 
Violência e desenhos animados
Violência e desenhos animadosViolência e desenhos animados
Violência e desenhos animadossaracdamasioo
 
O Julgamento
O JulgamentoO Julgamento
O Julgamentoricoxxete
 
LENDAS URBANAS - MITOS E FOLCORES
LENDAS URBANAS - MITOS E FOLCORESLENDAS URBANAS - MITOS E FOLCORES
LENDAS URBANAS - MITOS E FOLCORESAdriana Matheus
 

Ähnlich wie Louise michel (20)

Verdade inesperada 1
Verdade inesperada 1Verdade inesperada 1
Verdade inesperada 1
 
Pós-modernismo slide
Pós-modernismo slidePós-modernismo slide
Pós-modernismo slide
 
Diz91
Diz91Diz91
Diz91
 
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
 
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
Notas sobre "O Poço" e o dia do Jornalista (ou: nosso poço é uma pirâmide)
 
Lembras-te de Mohammed Bouazizi ?
Lembras-te de Mohammed Bouazizi ?Lembras-te de Mohammed Bouazizi ?
Lembras-te de Mohammed Bouazizi ?
 
Estamosno Inferno
Estamosno InfernoEstamosno Inferno
Estamosno Inferno
 
Estamos no inferno
Estamos no infernoEstamos no inferno
Estamos no inferno
 
Carlitos
CarlitosCarlitos
Carlitos
 
Crítica revolução da américa do sul de augusto boal
Crítica revolução da américa do sul de augusto boalCrítica revolução da américa do sul de augusto boal
Crítica revolução da américa do sul de augusto boal
 
Vidioeteca CAPSI
Vidioeteca CAPSIVidioeteca CAPSI
Vidioeteca CAPSI
 
Diz Jornal - Edição 157
Diz Jornal - Edição 157Diz Jornal - Edição 157
Diz Jornal - Edição 157
 
Aroeira I
Aroeira IAroeira I
Aroeira I
 
Luis de sttau monteiro – vida e obra
Luis de sttau monteiro – vida e obraLuis de sttau monteiro – vida e obra
Luis de sttau monteiro – vida e obra
 
No limiar da imaginação
No limiar da imaginaçãoNo limiar da imaginação
No limiar da imaginação
 
Violência e desenhos animados
Violência e desenhos animadosViolência e desenhos animados
Violência e desenhos animados
 
O Julgamento
O JulgamentoO Julgamento
O Julgamento
 
Diz87
Diz87Diz87
Diz87
 
O Grande Ditador
O Grande DitadorO Grande Ditador
O Grande Ditador
 
LENDAS URBANAS - MITOS E FOLCORES
LENDAS URBANAS - MITOS E FOLCORESLENDAS URBANAS - MITOS E FOLCORES
LENDAS URBANAS - MITOS E FOLCORES
 

Mehr von Sapato 43

I registos fct
I  registos fctI  registos fct
I registos fctSapato 43
 
Apresentação Avanca/2013
Apresentação Avanca/2013Apresentação Avanca/2013
Apresentação Avanca/2013Sapato 43
 
Comunicacao Avanca
Comunicacao AvancaComunicacao Avanca
Comunicacao AvancaSapato 43
 
Haiku folheto
Haiku folhetoHaiku folheto
Haiku folhetoSapato 43
 
Folheto origami
Folheto origamiFolheto origami
Folheto origamiSapato 43
 
Presentation reseaux-sociaux
Presentation reseaux-sociauxPresentation reseaux-sociaux
Presentation reseaux-sociauxSapato 43
 

Mehr von Sapato 43 (6)

I registos fct
I  registos fctI  registos fct
I registos fct
 
Apresentação Avanca/2013
Apresentação Avanca/2013Apresentação Avanca/2013
Apresentação Avanca/2013
 
Comunicacao Avanca
Comunicacao AvancaComunicacao Avanca
Comunicacao Avanca
 
Haiku folheto
Haiku folhetoHaiku folheto
Haiku folheto
 
Folheto origami
Folheto origamiFolheto origami
Folheto origami
 
Presentation reseaux-sociaux
Presentation reseaux-sociauxPresentation reseaux-sociaux
Presentation reseaux-sociaux
 

