Bullying: um novo nome para um comportamento recorrente
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MARIA ROSA CRESPO (*)
rosa.crespo@uol.com.br
BULLYING: UM NOME NOVO PARA UM COMPORTAMENTO RECORRENTE
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu
pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.”
(*) Bibliotecária, professora assistente da FaBCI - Faculdade de Biblioteconomia e Ciência da
Informação da FESPSP, cursando pós-graduação em psicopedagogia na Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
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O Ateneu1
Em 1888, Raul Pompéia publicou o romance impressionista O Ateneu, no qual conta a
história de um menino enviado a um colégio interno da cidade do Rio de Janeiro (POMPÉIA,
1888). Tido como parcialmente auto-biográfico, o romance é narrado em primeira pessoa
pelo personagem principal, quando, já adulto, relembra os fatos ocorridos durante os longos,
penosos e tristes meses que passou na instituição. A obra é uma crítica à sociedade
brasileira do final do século XIX e oferece uma imagem ácida e tristemente marcante, do
ambiente e das situações que ocorriam, e ainda ocorrem, em muitas instituições de ensino do
Brasil e do Mundo.
Raul Pompéia foi, na verdade, bom aluno, estudioso e bom desenhista. Em 1880, com 17
anos, publicou seu primeiro romance, vindo então para a Faculdade de Direito do Largo de
São Francisco, em São Paulo, onde participou das correntes de vanguarda, materialistas e
positivistas que apoiavam e lutavam pela abolição da escravatura e proclamação da
República.
Uma vez libertados os escravos e a República uma realidade, Raul prosseguiu suas atividades
de jornalista político e defensor das causas naturalistas e brasilianistas, trabalhando
ativamente para a disseminação do conhecimento, sendo indicado para um cargo na
Biblioteca Nacional. Mas, suas atitudes exaltadas e seu comprometimento exacerbado o
levaram a pronunciar um inflamado discurso junto à tumba de Floriano Peixoto, em 1895,
considerado desrespeitoso pelas autoridades, tendo sido demitido do serviço público. Talvez
por um total desencanto em relação à sociedade, sentindo-se traído e abandonado por aqueles
que lhe eram importantes, talvez por acreditar que não havia mais porquê ou por quem lutar,
suicidou-se, aos 32 anos, com um tiro no peito numa noite de natal, no escritório da casa onde
morava com a mãe. (POMPÉIA, 2010)
A questão da violência nas escolas
Atualmente, há uma preocupação mundial sobre o tema da violência nas escolas, expresso por
inúmeros relatos de comportamentos agressivos, que receberam nos Estados Unidos o nome
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Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, lugar público onde os literatos, na Grécia antiga,
liam suas obras. Associação científica ou literária; academia. Estabelecimento de ensino.
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de bullying2 e segundo Catini (2004) é algo que alguém faz, repetidamente e por longos
períodos, para obter domínio sobre outra pessoa, como: apelidar, xingar, excluir das
atividades, ignorar, ameaçar, tomar ou estragar pertences, bater chutar ou obrigar a fazer
coisas.
Associado, talvez ao tiroteio na escola Collumbine nos Estados Unidos, em abril de 1999, o
termo passou a relacionar-se quase que exclusivamente a situações de violência nas escolas,
seja entre alunos, seja envolvendo professores. É uma situação que se caracteriza por
agressões intencionais, verbais ou físicas, feitas de maneira repetitiva, por um ou mais alunos
contra um ou mais colegas. Mesmo sem uma denominação em português, é entendido no
Brasil como uma ameaça, tirania, opressão, intimidação, humilhação e maltrato. (NOVA
ESCOLA, 2009)
A situação ocorre em todo o mundo, em qualquer contexto social, como escolas,
universidades, famílias, vizinhança e locais de trabalho, nas classes com maior e menor poder
aquisitivo. Além de um possível isolamento ou queda do rendimento escolar, crianças e
adolescentes que passam por humilhações racistas, difamatórias ou separatistas podem
apresentar doenças psicossomáticas e sofrer de algum tipo de trauma que influencie traços da
personalidade. Em alguns casos extremos, o bullying chega a afetar o estado emocional do
jovem de tal maneira que ele opte por soluções trágicas, como o suicídio. (NOVA ESCOLA,
2009)
De acordo com Catini (2004), o bullying é objeto de preocupação e estudo em todas as partes
do mundo. No Japão, por exemplo, é tido como um comportamento agressivo que alguém que
sustenta uma posição dominante em um processo de interação grupal, por atos intencionais ou
coletivos, causa sofrimento mental ou físico a outro, dentro do mesmo grupo. Já na França o
termo é mais abrangente e inclui todas as diferentes formas de mau uso da força, todas as
formas de violência na escola em si mesma como instituição e, também, todas as atitudes
pouco civilizadas como perturbar a ordem, fazer barulho, sujar e quebrar coisas, ofender
colegas e professores, etc.
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Palavra derivada do substantivo da língua inglesa bull, que significa touro.
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Outros países da Europa conduzem estudos específicos e tentam compreender o fenômeno e
proteger estudantes e professores. No Brasil, Estados Unidos e nos países nórdicos há relatos
de crianças cujo suicídio está comprovadamente relacionado a esse processo.
No Brasil, podemos citar o suicídio do estudante de Taiuva (SP), em 2003,
após atirar contra muitas pessoas, ferindo 6 delas, dentro da escola em que
estudara. O crime foi uma reação extremada a uma vida escolar de
humilhações provocada por apelidos e discriminações. (CATINI, 2004, p.
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Nós, da sociedade ocidental, recebemos uma herança cultural e religiosa pela qual a dimensão
afetiva é separada dos processos cognitivos, dividindo razão e emoção, corpo e alma. Essa
idéia foi difundida na Europa pelo filósofo Descartes influenciando o desenvolvimento do
chamado pensamento científico, tido como objetivo e apartidário. É bom lembrar que nos
países orientais e na Índia, essa divisão não existe e a aquisição do conhecimento está
relacionada com uma experiência corporal, tanto quanto intelectual.
Mas, a partir da ampliação dos conhecimentos sobre a emoção e os complexos processos de
atividade cerebral, o conceito de um indivíduo centrado apenas em sua dimensão racional está
sendo revisto, passando a uma condição em que afetividade e cognição são interpretadas
como dimensões indissociáveis do mesmo processo, não sendo mais aceitável uma visão
isolada, de uma, ou de outra. (LEITE, 2006).
Aqueles que lidam com crianças e adolescentes percebem que uma brincadeira entre crianças
pode se transformar facilmente em agressividade: dois meninos, que começaram a brigar sem
qualquer raiva um do outro, de repente começam a se agredir de verdade e precisam ser
afastados. Essa idéia é corroborada por Vygostky (2004) quando diz que crianças assustadas
por brincadeira pelos mais velhos, por exemplo, começa a sentir medo, de fato. Para o autor,
as emoções não surgem por si só nos indivíduos, sempre são provocadas por uma causa, seja
interna, seja externa.
Vygotsky (2004) ainda analisa as emoções e sua significação biológica, detendo-se na questão
do medo e da cólera. Comumente associadas aos instintos de preservação da espécie, tanto
uma quanto outra, mobilizam todas as forças do organismo para a fuga, ou para o ataque,
como uma forma de preservação.
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É fácil mostrar de modo plenamente análogo que a cólera é um instinto de
auto preservação em sua forma ofensiva, que é outro grupo de reações,
outra forma de comportamento, a forma ofensiva, e que é uma mobilização
de todas as forças do organismo para o ataque. (VYGOTSKY, 2004, p.133)
Dessa forma, medo e cólera, duas das mais potentes emoções humanas, formam a espiral de
violência vivida nas escolas, envolvendo alunos, professores, pais e demais componentes
desta fundamental interação social, em uma situação que parece cada vez mais, fora de
controle.