Louise michel

  • 1. LOUISE­MICHEL1 Filme da dupla Delépine­Kervern é uma comédia  dramática com um fundo ideológico anarquista,  uma sátira simultaneamente incrível e muito plausível. Agora que sabemos Que os ricos são gatunos Se o nosso pai, a nossa mãe Não conseguiram varrê­los da terra Nós, quando crescermos, Faremos deles carne picada. 1 Lousie­Michel, nascida em Vroncourt­la­Côte a 29 de Maio de 1830, professora, militante anarquista de ideais feministas e uma das figuras mais importantes  da Comuna de Paris, participou tanto na linha de frente nas barricadas, como em funções de apoio até ser capturada e deportada para a Nova Caledônia. Foi a primeira a empunhar a bandeira preta popularizando­a no seio do movimento anarquista.  Morreu em Marselha, a 9 de Janeiro de 1905 com 74 anos.
  • 2. LOUISE-MICHEL Uma história aparentemente simples de um grupo de trabalhadoras que decidem matar o patrão depois da falência da fábrica sem aviso prévio, torna-se uma autêntica epopeia que nos leva muito acima na cadeia de comando. Apesar do seu lado surreal, povoado de cenas absurdas, ainda assim podemos colocar o filme nos contornos da nossa realidade. E se muitas vezes as cenas cómicas de uma hiper-realidade gelada e cínica nos fazem duvidar do nosso próprio riso, esse lado cómico do filme é bem compensado com a sua lentidão, que acentua toda a gravidade da situação. A questão é, aliás, central na sociedade – o que fazer com o desespero e quem culpar? O humor negro do filme aplica-se a todas as personagens sem exceção mas consegue vestir de diferentes roupagens os miseráveis e os impiedosos – ao mesmo tempo que torna ainda mais analfabeta Louise, sensibilizando-nos para o seu desespero, torna ainda mais supérfluo o lugar do grande empresário no mundo, isolado na sua mansão, indiferente a qualquer resquício de humanidade e destinado a correr na passadeira do seu ginásio negociando ações na bolsa. Aquilo que aproxima a realidade e o filme é que cada personagem é uma caricatura e a caricatura é sempre feita sobre um fundo real – um exagero daquilo que realmente é. Assim Louise poderia existir como no filme, uma senhora analfabeta de meia-idade, que perde o seu trabalho com uma indeminização ridícula, e que provavelmente não conseguirá qualquer outro emprego. É uma inapta da sociedade, uma marginal. Mas no fundo somos todos humanos, e cada um tem direito ao seu lugar no mundo. Neste sentido, a desumanização do grande empresário funciona perfeitamente – o seu egoísmo espelho do negócio, como se fosse o lugar da sua personalidade, como se o capital o invadisse não deixando lugar para qualquer relação afetiva humana. Mas a questão é também uma afirmação – a de que o problema não reside apenas no pequeno patrão mas numa cadeia muito maior – de que vai muito mais fundo do que nós imaginamos mas não tão fundo que seja intocável – afinal de contas, o grande empresário na sua mansão divina isolada acaba por ser morto como humano que é. O filme acaba por ser uma constatação revoltada da situação social a que o capitalismo globalizado nos reduz. Uma espécie de chamada de atenção que diz que o sistema (que não funciona) nos entala na miséria mas não é por isso que devemos deixar que goze com a nossa cara. E no fundo a solução parece-nos viável. Matar o patrão… Eu própria levantaria a mão aquando da pequena assembleia.
  • 3. Para além de um retrato da sociedade, o filme mostra-nos bem o que é um filme: uma sucessão de cenas aparentemente desligadas mas que fazem sentido no seu conjunto. É deste modo que apresenta cenas e personagens aparentemente dispensáveis ou redundantes - digo aparentemente porque estes elementos fazem mais do que enriquecer o universo fictício do filme: alargam a sátira para a sociedade inteira através de personagens-tipo e alargam a compreensão quando percebemos o sentido de uma cena através de uma que lhe sucede, colocando a questão num âmbito mais alargado do que aquela que toca aos dois protagonistas. Assim, mais para além da situação em que se encontram os protagonistas, existem pistas que apontam noutros sentidos. Temos o vizinho de Michel, maníaco das conspirações, com um magnífico plano filmado de cima que nos mostra uma troca de chapéu-de-chuva uma camuflagem para a câmara e para o céu, antes de o ouvirmos gritar para cima “Boa tentativa! Nunca me apanharás! Nunca!” sem sabermos se é para Deus ou para uns quaisquer satélites que ele fala. Também o casal pseudoecológico retrata tão bem o