A escola, espelho da sociedade
Embora o tema da violência nas escolas seja tratado pela opinião pública como algo recente, a
crueldade e violência nos ambientes escolares, especialmente entre os grupos de meninos, é
bem antiga, incluindo a participação de dirigentes, políticos, professores e outros adultos
significativos. Que o diga o filósofo Sócrates, julgado por heresia e por corromper a juventude
em 399 a.C., quando, para ele, a intenção era a melhor possível.
Já em história mais recente, os pensadores iluministas acreditaram que o conhecimento e o
pensamento crítico poderiam contribuir para o progresso da humanidade, para superar a
tirania e a superstição e para a melhoria das condições do Estado e da sociedade.
Responsáveis pela proposta da universalização do ensino, as idéias iluministas deram origem
às escolas como conhecemos hoje, sendo instituições públicas ou privadas, mas de caráter
coletivo, atendendo a um grande número crianças e utilizando métodos padronizados e
estabelecidos por um poder central, subordinado ao Estado. Nesse modelo, estabeleceu-se a
idade certa para ingressar na escola e o período de um ano para assimilar certos conteúdos,
além de todos os demais passos e marcadores que formam o currículo escolar. Não sendo
capaz de atender a essas exigências, a criança é considerada um fracasso e, com bastante
frequência, é penalizada por pais e professores.
No romance de Raul Pompéia, a entrada de Sérgio no Ateneu representa a passagem para
a idade adulta, já que seria afastado de casa, sobretudo da mãe. O aspecto traumático dessa
separação, tanto para a criança quanto para a mãe, tem sido estudado por psicólogos e
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educadores desde sempre. Os estudos desenvolvidos por Leontiev e Vygotsky na década de
1920 levaram à conclusão de que um dos aspectos principais é que as relações íntimas da
criança, com os pais e familiares mais próximos, perdem seu papel anterior e passam a ser
determinadas por relações mais amplas. (LEONTIEV, 2005).
Por melhor que sejam as relações domésticas e os sentimentos que a criança tem por si
mesma, uma nota má, ou uma crítica feita por um professor, pode ter um efeito devastador,
especialmente para aquelas cujos pais demonstram altas expectativas quanto ao seu sucesso
escolar.
Segundo Vygotsky (VYGOTSKY apud LEITE, 2006) o indivíduo nasce como ser biológico,
com uma história filo e ontogenética da qual retira a herança cultural que levará para sua
primeira escola e é através da inserção na cultura, que vai constituir-se como um ser sócio
histórico, moldado pelas experiências vividas e pelo desenvolvimento das funções
psicológicas superiores. Esse desenvolvimento é entendido como o processo pelo qual o
indivíduo incorpora elementos e processos culturais com a mediação de professores,
dirigentes, inspetores, bibliotecários e outros agentes culturais. Dessa forma, a escola
desempenha um papel crucial, na medida em que antecede e possibilita todo o posterior
desenvolvimento dos potenciais sociais e intelectuais da criança.
O Ateneu é uma instituição para crianças de alto poder aquisitivo embora receba alunos
pobres, pela caridade de seus dirigentes. Já no primeiro dia de aula, Sergio percebe as
diferenças na atitude dos professores, de acordo com o grau de importância de suas famílias.
As questões político-sociais que envolvem o processo educacional são também analisadas por
Vigotsky (VYGOTSKY apud LEITE, 2006), assumindo a origem de um comportamento
consciente, ativo e construtor da cidadania, as relações que o homem mantém com sua
cultura.
Atualmente no Brasil, por diversos motivos, o universo cultural ao alcance de jovens e
adolescentes está representado pelos meios de comunicação de massa e por alguns conteúdos
da Internet de origem duvidosa, especialmente para aquelas classes menos favorecidas e com
situações familiares de pobreza e analfabetismo. Alheio a manifestações culturais de
qualidade, os conteúdos publicados pelos meios de comunicação de massa, levam o
adolescente a perceber um mundo em profunda crise cultural, social e de princípios.