cinismo e a falta de informação, a forma como somos tão bem enganados com a subversão das palavras, e a forma como o mercado nos manipula com estratégias de consumo, impingindo termos que não significam absolutamente nada “café com ómega 3… adoçante biológico”. Temos também a forma como Michel põe os moribundos a assassinar no seu lugar, presenteando-os assim com uma maneira de morrer com sentido – que não é tanto o de matar alguém por um prazer mórbido mas a de morrer sabendo que se participou de alguma maneira na mudança e na justiça. Até o discurso de Michel sobre a segurança faz sentido se tomarmos em conta o panorama atual, toda a monitorização e vigilância a que somos sujeitos quer tenhamos ou não conhecimento disso. Isto rematado pelo alarme instalado por Michel em casa dos pais, completamente inútil naquele condomínio virado para o interior, que toca com qualquer movimento da vida quotidiana. “Ah, é o gato. (…) É uma mosca.”
  • 4. FEMININO-MASCULINO “O HOMEM É UMA MULHER QUE EM VEZ DE TER UMA CONA TEM UMA PIÇA, O QUE EM NADA PREJUDICA O NORMAL ANDAMENTO DAS COISAS E ACRESCENTA UM TIC DELICIOSO À DIVERSIDADE DA ESPÉCIE. MAS O HOMEM É UMA MULHER QUE NUNCA SE COMPORTOU COMO MULHER, E QUIS DIFERENCIAR-SE, FAZER CHIC, NÃO CONSEGUINDO COM ISSO SENÃO PRODUZIR MONSTRUOSIDADES COMO ESTA FAMOSA "CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL" SOB A QUAL SUFOCAMOS MAS QUE, FELIZMENTE, VAI DESAPARECER EM BREVE. PELO CONTRÁRIO, A MULHER, QUE É UM HOMEM, SOUBE SEMPRE GUARDAR AS DISTÂNCIAS E NUNCA PRETENDEU SUBSTITUIR-SE À VIDA SISTEMATIZANDO PUERILIDADES, COMO FILOSOFIA, AVIAÇÃO, CIÊNCIA, MÚSICA (SINFÓNICA), GUERRAS, ETC. ALGUNS PEDANTES QUE SE TOMAM POR LIBERTADORES DIZEM-NA "ESCRAVA DO HOMEM" E ELA RI ÀS ESCÂNCARAS, COM A SUA CONA, QUE É UM HOMEM.” (…) “O regresso de Ulisses” in Pena Capital de Mário Cesariny Existe uma confusão crescente dos géneros ao longo do filme que, mais para além daquilo que traz ao universo fictício do filme, toca também na questão humana. Somos para o sistema bens materiais, mão-de-obra, ferramentas de lucro, antes de sermos humanos ou mesmo antes de sermos homens ou mulheres. É assim que o subdiretor se dá ao luxo de identificar a bata de Louise com um nome masculino. É essa confusão, propositadamente banalizada no filme, que transforma Louise em Jean-Pierre e Michel em Cathy para nos mostrar que a nossa humanidade partilhada, aquela pela qual devemos lutar, transcende o nosso género. E afinal de contas, Louise-Michel é Louise que é uma mulher que é um homem e Michel que é um homem que é uma mulher. E Louise-Michel é uma mulher e é Homem para mostrar que a luta é de todos.
  • 5. DA MORTE AO NASCIMENTO O filme explora a inversão de conceitos fixados no tempo, mas que podem ser subvertidos - o homem é mulher, a mulher é homem e o próprio ciclo da vida está invertido: começa com uma morte e acaba com um nascimento. De pé, ó vítimas da fome! De pé, famélicos da terra! Da ideia a chama já consome A crosta bruta que a soterra. Mas cortai o mal bem pelo fundo! De pé, de pé, não mais senhores! Se nada somos neste mundo, Sejamos tudo, oh produtores! Bem unidos façamos, Nesta luta final, Duma Terra sem amos A Internacional. Tudo começa com uma cremação. Percebemos logo que vai ser um filme cómico através de toda a incompetência do serviço (“Alguém tem… lume?”) mas não conseguimos bem perceber a relevância da cena para a intriga principal. Esta sequência consegue tomar, no entanto, um sentido gigantesco com a Internacional que passa no rádio e com o paralelismo que podemos estabelecer com a sequência do nascimento final. Morre um homem que deseja uma mudança, e, na sua luta final ele deseja a terra sem amos. E no final nasce alguém – uma criança sem género: os patrões decidir-lhe- ão o sexo porque ainda têm poder para isso. Mas «Agora que sabemos que os ricos são gatunos, se o nosso pai, a nossa mãe não conseguiram varrê-los da terra, nós, quando crescermos, faremos deles carne picada. ». A mensagem é límpida e constitui uma boa forma de dizer que a luta é contínua, é transgeracional e renasce. Morreu um homem e o seu lema era uma luta, uma guerra única e final onde a terra se une na luta contra os patrões – o seu lema era acordar as pessoas para a injustiça. Mas o ser humano novo que nasce já conhece a injustiça, como nós as vamos conhecendo cada vez melhor, e o culminar é assumir a luta e continuar, conseguindo efetivamente aquilo que antes não se conseguiu. Ana da Palma Kennerly