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No Brasil de 1888, a revelação pelo diretor do Ateneu da descoberta de um caso de amor
entre dois alunos, feita a partir de uma carta encontrada, leva Sergio e seu melhor amigo a
serem humilhados publicamente e receberem uma descarga de palavrões e xingamentos por
parte dos outros alunos. Porém, logo percebem, que por razões econômicas – para não perder
os alunos – resolveu-se amainar a situação, encobrindo os acontecimentos. A omissão e a
hipocrisia são uma forma de violência velada a que ele vai ter que se acostumar para atender
ás exigências do mundo dos adultos.
Percebe então, ao final do seu primeiro dia de aula, que suas ideais de grandes amizades, de
crescimento pelo conhecimento, de grandeza moral associados à escola, não eram coisas que
ele ia encontrar aí. Nas palavras do personagem, após certo tempo “estava aclimado3, mas eu
me aclimara pelo desalento, como um encarcerado no seu cárcere” (POMPÉIA, 1888).
Triste observação, para uma criança que apenas está no seu primeiro ano escolar.
Para Vygotskyy (2004) a individuação é um processo que se dá pela interação entre o
organismo e o meio. Quando a supremacia e a superioridade estão com o meio – uma
realidade hostil, acachapante, violenta - o organismo adaptar-se ao meio com dificuldade, com
excessiva tensão e o comportamento irá transcorrer com a máxima perda de forças, com o
máximo dispêndio de energias e mínimo efeito de adaptação. A formação do indivíduo, a
aquisição do conhecimento e toda a sua adaptação ao meio social são prejudicados. As
emoções relacionadas com esta situação são o sentimento de depressão, debilidade e
sofrimento – sentimentos negativos.
Alguns pontos de reflexão
A tragédia e a violência estão presentes em todas as sociedades humanas – umas mais, outras
menos – mas a questão que se apresenta é em que medida as escolas, em sua concepção e
funcionamento atuais, contribuem para o aumento ou para a sublimação desses sentimentos
hostis?
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Significa aclimatado, acostumado.
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Como país emergente, o Brasil está apenas começando seu longo caminho no sentido de
remediar as consequências de um sistema educacional que desde o princípio, se mostrou
ineficiente, no que concerne à população de baixa renda. Além disso, o passivo educacional
agravou-se com o crescimento acelerado da população a partir da segunda metade do século
XX, sendo que naquela época, o índice de analfabetismo girava em torno de 40%.
As classes mais abastadas sempre contaram com a possibilidade de mandar seus filhos para
estudar na Europa, frequentar escolas particulares e obter melhores notas para acesso à
Universidade Pública. Mas, a imensa maioria da população – a classe média - convive com a
falta de valorização dos professores além da ausência de programas de atualização intelectual
e assistência psicológica. Ao mesmo tempo, alunos freqüentam um ambiente físico escolar
sucateado e com total defasagem tecnológica.
Seria nossa visão ultrapassada dos processos de aquisição do conhecimento e nossas práticas
pedagógicas inadequadas, aliadas a uma situação de crise das instituições, da moral e dos
valores, a causa da permanência e incremento da violência nas escolas?
Pergunta difícil.
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REFERÊNCIAS
CATINI, Nilza. Problematizando o bullying para a realidade brasileira. 2004. 183f. Tese
(Doutorado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, 2004.
LEITE, Sérgio Antônio da Silva. Afetividade e práticas pedagógicas. In: ________________
(Org.). Afetividade de práticas pedagógicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 15-45, 2006.
LEONTIEV, Alexis. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In:
VIGOTSKY, Liev S.; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alexis. Linguagem,
desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, p.59-83, 2005.
NOVA ESCOLA. O que é bullying. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/crianca-
e-adolescente/comportamento/bullying-escola-494973.shtml Acessado em: 05 dez. 2010
POMPÉIA, Raul (biografia) Disponível em:
http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u613.jhtm
Acessado em: 05 dez. 2010.
POMÉIA, Raul. O Ateneu. Disponível em:
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/ateneu.html Acessado em: 25 nov. 2010
VYGOTSKY, L. S. A educação no comportamento emocional. In:
_______________Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, p. 127-147, 2004